EUA
Caetano Araújo: Duas Américas
Com exceção dos enclaves francófonos e holandeses, nosso continente é culturalmente bipartido e as metades ibérica e anglófona se encontram na fronteira entre México e Estados Unidos. Daí a importância simbólica do primeiro encontro entre os presidentes Biden e Lopez Obrador, por meio de videoconferência, em primeiro de março passado.
Ficou claro, de início, a diferença da posição americana em relação ao governo anterior. A retórica agressiva, bem como a abordagem do problema migratório como caso de polícia, foi descartada pelo governo democrata que se inicia e substituída pela intenção declarada de construir e acumular consensos em todos os pontos de divergência e conflito da agenda bilateral.
Mas as mudanças percebidas foram além do tom e da linguagem empregada no diálogo. O conteúdo da agenda é novo também. Três foram os grandes temas assinalados: mudança climática, ou seja, proteção ao meio ambiente e transição para fontes de energia limpa; o combate à pandemia; e a cooperação no trabalho de regularizar o movimento de migrantes em direção ao norte, com a prevenção consequente da migração ilegal.
Claro que essa agenda não se restringe, na perspectiva americana, às relações com o México, mas devem ser replicados no diálogo a ser travado com todos os países da região, contempladas as especificidades de cada caso. Ou seja, é possível antever o tamanho das dificuldades que se avizinham para países descuidados com a questão ambiental e omissos no combate à pandemia.
Importa também tentar discernir os desdobramentos possíveis dessa agenda, no caso de um diálogo continuado e produtivo em torno dessas questões. No caso da mudança climática, ações coordenadas de contenção e, num enfoque otimista, reversão do processo, demandarão a construção de um conjunto de regras e objetivos comuns, a valer no âmbito do continente.
O mesmo ocorre no caso do combate à pandemia. Parece claro que a fábrica de doenças, por mudanças ambientais e da sociabilidade humana, está funcionando a pleno vapor, de modo que o simples controle da ameaça atual não é bastante. Precisamos transitar para uma política de segurança sanitária continental, na qual a Organização Panamericana de Saúde deve ganhar novas atribuições.
Finalmente, a questão da migração exige o equacionamento comum de questões espinhosas como uma nova estratégia de controle e prevenção do consumo de narcóticos; a restrição progressiva da produção e circulação de armas de fogo; o combate ao crime organizado; e a reconstrução econômica dos países da América Central, origem hoje das principais caravanas de migrantes em direção ao norte.
Jamil Chade: Sem controle, Brasil caminha para superar EUA e gera preocupação mundial
O crescimento no número de casos no Brasil, a incapacidade de o governo de implementar medidas para frear o vírus e os temores de que a variante brasileira comece a se espalhar acendem um alerta global.
Em reuniões fechadas da OMS (Organização Mundial da Saúde), a situação brasileira é tida como "preocupante" e projeções já apontam que, se não houver uma mudança profunda na forma de o Brasil lidar com a crise, o mês de março poderá terminar com o país superando os EUA em número de novas infecções e, eventualmente, em termos de mortes diárias.
No que se refere aos números totais desde o início da crise há um ano, o território americano continua sendo o mais atingido, com 28,2 milhões de casos de pessoas infectadas, seguido por 11,1 milhões na Índia e 10,5 milhões no Brasil.
Depois de seis semanas de queda no número de novos casos globais, a OMS indicou que a semana passada viu um novo aumento nas infecções em quatro das seis regiões do mundo. Mas a curva começa a sofrer uma transformação e o Brasil surge como um dos focos de maior alerta, não apenas pelo comportamento do vírus, mas também pela insistência das autoridades em negar a necessidade romper as cadeias de transmissão.
Em meados de dezembro, os americanos registravam 1,6 milhão de novos casos por semana, contra 326 mil no Brasil. Nos últimos sete dias, de acordo com as contas da OMS, foram 471 mil novos casos nos EUA, contra 378 mil no Brasil. Nesse ritmo, as cidades brasileiras poderão ocupar o primeiro lugar em poucas semanas. Hoje, a população americana supera a marca de 331 milhões de pessoas, contra 211 milhões no Brasil.
Em termos de mortes, os americanos superavam a média de 18 mil novos mortes por semana em dezembro de 2020, contra 5.200 no Brasil. Nos últimos sete dias, os dados mostraram uma tendência inversa. Nos EUA, foram 14 mil novos óbitos, contra 8.200 no Brasil.
As disparidades em termos de vacinação também contribuem para uma virada nesses números. Nos EUA, já são mais de 50 milhões de pessoas que se beneficiaram da campanha de imunização, contra menos de 7 milhões no Brasil. Para as próximas semanas, o acesso a novas vacinas também é delicado.
Em negociações, farmacêuticas têm alertado que o governo que fizer um pedido de fornecimento neste momento receberá doses apenas no segundo semestre do ano, na melhor das hipóteses. Quanto às vacinas da Covax, a aliança mundial, o Brasil receberá 9,1 milhões de doses até junho, bem abaixo dos 14 milhões que o Ministério da Saúde havia anunciado em fevereiro.
Na última sexta-feira, o chefe de operações da OMS, Mike Ryan, abandonou sua tradicional diplomacia para alertar que o Brasil vivia uma "tragédia" e que a situação deveria servir de lição ao mundo de que não há como relaxar medidas de controle.
Mas sua fala também evidenciou uma crítica velada ao governo federal. Ao destacar os esforços feitos no Brasil, ele aplaudiu os cientistas do país e os governadores de estados, sem qualquer referência ao Ministério da Saúde ou ao Palácio do Planalto.
Os comentários geraram um mal-estar entre membros do governo brasileiro. No passado, falas da OMS levaram as autoridades nacionais a disparar cartas ao organismo para se defender.
Diplomacia esgotada?
Por meses, a ordem interna na OMS era a de evitar qualquer crítica contra o governo brasileiro, já que o objetivo principal era ajudar o país a superar a crise, oferecendo auxílio técnico, orientação e mesmo materiais.
A coluna apurou que, no auge das críticas de Bolsonaro contra a OMS no primeiro semestre de 2020, a agência mantinha um trabalho no país, sem fazer qualquer tipo de declarações ou alarde. Em troca de um acesso às cidades brasileiras, a opção da agência era a de manter silêncio e não rebater os ataques do presidente.
Bolsonaro, o louco
Dentro das agências internacionais, porém, uma parcela dos técnicos começa a alertar que a estratégia não tem dado resultados. Bolsonaro passou a ser tratado como "louco", enquanto se multiplicam cartas e denúncias da sociedade civil, parlamentares, indígenas, religioso e ex-ministros pedindo uma reação internacional.
A resposta brasileira também está sendo alvo de uma investigação por parte de um grupo independente, montado pela OMS para avaliar como diferentes governos e ela mesmo deram resposta para a crise. O resultado do inquérito deve ser publicado em maio.
O Ministério da Saúde recebeu um questionário sobre a estratégia adotada no Brasil e tudo o que foi feito, desde janeiro de 2020. Todos os governos membros da OMS foram consultados. Mas, segundo a coluna apurou, as respostas dos países como o maior número de casos vão servir para que o comitê avalie por qual motivo alguns governos conseguiram frear a crise, enquanto outros não tiveram o mesmo sucesso.
Variante brasileira preocupa
Enquanto os resultados da enquete não são publicados, em reuniões técnicas com cientistas e pesquisadores de diferentes partes do mundo, a situação brasileira passou a ser incontornável, principalmente quando o assunto é o fortalecimento da circulação de variantes do vírus no país.</p><p>A constatação é de que existe um "apagão" de dados do Brasil sobre a circulação de novas variantes pelo território nacional e uma forte suspeita de que não há controle sobre quem sai do país infectado ou não.
A situação gerou um temor ainda maior depois que estudos indicaram que a variante predominante em Manaus mantinha uma carga viral várias vezes superior à cepa original.
Denominada oficialmente como variante P1, a mutação foi primeiro identificada no Japão, em viajantes brasileiros. Hoje, ela já está presente em quase 30 países e o número cresce a cada semana.
Em seu último informe semanal, a OMS deixou claro que o vírus é predominante em Manaus e em parte da região norte do brasileiro. "Podemos estar no início do caos", afirmou uma delas, na condição de anonimato.
Na Europa, a situação brasileira também é alvo de uma atenção total, com autoridades em capitais como Paris e Madri instruídas a reforçar o controle sobre qualquer passageiro que tenha passado pelo Brasil.
Neste fim de semana, o governo britânico confirmou a existência da variante brasileira em pelo menos seis pessoas diferentes. Mas a crise para a imagem do país ficou ainda mais aguda depois que as autoridades sanitárias em Londres lançaram uma "caçada" para localizar o indivíduo que não preencheu um formulário de registro de teste ou que não recebeu seu resultado.
Uma das suspeitas pode ser uma pessoa que estava no voo LX318, da companhia Swiss e que deixou São Paulo para Zurique, no dia 10 de fevereiro. Depois de passar pela Suíça, a pessoa embarcou em um segundo voo para Londres.
Se a falta de informação sobre o passageiro levou a oposição britânica a criticar o governo em Londres, ela também despertou um segundo aspecto: a incapacidade do Brasil de saber onde está o vírus e quem está embarcando em seus aeroportos em direção a outras partes do mundo.
"Isso pode significar que a desconfiança em relação ao Brasil vai se aprofundar", alertou um representante britânico, que pediu para não ser identificado.
RPD || Dawisson Belém Lopes: A política externa brasileira num labirinto borgiano
Pária mundial “por opção”, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro é responsável por um dos piores momentos da política externa brasileira, deixando de perseguir interesses concretos do país
Não faz muito tempo, o Brasil jactava-se de seu universalismo. Era o país que não conhecia inimigos. Alcançava praticamente todo recanto do planeta com sua rede diplomática. Chefiava organismos prestigiosos, como a OMC e a FAO, e cedia seus nacionais para tribunais e cortes internacionais. Orgulhava-se de sua chancelaria. Tinha no Ministro das Relações Exteriores um signo da melhor tradição intelectual. Liderava agendas centrais, como a do meio ambiente, e era consultado em assuntos de direitos humanos, governança da internet, paz e segurança. Nossa República Federativa fazia boa figura no teatro global.
Esse tempo de bem-aventurança, contudo, ficou para trás. O Brasil, hoje, é “pária por opção” – invocando aqui palavras do chanceler Ernesto Araújo. Num contexto de desafios, em que despontam a rivalidade sino-americana e o arrasamento pandêmico, o governo federal vê diminuir a margem para manobrar. Opções estratégicas sobre a mesa vão minguando, à medida que nos indispomos com potências e abdicamos de pretensões de liderança no entorno geográfico, deixando de perseguir interesses concretos do país.
Responsável por mais de 30% do comércio externo brasileiro, a China é quem ajuda a manter as contas no azul. A despeito disso, Jair Bolsonaro e asseclas hostilizam Pequim sem cessar, desde a campanha eleitoral, em 2018, até o presente. Xi Jinping já emite, por meio de seus representantes empresariais e diplomáticos, ameaças de represália. Segundo lugar entre parceiros comerciais, além de maiores investidores no Brasil durante a década de 2010, os Estados Unidos também são fundamentais no grande esquema das coisas. Porém, como o incumbente do Planalto amarrou os destinos da nossa nação a Donald Trump, não se deve esperar atitude benevolente de Joe Biden no porvir.
Entre europeus, nada muito distinto. Terceira parceira comercial, a Holanda rejeitou, pela via parlamentar, o acordo UE-Mercosul, sob argumento de defesa da Amazônia. A Espanha, quinta no ranking do comércio externo, é governada pela esquerda, o que dificulta interlocução mais profícua. A Alemanha vive às turras com o maior país da América do Sul; além do desgaste da imagem, negócios permanecerão parados enquanto as práticas ambientais não forem revistas. A França, outra investidora no Brasil, faz objeção vocal à política ambiental e, como os chineses, planeja deixar de comprar os grãos que movem o agronegócio pátrio.
Na América Latina, a configuração não é menos dramática. Por quase um ano, os chefes de Estado de Brasil e Argentina (esta, a nossa quarta maior parceira comercial) não trocaram uma palavra sequer. O silêncio foi rompido recentemente, por iniciativa de Buenos Aires, mas os canais seguem obstruídos. Já o oitavo lugar no ranking de parceiros comerciais, o México, também é liderado pela esquerda, o que inviabiliza o diálogo – segundo a lógica sectária bolsonarista. México e Argentina coordenam entre si as iniciativas regionais, na ausência do Brasil. Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, resume o imbróglio: “o Brasil ficará isolado em seu autoritarismo.”
Uma nota sobre a pandemia. O enfrentamento brasileiro ao novo coronavírus foi considerado, numa amostra de 98 países, o pior de todos, segundo think tank australiano. Parte dessa desastrosa condução deveu-se à incompetência nas mediações com o restante do mundo. Com uma indústria farmacêutica que importa 90% de seus insumos e diante da opção por não investir na fabricação de imunizante nacional para controlar o espalhamento da covid-19, o Brasil tornou-se refém de suprimento externo. Em tempos de escassez, porém, cada estado favorece primeiramente a população local. De exemplo em políticas públicas para vacinação em massa, passamos a figurar entre os que, pela incapacidade de lidar com a doença, sabotam o esforço de contenção do vírus.
Diante de fracassos retumbantes na política externa, como reagem o presidente da República e seu chanceler? Em gestos que exemplificam um descolamento de fatos e estatísticas, Bolsonaro e Araújo reúnem a fina flor da direita populista – de Andorra à Ucrânia, passando por Hungria e Índia – para clamar por “liberdade” e “família”, ao mesmo tempo em que flertam com monarquias teocráticas do Oriente Médio. Talvez seja o que lhes tenha restado no tabuleiro geopolítico. Como num conto de Borges, fica para o observador a incômoda sensação de que, quanto mais avançamos por estas sendas, mais se bifurcam os caminhos do labirinto.
*Dawisson Belém Lopes é Professor Associado de Política Internacional e Comparada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e, desde março de 2018, Diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG.
Luiz Augusto de Castro Neves: ‘Papel do Itamaraty se tornou secundário’
Pragmático, governo da China busca outras vias de negociação, como os governadores, diz Luiz Augusto de Castro Neves
Francisco Carlos de Assis, O Estado de S.Paulo
Para o embaixador do Brasil em Pequim, de 2004 a 2008, e hoje presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Luiz Augusto de Castro Neves, o governo chinês optou pelo pragmatismo e não tem levado em consideração os ataques recebidos de alguns membros do governo brasileiro. “O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.
Apesar do discurso ‘antichina’ do governo, a exposição das exportações brasileiras à China saltou de 28%, em 2019, para 32%, em 2020. Teremos uma repetição deste aumento este ano?
Sim. A China, embora tenha crescido 2% no ano passado, sofreu uma desaceleração muito grande, o que gerou uma capacidade ociosa que deverá ser preenchida este ano. E o Brasil se mantém ainda em recessão e tem aumentado as exportações para o mercado chinês e reduzindo suas importações. O aumento das exportações para a China se dá por sua economia estar crescendo mais que a economia mundial.
Mesmo com as compras de insumos para vacinas as importações de produtos chineses não devem ter destaque este ano?
A compra de produtos chineses, de modo geral, tende a se estabilizar ou até diminuir. As importações dos insumos necessários para a fabricação de vacinas contra a covid-19, quantitativamente, não serão decisivas, no agregado, para gerar um aumento nas importações. Nossas importações da China são basicamente de bens intermediários essenciais para a indústria.
Os ataques feitos à China por membros do governo não causam ruídos nas negociações comerciais entre os dois países?
O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades. São manifestações vinculadas ao governo e que exprimem posições pessoais. Mas o que tem prevalecido é o pragmatismo e, bem ou mal, a China ainda é o nosso maior parceiro comercial.
Recentemente, os chineses andaram negociando com governadores e com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. É uma forma de reduzir o papel do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores?
A China vai sempre negociar com interlocutores eficazes. O ex-presidente Michel Temer negociou com eles com a anuência do governo federal, mas é fato que o papel do Ministério de Relações Exteriores se tornou secundário. Mas esta tem sido uma tendência mundial. Se antes as negociações comerciais eram de exclusividade do Ministério de Relações Exteriores, hoje Estados e empresas privadas têm seus próprios canais de conexão com o mundo.
Roberto Abdenur: ‘Houve uma destruição da política externa brasileira’
Comércio com os EUA também foi afetado, apesar das concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura de 'subserviência', avalia ex-diplomata
Douglas Gavras , O Estado de S. Paulo
O saldo dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro nas relações exteriores é destrutivo, avalia o ex-embaixador na China Roberto Abdenur. Na entrevista a seguir, o ex-diplomata, que também já representou o Brasil em Washington, ressalta que a postura de “subserviência” do governo brasileiro em relação ao ex-presidente americano Donald Trump foi ruim para o País sob diferentes aspectos.
É possível classificar a relação atual do Brasil com a China como uma dependência comercial?
A China despontou como parceiro comercial brasileiro, graças à imensa demanda por commodities, mas não creio que o Brasil seja dependente deles, no sentido de que eles não têm poder para ditar rumos ao governo brasileiro, assim como não éramos dependentes dos Estados Unidos, quando o peso deles era maior na balança brasileira.
O que temos é uma parceria?
Temos uma parceria estratégica, que ajudei a lançar quando era embaixador em Pequim, até o início da década de 1990. De lá para cá, isso floresceu, graças ao extraordinário crescimento da China. Na época, já via o avanço chinês com otimismo, mas não imaginei que eles fossem sustentar esse crescimento por quase 30 anos, e que o país se transformaria em uma potência econômica, comercial, militar e tecnológica.
Como definir a política externa brasileira no atual governo?
O que houve nos dois anos de Bolsonaro é que o Brasil não teve, a rigor, uma política externa. Houve uma destruição da diplomacia. As coisas de que falam o chanceler, Ernesto Araújo, e os assessores da ala ideológica são devaneios, uma nuvem de teorias da conspiração. Chegamos a considerar as próprias Nações Unidas algo indesejável. Nos tornamos o único país do mundo que ataca o multilateralismo.
O saldo da relação muito próxima entre Bolsonaro e Trump é negativo para o Brasil, portanto?
No ano passado, houve um forte encolhimento do comércio com os EUA, muito por conta da pandemia, mas também por protecionismo. O ex-presidente Donald Trump impôs tarifas abusivas sobre aço, alumínio e etanol brasileiros. O comércio foi afetado, apesar de todas as concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura inacreditável de subserviência.
A afinidade entre os dois governos feriu o interesse nacional?
Na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro se pendurou em Trump. Também já fui embaixador em Washington e as relações com os EUA eram conduzidas de outra forma. Havia diferença de tom, mas também uma linha de continuidade que atravessou governos tão diferentes entre si, como o de Sarney, Collor, FHC e Lula.
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DW Brasil: Biden diz que Trump não deve ter acesso a relatórios de inteligência
Presidente menciona "comportamento errático" do republicano para justificar por que ele não deve continuar sendo informado sobre questões confidenciais de segurança nacional, como é tradição para ex-presidentes
Enquanto presidente, Trump rivalizou com os serviços de inteligência e foi acusado de vazar informações confidenciais
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que seu antecessor, Donald Trump, não deverá ter acesso a relatórios de inteligência sigilosos devido a seu "comportamento errático".
Os EUA têm a tradição de permitir que ex-presidentes continuem sendo informados sobre questões de segurança nacional, como cortesia concedida pelo atual ocupante do cargo. Mas questionado pela emissora CBS se Trump também teria essa regalia, Biden respondeu: "Acho que não."
O presidente não detalhou quais seriam seus maiores temores caso o republicano tivesse acesso aos relatórios sigilosos, mas sugeriu que não se pode confiar em Trump para manter em segredo informações confidenciais.
"Só acho que não há necessidade de ele ter os briefings de inteligência. De que vale dar a ele um briefing de inteligência? Que impacto ele teria, a não ser o fato de que pode cometer um deslize e contar alguma coisa?", disse o presidente na sexta-feira (05/02), em sua primeira entrevista desde que assumiu a Casa Branca, em 20 de janeiro.
Segundo o jornal New York Times, a recusa da cortesia a Trump seria a primeira vez em que um ex-presidente americano é excluído da tradição de ter acesso contínuo aos informes.
Na entrevista, Biden mencionou como justificativa o "comportamento errático de Trump não relacionado à insurreição", referindo-se à invasão do Capitólio, em Washington, em 6 de janeiro. À época, o então presidente insuflou seus apoiadores a marcharem até o Congresso para impedir que parlamentares confirmassem a vitória de Biden nas eleições presidenciais de novembro.
Trump insistiu que houve fraudes eleitorais e que ele venceu o pleito, apesar de nunca ter apresentado evidências disso e de perder dezenas de contestações na Justiça.
O ataque violento ao Capitólio, que deixou cinco mortos, rendeu a abertura de um segundo processo de impeachment contra Trump pela Câmara dos Representantes. A ação agora tramita no Senado.
Questionado pela CBS sobre as acusações de que o ex-presidente teve papel no motim, Biden afirmou que "correu como louco para derrotar" Trump na eleição "porque o achava impróprio para ser presidente", mas disse que deixará para o Senado decidir se o republicano deve ou não ser impedido de ocupar cargos públicos novamente.
Trump e os serviços de inteligência
Durante seus quatro anos na Casa Branca, Trump repetidamente gerou preocupações sobre seu uso dos serviços de inteligência ou mesmo por rivalizar com a comunidade de inteligência nacional, que ao todo contou seis diretores ao longo de seu mandato.
Ele questionou, por exemplo, relatórios de agências americanas que apontaram que a Rússia interferiu nas eleições de 2016 nos Estados Unidos, e também atacou chefes de inteligência por serem "extremamente passivos e ingênuos" em relação ao Irã.
Em maio de 2017, Trump teria compartilhado informações altamente confidenciais em uma reunião com o ministro do Exterior da Rússia e o embaixador russo sobre uma operação ligada ao grupo extremista "Estado Islâmico" (EI), algo que foi visto como uma quebra de confiança por muitos da comunidade de inteligência americana.
- QUE PODERES TEM O PRESIDENTE AMERICANO?
O que diz a Constituição
- O presidente dos EUA é eleito por quatro anos, com direito a uma reeleição. Ele é, ao mesmo tempo, chefe de Estado e de governo. Cerca de quatro milhões de pessoas trabalham no Executivo americano, incluindo as Forças Armadas. É tarefa do presidente implementar as leis aprovadas pelo Congresso. Como o mais alto diplomata, ele pode receber embaixadores − e assim reconhecer outros Estados.
Dorrit Harazim: Pente finíssimo
Esta foi a semana inaugural da vice-presidente pinçada por Joe Biden para estar a seu lado — ou no seu lugar — no comando do país até 2025. Foi de Kamala Harris o voto de minerva no Senado que permitiu a tramitação do pacote emergencial de estratosféricos US$ 1,9 trilhão (R$ 99,5 trilhões) destinado a reparar a devastação nacional causada pela Covid-19. A votação durou 15 horas, terminou às 5h30m da madrugada de anteontem, e sua tramitação recheada de 40 emendas volta agora para a Câmara dos Representantes. Um marco e tanto.
A partir de terça-feira, quando o segundo pedido de impeachment de Donald Trump aportar no mesmo Senado rachado em 50-50, a inquisitiva ex-senadora Harris fará falta nas arguições — se arguição houver. É mais provável que nem sequer haja condenação, pois, para ser aprovada, são necessários dois terços dos votos. Na improvável hipótese de que seja aceita uma votação extra, por maioria simples, sobre Trump ser proibido de exercer qualquer cargo público futuro, Kamala estará a postos em caso de empate na votação. Ao longo da história, o voto de minerva que compõe as atribuições da Vice-Presidência já foi exercido 268 vezes.
A equipe de Biden que garimpou Kamala Harris trabalhou em duplas por três meses durante a campanha. Da primeira seleta de 23 sabatinadas, e da avaliação das montanhas de documentos por elas fornecidos, haviam sobrado 11. Várias chegaram a classificar o questionário de mais de 120 perguntas como “invasivo” e “extenuante”. Ao final de 120 horas de entrevistas, sobraram Kamala e Susan Rice, a assertiva ex-assessora de Segurança Nacional de Barack Obama, também negra. Biden só foi chamado a tomar sua decisão histórica na reta final. E, sendo quem é, telefonou pessoalmente às 11 descartadas para atenuar o desapontamento e agradecer a dedicação.
A cortesia e civilidade do 46º ocupante da Casa Branca são inerentes a sua índole. Mas o rigor na seleção de quem deve ou não se juntar à equipe, Joe Biden aprendeu com Barack Obama, seu chefe e parceiro inseparável por oito anos. O presidente americano de número 44 entrará para a história com uma marca invejável: permaneceu no cargo por dois mandatos sem um só grande escândalo financeiro, ético ou moral por parte de sua equipe. Obama traçara essa linha vermelha por saber que o grande teste de liderança para qualquer presidente começa na escolha dos que ocuparão cargos críticos no governo. O Brasil e Jair Bolsonaro que o digam.
O método Obama foi impiedoso com os postulantes. Tinha como pedra fundamental um questionário de 63 itens que não deixavam nada insepulto. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um presidente submetia a crivo tão invasivo candidatos aos 15 cargos do primeiro escalão e aos 800 postos executivos que dependem de aprovação pelo Senado. No total, o questionário contemplou todos os cerca de 7 mil postos do governo federal sujeitos à indicação do presidente. Vários postulantes de renome acabaram desistindo no meio do caminho. Outros recorreram a advogados próprios para se aconselhar sobre os riscos de omitir algum pecadilho por e-mail, alguma distração financeira, alguma referência acadêmica imprecisa.
E aquela contratação de doméstica sem registro, dez anos antes? Sim, porque o tal questionário esquadrinhava retroativos a uma década. Qualquer presente de mais de US$ 50 recebido de pessoa fora do círculo familiar ou amical precisava ser listado. O propósito do questionário não era montar um governo reservado a virgens de qualquer pecado. Para Obama, tratava-se de conhecer os riscos da contratação. Não era necessariamente um veto, serviria de norte. E funcionou.
À época, o advogado E. Pendleton , sabatineiro de candidatos na era Ronald Reagan, indignou-se: “Não entendo como alguém com um mínimo de autoestima possa se sujeitar a tudo isso... É apavorante, qualquer candidato que preencha o questionário fica em pânico de ter cometido algum engano”. Os sabatineiros da era Obama trabalhavam seguindo o mantra do “se nós achamos algo, alguém mais também vai acabar achando”.
Biden conhece como poucos as armadilhas do poder, em particular as do Legislativo, onde atuou por mais de 30 anos. Estava atento quando Trump, a poucas horas de partir da Casa Branca, deu uma última carteirada braba: aboliu a quarentena de cinco anos que impedia ex-funcionários federais de exercer a profissão de lobista. Uma das primeiras ordens executivas de Biden ao se sentar no Salão Oval foi restabelecer a proibição por pelo menos dois anos. Também vetou a difundida prática conhecida como “paraquedas dourados”, que permitia aos novos nomeados receber mimos de ex-patrões do setor privado.
Fred Dombo é especialista em legislação de lobby e ética de compliance num grande escritório de advocacia de Washington. Sua avaliação da questão é de veterano. Acha louvável a retificação de curso acenada por Biden, mas conclui que, no final das contas, o decisivo acaba sendo sempre o indivíduo — picareta não se torna honesto por implementação de normas. Nem quem é honesto vira picareta diante de oportunidades.
Em tempo: o link para o Questionário Obama é https://cutt.ly/kkxCcUO
Vale dar uma espiada e imaginar sua aplicação no Brasil.
Demétrio Magnoli: Biden tem oportunidade de converter vacina em bem público global
Presidente dos EUA tem oportunidade de converter vacina em bem público global
George W. Bush será sempre lembrado pelo desastre humano e geopolítico que provocou com a guerra no Iraque. Contudo, uma iniciativa singular do ex-presidente salvou algo como 17 milhões de vidas: o Pepfar (Plano Presidencial Emergencial para Assistência à Aids). Joe Biden tem a oportunidade de se inspirar no plano de Bush para liderar a imunização global contra a Covid-19.
O Pepfar nasceu em maio de 2003, à sombra da invasão do Iraque, que começara dois meses antes. Sob a coordenação do Departamento de Estado, o programa direcionou, de lá para cá, mais de US$ 85 bilhões para os países foco e para o Fundo Global de Combate à Aids. A lúgubre curva de mortes por Aids na África Subsaariana começou a ser achatada graças aos recursos e à assistência técnica providenciados pelos EUA. O modelo do Pepfar oferece a melhor resposta americana à "geopolítica vacinal" chinesa.
Segundo estimativas do Duke Global Health Institute, os países ricos, que abrigam 16% da população mundial, contrataram 60% das vacinas prometidas até agora. A iniciativa Covax, da OMS, destinada a prover imunização global, prevê a entrega, até junho, de apenas 140 milhões de doses para a África, onde vive 1,3 bilhão de pessoas. A célere vacinação da população mundial é um imperativo moral. Mas é, igualmente, a única ferramenta capaz de domar a pandemia, reduzindo as probabilidades de surgimento de incontáveis mutações do vírus pela persistência prolongada dos contágios. "Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo", explica o slogan da Covax.
O triunfo do nacionalismo vacinal teria efeito bumerangue, castigando tanto os países pobres quanto os ricos. A União Europeia, apesar da insistência na retórica da solidariedade global, não parece preocupada com isso. A Comissão Europeia tenta ocultar seu atraso na imunização com ataques despropositados à AstraZeneca, única farmacêutica que distribui vacinas a preço de custo, e com a ameaça de bloquear a exportação de doses produzidas no seu território. Sob Trump, os EUA agiram ainda pior, abandonando a OMS e negando-se a contribuir com o financiamento da Covax.
A China opera no vácuo gerado pelo nacionalismo hipócrita de americanos e europeus. O governo chinês definiu suas vacinas como bens públicos globais e lançou-se a uma diplomacia da imunização, estratégia seguida também pela Índia. Contudo, os discursos humanitários chineses e indianos mal escondem a cuidadosa seleção dos países beneficiários, que obedece a nítidas prioridades de política externa.
Biden promete patrocinar, ainda em 2021, uma "cúpula das democracias". O conceito, em estágio inicial de formulação, inscreve-se na moldura da rivalidade global entre EUA e China. Seria uma articulação diplomática destinada a contrapor os valores das democracias representativas ao sistema de poder totalitário. A ideia enfrenta uma coleção de dificuldades práticas. Mas, para além delas, como superar a percepção de que o conclave de democracias ricas forma o mapa completo das nações privilegiadas pelo acesso preferencial às vacinas?
Os EUA só podem triunfar na "guerra de valores" se conseguirem provar que a democracia funciona melhor que a tirania, especialmente quando o mundo enfrenta uma dramática emergência sanitária. A superpotência injeta nos seus cidadãos vacinas de alta tecnologia, baseadas em mRNA, que tem elevada eficácia e cuja fabricação é mais simples e rápida. Estima-se que, com meros US$ 4 bilhões e uma rede de parcerias público-privadas, o governo americano poderia instalar capacidades produtivas suficientes para imunizar a população mundial no horizonte de um ano.
Os chineses dizem que a vacina deve ser um bem público global. Biden tem a oportunidade de converter essa visão em realidade. É bem melhor que reunir os acumuladores de vacinas numa redoma sanitizada.
Pedro Doria: Biden muda o jogo da nova guerra fria, entre EUA e China
Em meio a tantas mudanças no governo americano, passou despercebida uma carta escrita pelo presidente Joe Biden à direção do Instituto Broad. Dedicado ao encontro entre tecnologia digital e genética, entre ciência pura e medicina prática, o Broad nasceu de uma rara colaboração de duas universidades vizinhas — Harvard e MIT.
E Biden quer repetir a experiência de um de seus mais importantes antecessores — Franklin Roosevelt. De um presidente que virava as costas para a ciência, os EUA mudaram para um que vai ao seu encontro. E que deseja, com ciência e tecnologia, redefinir o conflito com a China.
“Em 1944, o presidente Franklin Roosevelt escreveu uma carta a seu assessor científico, Vannevar Bush, lhe perguntando como ciência e tecnologia poderiam ser aplicadas para beneficiar a saúde, a prosperidade econômica e a segurança nacional nas décadas após a Segunda Guerra”, escreveu Biden.
“A resposta do Dr. Bush veio na forma de um relatório que deu curso ao avanço científico americano dos 75 anos seguintes.”
No centro do debate está uma discussão sobre o papel do Estado, uma mudança no pensamento liberal, e a compreensão de que os EUA estão entrando numa nova Guerra Fria.
O problema que Roosevelt tinha pela frente já era claro em 1944. A Alemanha Nazista ia perder a guerra, o fascismo seria limado do mapa, EUA e União Soviética venceriam e entrariam em disputa por influência no mundo.
Nos anos 1940 e 50, batiam-se os dois polos do mundo em igualdade de condições no desenvolvimento científico. Na briga ideológica de qual sistema seria capaz de gerar riqueza, desenvolver conhecimento e avançar com sua sociedade à frente, a democracia liberal bateu o comunismo.
A China é muito diferente do que foi a União Soviética. Segue tendo um governo altamente centralizado, não há liberdades individuais, e o planejamento econômico é feito em Pequim. A diferença é que o regime agora é capitalista, há gente que enriquece, histórias de empresários que ergueram suas companhias do nada, e eficiência na produção nunca é deixada de lado por burocracia.
A China produz tecnologia de ponta, de ponta mesmo. Conseguiu o que a URSS jamais chegou perto de atingir.
Assim como a segunda metade do século 20 foi marcada por uma disputa de sistemas, também a primeira metade do século 21 será desenhada assim. A diferença é que o adversário das democracias liberais, desta vez, é competente.
Por isso mesmo, por parecer ter criado a ditadura eficiente, capaz de gerar riqueza e de distribuí-la, a China se torna um modelo tentador para muitos.
Donald Trump entendia este jogo como mera disputa comercial. Pouco afeito à ideia de democracia, não entendeu onde estava o verdadeiro potencial americano. Do governo Reagan para cá, o Estado se ausentou de ter um papel maior no futuro dos EUA.
Biden, agora, volta àquele modelo de John Maynard Keynes e John Kenneth Galbraith, que permeou as presidências de Eisenhower, Kennedy e Johnson.
Não se trata do Estado central dos nacional-desenvolvimentistas. Não é um Estado que decide indústrias e orienta a nação de Washington. Mas é um Estado que gasta dinheiro pesado para desenvolver ciência e atrair cérebros de toda parte, um Estado em essência multicultural.
A aposta é de que conhecimento será criado em tal quantidade, e com a liberdade de inquirir e testar que só democracias são capazes de produzir, que o resultado inevitável será o surgimento de empresas e até mesmo de novas indústrias inteiras.
O Vale do Silício nasceu assim.
Rolf Kuntz: Presidente dos EUA se torna um novo desafio para Bolsonaro
Com a política de Biden, a relação entre comércio e meio ambiente poderá ganhar uma importância desconhecida até agora. Quem cuidará disso no governo?
O combate à mudança climática será um dos pontos centrais da diplomacia, da política de segurança nacional e dos planos econômicos do governo americano, anunciou ontem o presidente Joe Biden. O mesmo recado foi transmitido em sessão do Fórum Econômico Mundial pelo representante especial da Casa Branca para questões do clima e do ambiente, John Kerry, secretário de Estado no governo do presidente Barack Obama. Não há escolha, disse Kerry, entre criar empregos pelo crescimento econômico e cuidar do ambiente. Grandes empresários, acrescentou, já apontam o caminho. Em seguida citou, entre outros, o bilionário Elon Musk, fabricante de carros elétricos.
O anúncio dá uma nova dimensão à advertência feita pelo candidato Joe Biden, num debate eleitoral, sobre a devastação da Amazônia. Eleito, poderia contribuir com bilhões de dólares para a preservação da floresta ou impor restrições comerciais ao Brasil. Resposta do presidente Jair Bolsonaro: “Depois que acaba a saliva, tem de ter pólvora. Não precisa nem usar a pólvora, mas tem de saber que tem”.
O enviado John Kerry nem sequer mencionou o Brasil. Mas citou uma grande potência econômica e militar, a China, responsável, segundo ele, por 30% das emissões de carbono. Nenhuma rivalidade comercial, afirmou, ofuscará a união dos governos americano e chinês a favor de políticas sustentáveis. Dois dias antes do enviado da Casa Branca, o presidente da China, Xi Jinping, havia discursado em defesa do multilateralismo, da cooperação econômica, do respeito às normas internacionais e da colaboração contra a covid-19 e na busca de grandes objetivos comuns.
Os dois pronunciamentos afirmaram valores muito diferentes daqueles proclamados pelo presidente Donald Trump, seguidos por seu discípulo Jair Bolsonaro incorporados na diplomacia executada pelo ministro Ernesto Araújo. A reunião do Fórum de Davos, nesta semana, foi em parte uma celebração de uma era pós-Trump: proteção do ambiente, multilateralismo, cooperação contra a covid-19 e ação coordenada para uma economia mais verde foram bandeiras defendidas em várias sessões, a partir de vários ângulos.
Malsucedido em sua única participação numa reunião anual do Fórum, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro decidiu novamente faltar. Foi substituído pelo vice-presidente Hamilton Mourão, escalado para uma sessão sobre a Amazônia.
Foi um evento morno, com presença de vários brasileiros, do presidente da Colômbia, Iván Duque, e do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Mauricio Claver-Carone. Falou-se de planos para preservação da floresta, comentou-se o potencial econômico da região e o presidente do BID prometeu ajuda. Não houve críticas nem autocríticas.
O presidente Bolsonaro evitou os incômodos de participação no Fórum, mas terá de reconhecer, no dia a dia, os desafios da nova política americana. Muito ocupado com a reeleição e com seus assuntos familiares, provavelmente deixará as questões econômicas e diplomáticas para outras pessoas. Com a política de Biden, a relação entre comércio e meio ambiente poderá ganhar uma importância desconhecida até agora. Quem cuidará disso no governo?
*É JORNALISTA
Carlos Pereira: Redescobrimento?
A democracia americana não foi redescoberta, mas reafirmada
No dia 20 de janeiro, data da posse do novo presidente americano, estava na Barra do Cahy, praia paradisíaca localizada no extremo sul da Bahia, que reúne falésias deslumbrantes, vasta mata atlântica e águas claras que se encontram com as curvas sinuosas do rio que dá nome à praia. De acordo com a descrição de Pero Vaz de Caminha em carta enviada em 1500 ao Rei de Portugal, Dom Manoel I, foi nesta praia que supostamente o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral e sua tripulação. Mas apenas em janeiro de 2017 a Barra do Cahy recebeu o título de “primeira praia do Brasil” pela prefeitura do município de Prado.
Parece que neste dia 20 de janeiro o mundo redescobriu a democracia, supostamente ofuscada por quatro anos do governo de Donald Trump. Esse sentimento ficou evidente especialmente a partir dos eventos do último dia 06 de janeiro, quando o Capitólio, símbolo máximo da democracia americana, foi invadido por apoiadores radicais e insurrecionados do ex-presidente.
A posse de Joe Biden como presidente dos EUA, portanto, teve o significado de reafirmação dos valores e princípios da democracia. Nas palavras de Biden “a democracia prevaleceu”.
Mas será que a democracia americana estava em risco? Quando as instituições estão, de fato, fragilizadas ao ponto de sofrerem mudanças que ameacem o equilíbrio democrático?
No livro, “Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change”, eu e meus coautores argumentamos que mudanças institucionais de grande monta, como a quebra de regimes democráticos, não ocorrem de forma incremental, mas em momentos muito específicos na história de uma sociedade.
A eleição de governantes populistas estremados e não comprometidos com princípios e valores democráticos não é razão suficiente para que democracias estáveis quebrem ou mesmo que fiquem sob risco. Afinal de contas, eleições, mesmo quando livres e competitivas, quase nunca selecionam os melhores governantes ou aqueles consistentes com nossas preferências. E mesmo quando o fazem, não demora muito para que estes frustrem os eleitores.
Para haver quebra de regime, é necessário que as instituições em vigor não mais consigam oferecer resultados congruentes com as expectativas da sociedade. Mais especificamente, quando as instituições democráticas estejam desconectadas do conjunto de crenças dominantes dos atores políticos e agentes econômicos relevantes e influentes no processo decisório. Ou seja, mudanças institucionais requerem mudanças de crenças. Quando essa desconexão acontece, abrem-se janelas de oportunidade a mudanças, as quais podem ou não ser aproveitadas.
Não existe qualquer evidência de que as crenças dos atores políticos e agentes econômicos relevantes dos EUA estariam inconsistentes com as instituições democráticas americanas. Ou seja, que as instituições não estariam funcionando como esperado. Ainda que as crenças de parcela do partido Republicano tenham se tornado maleáveis, se a maioria dos atores sociais e econômicos relevantes acreditam que seu país está realizando eleições livres e justas e que o vencedor é legítimo, é muito improvável que as instituições democráticas quebrem, pois, nesse caso, crenças e instituições se reforçam mutuamente.
O mundo tem agido como se a democracia tivesse sido redescoberta com a posse de Biden. Mas a democracia estava lá, com suas instituições, ritos e procedimentos, dando os contornos aos conflitos e disputas pelo poder. O que vai ficar para a história é que o ex-presidente Trump saiu derrotado, não apenas nas urnas. Quer tenha sido apenas uma “estratégia de saída” ou uma tentativa de autogolpe, as instituições democráticas, como esperado, foram capazes de ofertar solução pacífica ao conflito, desencorajando outras ações iliberais nos EUA e em outras democracias.
*Cientista Político e professor titular da FGV Ebape
João Gabriel de Lima: A Terra volta a ser redonda. Hora de o Brasil embarcar
Foi semana de benditas obviedades. Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta
Stefani Germanotta, a Lady Gaga, cantou o hino dos Estados Unidos; Jennifer Lopez deu um twist latino à sua interpretação de God Bless America; e, no encerramento, a poeta Amanda Gorman, de 22 anos, declamou versos que resumem o sentimento da nova geração. Na posse do presidente Joe Biden, as três mulheres nos lembraram que os Estados Unidos são um país ítalo-americano, hispano-americano, afro-americano – sem contar outras etnias e misturas. Muito de sua força e riqueza se deve à bênção de ser uma nação de imigrantes.
Parece óbvio. É como dizer que a Terra é redonda.
No momento-chave de seu discurso, Biden disse: “Nós devemos tratar os outros com dignidade e respeito. Juntar forças, parar o tiroteio e baixar a temperatura. Sem unidade não há paz – só amargor e fúria. Não há progresso – só ultraje exasperante. Não há nação – só um estado de caos”.
Dignidade e respeito. Condições óbvias para o debate inteligente nas democracias. A Terra é redonda.
No mesmo dia da posse de Biden, Portugal assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Em Bruxelas, o primeiro-ministro António Costa traçou as linhas gerais dos próximos seis meses: foco no social, na economia digital e no combate às alterações no clima. “Temos um planeta para proteger, e não podemos perder mais tempo,” disse Costa em seu discurso.
A Terra é redonda, e temos que cuidar dela.
Aqui em Portugal vivemos o momento mais dramático da pandemia. O governo decretou confinamento total. A trajetória da covid no país confirma o mantra dos cientistas: as duas únicas formas de controlar uma pandemia são vacina e distanciamento social. Portugal achatou a curva quando optou pelo confinamento, em março passado e no início de dezembro. Quando abriu mão dele, no “alívio” de Natal e ano-novo, deu-se o inverso. Turbinados pela variante inglesa, os casos explodiram.
Seguir o que diz a ciência: outra obviedade.
Enquanto isso, no Brasil, as obviedades são colocadas em dúvida todos os dias. O distanciamento social é minimizado, a floresta que ajudaria a deter a mudança climática enfrenta recordes de desmatamento e o “tiroteio” e o “ultraje” se tornam a regra em Brasília. Em ensaio publicado recentemente, o cientista político José Álvaro Moisés – personagem do minipodcast da semana – examina as razões de vivermos em permanente crise política. Uma delas pode ser o sistema de governo. Segundo Moisés, o semipresidencialismo – que vigora em Portugal e na França – distribui melhor o poder e facilita a negociação.
Portugal vai às urnas neste domingo para escolher o presidente. O atual ocupante do cargo, Marcelo Rebelo de Sousa, é o favorito à reeleição. Marcelo, que os portugueses chamam pelo primeiro nome, é de centro-direita, e divide o poder com o primeiro-ministro Costa, de centro-esquerda. Eles conversam “com dignidade e respeito” – e, pela saúde dos cidadãos, foram capazes de unificar o discurso durante a pandemia, em pleno tiroteio eleitoral.
Respeito aos que pensam diferente e aos que vêm de países diferentes. Respeito à ciência. Foco no social num momento em que muitos ficam sem empregos. Foco no combate à mudança climática – se ela ocorrer, nada restará para nossos filhos e netos.
Foi uma semana de benditas obviedades. Como se a Terra, depois de um momento de loucura, tivesse voltado a ser redonda.
Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta.