EUA
Rubens Barbosa: Amazonas e 5G
O Brasil está na incômoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China
Cada vez mais, todos os países terão de lidar com os impactos na sua economia de decisões tomadas no exterior e sobre as quais não têm influência. Novas prioridades globais, como a preocupação com o meio ambiente, a mudança de clima e a desigualdade social, terão influência nas políticas internas dos países.
Incertezas e desafios internos e externos serão, assim, a realidade para o Brasil em 2021. Além das políticas e reformas estruturais, duas questões serão cruciais para definir projeções mais positivas de crescimento econômico do País na década que se inicia: a ratificação do acordo do Mercosul com a União Europeia (UE) e a decisão sobre a implantação da tecnologia 5G.
A assinatura do acordo de livre-comércio com a UE, bem assim sua ratificação ficarão na dependência da percepção externa sobre o cumprimento pelo Brasil dos compromissos assumidos nos acordos de meio ambiente e mudança de clima assinados desde 1992 e sobre a fiscalização e a repressão de ilícitos no desmatamento, nas queimadas e no garimpo na Amazônia. Mais recentemente, a UE comunicou aos países-membros do Mercosul, como condição para levar adiante o acordo, sua intenção de assinar uma declaração conjunta anexada ao acordo definindo compromissos ambientais e sociais dos dois blocos para reforçar a confiança dos países europeus na posição do Mercosul, em especial do Brasil, acerca da Amazônia.
Em 2021 deverá haver duas importantes reuniões relacionadas ao Acordo de Paris, sobre mudança de clima em Glasgow, na Escócia, e sobre biodiversidade, na China, o que abre oportunidades para o Brasil mostrar os avanços no que se refere à Amazônia. Argentina no primeiro semestre e Brasil no segundo terão de atuar fortemente junto às lideranças políticas e os Parlamentos para fazer o acordo ser assinado e ratificado.
No tocante à tecnologia 5G, o Brasil está na incômoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China na crescente confrontação estratégica das duas maiores economias do mundo e seus dois maiores parceiros comerciais. A disputa das duas superpotências pela hegemonia econômica, comercial e tecnológica global continuará pelas próximas décadas e ganhará novas características a partir deste mês de janeiro, com o governo Biden.
Como a confrontação não tem as mesmas características ideológica e bélica da disputa entre EUA e União Soviética, a importância da parceria comercial com a China para muitos países fez a UE concluir as negociações de significativo acordo de investimento com Beijing, na contramão do que propõem os EUA. Sem tomar partido de um lado ou de outro no tocante à definição da tecnologia 5G, mais da metade das maiores economias globais já adotaram a tecnologia chinesa, enquanto há ainda um número elevado de países desse grupo sem decisão formada sobre o assunto. A Alemanha chegou até a passar no Parlamento uma lei de segurança de redes que permite o uso da tecnologia da Huawei em redes 5G em troca de garantias da empresa chinesa sobre a proteção de informações em seus equipamentos.
Para o Brasil a tecnologia 5G será importante, especialmente para permitir a modernização da indústria, cujo desenvolvimento ficou afetado pelas dificuldades econômicas internas e pela perda da competitividade. Apenas 10% da indústria brasileira pode ser considerada no estágio da quarta revolução industrial (4.0). As redes particulares propiciadas pela 5G facilitarão o processo de recuperação e atualização da indústria local, com benefício para a economia, o emprego e as exportações nacionais.
O atual governo terá a responsabilidade de adotar medidas que sejam vistas como adequadas e com resultados concretos na política ambiental e de mudança de clima para permitir a ratificação do acordo de livre-comércio com a UE. Caso contrário, a crescente demanda dos governos e, agora, também do setor privado, em especial grandes companhias e instituições financeiras, e dos consumidores sobre a preservação da Amazônia acarretará medidas contrárias aos interesses nacionais – restrições às exportações, boicotes a produtos brasileiros e prejuízos pela suspensão de financiamento de projetos de interesse do governo. Uma decisão baseada em considerações ideológicas e geopolíticas, no caso do 5G, terá consequências nefastas para o País em médio prazo, pelo atraso de dois a três anos na utilização de uma tecnologia que vai revolucionar o mundo e pelo custo de milhões de dólares que a mudança da infraestrutura existente acarretaria para as empresas de telecomunicação e para os consumidores.
Não levar em conta essas realidades será afetar as perspectivas de desenvolvimento econômico, de reindustrialização do País e de avanços na inovação e na tecnologia, agravando ainda mais as condições sociais domésticas e dificultando uma posição relevante do Brasil no mundo, o que deveria ser de nosso interesse.
A invasão insurrecional do Congresso em Washington deverá ter forte impacto na política interna de países onde o nacional-populismo pode ameaçar as instituições, pondo em risco a democracia. A política ambiental de Joe Biden deverá ter consequências concretas no Brasil.
PRESIDENTE DO IRICE
Oliver Stuenkel: Como o fim da Guerra Fria contribuiu para a polarização dos EUA
Colapso da União Soviética eliminou a ameaça existencial que ajudava a estabilizar a política norte-americana
Quando ficou sabendo da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, meu pai ficou extasiado. Correu pela casa gritando “Caiu o Muro!”, como se seu time de futebol tivesse vencido o campeonato. Horas depois, toda a família estava na estrada em direção a Berlim, onde dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram para saudar cidadãos da Alemanha Oriental, que entravam na parte Ocidental de Berlim pela primeira vez. Sem compreender o significado geopolítico daquele episódio na época, me impressionei com meu pai abraçando pessoas desconhecidas, todo o mundo aos prantos.
Como a vasta maioria da sociedade norte-americana, meu pai, um berlinense que passou a adolescência nos Estados Unidos, viu no colapso da União Soviética um triunfo histórico dos EUA. Ele fazia questão de que minhas irmãs e eu cursássemos parte do Ensino Médio em uma escola nos Estados Unidos. À primeira vista, a década de 1990 lhe dava razão: foi um período marcado por um boom econômico nos EUA e muita confiança de um país que se via, pela primeira vez na história, sem rival no planeta.
Em retrospectiva, porém, ficou claro: o colapso da União Soviética plantou na sociedade norte-americana a semente da polarização destrutiva, hoje uma marca registrada da política contemporânea dos EUA. Os debates políticos nos Estados Unidos durante a Guerra Fria não foram sempre civilizados evidentemente. A carreira do senador Joseph McCarthy, um charlatão famoso nos anos 1950 por liderar o combate a supostos comunistas infiltradosno Governo norte-americano, é prova disso. Durante expressiva parte desse período histórico, porém, havia consenso na população americana de que, diante da ameaça soviética, haveria limites aos ataques a oponentes na política doméstica. Afinal, a disputa contra a URSS gerava uma espécie de acordo nacional, que unia todos os atores políticos nos EUA, independentemente de suas convicções ideológicas.
Livre de preocupações sobre a sobrevivência do país, o tom na política norte-americana nos anos 1990 mudou para pior. Carente do grande projeto nacional de derrotar o comunismo, a política começou a priorizar intrigas que apequenaram a elite política dos EUA. Liderado pelo deputado republicano Newt Gingrich em 1999, o processo de impeachment de Bill Clinton —do qual seria absolvido pelo Senado depois—indicava uma abordagem de vale-tudo e a demonização dos opositores. Duas décadas mais tarde, a fragilidade da democracia americana revelou-se ainda mais flagrante quando seguidores pró-Trump invadiram o Capitólio para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Como escreve Janan Ganesh, “o fim da Guerra Fria foi uma vitória da qual os Estados Unidos nunca se recuperaram.”
A última vez em que um candidato à presidência dos EUA ganhou mais de 400 votos no Colégio Eleitoral foi em 1988, quando George Bush pai, piloto da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, com longa experiência de política externa, venceu na vasta maioria dos Estados norte-americanos. Não se trata de uma coincidência. Desde então, todas as eleições presidenciais revelam um país profundamente dividido, com ambos os lados acusando o outro de inimigo da pátria, cuja vitória representaria o fim da república. Não surpreende, tampouco, que mais presidentes tenham sofrido processos de impeachment desde o fim do confronto ideológico com os soviéticos do que nos primeiros dois séculos da república estadunidense.
Nesse contexto, a ascensão da China e a emergência de uma guerra fria entre os EUA e esse país asiático teriam o potencial de ajudar a sociedade americana a superar suas profundas divisões, que hoje representam ameaça à estabilidade política do país? À primeira vista, parece que não —afinal, apesar do seu sistema político formalmente parecido com o da União Soviética, qualquer um que pousa no aeroporto de Pequim ou Xangai logo percebe que a sociedade chinesa é profundamente capitalista e pelo menos tão materialista e individualista quanto a dos Estados Unidos. Enquanto na Guerra Fria (1947-1991) havia pouca interação econômica entre os EUA e a União Soviética, hoje, milhares de empregos norte-americanos dependem da China, dificultando um confronto como o proposto por Donald Trump nos últimos quatro anos. Um vasto número de estudantes chineses, muitos deles filhos da elite política da China, assegura a sobrevivência das universidades norte-americanas. Além disso, diferentemente da União Soviética, a China não tem planos de exportar seu modelo político ou econômico. Transformar o regime comunista chinês em bicho-papão com o fim de unificar os EUA não seria nada fácil.
Por outro lado, tudo indica que Trump é apenas sintoma de um novo consenso anti-China em Washington, reflexo de uma sociedade cada vez mais preocupada com o deslocamento de poder para o gigante asiático. O bloqueio de aplicativos chineses pelo Governo dos EUA e a disputa pela supremacia digital entre as duas potências, simbolizada pela atuação do Governo norte-americano contra a empresa chinesa Huawei, representam somente o começo de um novo sistema internacional marcado por esferas de influência de natureza tecnológica, dividindo o mundo em países que ou usam tecnologia americana ou preferem a chinesa. Parece provável que líderes políticos nos EUA tentarão aproveitar esse novo cenário para incitar o nacionalismo que ajudou a estabilizar o debate político durante a Guerra Fria.
Um estrategista da equipe de transição do Governo Biden me disse recentemente que a postura de Trump em relação à China era “talvez o único ponto de convergência que temos [com os Republicanos]”. Só o tempo dirá se esse entendimento será suficiente para ter início uma reaproximação entre Democratas e Republicanos de forma a superar a hiperpolarização que se apoderou da política norte-americana.
*Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel
Cacá Diegues: Uma nova democracia
O fracasso da invasão do Capitólio se deu graças à aliança entre democratas e republicanos
Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus, pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da versão política de Steven Levitsky à nênia econômica de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump. Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008. A decadência desse baile de máscaras ideológico nos pegaria em cheio — a eleição, no Brasil, de Jair Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos tempos.
Como disse Manuel Castells, “a desconfiança nas instituições (...) nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. Não há interesse comum quando os “representantes do povo” administram seus próprios sonhos em nome das sociedades que supostamente representam. O movimento antidemocrático é a inversão da energia popular: não cabe aos líderes realizar os “sonhos do povo”, mas orientar o povo sobre quais devem ser seus sonhos. É daí que nascem os “brexits”, rompimentos indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.
O surgimento de um personagem excessivo, narcisista e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio. “A chave do sucesso de Trump”, escreve Matt Taibbi, “é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores que não têm o coração e a coragem de ser eles mesmos”. Essa é a mensagem do trumpismo numa era “narcisista de massa”, bem adequada a ela. O apoiador herda, por transição natural, o poder do apoiado, o herói político que o salvará não apenas da fome, mas também da insignificância de onde só pode se embasbacar com o universo estratosférico dos heróis inatingíveis da Marvel.
Foi o vírus que nos salvou desse mundo de mentira, dessa ficção de blockbuster direitista. A tragédia da Covid-19 nos fez voltar à realidade, trocar o papo enfeitado da política pelo discurso óbvio da sobrevivência da humanidade.
No Brasil do século XIX, por ocasião da Guerra do Paraguai, o governo imperial obrigara cada província a enviar uma percentagem de sua população para a luta. Os senhores de terra prometiam então a seus escravos alforria imediata a quem fosse à guerra no lugar deles. A maior parte desses “voluntários” acabava morta, esquecida no campo de batalha; e os que retornavam voltavam aos poucos à condição de escravos, numa sociedade em que não havia, para eles, outra coisa a fazer para ter um teto e matar a fome. É como se a escravidão estivesse em sua natureza e pudesse ser chamada de democracia, já que dependia apenas da vontade dos que a exerciam.
O melancólico livro de David Runciman, sobre o fim da democracia liberal, nos afirma, logo no início, que “nada dura para sempre”. E acrescenta o que nega ao longo de suas páginas: “A democracia sempre esteve destinada a passar, em algum momento, para as páginas da história”. Mas as páginas da história reproduzem apenas o modo como certas ideias são tratadas em um determinado tempo. Se pensarmos na convivência humana sem limitações ou prejuízo para o outro, estaremos praticando a ideia de democracia. Essa ideia nasceu há muitos séculos, nas reuniões públicas de cidadãos da Grécia Antiga. E, como ideia, já chegou hoje à ausência absoluta de discriminação, onde todos têm os mesmos direitos, seja qual for seu gênero, cor, origem ou formação. A única interdição segue sendo não atropelar os interesses legítimos e o justo desejo do outro.
O fracasso da invasão do Capitólio pelas tropas civis de Trump se deu graças à aliança entre membros dos partidos Democrata e Republicano, políticos tão diferentes quanto Nancy Pelosi e Mitch McConnell. Selvageria e barbárie dos invasores, em cuja tropa não havia um só negro, passaram longe das comoventes passeatas que proclamavam que “black lives matter”. Uma nova democracia pode surgir daí, talvez menor, mas certamente mais humana, sem bravuras mas com solidariedade. Uma democracia que não serve apenas a quem já tem o poder. Mas a do vizinho, nascida da consciência de que estamos todos vivendo num mesmo mundo e dele temos que tirar os mesmos proveitos para sermos felizes. Em tempos de tanta incerteza, não custa nada citar Gramsci: a velha ordem já não existe, e a nova ainda está para nascer.
BBC Brasil: 'Tribalismo masculino' - a seita violenta ligada ao 'viking' em invasão ao Congresso dos EUA
Um homem branco, musculoso e tatuado com o torso nu, a cabeça envolta por chifres e pelos de bisão, o rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido leve e da cor da pele se tornou o ícone da invasão à sede do Congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira (06/01). Ele não era o único vestido assim
Ricardo Senra, BBC Brasil em Londres
Mas o que pareceu para muitos uma estratégia isolada para chamar atenção de fotógrafos também pode guardar as ideias de um movimento com objetivos contraditórios, radicais e violentos — da ode ao confronto físico e à guerra ao ódio contra mulheres, gays e suas conquistas por direitos iguais na sociedade.
Quem explica é a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, que pesquisa a masculinidade e dedicou parte de suas leituras recentes ao chamado "tribalismo masculino", ou "masculinismo".
"O princípio dos grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução", diz.
Para os adeptos, a vestimenta "tribal" funcionaria como uma espécie de elogio aos primórdios da humanidade, antes de consensos globais em torno de paz, igualdade, direitos humanos e conquistas de mulheres e grupos LGBTQs.
As primeiras referências acadêmicas ao grupo surgiram há décadas, mas se tornaram mais frequentes nos anos 2000, graças a debates em fóruns anônimos e na deep web.
Desde 2016, ano de eleição de Donald Trump, essas ideias vêm ganhando força em meio a uma complexa teia de novos grupos impulsionados por negacionistas da ciência e teorias de conspiração, como a chamada alt-right, ou "direita alternativa", e, mais recentemente, o QAnon (veja mais abaixo).
Caça e guerra
Além do exemplo que ficou famoso, outros manifestantes trumpistas desfilaram visuais "tribalistas".
Um deles foi fotografado vestindo algo semelhante a uma pele de urso sob um retrato de Charles Sumner, importante senador que defendeu a abolição da escravidão no século 19. Na mão esquerda, o militante segurava um cajado. Na direita, um escudo policial.
"Os masculinistas não acham que a mulher tenha um papel na sociedade, eles são mais extremos. Os cristãos nos EUA veem um papel nas mulheres de cuidar da família. Os masculinistas as odeiam."
Como acontece em outros grupos sociais, o termo engloba um universo heterogêneo de adeptos. Em comum a todos os grupos, conta a professora, há "um elogio ao tipo de homem viril que se acredita ter sido perdido nas últimas décadas".
"Eles reivindicam uma virilidade da caça, da guerra. Alguns são mais religiosos, outros não são. Há grupos que se identificam com romanos, com espartanos. Outros, por exemplo, reivindicam uma estética viking, ou se identificam com grupos indígenas norte-americanos, como no caso do sujeito de Washington, que estava com uma roupa de bisão norte-americano", explica Pinheiro-Machado.
"Roupas de couro, corpo tatuado, isso perpassa a todos", diz.
"É um universo que remete à conquista, à invasão, a capturar mulheres para estuprar, botar em cativeiro para reprodução, em um cenário totalmente distópico em que os homens precisam estar entre homens para resgatar sua virilidade perdida."
Perigo
Entre os principais riscos associados ao grupo, a professora destaca como "mais evidente, preocupante e imediato a violência contra as mulheres".
"O feminicídio é inspirado na ideia de posse de mulheres, que é um fenômeno que sempre existiu, mas que é estimulado por um contexto político", diz.
"Outra consequência imediata é a perseguição de pessoas que estudam gênero e sexualidade, como a professora Lola (Aronovich, da Universidade Federal de Fortaleza) e a Debora Diniz (das universidades de Brasilia e Brown, nos EUA)."
Ambas são vítimas de constantes ataques e ameaças online vindas de grupos radicais identificados com masculinistas brasileiros, alguns investigados pela polícia.
Muitos vídeos associados a tribalistas circulam há anos também em português — algo que se tornou mais frequente, segundo a professora, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
Em um dos filmes, um homem vestido de gladiador surge sobre um cavalo dizendo que o Brasil precisa se livrar de "ameaças comunistas e feministas".
Em outro, um paulista com roupas que imitam gregos de Esparta pede que homens lutem por sua virilidade.
Em fóruns abertos, grupos de brasileiros vão além e chegam a defender abertamente estupros e assassinatos de mulheres.
QAnon
Após ter fotos estampadas em jornais no mundo inteiro, o homem que viralizou após a invasão de ao congresso dos EUA em meio aos debates para a certificação da eleição de Joe Biden foi identificado em redes sociais.
Conhecido como "Q Shaman", Jake Angeli, de 32 anos, vive no Arizona e é um conhecido influencer (influenciador, em inglês) da extrema-direita americana.
Vestindo sempre referências a povos tradicionais indígenas dos EUA ou a vikings, ele já foi fotografado militando em protestos a favor de Donald Trump — ou fazendo oposição em atos organizados por grupos como o Black Lives Matter.
Nas redes, ele se tornou um dos porta-vozes do movimento QAnon, uma teoria conspiratória ampla e completamente infundada que diz que o presidente Trump estaria travando uma guerra secreta contra pedófilos e adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa.
Seus apoiadores vaticinam que esta luta levará a um dia de ajuste de contas, em que pessoas proeminentes, como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton, serão presas e executadas.
Adeptos do movimento impulsionam hashtags e coordenam ataques aos que consideram inimigos — políticos, celebridades e jornalistas que eles acreditam, sem qualquer prova, estar encobrindo pedófilos.
Não são apenas mensagens ameaçadoras online: vários apoiadores do movimento foram presos após fazerem ameaças ou tomarem medidas concretas na "vida real".
Em um caso notável em 2018, um homem fortemente armado bloqueou uma ponte sobre a Represa Hoover. Mais tarde, Matthew Wright se declarou culpado de uma acusação de terrorismo.
Anti-gays que fazem sexo com homens
O principal ícone dos tribalistas masculinos ou masculinistas é o americano Jack Donovan, autor de livros e vídeos reproduzidos milhões de vezes online.
Segundo Pinheiro-Machado, Donovan e seus seguidores ilustram o eixo mais extremo dos masculinistas.
"Não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas", diz.
"Há uma devoção e um amor à estética masculina", continua a professora. "Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBTQ."
Em seu livro Androfilia (2006), Donovan faz ataques à cultura gay e a associa a "inimigos da masculinidade". Ao mesmo tempo, ele classifica seu desejo por homens como uma "defesa a um ideal masculino".
As teses do autor são descritas por críticos como preconceituosas e ameaçadoras, especialmente para homens gays que não têm perfis hipermasculinos — ou são descritos como "afeminados".
Segundo Matthew Lyons, um dos autores do livro Key Thinkers of the Radical Right (Pensadores-chave da Direita Radical, em tradução livre), publicado em 2019 pela editora da Universidade de Oxford, o tribalismo masculino de Donovan também parte do princípio de que gênero seria algo "natural e imutável" — em oposição direta à existência de pessoas transexuais.
Alon Feuerwerker: Uma data (realmente) histórica
Todo fenômeno histórico precisa, quando estudado, receber uma data fundadora, com um acontecimento determinado. É apenas uma convenção, mas útil para estudar a explicar o andamento da história em termos mais didáticos.
Foi assim com o século 20, dito o século curto, pois teria começado na Primeira Guerra Mundial e terminado no colapso da União Soviética. E a metodologia vale sempre, com a vantagem de conferir ao analista e estudioso o poder de ajeitar o calendário para fundamentar uma tese.
Hoje é um dia assim, ficará disponível para os historiadores quando precisarem explicar os acontecimentos que contribuíram para a disfuncionalidade da democracia nos Estados Unidos. Pois nunca antes ali os derrotados recusaram reconhecer a vitória do adversário depois de abertas as urnas.
Outros poderão argumentar que não, que a confusão toda começou quando os democratas tiraram do baralho a carta da "conspiração russa que elegeu Trump", e que levou ao impeachment dele. Bem, fica a critério de cada um, e cada um tem o direito de ter suas preferências.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
El País: Bolsonaro apoia Trump e diz que houve fraude nos EUA enquanto mundo critica assalto ao Capitólio
Premiê do Reino Unido, Boris Johnson, diz que imagens são “vergonhosas” e ministro alemão fala em “democracia pisoteada”
Os principais líderes mundiais assistiram com espanto ao ataque à sede do Congresso dos EUA por manifestantes instigados pelo presidente Donald Trump. A seriedade dos acontecimentos no Capitólio dos Estados Unidos levou à condenação de grande parte dos líderes mundiais, que concordam em pedir calma e respeitar a vontade das urnas. Não foi, no entanto, o caso de Jair Bolsonaro.
Um aliado entusiasta de Trump, Bolsonaro, um dos últimos líderes a parabenizar Joe Biden pela vitória nos EUA, deu apoio tácito à investida incitada pelo republicano quando perguntado por apoiadores nesta quarta-feira. “Eu acompanhei tudo. Você sabe que eu sou ligado ao Trump. Você sabe da minha resposta. Agora, muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude. Eu falei isso um tempo atrás”, disse o brasileiro, em referência ao ainda ocupante da Casa Branca.
Ato seguido, Bolsonaro voltou, novamente sem provas, a dizer que sua eleição em 2018 também foi alvo de fraude. “A minha eleição foi fraudada. Eu tenho indícios de fraude na minha eleição. Era para eu ter ganho no primeiro turno.” O brasileiro insiste tanto na tese infundada de fraude como na campanha de desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro que deixa poucas dúvidas de que seguir a estratégia de Trump, de questionamento de resultados eleitorais e incitação da base radical, faz parte de um roteiro que ele pode acionar em 2022. Os presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, criticaram os acontecimentos em Washington.
Veja a seguir a reação de líderes internacionais. A maioria escolheu a rede social Twitter para tornar pública sua reação.
Reino Unido. O primeiro-ministro Boris Johnson, também um aliado de Trump, condenou o que aconteceu: “Imagens vergonhosas no Congresso dos Estados Unidos. Os Estados Unidos representam a democracia em todo o mundo e agora é vital que haja uma transferência de poder pacífica e ordeira.”
Alemanha. “Trump e seus apoiadores devem definitivamente aceitar a decisão dos eleitores americanos e parar de pisotear a democracia”, tuitou o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas.
OTAN. O secretário-geral da Aliança Atlântica, o norueguês Jens Stoltenberg, chamou os violentos protestos em Washington como “cenas chocantes” e destacou que “o resultado dessas eleições deve ser respeitado”.
Rússia. “De DC vêm imagens no estilo Maidan”, tuitou o número dois do embaixador russo na ONU, Dmitry Poliansliy, referindo-se às mobilizações populares que culminaram na derrubada do aliado presidente ucraniano de Moscou, Viktor Yanukovich. “Alguns dos meus amigos perguntam se alguém vai distribuir cookies como nas travessuras que Victoria Nuland estrelou”, referindo-se ao comportamento do número dois na diplomacia dos EUA durante uma visita à Ucrânia em 2013.
União Europeia. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, expressou sua confiança na “força das instituições americanas e na democracia. Uma transição pacífica está no centro”, tuitou a líder europeia. “Joe Biden ganhou a eleição. Estou ansiosa para trabalhar com ele como o próximo presidente dos Estados Unidos.” Da mesma forma, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, declarou que “contamos com os Estados Unidos para permitir uma transferência pacífica do poder para Joe Biden”.
Espanha. O presidente de Governo (premiê) Pedro Sánchez tuitou: “Estou acompanhando com preocupação as notícias que chegam do Capitólio, em Washington. Estou confiante na força da democracia americana. A nova presidência de Joe Biden vai superar este momento de tensão, unindo o povo americano.” Por sua vez, a ministra das Relações Exteriores, Arancha González-Laya, lembrou que “a democracia se baseia na transferência pacífica do poder: quem perde tem que aceitar a derrota. Confiança plena nos senadores e deputados para cumprir a vontade do povo. Confiança total no presidente eleito Joe Biden.”
Argentina. O presidente Alberto Fernández expressou sua “rejeição aos graves atos de violência e indignação do Congresso” e confiou em que “haverá uma transição pacífica que respeite a vontade popular”. Ele enfatizou seu “forte apoio ao presidente eleito Joe Biden”.
França. De Paris, o ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, condenou o “sério ataque à democracia” que representa o ataque ao Capitólio em Washington por partidários de Trump: “A vontade e o voto do povo americano devem ser respeitados”.
Venezuela. “Com este lamentável episódio, os Estados Unidos sofrem o mesmo que geraram em outros países com suas políticas agressivas”, diz um breve comunicado, que também condena “a polarização política e a espiral de violência”.
Eliane Cantanhêde: O alvo foi o Capitólio, não as Torres Gêmeas, mas também foi terrorismo
Havia clara previsão de tumultos, depois da ordem de comando de Trump para seus seguidores entrarem em ação. E ele é o grande culpado
Não foi a Al Qaeda, não foram as Torres Gêmeas, não morreram quase três mil americanos, mas ainda assim o que ocorreu na (ainda) maior democracia do mundo não tem outro nome: foi terrorismo, um terrorismo doméstico, interno, contra o Capitólio (o Congresso dos Estados Unidos) e atiçado pelo próprio presidente da República, Donald Trump. E onde estava a Força Nacional?
É de uma gravidade imensa para os EUA e para o mundo, jogando luzes e temores também na democracia brasileira. Não é exagero. Afinal, o presidente Jair Bolsonaro segue todos os passos de Trump, contra o multilateralismo, o Acordo de Paris, a China e todas as orientações científicas no combate à pandemia – da “gripezinha” ao estímulo à cloroquina e ao pouco caso com as vacinas. E, como Trump, ataca o sistema eleitoral, joga denúncias irreais e irresponsáveis de fraudes no ar.
Mas não é só isso. Aqui no Brasil, como lá nos EUA, Bolsonaro e Trump jamais abrem a boca para condenar assassinatos cruéis cometidos por policiais contra negros e pobres, mas fazem todo um jogo de aproximação com as forças policiais e militares. Lá, as Forças Armadas, aparentemente, não caíram na esparrela. E aqui?
Chamam a atenção: 1) o quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro estar nos EUA, confraternizando com os Trump justamente neste momento; 2) o tuíte misterioso do assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, com uma mensagem que parecia ser “a cobra está fumando” e deixou a turba bolsonarista em êxtase, antes de ser apagada; 3) o silêncio do governo brasileiro.
Tudo é chocante: os trumpistas vandalizando o Capitólio, armados, quebrando janelas, ocupando o plenário, o assento e o gabinete da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, diante de um punhado de policiais impotentes, assustados e em alguns momentos batendo em retirada.
E não foi por falta de aviso. Havia clara previsão de tumultos, depois da ordem de comando de Trump para seus seguidores entrarem em ação. Trump é o grande culpado. Negacionista, mentiroso, disseminador do ódio, incapaz de aceitar a derrota. Doente.
Ele, porém, não tem apoio apenas daqueles terroristas que invadiram o Capitólio. Tem apoio também de lunáticos de toda ordem que se amparam em ideologias nefastas para estimular armas, maus policiais, militares medrosos ou oportunistas e gerar... mortes.
Trump vai, mas o trumpismo fica e é exportado da maior potência para o mundo. O chanceler Ernesto Araújo dizia que só Deus salva o Ocidente da China e do comunismo. Na verdade, Deus precisa é salvar o mundo de Trump e seus seguidores.
Luiz Carlos Azedo: A nova secessão americana
Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos
Exibidas em tempo real pelas redes de tevê, as cenas da invasão do Capitólio por partidários do presidente Donald Trump, que os incitou, ao alegar fraude nas eleições presidenciais e contestar a vitória do democrata Joe Biden — que seria confirmado na sessão do Congresso —, somente ainda não superaram a deterioração da política norte-americana nos anos 1960 e 1970 porque o presidente eleito continua vivo. Entretanto, ninguém pode descartar a possibilidade de Trump ter tramado um golpe de Estado, por mais inverossímil que isso possa parecer.
Na política norte-americana, é sinuosa a linha divisória entre ficção e realidade. Na trilogia Underwold USA (Submundo USA), o escritor noir James Elrroy, formada pelos romances Tabloide americano (1995), 6 mil em espécie (2001) e Sangue Errante (2011), todos publicados no Brasil pela Record, desnuda os bastidores da política da época. Um time de canalhas conta a história norte-americana, num épico com sinal trocado, em meio aos assassinatos de John Fitzgerald Kennedy, Robert Kennedy e Martin Luther King e o suspeito suicídio de Marilyn Monroe. O sonho americano é visto sob a mira de fuzis e pistolas de ex-policiais convertidos ao crime, membros da Ku Klux Klan, mafiosos e políticos corruptos. A trama se passa no período de crescente envolvimento na Guerra do Vietnã e maior turbulência dos movimentos da esquerda norte-americana, culminando com o impeachment de Richard Nixon.
Os heróis da trilogia são racistas e reacionários, todos brancos: o mafioso Wayne Tedrow Jr., capanga do empresário Howard Hughes; Dwight Holly, agente secreto da confiança de John Edgar Hoover, chefe do FBI; e o ex-policial Don Crutchfield, que presta serviços de detetive a qualquer causa desonrosa. Elrroy não separa ficção de realidade, porém, sua versão para a morte de Kennedy é bem melhor do que a de Oliver Stone, em seu filme JFK. Quem matou Kennedy? Para Ellroy, há um submundo povoado por mafiosos, agentes do FBI, dançarinas de strip-tease, fanáticos religiosos, direitistas raivosos e vigaristas que tramou o crime.
Em entrevista ao Los Angeles Times, disse: “A conspiração não é o coração do meu romance; o centro da história é uma espécie de infraestrutura humana dos grandes eventos públicos, especialmente nesses anos tumultuados da história norte-americana”. Sua trilogia é o fio da meada para entender de onde surgiu uma figura tão abjeta como a de Donald Trump e essa militância armada, truculenta e fanatizada, que, ontem, invadiu o Congresso norte-americano para impedir a confirmação de Joe Biden como legítimo presidente dos Estados Unidos. Foi tudo orquestrado e organizado pelas redes sociais, deixando perplexos não somente os democratas, mas, até mesmo, os parlamentares republicanos.
Maioria democrata
Mesmo depois de instado a se posicionar e pedir a saída dos seus militantes do Capitólio, pelo presidente Joe Biden, em pronunciamento, Trump manteve a narrativa de que ganhara a eleição e que seu adversário seria um presidente ilegítimo, porque as eleições foram fraudadas. Biden venceu no colégio eleitoral por ampla margem — 306 votos a 232 —, mas esse resultado precisa ser chancelado pelo Congresso. Republicanos aliados de Trump promoviam uma espécie de chicana na sessão, questionando o resultado das urnas, quando houve a invasão. O fato de ter questionado a postura legalista de seu vice, Mike Pence, que presidia a sessão, sinaliza que Trump teria a intenção de promover um golpe de estado.
Ontem, acompanhando os acontecimentos, o analista político Creomar de Souza, especialista em política norte-americana, destacou que não existe uma palavra em inglês para golpe de Estado, expressão cuja origem é francesa: coup d’état. Talvez porque não exista esse precedente na democracia norte-americana. Mas existe a palavra secession, que sintetiza a Guerra Civil Americana (1861-1865), na qual os estados sulistas se confederaram contra o presidente eleito Abraham Lincoln, liderados pela Carolina do Sul, antes mesmo que ele tomasse posse. A secessão da Carolina do Sul, em 1860, foi acompanhada pela adesão, entre janeiro e junho de 1861, de outros estados sulistas: Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas, Luisiana, Virgínia, Arkansas, Carolina do Norte e Tennesse.
Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos. É uma divisão muito profunda, da qual o republicano procura se aproveitar. O que não estava nas suas previsões, porém, é o inédito resultado das eleições para o Senado na Geórgia, que garantiu duas cadeiras para o Partido Democrata, uma delas ocupada por um reverendo negro; com isso, garantiu-se a maioria para Biden nas duas casas legislativas, uma vez que os democratas já controlavam a Câmara. Esse resultado inviabilizou qualquer possibilidade de Trump bloquear a confirmação de Biden no Senado e provocar uma crise institucional mais grave.
Luiz Carlos Azedo: Mudar ou ser mudado
Nada será como antes depois de controlada a pandemia — no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado
A segunda onda da pandemia de covid-19, que registra mutação do novo coronavírus — há evidências de que já transborda da Inglaterra para outros países europeus e, provavelmente, chegou ou chegará por aqui — é a face mais visível de uma contradição com a qual teremos que lidar durante muitos anos: a globalização é um fenômeno objetivo e irreversível, mas carece de mecanismos de governança mundial eficazes para neutralizar seus efeitos mais perversos, que aprofundam as desigualdades no mundo.
A pandemia é uma lente de aumento sobre o problema, se levarmos em conta que as transformações na estrutura produtiva do planeta, cujo dinamismo é ditado pelas inovações tecnológicas e os novos conhecimentos, colocaram em xeque as políticas ultraliberais. Revelou que a saúde pública, por exemplo, continua sendo uma prioridade para a economia. Muitos imaginavam, com o advento do não-trabalho e a inutilidade de grandes exércitos industriais de reserva, que políticas universalistas de saúde deixariam de ser necessárias para a reprodução do capital em escala global, assim como a boa formação educacional pública e gratuita, pois supostamente já não se precisaria da mesma abundância de mão de obra saudável e escolarizada disponível para o desenvolvimento.
Quem diria, por exemplo, que o home office se generalizaria em decorrência de um problema de saúde pública e não apenas da existência da tecnologia necessária para a reestruturação da organização do trabalho. Foi mais ou menos o que ocorreu com a telefonia fixa, criada no final do século XIX, mas somente incorporada à vida doméstica após a Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que o smartphone se popularizou num intervalo de tempo muito menor (o iPhone foi criado em 2007). O que aconteceu com a grande indústria mecanizada, na qual a maior parte dos operários foi substituída por robôs, está se dando, agora, nos grandes escritórios e lojas de departamento, por causa da pandemia, numa velocidade maior do que se imaginava, e de forma irreversível.
É nesse contexto que a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, com a derrota do nacionalismo e do negacionismo de Donald Trump, dará um novo impulso aos debates que já estavam em curso nos grandes fóruns internacionais, sobre o problema da governança global e a necessidade de um desenvolvimento mais sustentável, cujo epicentro vinha sendo o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Que ninguém se iluda, nada será como antes depois de controlada a pandemia — o que deve acontecer no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos, com a vacinação em massa —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado, com o 5G e a plena implantação da Internet das Coisas, com ênfase na economia limpa e no combate às desigualdades.
Modernização
Não se espantem com o aumento da frequência com que a sigla ESG (environmental, social and corporate governance) — não confundir com a Escola Superior de Guerra — entrará no glossário do nosso economês. Sustentabilidade, responsabilidade social e governança corporativa formam, agora, uma espécie de Santíssima Trindade para os principais fundos de investimentos e grandes corporações. Estima-se que 45 trilhões estão sendo aplicados em empreendimentos com essas características, ou seja, metade dos investimentos previstos em todo o mundo. Multinacionais como Nestlé, Walmart e Tesco já excluíram de sua lista de fornecedores, por exemplo, os produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O resultado prático já se faz sentir no agronegócio, que vende cada vez menos para a Europa.
No Brasil, os ciclos de modernização sempre foram impulsionados pelo Estado, concentraram renda e descartaram mão de obra dos ciclos anteriores (açúcar, ouro, café, borracha). O que os historiadores chamam de “revolução passiva” resultou na industrialização, na modernização da agricultura e na urbanização acelerada dos país, porém, aprofundou desigualdades regionais e sociais. O ciclo de substituição de importações se esgotou, mas as consequências perversas, que dispensam maiores detalhes, de tão escancaradas estão, perduram. O conceito de “revolução passiva” — mais do que “modernização autoritária” ou “via prussiana” —, valoriza os aspectos políticos desse processo, em boa parte ocorrido durante a ditadura Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1965). Nesse sentido, devemos destacar os governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010), nos quais houve crescimento econômico e redução da pobreza, num ambiente democrático, sem prejuízo das ressalvas à inflação, à focalização dos gastos sociais e à corrupção generalizada, respectivamente.
No Brasil, pesos pesados da economia, nacionais e estrangeiros, já se articulam em defesa da economia sustentável, da boa governança corporativa e da transparência nas relações público-privadas. Saem na frente diante de um novo ciclo da globalização, mas esbarram numa situação em que o governo Bolsonaro realiza uma marcha forçada na direção contrária. De certa forma, a disputa de narrativas que já se estabeleceu na sociedade — em torno de temas como nossa política externa, a Amazônia, a política de saúde pública, a violência urbana etc. — reflete essa contradição. De alguma maneira, o Brasil terá que se reposicionar diante do que está em curso no mundo. Ou o governo muda ou será mudado em 2022.
Alon Feuerwerker: Só lá na frente
Assim é a política. O quase ex-presidente Donald Trump acha pouco os US$ 600 que o Congresso quer dar a título de auxílio a milhões de americanos por causa da crise provocada pela Covid-19. Trump quer que sejam US$ 2.000. O problema? O valor aprovado foi fruto de um suado acordo neste pedregoso fim de ano entre deputados e senadores democratas e republicanos (leia).
Para quem está indo embora, jogar para a plateia e provocar confusão tem um custo apenas relativo. No caso de Trump, com um ingrediente adicional: ele está muito longe de pretender se aposentar, e um de seus alvos principais desde agora são os homens e mulheres do partido dele que correram, uns mais rapidamente, outros mais devagar, a reconhecer a vitória de Joe Biden.
E no Brasil? A criação de empregos vai razoavelmente bem, segundo o Caged (leia). Mas a recuperação leva mais gente a procurar emprego, e daí crescem também as taxas de desemprego (leia). Uma dúvida que continua é se a recuperação vai resistir ao fim do auxílio emergencial, que deixará o palco junto com 2020. Mas isso só saberemos lá na frente.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Luiz Carlos Azedo: O espelho estilhaçado
É impressionante o paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump, a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon
Instigante artigo do ex-chanceler Celso Lafer, professor emérito da Faculdade do Largo do São Francisco (Direito-USP), publicado no último domingo, no O Estado de S. Paulo, faz um diagnóstico político preciso do governo de Donald Trump, que merece muita reflexão entre nós, pelo paralelo que podemos projetar, a partir do texto, para o governo do presidente Jair Bolsonaro.
O “mote” do artigo é uma carta enviada, em 1975, pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, à filósofa judia-alemã Hannah Arendt, autora de Origens do Totalitarismo (Companhia de Bolso) e a A Condição Humana (Forense Universitária), na qual solicita à escritora que lhe envie o texto de uma palestra que fizera nas comemorações do bicentenário da independência dos Estados Unidos. Intitulada Tiro pela culatra, na tradução para o português, seu texto fui publicado no Brasil, na coletânea Responsabilidade e Julgamento (Companhia das Letras), organizada por Jerome Kohn.
Lafer destaca a iniciativa de Biden, quando integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, como uma espécie de preocupação germinal do que pode vir a ser a linha de atuação do novo presidente dos Estados Unidos, de resto já anunciada na campanha eleitoral. O texto de Arendt trata da crise do governo Nixon e da degenerescência da política norte-americana nos anos 1970, cujos elementos se reproduzem durante o governo Trump, na visão de Lafer:
(1) a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e, nesse caminho, pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados;
(2) o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência;
(3) o inserir da criminalidade nos processos políticos do país;
(4) o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder;
(5) o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio;
(6) o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (Arendt);
(7) o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.
Espelho quebrado
A dimensão histórica da vitória de Biden vem sendo destacada não somente por Lafer como por outros analistas da cena brasileira. Sua repercussão na política mundial já se faz sentir, em todos os aspectos, inclusive em relação à pandemia da covid-19. Como ignorar, por exemplo, o gesto de ontem, quando o novo presidente dos Estados Unidos foi a um posto de saúde de sua cidade para tomar a vacina da Pfizer-Biontech? Quanta diferença em relação ao nosso presidente da República, que já disse e repetiu que não vai tomar e vacina e põe em dúvida a eficácia e segurança de qualquer uma delas. A troca de comando e rumo nos Estados Unidos, porém, transcende esse plano imediato das políticas públicas: a prática dos costumes democráticos repercute no fortalecimento das instituições republicanas e servem de exemplo para o mundo.
“A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela ‘alma’ dos Estados Unidos”, destaca Lafer. Nessa batalha, Biden personificou os valores e as instituições americanas, suas práticas e seus costumes. “Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do softpower de atração dos Estados Unidos.”
E, aqui, no Brasil? É impressionante como Donald Trump serviu de espelho para o presidente Jair Bolsonaro, nas mais diversas áreas. Na política externa brasileira, por exemplo, toda a respeitabilidade de nossa diplomacia está sendo jogada pela janela, apesar de sua cultura secular, cujas raízes são as negociações com os países vizinhos, nas quais garantimos a consolidação de nossas fronteiras, sem derramamento de sangue. Ou na questão ambiental, na qual nosso protagonismo, da Rio-92 ao Acordo de Paris, deu lugar à vexatória condição de “pária” internacional, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo.
As mentiras (1); as afrontas legais aos demais poderes (2); a promiscuidade com as milícias e outras atividades transgressoras (3); a proteção aos apaniguados (4); o não-reconhecimento dos fracassos (5); os incentivos à grilagem de terras, ao garimpo ilegal e ao desmatamento (6); e a terceirização dos problemas nacionais (7) tecem impressionante paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump (derrotado na reeleição), a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon (afastado por impeachment). Com a vitória de Joe Biden, esse espelho se quebrou.
Luiz Carlos Azedo: A grande sabotagem
Países de dimensões continentais têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros estratégicos na economia e nas políticas públicas têm graves consequências
A história universal tem inúmeros exemplos de tragédias humanitárias, causadas por fenômenos geológicos, climáticos, biológicos e/ou decisões políticas equivocadas, às vezes a combinação de duas ou mais causas. Essas tragédias deixam traumas sociais e provocam mudanças culturais e políticas. Uma das calamidades mais devastadoras da humanidade foi a peste negra, entre 1347 e 1351, que matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Ásia. Causada por uma bactéria (Yersinia Pestis), a doença foi transmitida ao ser humano por meio das pulgas dos ratos e outros roedores. A peste disseminou o antissemitismo, provocou revoltas camponesas e a Guerra dos 100 Anos, mas, também, deu origem ao Iluminismo, em contraposição às teses místicas que atribuíam a doença ao castigo divino.
Em 1755, o grande terremoto de Lisboa resultou na destruição da capital portuguesa. O número exato de vítimas da tragédia é desconhecido, mas estima-se que pode ter chegado a 90 mil pessoas. Como consequência, o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, precisando de recursos para reconstruir Lisboa, acabou com as capitanias hereditárias no Brasil, transferiu a capital de Salvador para o Rio de Janeiro, criou o Distrito Diamantino, aumentou a cobrança de impostos nas Minas Gerais e fortificou as fronteiras na Amazônia, entre os quais o grande Forte Real do Príncipe da Beira, à margem direita do Guaporé, em Rondônia. Em contrapartida, a “derrama” deflagrou o movimento de Independência, cujo marco histórico foi a Inconfidência Mineira.
Em abril de 1986, um reator da central nuclear de Chernobyl explodiu e liberou uma imensa nuvem radioativa, contaminando pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão da Europa. Na Ucrânia, Belarus e Rússia foram evacuadas e reassentadas 200 mil pessoas. O negacionismo e a censura agravaram a tragédia. Mais de 90 mil pessoas ainda poderão morrer de câncer, causado pela radiação do acidente nuclear. O episódio foi decisivo para Gorbatchov iniciar a glasnost (transparência) e desistir da corrida nuclear, o que acabou com a guerra fria com os Estados Unidos e foi um dos catalisadores do fim da própria União Soviética.
Pandemias e fome
No final da I Guerra Mundial, em 1918, uma pandemia do vírus Influenza se espalhou por quase todo o mundo. A gripe espanhola afetou 50% da população mundial. O número de mortos pode ter chegado a 100 milhões de pessoas. O vírus Influenza A, do subtipo H1N1, matou mais gente do que qualquer outra enfermidade na história e desapareceu tão misteriosamente como surgiu, mas ajudou a acabar com o conflito, provocou grandes reformas urbanas, uma revolução nas pesquisas médicas e nas políticas de saúde pública.
A maior tragédia humanitária do século passado, porém, não teve nada a ver com eventos geológicos, climáticos ou biológicos. Foi fruto do nacionalismo extremado de algumas nações e da ambição de poder de Adolf Hitler. A II Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, mobilizou mais de 100 milhões de militares e deixou mais de 70 milhões de mortos. Foi a única vez que armas nucleares foram utilizadas em combate, resultando na morte de mais de 140 mil pessoas no Japão, nos bombardeios feitos pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Além disso, a loucura de Hitler resultou no Holocausto. Dos 6 milhões de judeus mortos somente em Auschwitz, o mais conhecido campo de concentração nazista, 1 milhão foi assassinado nas câmaras de gás e cremados.
Mortes em massa também foram provocadas por decisões políticas e econômicas equivocadas de líderes comunistas. As coletivizações forçadas de Josef Stálin, na antiga União Soviética, nos anos de 1932-33, mataram de fome 10 milhões de camponeses na Ucrânia, e 1,25 milhão no Cazaquistão. O Grande Salto Adiante de Mao Tse Tung, na China, de 1958 a 1961, matou de fome 20 milhões de chineses. Entre 1994 e 1998, na Coreia de Norte, o fim da ajuda soviética, fatores climáticos e erros de planejamento de Kim Jong-un provocaram a morte de, pelo menos, 600 mil pessoas por desnutrição (fala-se em até 3 milhões de norte-coreanos).
Países de dimensões continentais, por sua escala demográfica, têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros no rumo estratégico, principalmente na economia e políticas públicas, têm consequências de grande envergadura. O que está acontecendo nos EUA, por exemplo, devido ao negacionismo de Donald Trump, entrará para os anais da história como uma dessas grandes tragédias. O país é o epicentro da pandemia de covid-19, com 17 milhões de casos confirmados e 300 mil mortos pelo novo coronavírus, mais do que o número de soldados americanos mortos na II Guerra.
Aqui, no Brasil, com quase 7 milhões de infectados e 190 mil mortos, o presidente Jair Bolsonaro vai pelo mesmo caminho, com seu negacionismo, que chega a aponto de se recusar a tomar a vacina contra a covid-19. Sabota, assim, os esforços realizados por autoridades de saúde, prefeitos, governadores e até mesmo pelo governo federal — cuja atuação deixa muito a desejar — para conter a epidemia e imunizar a população contra a doença, única maneira de salvar a economia de profunda recessão e do desemprego em escala sem precedentes, ou seja, de voltar à vida normal. A história não perdoa erros dessa magnitude.