EUGÊNIO BUCCI
Eugênio Bucci: Mentiras, mais mentiras e rock’n roll
O poder que se instalou na Esplanada sabe que seu sucesso depende do fracasso da verdade
Ao longo desta semana, como em todas as semanas anteriores, o governo pôs no ar o seu show de mentiras escalafobéticas para, de novo, sucatear o estatuto da verdade, blasfemar contra a História, destruir o bom senso, promover a ignorância, banalizar o desrespeito aos fatos e desacreditar a imprensa. O roteiro é sempre igual. Na superfície, no jogo das aparências, entram em cena as mentiras canastronas, meio carnavalescas, que servem de factoides para bagunçar o debate público. Aí, as inverdades parecem meros acessos de loucura inconsequente e ridícula, mas são mais do que isso: são uma cortina de fumaça para uma operação subterrânea de minar as bases da cultura democrática, que já está muito debilitada no Brasil.
Nas profundas, no esgoto do bolsonarismo, o que existe é uma densa e betuminosa mentira essencial que instila o ódio contra todos os que podem verificar a verdade dos fatos, sejam os cientistas que detectam incêndio na floresta, sejam os professores que, dentro das universidades, ousam pensar criticamente, sejam os jornalistas, principalmente os jornalistas, cuja profissão consiste em investigar os acontecimentos e desmontar as mentiras oficiais.
O autoritarismo que se vai estruturando entre nós pode ser definido como o império da mentira e toda semana, uma depois da outra, temos as provas desse fato atroz e trucidante. Desta vez o protagonista da velha e repetida encenação, o mestre de cerimônias do show horripilante de mentiras, foi o novo presidente da Funarte, o maestro Dante Mantovani. Na superfície barulhenta, ele enunciou as mentiras canastronas. Nos subterrâneos da propaganda, pôs em marcha a mentira essencial, declarando uma vez mais a guerra de extermínio contra os verificadores da verdade factual.
Há dois ou três dias os brasileiros ficaram sabendo que Mantovani costuma declarar estultices em suas redes sociais. Exemplo: “O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto”. O que pode haver de mais destrambelhado? Ao mesmo tempo, o que pode haver de mais afinado com o estilo bolsonarista de bater boca? A sanha moralista é tão desmesurada que a gente tem a sensação de que, na cabeça do presidente da Funarte, os efeitos satânicos do rock atravessam o passado e o futuro, exatamente como o demo que o faz arregalar os olhos. O sujeito parece crer que, já na era de Hamurabi, todas as técnicas de interrupção da gravidez foram projetadas por essa gente cabeluda que começou a tanger a guitarra elétrica somente em meados do século 20.
Ainda no capítulo das alucinações lisérgico-reacionárias, dessas que o governo põe em circulação para desorientar o público e os pauteiros dos jornais, o maestro profissional repaginado em ordenador de despesas deu de confundir Lennon & McCartney com Lenin & Marx e assegurou que “na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.” Lucy, in the sky, manda lembranças.
Mas, atenção, esse tipo de psicodélica macabra que explode na superfície é apenas metade da invencionice sistemática operada pelo bolsonarismo. A outra metade, menos espalhafatosa, é mais insidiosa. A outra metade se dissemina pelos porões imaginários dos ativistas que morrem de saudade da ditadura e toma por alvo não as bandas de heavy metal ou as canções melosas dos garotos de Liverpool, mas os institutos democráticos incumbidos de apurar os fatos, como os cientistas do Inpe e os repórteres dos jornais independentes. Por baixo das mentiras canastronas da superfície alastra-se a mentira essencial e betuminosa do poder, escalada para revogar a História e tirar do horizonte qualquer forma de registro da realidade. Aí está a vertente mais ameaçadora pela qual o governo golpeia a sociedade.
Mantovani espelha-se diligentemente em seus superiores, que já proclamaram que o nazismo era de esquerda, e afirma que o fascismo também é de esquerda. Para quê? Para reescrever a História, invertendo seus sinais. Quanto apregoa que as fake news não passam de uma invenção dos globalistas, interessados em ampliar o poder da imprensa no mundo inteiro, quer achincalhar os jornalistas profissionais. E isso funciona. De tanto insistir no ponto, os bolsonaristas estão conseguindo enfraquecer os jornais.
O poder que se instalou na Esplanada sabe que seu sucesso depende do fracasso da verdade factual. É um poder viciado nessa droga pesada chamada mentira. Seu veneno mais letal não é a intolerância, não é o seu jeito miliciano de ser, não é a incompetência crônica no trato com a política. O seu pior veneno é sua mentira essencial, que prescreve censura e violência para resolver os problemas da democracia. O presidente da República, em pessoa, já vem ensaiando investidas cada vez mais concretas contra a liberdade de expressão. E não vai parar por aí. Vai aumentar a dose. Para ele, é questão de vida ou morte. Se a mentira vencer, ele fica. Se sua máscara cair, ele cai junto, pois sua identidade se transfundiu em sua máscara.
Enganam-se os liberais de boa vontade que dizem não haver lógica nos discursos alucinatórios das autoridades federais, obcecadas pelas drogas, pelo sexo, pelo rock abortivo e pelos comunistas infiltrados no show business. Há mais do que delírio e despreparo nos despautérios do governo: há a coerência da mentira e da fraude. Isso quer dizer que existe, sim, um nexo de consequência entre a teoria do rock abortogênico e a causa maior de acabar com a imprensa.
O governo pode bater cabeça feito um lobisomem rolando a ribanceira, mas sabe muito bem o que quer destroçar. Sabe que um país onde vigora a liberdade de imprensa está mais protegido contra a mentira. Sabe que não basta levar um ou outro jornal à falência. Sabe que precisa ter a seus pés um povo incapaz de buscar a diferença entre o que é verdade e o que é mentira. É nessa trilha que o governo avança.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Bom dia, escravo
Perto do novo formato de exploração, dar espelhinho a índio é um gesto solidário
Nos EUA, a senadora democrata Elizabeth Warren abriu uma cruzada contra o Facebook e outros titãs da tecnologia digital (tech industry), como Amazon e Google. Possível candidata à sucessão de Donald Trump, ela pretende quebrar os monopólios exercidos por essas empresas.
Do outro lado do Atlântico, a União Europeia (UE) procura fazer a sua parte. Tentou proibir os gigantes Facebook e WhatsApp (ambos controlados pelo cyberimperador Mark Zuckerberg) de compartilhar dados sobre seus usuários, uma prática que, segundo o Parlamento Europeu, violaria as políticas de proteção de dados do continente e favoreceria ainda mais o mercado monopolista. A UE também vem exigindo que os conglomerados digitais adotem medidas mais efetivas contra as fake news, mas não impôs recuos significativos aos tais titãs.
No Velho Mundo, como no Novo, as democracias ainda estão longe de enquadrar os conglomerados. Ao contrário, eles é que ameaçam engolir a democracia de uma vez.
Não é difícil de entender por quê. Se uma sociedade que se pretende livre deixa os eleitores se afogarem na desinformação, as decisões aprovadas por esses mesmos eleitores tendem a perder racionalidade, legitimidade e sustentabilidade. Quando a desinformação é crônica, aflora o risco real de que o processo decisório da democracia deságue na negação da democracia. O risco, aliás, já está posto. Em diversos países, líderes nacionais, depois de ganharem eleições livres, passam a combater a ordem democrática: em várias partes do mundo a democracia vem gestando seu oposto.
Por certo, são muitos os fatores que concorrem para esse quadro alarmante, mas, qualquer que seja o prisma analítico, as corporações que monopolizam as tecnologias digitais e as mídias sociais têm tudo que ver com isso. Na essência de seu negócio, elas não têm compromisso com a qualidade dos processos democráticos e com a verdade dos fatos. Isso porque a essência do seu negócio não é informar. Nunca foi. O negócio delas é capturar o olhar mediante todo tipo de apelação e, por meio do olhar capturado, extrair os dados pessoais de cada um de nós – dados que depois serão comercializados, sem que a gente ganhe um centavo em troca.
Nesse jogo extrativista que fez degringolar o padrão do debate público o centro do capitalismo se deslocou. Em 1998 as cinco empresas mais valiosas do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. Na lista, apenas a Microsoft, vendendo softwares, já estava no negócio de extração de dados pessoais (as outras quatro fabricavam mercadorias palpáveis, coisas corpóreas e outras antiguidades). Em 2018, passados apenas 20 anos, as cinco empresas mais valiosas do mundo eram Apple, Amazon (as duas já triscavam, no ano passado, o valor de US$ 1 trilhão), Alphabet (Google), Microsoft e Facebook.Todas eram (e são) atratoras de olhar e extratoras de dados pessoais.
A revista The Economist percebeu a mutação do capitalismo quando estampou na capa, em 6/5/2017, que os dados pessoais eram o novo petróleo. A Economist também lançava um alerta: a nova economia dos dados pedia uma nova atitude das regulações antitruste. Quem se habilitou a tomar providências? Elizabeth Warren? A União Europeia? Até agora, estamos no plano das boas intenções.
Soltos no vazio legal, os monopolistas do olhar, atuando acima do alcance das legislações nacionais, desenvolveram escalas de exploração inimagináveis. Não precisaram contratar assaltantes armados para invadir os lares e torturar os moradores até arrancar deles os seus segredos mais íntimos, como seus resultados de exames clínicos, sua fé religiosa, seus amores secretos, seus perfis de gastos no cartão de crédito, seus itinerários pela cidade e seus temores inconfessáveis. Em vez de recrutar assaltantes a domicílio, criaram estratégias sedutoras para que as multidões entregassem tudo isso e mais um pouco de mão beijada – de livre, espontânea e deslumbrada vontade.
Num Facebook da vida, o usuário sente-se um rei, como se recebesse de presente ferramentas maravilhosas para encontrar os amigos de infância e falar mal dos inimigos de morte. O pobre rei, contudo, não passa de mão de obra escrava e matéria-prima gratuita. De uma vez só. Enquanto imagina se divertir, embevecido de si mesmo, trabalha mais do que um remador das galés romanas. O Facebook não precisa empregar digitadores ou fotógrafos, pois o usuário faz isso de graça. O Facebook não precisa comprar os dados pessoais dos seus escravos, a matéria-prima vem sem custo algum, seja nas fotos de prato de comida, seja nos movimentos dos olhos diante da tela. Depois os dados viram dinheiro, na casa dos trilhões de dólares, e o usuário lá, rei imaginário, não recebe nem esmola.
Perto desse novo formato de exploração, o truque infame de dar espelhinho para índio é um gesto solidário. As crianças que trabalhavam 16 horas por dia nas fábricas infectas do século 19 não eram tão aviltadas em sua dignidade.
Estamos submetidos a uma ordem totalitária, na qual a vida privada dos reles mortais é devassada pelo poder dos conglomerados, enquanto o que se passa no núcleo do poder dos conglomerados é perfeitamente invisível para os reles mortais. As empresas mais valiosas do nosso tempo sabem tudo de nós e nós não sabemos nada sobre elas. Mais ainda, o centro dos conglomerados é opaco para o Estado democrático de direito. O poder legítimo do Estado não sabe o que se passa dentro deles. Google e Facebook escondem até quanto faturam em publicidade em países como o Brasil. Não prestam contas às sociedades que exploram.
E tudo isso para quê? Para espalhar fake news, para deteriorar a razão dos argumentos na esfera pública, para consagrar líderes que vencem eleições livres e depois bombardeiam a liberdade. Elizabeth Warren tem razão. Ou as democracias impõem limites a essas empresas, ou elas vão fazer sangrar até a morte aquela que, precariamente, teríamos chamado de civilização.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: ‘Economia criativa’ ou o mito da cultura lucrativa
Avizinha-se a política cultural dos incultos, representada pela destruição dos brucutus
O primeiro anúncio de que a produção de bens culturais se havia transformado numa indústria ordinária, banal, comum veio na forma de notícia ruim. Mais que ruim, agourenta. A expressão “indústria cultural”, formulada nos anos 40 do século passado por dois filósofos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, deixou todo mundo mal na foto. A dupla acusou os “capitães” da indústria cultural de substituírem o artista criador pelo “trabalho fungível” de anônimos, numa linha de montagem que endeusava o gosto do consumidor (que era gosto nenhum) e explorava a diversão das massas como um “prolongamento do trabalho”.
O negócio do entretenimento, então na sua adolescência, foi retratado como um engenho para alienar gente e assegurar o domínio do capital sobre as macacas de auditório. Ato reflexo, como recompensa pela má notícia que deram, Adorno e Horkheimer levaram a fama perpétua de pessimistas rabugentos. Mesmo assim, como a filosofia dos dois era boa, a influência ficou. Não dá pensar a cultura sem pagar pedágio a eles.
O segundo anúncio de que a produção de bens culturais se tinha transformado numa indústria veio na forma de euforia deslumbrada. Com excitação e ganância, a “economia criativa” foi proclamada, transformando em virtude e geração de riqueza o que a Escola de Frankfurt via como vício e manipulação.
Os pesquisadores desse filão dizem que o conceito começou a ganhar corpo nos tempos da conservadora Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990. Ela gostava de ter um publicitário por perto. Chamou marqueteiros competentes para a sua campanha e depois para o seu governo. Quando precisava convencer o contribuinte sobre isso ou aquilo, recorria ao advertising. Com essa predileção, a dama de ferro teria dado projeção aos negócios da publicidade, das produtoras de vídeo e de outros ramos que, em conjunto, formam a tal economia criativa.
A coisa só vingou mesmo alguns anos depois, entre 1997 e 2007, quando o trabalhista Tony Blair ocupou a cadeira que tinha sido de Thatcher. Blair pôs a economia criativa no centro das políticas públicas que implementou no Ministério (department) de Cultura, Mídia e Esportes. Daí em diante, em diversos países os “gestores públicos” passaram a olhar para a cultura como quem consulta um business plan, e a expressão economia criativa – hoje entendida como um setor que envolve tudo o que se relaciona com internet, turismo, grandes eventos, como a Olimpíada, y otras cositas más – entrou pesado no linguajar dos governos.
Frankfurt entregou ao mundo um pesadelo claustrofóbico com o nome de “indústria cultural”. Em resposta, a economia criativa nos devolveu a solução dos sonhos. Capitalismo também é cultura – ou, melhor, só há cultura no capitalismo. O movimento se adensou e se globalizou. Agentes públicos um pouco hipsters, que às vezes não usam gravata, situados num ponto equidistante (e improvável) entre a frieza contábil de Margaret Thatcher e a terceira via etérea de Tony Blair, passaram a professar o mantra de que cultura boa é cultura que gera impostos e financia o Estado. A onda pegou.
Foi quando o Brasil entrou no circuito. Tardia, mas consistentemente, o conceito de economia criativa vem fincando pé, com ares novidadeiros, em terras brasileiras, num contexto que exige de nós um pouco de reflexão (crítica, por certo, mas não macambúzia). Há riscos no ar. Quando a Inglaterra, dona do British Museum, da BBC e do Channel Four, vislumbra uma dimensão também econômica em atividades culturais, é uma coisa. Quando o Brasil, que incinera florestas e museus, começa a vislumbrar na devastação cultural oportunidades para o capitalismo, e mais nada, a coisa é monstruosamente outra. Os burocratas pátrios deram de fazer contas esquisitas. Dizem que festivais de música são meritórios porque anabolizam as taxas de ocupação de hotéis e geram tributos. Cifras casuísticas aparecem para metrificar a relevância cultural, enquanto um ornitorrinco microeconômico, um curiosíssimo “Ebitda” do setor público, se converte em indicador das artes.
Assim, a cultura é intimada a dar “retorno” para os cofres públicos, sendo tratada no mesmo nível que as corridas de Fórmula 1, a Marcha para Jesus, a Parada Gay ou o Círio de Nazaré. Ora, o que é cultura? Simples: cultura é o que faz tilintar o caixa da indústria do turismo. O resto é desperdício. Se você quiser montar uma peça de teatro para espectadores que morem na comunidade, esqueça. Eles não vão abarrotar a rede hoteleira. Se você quer uma biblioteca pública para moradores de rua, um abraço.
É claro que a produção cultural pode fomentar novos mercados de trabalho, e isso é muito bom – basta ver o sucesso do polo de indústria cinematográfica que se abriu no Recife, um exemplo gritante de conciliação entre o êxito econômico e a conquista cultural. O problema da adoção um tanto replicante do conceito de economia criativa entre nós não está aí, mas em outro lugar: está na redução do vasto universo da cultura e das artes a um organismo cuja mensuração cabe numa planilha de Excel.
O Brasil já pagou caro, e ainda paga, pela tecnocracia na política econômica. As contas até que fecham na bottom line, mas, como gente não é uma constante matemática, a vida social desanda. Agora o Brasil pagará ainda mais caro pela tecnocracia cultural. Avizinha-se de nós a política cultural dos incultos, e olhe que essa é a parte “menos ruim” do tablado nacional: a outra parte, a “mais pior”, é representada pela política de destruição cultural dos brucutus, os tais que censuram filmes e campanhas publicitárias com “temática transgênero”, que arrancam dos exames de vestibular menções à ditadura militar e, além de não lerem Paulo Freire, não sabem fazer conta de mais ou de menos.
De um lado, a cultura vira negócio sem conteúdo em busca de lucros ilusórios e esdrúxulos. Do outro lado, vira cinzas fumegantes. Saudade de Theodor Adorno.
*Jornalista, é professorda ECA-USP
Eugênio Bucci: Imprensa, objetividade e militância
Liberdade de informar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas
A objetividade na imprensa é possível? A pergunta é velha, mas de uns dois ou três anos para cá ganhou notas de um nervosismo inédito – ou de cinismo reles. A interrogação está na ordem do dia. É sensato esperar que uma reportagem nos dê uma cobertura fiel, veraz, precisa, justa, desapaixonada sobre o que faz e diz o presidente da República? Pode-se esperar do texto elaborado por uma redação profissional a correspondência confiável entre as palavras e os fatos?
O tema nunca foi simples. Agora, desde que líderes falastrões e autoritários se viram alçados ao poder em países democráticos, ficou mais complicado. Como reportar objetivamente os acontecimentos da política quando o mandatário ofende a objetividade com suas palavras infundadas? Como reportar os discursos oficiais que induzem a erro? Quando o governante não é zeloso na observância dos fatos, ou mesmo quando ele mente, como registrar sua fala com isenção, mas sem ingenuidade? Como a imprensa pode adotar uma postura que seja ao mesmo tempo serena e vigilante?
Para quem não tem familiaridade com os dilemas das empresas jornalísticas, essas indagações podem soar tolas ou mesmo vazias, mas, acredite, são indagações mortais. Se um jornal é dócil e solícito a um governante áspero e insensível, vai passar por sabujo e se desmoralizar. Mas se um jornal deixa de registrar o que se passa para enxovalhar a autoridade, sem senso de proporção, vai se desviar para o proselitismo e perderá credibilidade. Qual a justa medida? Onde está o critério?
As dúvidas estão na mesa. A imprensa passa por ameaças que jogam sombras sobre o futuro. Enquanto perde mercado e anunciantes para as plataformas sociais, enquanto perde sustentabilidade econômica, é alvo de bombardeios reiterados e pesados de governantes que não têm apreço pela verdade factual. Isso em vários países. Economicamente fragilizada, a imprensa se vê politicamente sitiada. E aí? Como manter a objetividade diante de poderes que são ostensivamente contrários ao trabalho dos jornalistas?
Não por acaso, perguntas como essas voltam à pauta em algumas das melhores redações do mundo. Aqui, no Brasil, há pouco mais de um mês, no dia 31 de agosto, editorial do Estado com o título de Desafio jornalístico enfrentou o mal-estar e se perguntou: “Como ser objetivo diante de reiteradas declarações presidenciais mentirosas, cínicas ou que se prestam a confundir?”. Se o presidente proclama teses fraudulentas, como proceder? As respostas não são automáticas, é claro, mas o editorial soube extrair do impasse uma recomendação sóbria: “Se o veículo que reproduz a declaração presidencial sabe se tratar de uma falsidade ou de uma tentativa de manipulação, deveria deixar esse fato explícito para o leitor”.
Desde agosto, quando o editorial foi publicado, a coisa só piorou. O “desafio jornalístico”, na verdade, é um desafio histórico de grande envergadura. A liberdade de informar, de se expressar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas. Nos nossos dias, a manutenção dessa instituição chamada imprensa, que só foi inventada para fiscalizar o poder e para fazer soar o alarme quando há desvios, precisa ser defendida. Demanda cuidados.
No meio da barulheira de certas redes sociais mais extremadas, que se comprazem em xingar de “comunistas” alguns dos maiores órgãos de imprensa do Brasil, a pressão cresce. As massas virtuais deslocaram-se para bolsões de fanatismo onde os fatos não têm valor algum. Nos polos mais à direita, os que levantam um senão contra o líder populista ultraconservador são hostilizados. Veículos de comunicação temem perder audiências. Ser crítico do poder não sai de graça. As multidões raivosas procuram uma mídia que se entregue ao sensacionalismo fascistizante e adote preconceitos no lugar da verdade factual. Na internet, nas bancas de revistas e no rádio pipocam os comunicadores do ódio que pegam carona na histeria autoritária na tentativa de arregimentar plateias e faturar na publicidade. Uns se deram mal, outros se dão bem. Com seus flancos abertos, os órgãos de imprensa mais sérios sentem na carne o sinal destes tempos de sombra: ser objetivo tornou-se um negócio de risco.
Isso mesmo: negócio de risco. Ser objetivo requer ser crítico e ser crítico significa dissentir. Ser objetivo, nesta hora, exige independência de pensamento para compreender a natureza das forças que avançam e recuam nos fluxos e contrafluxos da esfera pública. A técnica jornalística sozinha não resolverá o impasse. Ao lado dela, o pensamento precisa elaborar o critério da cobertura. É nessa medida que a crise das redações, hoje, mais do que uma crise econômica ou tecnológica é uma crise de pensamento. Para cobrir bem é preciso pensar bem – com independência.
A objetividade, embora exija equilíbrio e ponderação, não é um ponto equidistante entre o elogio da ditadura (uma mentira essencial e bruta) e o cultivo da democracia. Se pretendemos primar pela objetividade, é preciso registrar, objetivamente, o fato singelo de que as mentalidades agora instaladas no poder promovem medidas censórias e preconceituosas, deixando claro que não têm compromisso com o campo democrático. Investigar e reportar esse fato não é fazer militância partidária. Ao contrário, é uma exigência da objetividade. Quem não pertence ao campo democrático não entende por que a imprensa precisa existir – e por isso lhe dá combate sem trégua. Logo, a imprensa objetiva deve informar o público sobre as razões – objetivas e subjetivas – pelas quais vem sofrendo tantos ataques do poder. Fechar os olhos para esse fato, isso, sim, é adotar uma postura militante – a paradoxal militância por passividade.
Se na barulheira das redes sociais ultraconservadoras a democracia é causa minoritária, o papel da imprensa – que tem o dever da objetividade – é navegar na contramão. Nem que seja por instinto de sobrevivência.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Essa tal de ‘ideologia’
Seria melhor para o Brasil se Bolsonaro tivesse lido o iluminado livro de Marilena Chaui
Há 40 anos a palavra “ideologia” estava na moda no Brasil. Em 1980 um pequenino livro de bolso, O que é Ideologia, projetou a coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, para a estante rarefeita dos best-sellers brasileiros. Com um texto iluminado e iluminador da filósofa Marilena Chaui, o livrinho rapidamente ultrapassou a casa dos 100 mil exemplares vendidos, ensinando os fundamentos de um conceito labiríntico e vibrante que, naqueles tempos, encantava as plateias.
Foram tempos difíceis (como todos são) e bons (como é raro que sejam os tempos). O Brasil livrava-se aos poucos da ditadura militar e a filosofia era sucesso em bancas de jornais. Quem não tem em casa um volume que seja da coleção Os Pensadores, da Abril Cultural? Eram milhões de leitores curiosos, sedentos. Mas nem todos os brasileiros eram assim. Alguns, é verdade, não eram curiosos nem sedentos – nem leitores eram. Jair Bolsonaro, por exemplo. Teria sido melhor para o Brasil se ele se tivesse dado ao trabalho de ler algumas das 120 páginas de O que é Ideologia. Teria sido melhor, mas a história não quis assim.
Na época, o jovem militar estava mais empenhado em tumultuar a disciplina dos quartéis, reclamar do soldo e trocar a farda por um mandato parlamentar. Seu projeto era adorar o regime que se esboroava e se profissionalizar como propagandista dos torturadores que, nos anos seguintes, seriam aposentados pela democracia. Ele queria (sem saber que queria) se petrificar num esbirro ideológico, mesmo sem ter ideia do que a palavra “ideologia” pode querer dizer (ou esconder).
Eis então que, hoje, quando a palavra já havia caído em desuso, o cidadão que não sabe o que é ideologia se tornou presidente do Brasil e deu de sair por aqui (e depois por aí afora) matraqueando a respeito. A julgar pelos discursos que lê (com certo esforço, para não tropeçar nas sílabas e não errar a entonação), os escribas que o cercam padecem do mesmo déficit cultural, político e humanista. Para eles, “ideologia” é xingamento. “Ideologia” é estritamente um sinônimo chulo de mentira. (Nisso, aliás, é bom que alguém os avise, eles se parecem com marxistas de orelhada: acham que a ideologia é uma “falsa consciência”, e nada mais. Para eles, só há uma consciência verdadeira: a deles mesmos. Tudo o mais são “falsas consciências”. Tudo o mais é ideologia.)
O pronunciamento empertigado que o presidente da República gritou na abertura da 74.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, na terça-feira, foi, sem força de expressão, uma espalhafatosa première mundial da campanha que suas tropas virtuais movem contra o substantivo feminino que tanto as ouriça. Por obra dessas tropas, a palavra “ideologia” acaba de voltar à moda. O discurso do presumido líder brasileiro repete cinco vezes o tal substantivo feminino, sem contar as duas vezes em que recorre à sua versão adjetivada (ideológico). Em todas essas passagens, o sentido atribuído ao vocábulo (substantivo ou adjetivo) é o de “mentira”. Em todas essas passagens a “mentira” vem associada à esquerda, ao socialismo ou a forças que conspurcam a “família”.
Aí a gente se pergunta: ora, mas se a ideologia é a mentira, o que será a verdade na fala bolsonárica? Elementar: quando fala em “verdade”, o orador em Nova York invoca o Novo Testamento, texto considerado sagrado pelos cristãos. Isso significa que, na perspectiva presidencial, budistas, hinduístas, xintoístas, muçulmanos e ateus, que, entre tantos, integram as Nações Unidas, não terão acesso à “verdade”, uma vez que ela só se revelará aos povos que se ajoelharem diante do Evangelho de São João, nominalmente citado no discurso. Logo, exceção feita à Bíblia, os outros livros são pura ideologia.
Poucas vezes um documento de credenciais autoritárias tão escancaradas foi lido numa assembleia da ONU: a verdade sou eu, a verdade é a direita, a verdade é o meu Deus, e toda dissidência será combatida por mim como apostasia, vício, mentira e ameaça. E tome cusparadas verbais nas outras nações. Em matéria de intolerância e autoritarismo, a implicância com a “ideologia” desponta como a barbaridade mais significativa no discurso a que não faltam barbarismos.
É espantoso como um egocentrismo tão pedestre possa ordenar a fala de um governante que se dirige aos seus pares. Bolsonaro não manifestou, na ONU, a mínima abertura para a possibilidade de pertinência equivalente em outros pontos de vista. Em sua integralidade, seu discurso repele o exercício do diálogo. Em lugar de dialogar, prefere afirmar-se como um sistema sígnico autossuficiente, que nada tem a aprender com quem quer que seja e por isso reclama a todo instante uma obsessiva “soberania” sobre si mesmo.
Há um quê de insanidade nisso. O mesmo orador que diz que as lideranças indígenas (todas, no caso) não podem falar em nome das tribos, crê piamente que fala sozinho em nome do Brasil inteiro. Seu egocentrismo infantil faz dele o centro de gravidade do normal – tudo o mais é distorção (ideológica). Parece inacreditável. Como pode um habitante do planeta Terra, a esta altura, acreditar numa coisa dessas? E como pode um governante afrontar os seus iguais com disparates desse naipe?
Os escribas bolsonáricos, além de desconhecerem a diferença entre ideário e ideologia (acham, ainda, que a ideologia é um pacote de convicções equivocadas, assim como acham que ideologia só existe nos outros), desconhecem também que a ideologia é inseparável da linguagem. Toda palavra é ideológica (é signo ideológico, como enxergou Bakhtin), pois toda palavra fabrica uma realidade substituta para aquela que não poderíamos tocar, ver ou ouvir se não fosse a linguagem. Só manejamos o que chamamos de realidade por meio da linguagem.
Ninguém poderia falar sem que a ideologia o socorresse com o cimento para colar o significante ao significado. Ninguém fala sem falar a ideologia. Ninguém, só Jair Bolsonaro (e, pior pra nós, na frente do mundo inteiro).
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Taca fogo
Tochas glorificando Hitler agora são carregadas contra a Floresta Amazônica
Consta que o documentário russo-soviético O Fascismo de Todos os Dias, de Mikhail Romm, lançado em 1965, foi visto por mais de 40 milhões de espectadores. Se a plateia foi mesmo tão grande, é merecido. Montado a partir de imagens cinematográficas originais da propaganda nazista, o filme reconstitui a formação do que chama “fascismo alemão” e consegue um resultado tão esclarecedor quanto apavorante.
Preliminarmente, cabe aqui um reparo sobre o título da obra. Classificar como “fascismo” a tirania liderada por Adolf Hitler talvez não prime pela melhor precisão histórica. O horror promovido pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães não foi a mesma coisa que a autocracia de Mussolini. Muitos estudos – os de Hannah Arendt entre eles – já detectaram distinções estruturais entre nazismo e fascismo. O primeiro implementou o genocídio como procedimento administrativo do Estado; o segundo, não. No primeiro, o Estado de vigilância total era empregado para eliminar desafetos na cúpula do regime; no segundo, o Estado policial estacionou em estágios mais rudimentares. O primeiro foi a encarnação paradigmática do totalitarismo, interpelando cada cidadão como um agente de segurança a serviço do Terceiro Reich; o segundo realizou-se como exacerbação do autoritarismo.
Entretanto, a despeito das dessemelhanças, os dois modelos guardam em comum traços essenciais. Tanto no nazismo como no fascismo, pulsam as tradições regressivas do cesarismo e do bonapartismo, com forte ojeriza aos marcos civilizatórios do Ocidente e virulenta negação das liberdades e dos direitos humanos. Principalmente, nos dois as massas inflamadas se encarregam de oprimir os dissidentes.
Nessa perspectiva, o título que Mikhail Romm deu ao seu documentário tem pertinência. “O fascismo de todos os dias” significa algo como “o fascismo dos comuns”, “o fascismo ordinário” ou “o fascismo cotidiano”. O foco do cineasta – que atua também como narrador, sempre em off – está na conversão das massas em promotoras ativas dos ideários obscurantistas que seus ditadores adorados procuraram transformar em lei fundamental da humanidade. Vistos por essa lente, nazismo e fascismo são irmãos, análogos, equivalentes. Portanto, Romm pode ter razão.
O documentário, em preto e branco, é dividido em capítulos. Na abertura do Capítulo V, lemos, como epígrafe, uma frase atribuída a Adolf Hitler: “Qualquer cabo pode virar professor, mas não é qualquer professor que pode virar cabo”. Na sequência, as imagens estarrecem. São cenas noturnas, filmadas pela máquina de propaganda do Führer. Num descampado ao ar livre, algo como um pátio gigantesco ou um estádio infinito, jovens perfilados em colunas militares, fardados, carregam tochas acesas. A coreografia em meio à treva faz as chamas desenharem rios de fogo, como lava escorrendo. Ao fundo, o diretor-narrador apresenta sua leitura do que se passa na tela.
“Durante três dias após a chegada de Hitler ao poder, aconteceram estas Marchas de Tochas, Fackelzug. Eu olho para esse rio de fogo e penso: qual era o verdadeiro, o profundo sentido desse espetáculo ígneo? Bem, claro, ele mostrava o poder da nova ordem. Intimidava, exaltava as almas simples. Mas o principal dessas Fackelzug é que elas ajudavam a transformar o homem em selvagem. Aliás, transformá-lo em selvagem numa situação solene. Assim, ao tornar-se selvagem, ele se sentiria um herói. E pronto para qualquer tipo de brutalidade, ele se sentiria muito útil ao Terceiro Reich: necessário, acima de tudo, para enfrentar tudo o que se opunha ao nazismo, tudo o que ficasse em seu caminho.”
Nessa altura, as tochas, que são centenas ou milhares, começam a formar uma suástica sobre a escuridão. Mikhail Romm comenta: “Não me posso resignar à ideia de que, na Alemanha, país de grande cultura, tinham chegado ao poder pessoas semianalfabetas, obtusas e presunçosas, que fizeram qualquer coisa para transformar o homem num selvagem exaltado”.
Seguem-se cenas de livros sendo incinerados nos pátios de universidades. Clássicos da literatura universal, de Leon Tolstoi a Thomas Mann, foram queimados nesses rituais. A gramática cinematográfica adotada por Romm nos mostra que as labaredas do nazismo – ou do fascismo, em sentido amplo – ardiam para reduzir a cultura a cinzas fumegantes.
Os cultores de Adolf Hitler e de Benito Mussolini – ignaros, intolerantes e brutos – sentiam-se autorizados por seus chefes a empregar a força física contra o que os apavorava e que eles, sem terem consciência do próprio pavor, transformavam no objeto de seu ódio. De cabeça erguida, como se fossem “heróis”, atearam fogo às ideias, às letras, ao desejo. Destroçaram bibliotecas, perseguiram pensadores e jornalistas, censuraram o que Hitler chamava de “arte degenerada”, espancaram mulheres livres, mataram homossexuais. Saíram às ruas como bestas, queimando suas bruxas imaginárias em seus infernos interiores e ergueram ditaduras sem limites.
Você pode até implicar com o diretor do filme, que não esboçou uma só crítica ao stalinismo, uma vertente de totalitarismo. Romm foi um expoente da cinematografia oficial soviética e nunca peitou o regime. Mesmo assim, há quem diga que nesse filme, subliminarmente, ele teria denunciado o “fascismo cotidiano” da União Soviética. Sabe-se lá.
De um jeito ou de outro, O Fascismo de Todos os Dias segue sendo uma reflexão arguta, tragicamente atual, que nos convida a pensar sobre o que a mera objetividade não nos permite enxergar. No velho documentário soviético vislumbramos o itinerário oculto pelo qual as tochas que glorificavam Hitler se arrastaram da Alemanha dos anos 1930 para os nossos dias e, agora, carregadas por anônimos que se sentem “heróis” em guerra contra índios, ecologistas, artistas e intelectuais, tacam fogo na Floresta Amazônica.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Será tragédia? Ou será chanchada?
Bolsonaro está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini
“O inimigo avança.” Na tradução de Millôr Fernandes, essa é a frase final de Antígona, a tragédia que Sófocles escreveu há 25 séculos para nos alertar, em vão, sobre os riscos da tirania. A toda hora o rei Creonte usa a ameaça do exército rival para justificar seus abusos contra sua própria gente. É um usurpador. Chantageia os habitantes de Tebas dizendo que se ele, Creonte, não estiver no trono, a cidade cairá nas mãos dos tenebrosos invasores estrangeiros. Se os tebanos não o seguirem e não lhe obedecerem, farão o jogo das tropas que, do lado de fora dos muros da cidade, esperam a melhor oportunidade para destruí-la. Com esse tipo de paranoia conspiratória, domina seu povo pelo medo, até que, ao final, tudo desmorona – enquanto “o inimigo avança”.
Antígona nos ensina que a personagem essencial de toda tirania não é o tirano propriamente, mas o inimigo, o tal que “avança”. É bem verdade que, no caso de Tebas, esse inimigo era real e iminente, embora não fosse tão apavorante como Creonte o descrevia. Em tiranias mais presentes, o inimigo não tem existência factual; é apenas uma construção retórica para emprestar uma legitimidade fraudulenta ao regime arbitrário. No nazismo, os judeus foram postos nesse lugar de inimigo retórico; no stalinismo, o mesmo papel coube aos trotskistas. A propaganda oficial transformava pessoas indefesas – judeus e trotskistas – em oponentes de poderes incomensuráveis, capazes das atrocidades mais indizíveis. A partir daí, a perfídia do totalitarismo consistiu em dizimar seres humanos frágeis como se fossem a encarnação das piores entidades do inferno. Hitler e Stalin aterrorizavam a população e ainda posavam de vítimas, de mártires abnegados dispostos a se sacrificar e morrer pela pátria. Os dois sabiam que jamais se estabeleceriam se não tivessem inimigos retóricos para justificar a si próprios. Sabiam que precisavam inventar a personagem central de toda tirania: o inimigo.
A lição de Sófocles deveria ser relembrada todos os dias. Se você quiser se indagar com o risco de tiranias, não se preocupe em identificar o aspirante ao cargo de tirano. Antes comece procurando pelo inimigo retórico que uns e outros estão construindo com seus discursos histéricos. Por esse critério (infalível), você verá que no mundo de hoje não faltam caudilhos mais ou menos consolidados que, com suas cruzadas contra opositores mais ou menos fictícios, acarretam tragédias maiores ou menores. Quanto ao Brasil, ao menos por enquanto, não temos um tirano instalado, temos um arremedo de algo desse naipe: um presidente que não desiste de ser candidato a ditador. E então? O que representa essa figura? Para onde aponta o destino do nosso país?
O que sabemos até agora é que para alcançar seu objetivo o candidato a ditador tenta a toda hora bestializar a figura daqueles que elegeu como seus inimigos retóricos preferenciais: os políticos, os professores, os gays, os artistas, os jornalistas e um ou outro ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele sabe que precisa de um bloco de inimigos. Presentemente, deu de reclamar que lhe faltam instrumentos de mando. Queixa-se da ingovernabilidade nacional. Pleiteia, sem dizer que pleiteia, poderes para combater essa gente inútil: os políticos, que, segundo ele, só praticam a corrupção; os professores, que fazem lavagem cerebral na cabeça da juventude para desencaminhá-la com doutrinas comunistas; os gays, que conspurcam as bases da família tradicional; os artistas, que – onde já se viu? – querem liberdade; os jornalistas, que apuram os fatos; e, por fim, certos magistrados que ficam aí resistindo e se recusam a mandar prender todos os anteriores de uma vez por todas.
Olhando as coisas por esse ângulo, o risco da tirania ronda também esta terra em que se plantando tudo dá. O presidente candidato a ditador ostenta traços de bonapartismo explícito: nele transparecem o desejo incontido de atropelar os outros Poderes e a obsessão de forjar um laço direto com as massas, passando por cima das mediações institucionais (basta ver as manifestações de rua que ele mandou convocar para o próximo domingo, cuja pauta beira a inconstitucionalidade). O sujeito também carrega traços fascistas: sua pregação desmesuradamente fálica acerca de pistolas e virilidades, além de obscena, é mussoliniana, assim como são mussolinianos os elogios que se tecem no seu entorno a agrupamentos armados fora do comando do Estado. Diante de tais evidências, só se pode concluir que a democracia está sitiada e a tragédia se avizinha.
Acontece que há também um forte componente paródico no personagem em pauta. Com o devido respeito, a estampa de Jair Bolsonaro tem um quê de burlesco. Falta-lhe o carisma, que requer dons pessoais extraordinários. No fundo – cada vez mais gente pressente –, ele está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini. Seus apoiadores começam a debandar, menos por divergência ideológica e mais por se envergonharem das doses incomensuráveis de pastiche-pastelão. Muitos de seus eleitores já se furtam a comparecer às passeatas de domingo, não porque tenham desistido das convicções autoritárias, mas porque ainda lhes resta um pingo de senso de ridículo.
Visto por aí, o cenário não é de tragédia, mas de chanchada da Atlântida. Por esse ângulo, o problema de Bolsonaro não é seu liberalismo fajuto, não são os modos ferozes, não é a bancarrota da economia, não é o despreparo pedestre ou a incapacidade para depreender o significado da palavra nova-iorquino. O seu problema é mais embaixo – e mais baixo. Ele parece estar à frente de um mandato que, por não ter tido condições de se fazer levar a sério, talvez não logre se levar a cabo. Se for isso mesmo, a Nação terá perdido tempo e saúde não com um populista de direita, mas com uma piada asquerosa, regurgitada, sobre a qual o inimigo (real ou retórico) não avança porque se dobra de rir.
Ou será mesmo tragédia?
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP.
Eugênio Bucci: Um país se desfaz com machões e armas
O que está em formação no Brasil é um pacto autoritário, de viés fascistizante
O retrato está na primeira página do Estadão de ontem. A foto, assinada por Dida Sampaio, estende-se de fora a fora e mostra um amontoado de homens engravatados, sorridentes e agitados. Quatro deles reproduzem, uns com as duas mãos, o gesto que foi a marca registrada do candidato vencedor na campanha eleitoral de 2018: o indicador rijo (dedo duro) apontado para a frente e o polegar espetado para cima simulam um revólver pronto para disparar. Esses senhores parecem festejar dando tiros imaginários para o alto. São os pistoleiros do apocalipse.
No meio deles, cabeça baixa, curvado sobre uma mesa, o presidente da República também sorri. Ele apenas reclinou o tronco para assinar um papel: o decreto que facilita ainda mais o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo para colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (o texto menciona ainda praças das Forças Armadas e militares inativos). Conforme saiu publicado no Diário Oficial, o decreto também franqueia o porte a políticos, motoristas de veículos de carga, proprietários rurais e outras categorias profissionais. Por isso, aquela falange masculina em torno do chefe de Estado se rejubila. O grupo lembra uma torcida que comemora um gol. Uns e outros parecem gritar de euforia. De outro lado, há algo naqueles homens que os assemelha a crianças que acabam de ganhar um brinquedo novo. O brinquedo que tanto os excita é um aparelho de matar gente.
Uma segunda notícia que despertou alguma atenção por estes dias foi a denúncia que parlamentares brasileiros protocolaram na ONU contra o governador do Rio, Wilson Witzel. Os denunciantes afirmam que o número de mortes em confrontos com policiais no Estado bateu um recorde no primeiro trimestre de 2019. Falam em “agenda genocida”. Witzel, a propósito, filmou a si mesmo a bordo de um helicóptero armado de metralhadora de grosso calibre prometendo “acabar de vez com essa bandidagem que está aterrorizando a nossa cidade maravilhosa de Angra dos Reis”. O vídeo é forte. Talvez não seja recomendável para menores de 18 anos. Ou de 25 anos. O governante esbraveja e exulta. Parece crer que o chumbo libertará os balneários.
Imagens explícitas da fusão doentia entre virilidade e pólvora nunca foram tão obscenas – e tão oficiais – no Brasil. Nunca a política esteve tão entregue ao tiroteio. Nem mesmo no tempo da caça a Lampião. Nem mesmo nas excursões armadas que dizimaram os domínios de Antônio Conselheiro. A macheza fumegante ocupa o topo da pirâmide das virtudes políticas. Perto de personagens assim, o pobre ditador João Figueiredo, que dizia “eu prendo e arrebento”, é uma indefesa Madre Teresa de Calcutá.
Enquanto isso, no Ministério da Educação o tempo vai fechando. Segundo informou na terça-feira a Agência Brasil, o ministro Abraham Weintraub vituperou uma vez mais contra as universidades públicas e os cursos de humanidades. Segundo se lê no informe da agência – controlada pela estatal EBC –, Weintraub teria dito que “apenas 13% da produção na área de Ciências Sociais Aplicadas, Humanas e Linguística têm impacto científico” e que, apesar disso, “a maioria das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) vão para estudantes da área de Humanas”, num “investimento não traz retorno efetivo ao País”. Com esse tipo de “análise”, o ministro defende cortes orçamentários no ensino público.
Você pode até dizer que são notícias desimportantes. Talvez sejam mesmo. Diante das urgências clamorosas que reclamam soluções da gestão pública neste país, os trejeitos machistas do entorno do presidente da República, as bravatas facínoras do governador do Rio ou as selvagerias verbais do ministro da Educação, haveremos de convir, são episódios menores. Não obstante, importam. É por esses episódios menores que o caráter do poder que aí está se revela sem reservas. É nos excessos despudorados dessas autoridades que podemos vislumbrar a face crua de um estado de coisas que promove a multiplicação das armas de fogo, ao passo que amaldiçoa a circulação de livros e ideias.
Para a onda autoritária em ascensão, esta que aí está, só a violência pode organizar a vida. Para o bolsonarismo, a reflexão filosófica é perda de tempo (“não traz retorno”) e os cursos de humanas são centros geradores de “balbúrdia”. Estamos assistindo, com alguma passividade, a uma reprise de filmes antigos cujo final já conhecemos. Esses governantes não suportam a dissidência, a diversidade, a discordância, a liberdade individual de dar curso ao desejo, tenha ele a forma amorosa que tiver. Eles não gostam de democracia, na verdade. Eles detestam os livros. Eles são fascinados por armas fálicas.
Os pactos autoritários tiram seu vigor da obediência, da adesão e da renúncia de cada um à autonomia crítica. Não por acaso, é isso o que o bolsonarismo requisita a seus seguidores. A ordem democrática, ao contrário, extrai energia das diferenças. A obediência mata as sociedades democráticas, pois mata, dentro delas, os princípios que favorecem a alternância do poder na esfera política, a inovação na área industrial e a arte desestabilizadora no campo da cultura. A obediência – tão cara ao bolsonarismo – clama por tiranias, assim como o exercício da liberdade clama por democracia.
Não há mais como ter dúvidas: o que está em formação no Brasil é um pacto autoritário, de viés fascistizante, que anuncia aos súditos uma bonança que será produzida por tiros de fuzil. Nesse pacto, as bibliotecas serão banidas como focos de subversão e os quartéis serão transformados em catedrais da moral. O poder que se vai formando entre nós é o poder das desumanidades armadas.
Faz muito tempo, o escritor Monteiro Lobato escreveu que “um país se faz com homens e livros”. Hoje olhamos para os palácios no Brasil e constatamos a escassez do que nos torna humanos, seja no plano das ideias, seja no plano dos sentimentos. Um país se desfaz.
*JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
Eugênio Bucci: Os expulsos do Banco do Brasil
Sexismo virou critério para a estética publicitária
O presidente da República já deu mostras enfáticas, reiteradas e indisfarçáveis de que não hesita em atear fogo no interesse público para promover suas predileções moralistas, antiquadas e fascistizantes.
Foi assim quando, para bajular o governo de extrema-direita de Israel, criou uma enorme confusão nas relações comerciais do Brasil com os países árabes. Foi assim quando abriu mão do princípio da reciprocidade e, unilateralmente, dispensou os americanos de terem visto para entrar no Brasil (embora os brasileiros sigam obrigados a trilhar as catacumbas da burocracia para ter um carimbo no passaporte que lhes permita pisar em solo estadunidense) --tudo para prestar vassalagem ao seu ídolo Donald Trump, eleito pelas falanges bolsonáricas como o farol do conservadorismo mundial. Foi assim, de novo, quando interveio atabalhoadamente numa decisão interna da Petrobras e travou o reajuste do preço do diesel e derrubou o valor da companhia em dezenas de bilhões de reais.
A mesma coisa aconteceu na semana passada, quando Bolsonaro ordenou que o Banco do Brasil tirasse do ar um anúncio de TV dirigido ao público jovem, cujos hábitos são menos caretas do que preconiza o discurso hoje em voga no Planalto.
De uma tacada, o presidente desrespeitou a Petrobras, enxovalhou (de novo) suas vãs promessas liberais, humilhou gays, trans, bissexuais e jovens em geral, feriu a dignidade de todos e todas que não cultivam intolerância sexual de nenhuma espécie e decretou a expulsão simbólica do Banco do Brasil de todos os homens que não se definam por usar apartamentos funcionais para "comer gente" e de todas as mulheres que não achem que as meninas devam se vestir de rosa e os meninos de azul.
Para o presidente, qualquer pessoa que não partilhe de sua doutrina de gênero é "persona non grata" no Banco do Brasil. Com ele, o sexismo se tornou critério ordenador da estética publicitária e filtro de seleção de correntistas de uma casa bancária que se definia como pública. Ele quer um Banco do Brasil em que somente os heterossexuais possam abrir conta, e se isso implicar perda de clientes, de valor, de capital, não importa. Para ele, o patrimônio do povo brasileiro está hierarquicamente subordinado à moral sexual que ele professa (ou acha que professa).
Sigmund Freud, certa vez, em correspondência ao amigo suíço Oskar Pfister, escreveu que às vezes era preciso agir como o artista que compra suas tintas com o dinheiro do orçamento doméstico e depois, ao pintar suas telas, põem fogo nos móveis para que sua (ou seu) modelo não sinta frio. Freud via nessa atitude do pintor um compromisso radical com a arte. O artista, porém, queima os móveis da casa dele, particular. Freud jamais fez a mesma recomendação a um governante.
Já tivemos por aqui presidentes que vendiam estatais para pagar salários correntes e outros assaltavam o erário para comprar gravata de butique e financiar divertimentos de pouco decoro. Mais raros são os que põem fogo na coisa pública. O imperador romano Nero fez isso em Roma, já sabemos, mas ele pelo menos achava bonito ver a cidade em chamas. O caso presente está mais para a feiura do que para a beleza. O presidente não se deleita ao ver as cifras em combustão, apenas acha feia, repulsiva, a imagem de quem não é como ele acha que é, acha feio o marcador sexual que não é igual ao que ele julga ser o seu.
O chefe de governo age como se precisasse, doentiamente, extirpar de seu horizonte visual qualquer signo de sexualidades não convencionalíssimas. Contemplá-las, para ele, parece ser insuportável. Freud certamente não o classificaria como um "artista" doido. Talvez tivesse outra pista para interpretar tamanha obsessão, mas isso não é da nossa conta.
Voltando então ao estrito interesse público, é o caso de alertar: se deixarmos --e até aqui estamos "médio" deixando--, esse governante vai seguir usando o Estado como combustível de suas fogueiras inquisitoriais. Primeiro, vai lançar suas labaredas obscurantistas (que as há) para expulsar a homoafetividade do Banco do Brasil. Depois, vai passar aos expurgos mais definitivos.
*Eugênio Bucci, Jornalista e professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Censura epidêmica
Ela maculou a reputação do Supremo Tribunal e abalou a expectativa de segurança jurídica...
Ao trancafiar os cálculos sobre a reforma da Previdência, impedindo jornalistas e, no mais, qualquer brasileiro ou qualquer brasileira de ter acesso aos números, o governo federal ultrapassou (mais uma vez) as imagens mais claustrofóbicas da ficção científica mais pessimista. Nos filmes Blade Runner (baseado num conto de Philip K. Dick) ou Matrix (inspirado no livro Neuromancer, de William Gibson), conhecemos as engrenagens maquínicas de um poder que se desumanizou por inteiro para se converter ele mesmo num ciborgue-leviatã, mas até mesmo ali os seres humanos conseguem, de um jeito ou de outro, fazer contas com dados reais.
As mais famosas distopias do século 20, como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, também não nos ajudam nesse campo – embora no livro 1984 exista o Ministério da Verdade, cuja atribuição é construir e instalar as verdades oficiais que são mentiras absolutas. Essa coisa bolsonárica de decretar o sumiço das planilhas em que o governo trabalha para sustentar seu projeto de reforma da Previdência parece conter mais pulsões totalitárias do que o cardápio de expedientes tirânicos imaginado por George Orwell.
Não que o Brasil esteja virando um Blade Runner ou uma Laranja Mecânica (a obra-prima de Stanley Kubrick, cujos fantasmas nos vêm puxar a perna durante estas noites sufocantes de 2019). Não que o totalitarismo se tenha instalado no Brasil. O risco, por enquanto, é mais incipiente, mas é real.
A iniciativa de banir a aritmética do debate político escancara o que vai pela cabeça do comando do Executivo. Se ainda não temos aqui o Ministério da Verdade, e não temos, não é por falta de disposição do poder. Se ainda não viramos uma paródia depressiva de Admirável Mundo Novo, é só porque a malha institucional – um tanto pitimbada, mas efetiva – da nossa democracia tem resistido. Se dependesse dos novos inquilinos da Esplanada, o Ministério da Verdade já estaria em pleno funcionamento.
Nesta hora, a compreensão dos vetores que orientam os atos do poder é tão ou mais decisiva do que a análise do quadro objetivo. A subjetividade instalada no governo conta. As intenções contam – contam porque desnudam o projeto em curso. O governo que aí está pode parecer errático. Nada do que ele propõe dura. As idas e vindas – as tentativas erradas e os erros consumados – se embolam sem que se consiga extrair das condutas destrambelhadas uma linha coerente, lúcida. Para piorar a desorientação randômica das cabeçadas palacianas, há ainda as brigas internas entre facções que, também elas, são desorganizadas e violentas como gangues adolescentes. Num ponto, contudo, esse governo ostenta uma unidade coesa: esse ponto são as investidas contras as liberdades e os direitos. Nisso o impulso essencial da Presidência da República é uno e compacto. Trata-se de um denominador comum que dá uma racionalidade tanática ao desordenamento das aparências. É por isso, enfim, que se tornou essencial entender a subjetividade do delírio autoritário que tomou o poder no Brasil.
A intenção manifesta de reescrever os livros de História do Brasil para limpar a folha corrida da ditadura militar, o revisionismo de afirmar que o nazismo é de esquerda, as ações mais ou menos destrambelhadas para liberar (ainda mais) as armas de fogo se coadunam perfeitamente com essa medida de censurar os números. Vai ver, no entendimento de alguns deles lá em cima, esse negócio de conta de mais e conta de menos também é coisa de comunista. A mentalidade censória agora elegeu uma nova vítima: os algarismos e os sinais da aritmética.
Tudo já seria ruim se a mentalidade censória se restringisse ao Poder Executivo. Mas a situação é pior. O Supremo Tribunal Federal (STF), até ele, agora também enveredou por esse caminho. É sabido desde sempre que, em sua primeira e segunda instâncias, o Poder Judiciário tem cedido, e com frequência, à tentação de impedir que conteúdos jornalísticos alcancem o público. Mas a cúpula do Judiciário, o STF, vinha se pautando por princípios menos antimodernos, resguardando as liberdades e reformando decisões obscurantistas. Este jornal mesmo só se livrou da censura judicial graças ao STF. Em 31 de julho de 2009, o Estado foi proibido de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal. A situação só se normalizou 3.327 dias depois, em 8 de novembro de 2018, quando o Supremo desmontou a censura.
De duas semanas para cá, o cenário no STF mudou. A decisão de um de seus ministros de impor censura ao site O Antagonista e à revista eletrônica Crusoé discrepou da linha habitual da Corte sobre a matéria. Pior: o veto foi imposto no âmbito de um inquérito, sem que tivesse sido formalmente solicitado por uma parte que se declarasse prejudicada. O STF agiu de moto-próprio (de ofício). A medida censória foi revogada dias depois pelo ministro Alexandre de Moraes (pois a decisão era um disparate completo), mas a censura à revista Crusoé maculou a reputação da Corte e abalou a expectativa de segurança jurídica quando o que está em jogo é o livre exercício da profissão de jornalista.
Outra vez, aqui, a subjetividade faz toda a diferença. Por que o STF se desviou por esse caminho? O que vai na cabeça dos magistrados? A resposta a essas perguntas passa por uma incompreensão crônica da nossa cultura jurídica (e da nossa cultura política) do instituto da liberdade de imprensa. Já tratei dessa incompreensão em artigos anteriores (como em Não sabem o que é ‘news’ e querem caçar ‘fake news’, de 24 de maio de 2018).
O horizonte, que já era crítico, traz preocupações adicionais. Se o STF se afasta do papel de proteger as garantias fundamentais, de onde virão os freios e contrapesos para estancar os delírios autoritários do Executivo?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: A mentira na política e o ideário fascista
Ou a sociedade civil se levanta ou as piadas de mau gosto ganharão a fisionomia do horror
Antes de tratar da mentira devo dissipar eventuais impressões de que alguém aqui vá falar como dono da “Verdade”. Nem a filosofia detém a propriedade da “Verdade”, que lhe foge como nuvem nas rarefações da metafísica. A ciência também não pontifica sobre a “Verdade”. Uma conclusão científica tem crédito não por ser perfeita ou inabalável, mas por ser falível; só vai vigorar por ser falha e só vai prevalecer até que sua falha seja demonstrada. Confiar na ciência é confiar num método, não numa “Verdade”. Bem sabemos que, por vezes, a ciência se desvia e seus representantes começam a falar como se fossem profetas, mas aí a razão se perde e o discurso da ciência vira um dispositivo de poder para interditar o pensamento. É a treva.
De sua parte, a política, também ela, já se deu conta de que não tem como apresentar respostas para a questão da “Verdade”. Quando tentou, a história não terminou bem. Os iluministas do século 18 prometiam que a opinião pública faria emergir a “Verdade”, que brotaria dos subterrâneos da fome. Depois deles, na Rússia czarista do início do século 20, os bolcheviques vieram com um jornalzinho chamado Pravda (nada menos que “a verdade”, em russo). Deu no que deu. Os iluministas perderam a cabeça. Os bolcheviques, a alma. De minha parte, portanto, não sou candidato a ser dono de nenhuma “Verdade” grandiosa. Nem dono, nem inquilino.
Feito o preâmbulo obrigatório, vamos ao que interessa: mesmo sem saber o que é a “Verdade”, cada um de nós sabe muito bem apontar a mentira na política. Não precisamos da ajuda de filósofos ou de cientistas nesse campo. A natureza e a cultura já nos deram as faculdades e as habilidades necessárias para identificar os fatos objetivos. Sabemos dizer se é noite ou se é dia, sabemos comprovar se faz frio ou calor e, coletivamente, aferimos se há crianças sem escolas, se faltam remédios em hospitais e se homens e mulheres não encontram empregos. Aqui não falamos mais de uma “Verdade” celestial e perpétua, mas da simples e comezinha “verdade dos fatos”, ou a verdade factual. Trata-se de uma verdade “menor” (conforme nos ensina Hannah Arendt), mas, mesmo “menor”, faz a maior diferença.
Por sabermos o que são fatos objetivos, sabemos apontar a indústria da mentira. Sabemos que é mentirosa essa conversa de que o nazismo é de esquerda. Sabemos que mente quem diz que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado e que no IBGE se usam metodologias fajutas. Acima disso, sabemos que todas essas mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram a público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo (a palavra é chata, mas não há outra).
Os indícios estão postos. Estão aí os discursos que tentam inventar um passado de glórias contra inimigos inexistentes. Estão aí as narrativas heroicas que enaltecem a banda mais animalesca da ditadura militar, aquela que torturava adolescentes, matava opositores e censurava as artes e a imprensa (este jornal, inclusive). Aí está o ódio explícito aos jornalistas disseminado sob o patrocínio do Palácio do Planalto. Estão aí as campanhas de moralização violenta dos costumes, que elegem o universo masculino como ideal de mando e elogiam a docilidade feminina como selo de obediência. (Na Itália de Mussolini o homem era instado a ser “marido, pai e soldado”.)
Está aí a militarização dos signos da República – ou a estetização do Estado pelo figurino da caserna. Está aí, declarada, a meta de transformar as escolas em extensão dos quartéis e de reescrever a história da ditadura nos livros escolares. Está aí a vinculação orgânica entre gangues (ou milícias) e os propagandistas do bolsonarismo: o palavreado, a indumentária e o gestual furibundo dos milicianos pautam o estilo meio pistoleiro dos “influenciadores digitais” da direita inculta. Está aí o desprezo bonapartista com que o chefe do Executivo trata o Parlamento. Estão aí os insultos difusos contra o Judiciário.
Está aí a sujeição da política externa a slogans fundamentalistas que atropelam o interesse nacional. Está aí a vilanização da política a pretexto de combater o “crime organizado”. Está aí um Poder que se atribui o monopólio sobre os símbolos nacionais, que se julga sinônimo da nação e banca o arauto da “Verdade”.
Tudo isso é impostura. Tudo isso é fascismo canastrão, requentado, que seria paródico se não fosse letal. A usina de mentiras controlada pelos governistas planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem. As armas de fogo são os novos amuletos da virilidade que espanca mulheres e homossexuais. Socialistas, artistas, gays, professores e intelectuais são os inimigos da pátria, da família e de Deus.
Por fim, é mentira que o poder de turno reúna condições para promover “reformas” que atendam ao bem comum. Esse governo não é um mal necessário para promover “limpezas ideológicas” ou “saneamentos” da máquina pública – é apenas a necessidade do mal.
Quando vamos entender? Em política, nenhum fim justifica nenhum meio. Ao contrário, os meios determinam os fins. Nada de virtuoso virá de um governante que ofende a história da humanidade e não guarda respeito pela ordem que lhe conferiu o mandato: ao bajular a ditadura extinta, enxovalha o juramento que fez de “manter, defender e cumprir a Constituição”. Ou a sociedade civil se levanta ou o que hoje vem sendo engolido como piadas de mau gosto (há quem dê risada) ganhará a fisionomia do horror. Lamento, mas são os fatos.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Segura o ‘fascio’
O estilão de brucutu digital de S. Exa. faz lembrar Correa, Chávez Maduro, Mussolini
Primeiro, logo no dia seguinte à sua vitória eleitoral, ele investiu contra a Folha de S.Paulo. E isso ao vivo, para todo o País, numa entrevista ao Jornal Nacional. Foi numa segunda-feira, 29 de outubro. O eleito não continha sua revolta com uma reportagem da Folha que noticiara um fato embaraçoso: uma funcionária do gabinete dele na Câmara dos Deputados vendia suco de açaí na praia em horário de expediente. Detalhe: a barraca da assessora era vizinha da casa de veraneio do então deputado (hoje presidente da República) na praia de Mambucaba (RJ). Naquela segunda-feira no Jornal Nacional, menos de 24 horas depois de proclamada sua vitória, o eleito, em vez de conclamar o Brasil à unidade e ao congraçamento, endereçou mensagens de fel. Uma delas destinada à Folha: “No que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal”. E vaticinou: “Por si só esse jornal (Folha) se acabou”.
Depois de malhar a Folha, ele voltou sua artilharia para a Globo, a quem chamou de “inimiga”. Foi no dia 12 de fevereiro, numa conversa por WhatsApp com o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno. O chefe de Estado negara que a conversa tivesse existido, até que, uma semana depois, a troca de mensagens foi revelada pela revista Veja.
Ele estava bravo naquele dia 12 de fevereiro. Bebianno receberia a visita de um vice-presidente da Globo e o presidente não se conformava. “Gustavo, o que eu acho desse cara da Globo dentro do Palácio do Planalto: eu não quero ele aí dentro. Qual a mensagem que vai dar para as outras emissoras? Que nós estamos se (sic) aproximando da Globo. Então, não dá para ter esse tipo de relacionamento. Agora... inimigo passivo, sim. Agora, trazer o inimigo para dentro de casa é outra história.”
O texto presidencial, embora, como dizer, randômico, produziu um mal-estar medonho. Aturdido, o País se perguntava: que história é essa de, numa democracia, a mais alta autoridade do país se referir à imprensa como “inimiga” ao conversar com um ministro?
O estrago foi tanto que no próprio dia 19 de fevereiro, quando se tornou público que o presidente trata como “inimiga” uma empresa jornalística, o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, em coletiva de imprensa em Brasília, tentou segurar o facho do chefe. Diante de uma plateia de jornalistas, explicou-se como pôde: “A imprensa, em qualquer democracia, é um ponto de equilíbrio para a consolidação da sociedade. Absolutamente o nosso presidente enxerga a imprensa como inimiga. Ao contrário, a vê como um fortalecimento do seu governo, um fortalecimento da sociedade, e já esboçou isso várias vezes. (...) Vocês são muito importantes, vocês são parte de um projeto de um país que vai deixar de ser país do futuro e que vai ser país do presente. Eu quero agradecer ao empenho de vocês, em nome do presidente”.
A fala do porta-voz também tem um quê de errática, centrífuga, além de incongruente – imprensa não existe para fortalecer governo nenhum –, mas, de um jeito ou de outro, foi acolhida com boa vontade. O governo que aí está foi eleito legitimamente, dentro da legalidade. Quando seus representantes se portam com urbanidade, os diálogos fluem como devem fluir. Os jornalistas, em geral, é bom que se repita, são pessoas de bom trato. A postura de procurar descobrir o que as autoridades prefeririam esconder faz parte do ofício e, mais ainda, é indispensável para a normalidade democrática. Jornalistas existem para desvelar o que o poder esconde. É assim que funciona, embora o dirigente máximo do Poder Executivo federal pareça não dispor de meios para compreender.
Os sinais entrópicos que ele emite sobre a matéria são de estarrecer as paredes. Outro dia mesmo, em seu Twitter, agora convertido em órgão de Estado, usou o termo “canalhice” para se referir a um texto jornalístico do qual discordou. A cada três dias, conforme levantamento do Estado em sua edição de terça-feira, o Twitter presidencial dispara contra a mídia.
Vai se fixando assim a impressão geral de que, na opinião dele, a imprensa que não serve ao “fortalecimento do seu governo” deve ser tratada como “inimiga”. O improvável leitor que não se engane: dessa opinião presidencial vai se erigindo o que potencialmente já se apresenta como um dos mais sérios entraves à estabilidade política. Um governante que não compreende a liberdade de imprensa não compreende o que é democracia. E um governante que não compreende o que é democracia tenderá a atropelar direitos e liberdades aqui e ali. Vai atropelá-los por atos, por palavras, por omissões, ou simplesmente por despreparo.
Eis então que, depois de lançar desaforos contra a Folha de S.Paulo, depois de ofender as Organizações Globo, depois de xingar repórteres e editores, ele agora resolveu apontar sua insídia contra este jornal, O Estado de S. Paulo. Valendo-se de uma fake newsescabrosa, atentou nominalmente contra a reputação profissional da repórter Constança Rezende, acusada de tentar “arruinar” seu governo. A boataria caluniosa contra Constança Rezende, endossada por ele, já foi reiteradamente esclarecida e desmentida. Mesmo assim, não se ouviu um pedido de desculpas do Palácio do Planalto.
Cada dia mais, o estilão de brucutu digital de Sua Excelência faz lembrar a falta de polidez de Rafael Corrêa, no Equador, ou de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, que iam (ou ainda vão) ao ar em cadeia nacional de rádio e televisão para vituperar contra repórteres. Há também semelhanças com Benito Mussolini, desgraçadamente.
Tanta brutalidade não é só grosseria. O que está em preparação no Brasil ultrapassa em muito a falta de educação. Não são jornais e emissoras de televisão que estão sob ataque cerrado. É a instituição da imprensa, com tudo o que ela tem de mais essencial. Sim, a democracia corre risco no Brasil.
* Jornalista, é professor da ECA-USP