EUA

Monica de Bolle: O plano Biden

Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente

Diretamente de Washington D.C., vejo com curiosidade a maneira como a imprensa brasileira tem repercutido o plano do presidente Joe Biden para aprimorar a infraestrutura do país e deslanchar sua dupla agenda de proteção social e combate às mudanças climáticas. Curiosidade e também alguma graça. Persiste no Brasil a ideia de que os Estados Unidos são o exemplo de país em que o desenvolvimento se deu pela iniciativa privada, sem protagonismo do Estado. A ideia é errada e mostra um profundo desconhecimento da história do país. E o desconhecimento histórico, nesse caso, não é inofensivo, porque acaba servindo para afastar os aspectos positivos do Estado indutor, em argumentos simplórios, que apresentam apenas seus aspectos negativos, que de fato existem. Tenta-se revitalizar, com esse tipo de construção, a noção de que o Estado protagonista só traz ineficiências, como se o mundo pudesse ser simplificado para caber no que tenho chamado de “liberalismo à brasileira”.

Os Estados Unidos se industrializaram tardiamente, assim como a Alemanha e o Japão, quando se tem o Reino Unido como termo de comparação. A industrialização americana aconteceu na segunda metade do século XIX e foi extremamente rápida: no fim do século, os EUA já rivalizavam com o Reino Unido no comércio internacional. A industrialização no país seguiu alguns dos princípios estabelecidos por Alexander Hamilton — o primeiro secretário do Tesouro — no final do século XVIII. Em sua obra Report on the subject of manufactures, publicada em 1791, Hamilton elabora os princípios da industrialização destacando que o desenvolvimento nacional requeria medidas que discriminassem a favor dos produtores locais.

Portanto, argumentava Hamilton, o processo de industrialização teria de se ancorar em dois eixos principais: o protecionismo e a substituição de importações. Alguns anos mais tarde, Friedrich List iria se valer de argumentos semelhantes para tratar da industrialização alemã. O interessante é que List o faria a partir de suas observações em relação ao que se passava nos Estados Unidos, onde residira antes da publicação de Sistema nacional de economia política, em 1841. Tanto Hamilton quanto List exerceram grande influência sobre o papel do Estado na industrialização americana. Ao final do século XIX, os grandes conglomerados industriais deveriam sua existência ao Estado indutor do desenvolvimento.

Para o desgosto de alguns no Brasil, o “desenvolvimentismo” marcou, assim, a ascensão da economia americana e continuaria a se fazer presente, em maior ou menor intensidade, nas muitas décadas que se seguiram. Em 1934, estaria lá o Estado para socorrer o país da Grande Depressão. A corrida espacial e o complexo tecnológico que a possibilitou durante a Guerra Fria não teriam sido possíveis sem o papel do Estado. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, a internet foi concebida e desenvolvida pelo governo americano. Todo o setor de tecnologia de informação hoje existente não teria se formado sem o financiamento do Estado. Por fim, e essa não é uma lista exaustiva, os Estados Unidos não seriam dominantes na área de biotecnologia sem o papel do Estado. Esse domínio, hoje, está mais visível do que nunca no desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19: as vacinas gênicas da Pfizer e da Moderna, que usam tecnologia mais sofisticada, foram possíveis graças a financiamento e contratos de compra no âmbito da Operação Warp Speed.

É nesse contexto que se insere o Plano Biden. Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente.

Ele prevê investimentos maciços em áreas diversas e seu tamanho — todo o PIB do Brasil — deixou alguns assombrados. É curiosa essa reação. Trata-se do país emissor da moeda de reserva internacional, o dólar, anunciando um plano ambicioso e caro, como fez em diferentes momentos ao longo de sua história. Mas, para muitos, parece que essa história não existe, ou foi reinterpretada à luz de um punhado de anos em que reinou suprema a ultraortodoxia da Escola de Chicago, que não mais existe aqui nos Estados Unidos.

Os “liberais à brasileira” vão ter de se conformar com o “desenvolvimentismo” de Biden. O mais saboroso? Serão testemunhas do quão acertado o plano é para o momento atual.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkin


Bernardo Mello Franco: Plano de desmonte

No início da pandemia, Ricardo Salles expôs um plano para desmontar o sistema de proteção ao meio ambiente. Segundo ele, era preciso aproveitar as atenções voltadas para o coronavírus e “ir passando a boiada”. O ministro pode ser acusado de muita coisa, menos de não fazer o que prometeu.

Desde a célebre reunião de abril de 2020, Salles revogou normas de licenciamento, perseguiu servidores e se aliou abertamente aos devastadores da Amazônia. O resultado foi o maior desmatamento da floresta em dez anos, de acordo com os dados do Imazon.

Encorajado pelo chefe, o ministro continuou a tabelar com os algozes da floresta. Em março, ele se solidarizou com os alvos da maior apreensão de madeira da história do Brasil. A atitude revoltou os investigadores que comandaram a operação. “Na Polícia Federal não vai passar boiada”, reagiu o superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva.

O delegado não se limitou a protestar. Apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra Salles e o senador Telmário Mota. O documento acusa a dupla de advocacia administrativa, participação em organização criminosa e infração contra a lei de crimes ambientais.

Para Saraiva, o chefe do Ministério do Meio Ambiente atacou a PF “de forma parcial e tendenciosa, comportando-se como verdadeiro advogado da causa madeireira”. A descrição também serve para ilustrar as relações do ministro com grileiros de terra e garimpeiros ilegais.

A ousadia de Salles mostra que ele não age sozinho: cumpre tarefas combinadas com Jair Bolsonaro. Ontem o presidente deu mais um sinal de apoio à devastação. Em vez de demitir o ministro, mandou afastar o superintendente da PF que o acusou.

Saraiva fez o que o procurador Augusto Aras se recusa a fazer: denunciou o desmonte ambiental e tentou laçar a boiada de Salles. O Congresso também tem sido cúmplice do ataque à Amazônia. Agora, o Supremo tem uma chance de frear as motosserras.

A Corte ainda ganhou novos elementos para o inquérito que apura a interferência do presidente na PF. A investigação completa um ano no próximo dia 28. Ao derrubar o superintendente, Bolsonaro escancarou, mais uma vez, o plano de capturar a polícia para defender seu grupo político.


Vera Magalhães: Salles não é Ernesto nem Weintraub

Quem imagina que a pressão internacional pela adoção de políticas mais firmes no combate ao desmatamento, a demissão do superintendente da Polícia Federal no Amazonas ou os sucessivos indicadores de aumento dos desmates e das queimadas colocam em risco imediato a permanência de Ricardo Salles no governo deve atentar para uma diferença importante: Salles não tem nada a ver com Abraham Weintraub ou Ernesto Araújo.

A começar pela origem. Salles não é um fanatizado seguidor de Olavo de Carvalho, nem mesmo um cultor da imagem de Jair Bolsonaro como um “mito”. A associação entre ambos é uma conveniência de agenda, pragmática para ambos os lados.

O ministro não era o preferido do presidente eleito na transição. As primeiras reuniões entre eles foram cercadas de desconfiança, pelo fato de Salles ter integrado o governo de Geraldo Alckmin.

O paulista ganhou o posto ao se comprometer a implementar à risca a agenda de Bolsonaro, que logo nas primeiras conversas reclamou do excesso de fiscalização e de multas aplicadas por órgãos como o Ibama a madeireiros e produtores rurais. Disse que seu ministro teria a incumbência de acabar com a “indústria da multa” e enfraquecer o papel das ONGs, inclusive suas conexões no Inpe, no Ibama e no ICMBio.

Este é um ponto fulcral: diferentemente de Araújo e Weintraub, cujo comportamento caricato e cuja mente persecutória não permitiam que cumprissem nenhum planejamento de desmonte de seus órgãos sem que isso naufragasse como um plano infalível do Cebolinha, Salles sabe planejar e executar a agenda de Bolsonaro. Tem feito isso com extrema eficácia ao longo de dois anos e três meses.

O que ele propugnou na famosa reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, aproveitar a pandemia para “passar a boiada” do desmonte da estrutura de fiscalização e a legislação ambiental, inclusive do arcabouço legal, está sendo implementado à risca. Basta pegar a lista de normas revogadas nos últimos meses, inclusive as concernentes à concessão de licença ambiental.

Salles não se furta a defender a agenda de Bolsonaro em entrevistas, reuniões com outros países e fóruns internacionais. Faz isso sem alterar a voz ou a fisionomia, supostamente esgrimindo dados, que distorce sem nem corar. Aperta os botões certos para demitir ou mandar afastar quem cruza seu caminho, como acaba de acontecer com o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva — algo “já planejado”, segundo os envolvidos.

A queda de Salles dependeria de alguns fatores combinados. Primeiro, uma evidência que o ligasse à defesa dos interesses de empresas privadas que agem ilegalmente nos ramos de madeira, extração mineral ou agropecuária, como acusou Alexandre Saraiva na notícia-crime que enviou ao Supremo Tribunal Federal.

Portanto, se o STF abrir mais um inquérito para investigar um ministro de Bolsonaro, e exigir, como Alexandre de Moraes garantiu no caso das denúncias de Sergio Moro, um delegado da PF destacado para isso que não possa ser removido pelo diretor-geral Paulo Maiurino, a situação do titular do Meio Ambiente poderia se complicar.

O segundo fator que pode atrapalhar a permanência do extremamente eficiente (para Bolsonaro) Ricardo Salles é uma sanção mais concreta da União Europeia, da China ou dos Estados Unidos às exportações brasileiras pela nossa trágica gestão ambiental.

Isso faria com que o prejuízo pela manutenção do ministro se fizesse sentir no bolso daqueles que apoiam Bolsonaro: o agronegócio, o setor da mineração e os madeireiros. O presidente já perdeu sustentação em segmentos importantes, como o mercado financeiro e o empresariado industrial, em razão do desastre na resposta à pandemia e da economia que não decola. Se sentir que a própria cabeça estará na guilhotina, não se furtará a colocar a de seu dileto ministro no lugar.


Eliane Brum: Biden ameaça sujar as mãos com Bolsonaro

Ao negociar com o extremista de direita que governa o Brasil, o presidente democrata se arrisca a cometer a maior interferência no destino do Brasil desde a ditadura

O apoio decisivo dos Estados Unidos às ditaduras da América Latina na segunda metade do século 20 é conhecido e bem documentado. O que não se esperava é que, justamente neste momento da história, em que os Estados Unidos acabaram de enfrentar o maior e mais traumático ataque à sua própria democracia, Joe Biden possa decidir fortalecer o autoritário Jair Bolsonaro. Os governos de Bolsonaro e de Biden conversam a portas fechadas sobre um bilionário investimento na Amazônia que poderá ser anunciado na Cúpula de Líderes sobre o Clima promovida na próxima semana, em 22 e 23 de abril, pelos Estados Unidos.

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Amplos setores da sociedade brasileira veem na negociação um movimento inaceitável para legitimar Bolsonaro no momento em que ele é tratado pelo mundo democrático como “ameaça global” e amarga uma queda na sua popularidade devido à media de mais de 3 mil mortes diárias por covid-19. Quem conhece Bolsonaro também tem certeza de que, se Biden botar dólares na conta do Governo brasileiro, o presidente e sua quadrilha encontrarão um jeito de abastecer os bolsos dos depredadores da Amazônia, uma importante base eleitoral para catapultar as chances de uma reeleição em 2022.

O impasse não é confortável para o Governo do democrata Joe Biden. Em seu discurso de posse, ele anunciou o combate à emergência climática como uma de suas maiores prioridades. Ainda na campanha eleitoral, já havia anunciado a intenção de investir 20 bilhões de dólares na proteção da Amazônia. Não há possibilidade de controlar o superaquecimento global, bandeira cara à ala mais progressista do Partido Democrata, sem a maior floresta tropical do mundo. Por outro lado, a deliberada inação do Congresso brasileiro, sentado sobre mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro, torna difícil qualquer ação por parte do líder americano: por um lado, a proteção da Amazônia já se tornou emergencial, dada a crescente savanização da floresta; por outro, a premência obriga o Governo americano a negociar com o principal responsável pela aceleração da destruição.

O que fazer, então? Certamente não negociar a portas fechadas com um Governo que, apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, desmatou mais de 11 mil quilômetros quadrados, o equivalente a riscar do mapa uma área de floresta do tamanho de sete cidades de São Paulo. Os índices de desmatamento de março de 2021, o último mês fechado, já são os maiores dos últimos seis anos, com a extinção de 367 quilômetros quadrados de mata. E, também, não negociar com um extremista de direita denunciado por povos indígenas e outros setores da sociedade brasileira e internacional como “genocida”, em comunicações ao Tribunal Penal Internacional. E, ainda, não negociar com um governante apontado por pesquisas internacionais como o pior gestor da pandemia, cujas ações para disseminar o novo coronavírus com o objetivo de atingir imunidade por contágio ameaçam hoje o controle global da covid-19, ao converter o Brasil num criadouro de novas variantes.

O primeiro a propagandear a surpreendente amizade com o Governo de Biden foi justamente o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, um fraudador ambiental condenado. Salles, que anunciou com orgulho num programa de TV que assumiu a pasta sem nunca ter visitado a Amazônia nem saber quem era Chico Mendes, tem entre suas credenciais uma condenação por fraudar documentos e mapas para beneficiar mineradoras quando era secretário do meio ambiente do Estado de São Paulo. Quando a covid-19 atingiu o Brasil, defendeu numa reunião do governo que deveriam aproveitar que a imprensa estava distraída com a pandemia “para passar a boiada”, o que significava afrouxar ainda mais a legislação ambiental sem se arriscar à reação da sociedade. Em sua gestão, o marco legal de proteção, assim como os órgãos de fiscalização, foram enfraquecidos.

Chamado no Brasil e em parte do mundo de antiministro do meio ambiente ou ministro contra o meio ambiente, Salles estava tão afoito para divulgar as negociações com os americanos que deu uma entrevista à jornalista Giovana Girardi, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, na casa da sua mãe. Fez questão de alardear que estava pedindo aos americanos 1 bilhão de dólares a cada 12 meses para reduzir o desmatamento da Amazônia em 40%. A trucagem de Salles não agradou aos negociadores americanos, que foram propositalmente expostos, e moveu uma forte reação contrária de amplos setores da sociedade brasileira.

Na semana passada, 199 organizações, de indígenas a cientistas, de ambientalistas a jornalistas, assinaram uma carta na qual afirmam: “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”. Entre as várias surpresas da negociação entre os governos Biden e Bolsonaro está o fato de que nenhum dos protagonistas da sociedade civil, os que vêm lutando e morrendo pela Amazônia há décadas, foram chamados para participar.

Na segunda-feira, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou um vídeo em inglês direcionado ao presidente estadunidense: “Caro Joe, nós sabemos que a Casa Branca está fazendo um acordo climático secreto com Bolsonaro. Nós, brasileiros, precisamos te alertar: não confie em Bolsonaro. Não deixe esse homem negociar o futuro da Amazônia. Ele declarou guerra contra nós. Contra os povos indígenas. Contra a democracia. Ele está espalhando covid-19, mentiras e ódio”. E finaliza: “É a Amazônia ou Bolsonaro. Não dá para conciliar os dois. De que lado você está?”.

Diante da reação crítica, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, o texano Todd Chapman, se apressou a tentar virar a maré de constrangimento, afirmando, durante uma reunião virtual privada no domingo, da qual participaram políticos, diplomatas e empresários brasileiros convidados, que o Governo Bolsonaro vai precisar “mostrar preocupação ambiental para recuperar a confiança dos americanos e ampliar as relações com a Casa Branca”. Segundo a Folha de S. Paulo, o embaixador estadunidense classificou a cúpula do clima como “uma oportunidade” para o Brasil virar o jogo e resgatar a preocupação ambiental diante dos olhos do mundo. E aí vem a parte mais interessante. O embaixador afirmou que o país vai “se tornar herói” se fizer uma “declaração contundente”, retomando seu papel de protagonista no debate sobre o meio ambiente.

Como o Brasil hoje é governado e representado por Jair Bolsonaro, Chapman, uma escolha de Donald Trump para a embaixada brasileira, está acenando com um Bolsonaro herói da Amazônia. O problema é que nem na cabeça dos roteiristas mais imaginativos da HBO ou da Amazon essa transmutação soaria remotamente verossímil. O que está se desenhando, ao contrário, é mais um enredo no estilo de Al Capone. Bolsonaro e seu fiel lobista Salles desmontam a legislação ambiental e enfraquecem os órgãos de proteção, estimulam grileiros, madeireiros e garimpeiros a invadir as áreas públicas da floresta, deixam a covid-19 se alastrar pelos territórios indígenas e, quando a pressão internacional aperta, fazem um show pirotécnico com Exército e/ou Força Nacional, escanteando mais uma vez os fiscais do Ibama.

Os resultados estão aí para qualquer americano ver. Com a decisiva colaboração de Bolsonaro e de Salles, as pesquisas mais recentes mostram que áreas da floresta amazônica já começam a emitir mais carbono do que absorvem. Se a destruição da floresta que ainda está em pé continuar e se a floresta degradada não for recuperada, isso significa que em breve a Amazônia vai se tornar parte do problema e não mais parte da solução.

Bolsonaro e Salles destroem a Amazônia e atacam os povos da floresta em proporções só vistas na ditadura civil-militar (1964-1965) e depois pedem dinheiro para parar. Há ainda mais uma malandragem na proposta do também chamado “sinistro do meio ambiente”: apenas um terço dos recursos iriam diretamente para a proteção da floresta. Os outros dois terços seriam investidos em “desenvolvimento econômico” da região. Alguém já viu esse modus operandi em algum lugar? Pois é. Não para por aí o comportamento de gângster. Para alguns negociadores experientes, os Estados Unidos podem estar pagando também para que Bolsonaro não destrua qualquer possibilidade de acordo nas próximas cúpulas do clima.

Ricardo Salles, como alfineta um ambientalista, não levanta da cama pela manhã se não for para botar a mão em dinheiro que possa controlar. Esse foi justamente o problema dele com o Fundo Amazônia, que garantia ao Brasil um volume de recursos na casa dos bilhões da Noruega e também da Alemanha e que acabou sendo congelado porque Salles tentava desvirtuá-lo. Salles queria o que ele mesmo definiu como “uma mudança no modelo de gestão de recursos”. Os europeus desviaram da casca de banana.

Pode ser um tanto inusitado negociar com tal personagem. A repórter Marina Dias, da Folha de S. Paulo, conta que num dos slides apresentados por Salles em uma reunião com integrantes da equipe de John Kerry, Enviado Especial para o Clima do Governo Biden, havia a imagem do que os brasileiros chamam popularmente de “TV de Cachorro”: um vira-lata esfomeado olhando os frangos assando e girando numa máquina. As aves de Salles tinham cifrões estampados no corpo. Acima, estava escrito: “Payment Expectation” (expectativa de pagamento). É fácil imaginar quem é o cachorro e quem é o franguinho.

Poderia se cogitar que Biden e sua equipe não tenham aprendido o suficiente sobre como funciona a corja de populistas de extrema direita que corroem a democracia mundial, da qual Bolsonaro, depois da derrota sofrida por Trump, é o exemplo mais vistoso. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar na ingenuidade de negociadores americanos. Nessa mesa há ainda muitas cartas nebulosas: entre elas, o temor da China avançando várias casinhas sobre a Amazônia brasileira e outras partes do planeta, o que já está acontecendo, os impasses em torno da tecnologia 5G e também a pressão das grandes corporações, que querem seguir lucrando sem sofrer boicotes por usar matérias-primas originadas no desmatamento. Nesse jogo, o mais lento voa.

É compreensível, necessário e desejável que Biden queira investir na proteção da Amazônia também pelas mais corretas e louváveis razões. É, porém, inacreditável, inaceitável e abjeto que Biden faça isso dando dinheiro ao maior inimigo da Amazônia e de seus povos. Em sua defesa, negociadores americanos têm dito que Bolsonaro foi eleito democraticamente e que é urgente proteger a Amazônia.

Sim, como Donald Trump, Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente. Bolsonaro, porém, assim como Trump, não é um democrata, em nenhum sentido que esse termo possa ter. Bolsonaro e sua quadrilha só permanecem no Governo depois de todas as atrocidades que cometeram porque o Congresso é dominado por um grupo de parlamentares de aluguel chamado de “Centrão”. Também porque a massa de pessoas que clama pelo impeachment não pode ir às ruas porque o país está tomado pela covid-19 e, graças à diligência de Bolsonaro, sem garantia de vacinas em número suficiente.

Os olhinhos ávidos de Bolsonaro sempre brilharam diante de Donald Trump. Junto com o ditador norte-coreano Kim Jong-un, o brasileiro foi um dos governantes do mundo que mais demorou para reconhecer a vitória de Joe Biden sobre seu ídolo do topete laranja. Também justificou a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro, sustentando a mentira trumpista de “fraude” na eleição. Trump, porém, sempre afagou a cabeça do seu garoto, mas jamais cogitou dar o que os americanos chamam de “serious money” ―uma quantia decisiva de dinheiro―ao seu Governo. O investimento na Amazônia pretendido por Biden, nos moldes em que está sendo negociado, poderá significar um apoio ao governo Bolsonaro que nem o próprio sonhou.

Se a urgência de proteger a Amazônia não pode esperar o fim do governo predatório de Bolsonaro, é necessário garantir a participação nas negociações de quem realmente protege a floresta ―contra as agressões de Bolsonaro. Como as lideranças indígenas e as organizações socioambientais, essas que Bolsonaro chama de “câncer”. É também obrigatório condicionar a liberação do dinheiro a ações reais e resultados concretos. Fundamentalmente, nos campos da ética, da decência e dos direitos humanos, pouco populares em negociações internacionais, o desafio de Biden é dar uma resposta coerente à pergunta para lá de espinhosa: é possível negociar com um extremista de direita chamado de “genocida” por grande parte do seu povo, responsável por milhares de mortes evitáveis e pela aceleração do desmatamento da Amazônia?

Se as negociações seguirem na toada atual, Biden poderá sujar as mãos logo na arrancada de sua pretensão a liderar o mundo democrático no enfrentamento da crise climática. E, com a justificativa de proteger a Amazônia, realizar a mais decisiva interferência no destino do Brasil por um governo americano desde a ditadura. A Amazônia, cada vez mais perto do ponto de não retorno, precisa ser protegida pela sociedade global com urgência. Mas não se fará isso dando bilhões de dólares para seu maior predador e sua quadrilha de destruidores ambientais.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


O Globo: Ex-chanceler cita teorias da conspiração, diz que não se alinhou aos EUA e que teve boa relação com a China

Ernesto Araújo publica seu primeiro texto depois de deixar o Itamaraty, no qual defende sua gestão e não faz nenhuma autocrítica

André de Souza e André Duchia, O Globo

BRASÍLIA - Hoje funcionário da gestão administrativa do Ministério das Relações Exteriores, o ex-chanceler Ernesto Araújo publicou, neste sábado, um texto em seu blog pessoal no qual defende sua gestão, encerrada há pouco menos de duas semanas sob pressão do Senado.

No texto, similar a tantos que escreveu ao longo de seu período à frente do Itamaraty, Araújo cita teorias da conpiração, defende-se da crítica frequente de que submeteu a soberania do Brasil ao governo de Donald Trump, afirma que teve boa relação com a China e lista o que considera ser realizações de seu mandato. O texto não inclui nenhuma autocrítica.

Araújo dedica boa parte do texto a contrariar quem o acusa de alinhar automaticamente a política externa brasileira à do governo de Trump. O chanceler diz que, no lugar disso,  na verdade a política externa do governo de Jair Bolsonaro teria eliminado um suposto "desalinhamento automático" anteriormente vigente.

Araújo disse que não embarcou em "sequer uma única iniciativa com os Estados Unidos que não correspondesse à racionalidade dos interesses brasileiros". De acordo com ele, todas a iniciativas que "tomamos com os EUA contribuíram para o incremento dos investimentos e do comércio, para o aumento de nossa capacidade tecnológica, para nosso desenvolvimento na área de defesa, para o combate ao crime organizado e ao terrorismo em nossa região, para a promoção dos nossos valores básicos como o direito à vida e a liberdade religiosa, para nosso acesso a grandes foros internacionais, para a construção de um mundo que seja favorável à democracia e à liberdade".

Na prática, porém, as conquistas junto aos Estados Unidos foram poucas. O Brasil suspendeu unilateralmente vistos de cidadãos de lá, sem exigir reciprocidade. Abriu mão de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC), condição que lhe garantia algumas vantagens, em troca do apoio dos Estados Unidos para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas, com a troca de governo nos Estados Unidos, em que o ex-presidente Donald Trump deu lugar a Joe Biden, esse apoio ficou em suspenso. Além disso,o próprio Trump reduziu a importação do aço brasileiro.

ex-ministro, conhecido por seus longos textos e sua concepção política considerada irrealista, cita também teorias da conspiração, como uma "junção narcotráfico-terrorismo-corrupção-socialismo na América Latina (o complexo criminoso-político consubstanciado no foro de São Paulo)" — o foro, no caso, de fato existe, mas não no sentido usado pelo chanceler, que, assim como o ideólogo Olavo de Carvalho, o compara a um poderoso complô de criminosos, acusação nunca provada.

Araújo também volta a abordar a teoria do grande reset, tese conspiracionista comum na extrema direita internacional que, citando um grupo de trabalho econômico do Fórum de Davos, afirma haver um complô para reorganizar as sociedades globais a partir da pandemia.

Araújo aborda também as acusações de que desgastou as relações brasileiras com a China,  afirmando que manteve "relações produtivas com a China evitando atritos em torno das questões de Hong Kong, Taiwan e uigures, que hoje opõem a maioria dos países democráticos do mundo" ao país asiatico.

Araújo afirma que, apesar disso, "teve que exigir da Embaixada chinesa em Brasília o respeito ao Brasil e suas leis". A afirmação faz referência à crise diplomática entre o Brasil e a China no começo da pandemia, quando a embaixada chinesa reagiu com veemência a uma declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, acusando Pequim pela disseminação da Covid.  Na ocasião, entendeu-se que o comportamento de Araújo agravou a crise.

Segundo ele, não houve qualquer problema comercial com a China por questões políticas, o que seria provado pelo fato de o Brasil ter sido "o país do mundo que mais recebeu vacinas e insumos de vacinas contra a Covid fabricados na China", informação confirmada pelo próprio embaixador da China em entrevista ao GLOBO.

O ministro também defendeu a posição do Brasil de não acompanhar a proposta da Índia de quebrar patentes de vacinas contra a Covid-19, afirmando que ela é "inviável diante da resistência de muitos membros". Segundo ele, há uma "narrativa torpe e caluniosa de que meu trabalho prejudicava a obtenção de vacinas, e de que bastaria minha saída do cargo para que mais vacinas afluíssem ao Brasil".

Sem especificar, o ministro se refere a acordos bem-sucedidos de "todos os tipos com União Europeia, Estados Unidos, Japão, Israel, Índia, EFTA, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Marrocos, Chile, Uruguai, Paraguai, Polônia, Hungria e outros".

Ele não se refere a como no acordo com a União Europeia o Brasil cedeu em demandas antigas, sem contrapartidas. Não fala, tampouco, que a ratificação do pacto pelos países da UE está congelada e é considerada muito improvável durante o governo Bolsonaro, após vários países Estados-membros se manifestarem contrários ao acordo, exigindo contrapartidas ambientais do Brasil.

Na área ambiental, considerada uma das mais desgastadas internacionalmente pelo atual governo, Araújo disse que foi o idealizador do fundo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) com recursos para o setor, e que trabalhou com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, "para concretizar uma nova mentalidade em relação à Amazônia, centrada no investimento produtivo sustentável e na bioeconomia, gerando emprego e renda, ao lado da luta contra o desmatamento ilegal".

Apesar das críticas à China e também à Venezuela, Araújo elogiou outros países com governos nacional-populistas ou autoritários, como Rússia, Hungria e Polônia, além das ditaduras árabes como a Arábia Saudita. Ele não diz que não houve nenhuma visita oficial a nível de chefe de Estado ao Brasil de lideranças de uma grande potência europeia em seus dois anos à frente do Itamaraty, nem o desgaste que a relação entre o Brasil e países como França e Alemanha sofreu nesse período.

Araújo atacou ainda críticos de sua política externa, chamando-os de "embaixadores aposentados lobistas" ou de políticos acusados de corrupção. O ex-ministro disse também que abriu dois órgãos vinculados ao Itamaraty — a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e o Instituto Rio Branco — "a novas correntes de pensamento, principalmente ao pensamento conservador, antes completamente ausente desses espaços".

A referência à Funag se refere a palestrantes sem experiência internacional, adeptos de teorias da conspiração, que fizeram discursos anticientíficos contra o uso de máscaras de proteção, comparando-as aos expurgos soviéticos. No Instituto Rio Branco, uma das primeiras medidas do ex-chanceler foi eliminar o curso sobre a América Latina.


Financial Times: Amazon derrota movimento trabalhista e Biden nos EUA

Funcionários rejeitam sindicalização inédita no país; presidente fez campanha

Dave Lee, Financial Times

Trabalhadores em um centro de distribuição da Amazon em Bessemer, no estado do Alabama, votaram por larga maioria contra a sindicalização, num forte golpe contra o movimento trabalhista nos Estados Unidos e suas esperanças de conquistar uma base na gigante do comércio eletrônico.

A campanha para criar o primeiro sindicato da Amazon nos Estados Unidos atraiu a atenção do mundo todo e o apoio do mais alto cargo político do país, mas por final falhou em causar impacto onde realmente importava: nas urnas.

Cerca de 55% dos quase 6.000 trabalhadores do centro de distribuição votaram, pelo correio devido às restrições da pandemia. Em uma apuração realizada por videoconferência para um público de mais de 200 advogados, observadores e jornalistas, o "não" teve 1.798 votos, contra 738 em apoio à sindicalização.

Apesar da dura derrota, representantes do sindicato mantiveram uma posição firme, dizendo que o voto em si já foi uma conquista histórica, a primeira vez que toda uma instalação na terra natal da Amazon teve essa oportunidade.

O Sindicato de Varejo, Atacado e Lojas de Departamento disse que vai apelar do resultado, citando, segundo a entidade, esforços numerosos e flagrantes da empresa para influenciar a votação de forma ilegal.

"A Amazon sabia muito bem que a menos que fizesse o possível, até mesmo atividade ilegal, seus funcionários continuariam apoiando o sindicato", disse Stuart Appelbaum, presidente da entidade.

Em um comunicado, a Amazon agradeceu a seus empregados. "É fácil prever que o sindicato dirá que a Amazon ganhou esta eleição porque intimidamos os empregados, mas isso não é verdade", afirmou a companhia em um blog na sexta-feira (9).

"Nossos empregados ouviram muito mais mensagens anti-Amazon do sindicato, de políticos e canais de mídia do que ouviram de nós. E a Amazon não venceu —nossos empregados é que decidiram votar contra a entrada num sindicato."

Como quer que a caracterizem, a vitória da companhia dá continuidade a uma série de esforços para evitar a sindicalização nos EUA. O depósito em Bessemer foi a primeira instalação no país a chegar ao ponto de realizar uma votação formal e sancionada, depois de ter indicações de apoio suficientes no final do ano passado.

Apesar da derrota sindical, a batalha poderá se arrastar por muitos meses. A apelação será ouvida primeiro por um escritório local do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB na sigla em inglês) e poderá acabar sendo decidida pelos membros do conselho, indicados politicamente em Washington, disse John Logan, professor de estudos do trabalho e do emprego na Universidade Estadual de San Francisco.

"É concebível que quando chegar ao conselho completo do NLRB poderá ter uma maioria democrata", disse Logan. O mandato de William Emanuel, um nomeado republicano, deverá terminar em agosto.

Em março, o presidente Joe Biden indicou forte apoio aos trabalhadores, pedindo que a Amazon se afastasse para permitir que os trabalhadores fizessem uma "opção livre e justa". Logan descreveu os comentários como "a declaração mais pró-sindicatos já feita por um presidente em exercício".

O governo Biden está apoiando a Lei de Proteção ao Direito de se Organizar, que busca tornar ilegais muitas das táticas adotadas pela Amazon durante a campanha. A Lei PRO, como é conhecida por sua sigla em inglês, foi aprovada na Câmara dos Deputados no início deste ano.

"Os trabalhadores americanos não terão acesso constante a eleições sindicais livres, justas e seguras enquanto não reforçarmos as leis trabalhistas do nosso país", disse o deputado Bobby Scott, da Virgínia, presidente da Comissão de Educação e Trabalho da Câmara, depois da votação na Amazon.

"Não podemos continuar permitindo que os patrões interfiram na decisão dos trabalhadores de formar ou não um sindicato. O Senado precisa aprovar a Lei PRO."

A campanha também obteve o apoio do movimento Black Lives Matter e foi observada atentamente por outras importantes figuras de grupos de direitos civis. A força de trabalho do centro de distribuição de Bessemer é mais de 75% afro-americana.

"Os trabalhadores sentiam que não tinham voz e não sabiam como se manifestar", disse Marc Bayard, diretor da Iniciativa de Trabalhadores Negros no Instituto para Estudos de Políticas em Washington. "Esses trabalhadores mostraram um caminho para o sucesso."

A apelação do sindicato vai se concentrar no fato de que uma caixa de correio foi instalada no estacionamento do centro, à vista de câmeras de segurança, medida que, segundo representantes, se destinou a intimidar os empregados quando depositassem seus envelopes.

E-mails obtidos pelo sindicato pareciam mostrar que a Amazon tinha pressionado o Serviço Postal dos EUA para instalar a caixa antes do início da votação. Depois ela foi retirada.

A Amazon disse anteriormente que foi "uma maneira simples, segura e totalmente opcional de facilitar a votação pelos funcionários, nem mais nem menos".

Outras queixas do sindicato incluem uma campanha de reuniões de "audiência cativa", durante as quais a empresa advertiu os empregados contra a sindicalização, assim como a exibição de cartazes contra o sindicato no centro de distribuição —alguns nas cabines dos banheiros.

No início da campanha, o sindicato chamou a atenção para alterações nos semáforos de trânsito diante do edifício, que deram aos sindicalistas menos tempo para falar com os empregados quando saíam do trabalho. A Amazon disse que a medida visava reduzir o congestionamento.

O sindicato UNI Global, que representa mais de 900 sindicatos setoriais, disse que o esforço em Bessemer criou uma discussão de alto nível sobre as condições de trabalho na Amazon, cuja força de trabalho inchou em mais de 500 mil pessoas desde o início da pandemia, e hoje totaliza 1,3 milhão em todo o mundo.

"O 'efeito Bessemer' está eletrizando o movimento trabalhista, inspirando ações de Mianmar a Munique a Montevidéu", disse Christy Hoffman, secretária-geral do UNI.

"Enquanto a votação acontecia, houve greves na Alemanha e na Itália, e um novo esforço maciço para alcançar trabalhadores da Amazon foi lançado no Reino Unido. Ele continuará dando esperança aos trabalhadores, que exigem ter voz no trabalho e um emprego com dignidade.

"Os empregados no Alabama —e trabalhadores da Amazon em toda parte— devem manter suas cabeças erguidas e os olhos fixos na vitória. Unidos, ela é inevitável."

Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves


Folha de S. Paulo: Julgamento de oficial que matou Floyd pode ser ponto de virada para polícias nos EUA

Americanos precisam ver que sistema funciona, diz ex-policial e professor de direito penal

Fernanda Mena, Folha de S. Paulo

Na avaliação assumidamente otimista de Kirk Bulkhalter, o julgamento de Derek Chauvin, o policial que sufocou George Floyd com o joelho diante de câmeras em maio do ano passado, pode ser o início de um processo de reconstrução da confiança dos norte-americanos em suas polícias.

“Nunca vi um chefe ou comandante de polícia testemunhar contra um de seus policiais num processo criminal. E esse pode ser um começo”, avalia Bulkhalter, que é professor de direito penal da New York Law School (NYLS) depois de 20 anos de experiência no departamento de polícia de Nova York (EUA), para onde foi seguindo os passos do pai.

“Mais do que ver Derek Chauvin punido, as pessoas precisam ver o sistema funcionando, a responsabilização e as mudanças sendo implementadas.”

Bulkhalter dirige o The 21st Century Police Project (projeto polícia do século 21), um programa de reforma policial e de aproximação entre departamentos de polícia e comunidades diversas às quais devem prestar serviço.

Ele participou nesta sexta (9) do webinar “Disparidades Raciais e Reforma Policial nos EUA e no Brasil”, promovido pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Direito SP.

O encontro teve abertura do diretor da FGV Direito SP e colunista da Folha, Oscar Vilhena, e da adida cultural do consulado americano em São Paulo, Madelina Young-Smith. O debate, além de Bulkhalter, incluiu a coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o pesquisador do núcleo, Marta Machado e Felipe Freitas. A mediação foi de Thiago Amparo, coordenador do Núcleo de Justiça Racial e Direito e colunista da Folha.

Desde 2012, a confiança da população americana nas forças de segurança e nos meios de sua responsabilização por abusos e crimes vem sendo traída. O ano marcou o início de uma triste série de escândalos envolvendo o assassinato de jovens negros por vigilantes e policiais, depois inocentados nos tribunais, e pavimentou o caminho para o surgimento do Black Lives Matter (BLM).

O movimento que denuncia a brutalidade policial contra pessoas negras tomou a dianteira na onda de protestos que eclodiram depois do assassinato de Floyd, apoiando pedidos de redução orçamentária para as corporações, o chamado “defund”.

“Hoje, os departamentos de polícia e o BLM estão mais apartados dos que nunca, e sem perspectiva de aproximação”, afirma Bulkhalten.

Para ele, o principal efeito dessa movimentação antirracista foi “tornar policiais mais paranóicos, achando que cada vez que saírem do carro alguém pode filmá-los e tentar puni-los”, o que teria criado um “efeito de recolhimento dos policiais nas ações em que o uso da força estaria respaldado em imunidade qualificada”.

“Distante das polícias, o BLM teve mais efeito nos processos políticos e em seus representantes, que agora colocam pressão aos departamentos de polícia do país”, aponta.

Desde junho de 2020 o congresso americano tenta aprovar a chamada Lei George Floyd, a maior reforma policial das últimas décadas. A lei, que foi aprovada na Câmara e ainda precisa passar pelo Senado, inclui medidas como a proibição de estrangulamentos durante a ação policial, o fim dos mandados de segurança que permitem que os agentes entrem em lugares sem se anunciarem —como na ação que matou Breonna Taylor— e o fim da “imunidade qualificada”, espécie de excludente de ilicitude aplicado a determinados casos.

Analistas têm evocado reduções orçamentárias e recolhimento das forças policiais como possíveis causas do aumento da criminalidade violenta no ano passado nos EUA. Chicago viu o número de homicídios dobrar em 2020. Em Nova York, os assassinatos cresceram 40%. Em Los Angeles, 30%.

“Sou totalmente a favor de mais transparência sobre os gastos nas corporações, mas a verdade é que talvez não estejamos gastando o suficiente nos itens certos”, afirma Bulkhalter.

“Em qualquer tipo de carreira é necessário aumentar os salários para atrair pessoas mais qualificadas. Então precisamos considerar isso quando falamos de gastos dos departamentos de polícia. O objetivo é ter uma polícia mais eficiente.”

Entusiasta da educação dos policiais, Bulkhalter gosta de ilustrar seu ponto de vista com um dado: “Hoje, um policial em Nova York recebe seis meses de formação e vai para as ruas. Já um barbeiro precisa de um curso de um ano para obter uma licença que permita a ele cortar cabelo”.

“A formação deveria durar dois anos e ser, depois disso, continuada. A polícia tem o poder de tirar a liberdade de uma pessoa e de usar a força contra ela. Misturar isso com a falta de educação e treinamento recebidos é algo tóxico.”

Negro, ele diz ter presenciado poucos episódios explícitos de racismo por parte de colegas policiais. “O que vi foram vieses raciais individuais, como quando um colega quis parar dois homens negros dentro de um Porsche com um rack para equipamento de ski porque tinha convicção de que negros não esquiavam”, lembra ele, rindo.

“Eu mesmo esquio desde pequeno! Fiz uma abordagem educada e tranquila que servisse de lição para o meu colega. E os esquiadores seguiram seu caminho.”

Para o professor e ex-policial, as corporações nos EUA são “clubes de meninos, quase todos brancos” desde sempre, e só depois do assassinato de George Floyd é que se viu “oficiais negros sendo promovidos para posições de chefia e de liderança”.

Ele avalia que o aumento da diversidade em posições de comando das corporações policiais é um passo importante para evitar que novos assassinatos de pessoas negras por policiais aconteçam nos EUA.

“Tudo emana das posições de comando. Alguém nessas posições de liderança tem que se levantar e dizer que determinadas atitudes simplesmente não são razoáveis.”


Christophe Cloutier-Roy: 'Joe Biden apresentou o programa mais progressista dos últimos tempos'

Por ocasião da posse de Joe BidenAlternatives Économiques decifra as orientações do novo inquilino da Casa Branca. Para implementar seu programa, ele contará com maioria nas duas casas do Congresso, mas uma maioria muito pequena. E se ele ganhou 7 milhões de votos a mais que Donald Trump, o grosso dessa vantagem (5 milhões de votos) está concentrado apenas na Califórnia, o que confirma a profundidade das divisões que atravessam a sociedade americana, que só aumentaram durante o mandato do republicano.

Christophe Cloutier-Roy, pesquisador residente do Observatório sobre os Estados Unidos da Universidade de Québec em Montreal (UQAM) e autor de um artigo recente intitulado Le Parti démocrate en 2020: Joe Biden et l’hydre à quatre têtes (O Partido Democrata em 2020: Joe Biden e a hidra de quatro cabeças), analisa as razões dessas divisões e as opções que o novo presidente tem para tentar reduzi-las.

A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 20-01-2021. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

São as divisões que cindem a sociedade americana e que Joe Biden terá que tentar superar antes de tudo socioeconômicas ou sobretudo identitárias e culturais, raciais entre outras?

A sociedade americana é palco daquilo que nos Estados Unidos se chama de “guerra cultural”. Este não é um fenômeno recente, embora tenha se intensificado durante o mandato de Donald Trump.

Do que se trata? Desde o final da década de 1960 e a ascensão dos movimentos conservadores, as questões em torno das quais se dão os principais conflitos na sociedade têm sido amplamente ligadas à identidade, à moral, aos valores... São duas visões, duas representações do que deveria ser a sociedade americana, que se confrontam e se materializam através dos dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano.

Certamente há um pano de fundo econômico nessas visões, mas ele se combina com outras dimensões. Por um lado, entre os democratas, encontramos os partidários da nova economia implantada nas regiões costeiras, mas mais amplamente as populações das grandes cidades e as minorias étnicas em grande maioria. Por outro lado, os operários vítimas do declínio das indústrias tradicionais no Centro-Oeste e na região dos Grandes Lagos, mas de maneira mais geral as populações das áreas rurais e das pequenas cidades, populações principalmente brancas.

Além daqueles que às vezes são chamados de perdedores da globalização e que conseguiu trazer para o rebanho republicano, Donald Trump conseguiu capitalizar sobre a idealização do passado e a necessidade de o país reconquistar sua supremacia (“Make America Great Again”).

Qual é o papel do racismo nesta visão?

A visão retrógrada dos partidários de Donald Trump tem sido frequentemente interpretada como um desejo de fazer da “brancura” (“whiteness”) um elemento central da identidade americana. Esse racismo ideológico, inspirado na tradição escravista do sul do país, permeia algumas delas. Ao invés, entre os trabalhadores brancos decaídos em termos econômicos, é mais um racismo de ressentimento que se expressa. Eles têm o sentimento de que o Estado, as elites políticas e especialmente os democratas, que durante muito tempo foram os defensores do mundo operário, abandonaram-nos em favor dos afro-americanos e latinos.

Nessa visão altamente estereotipada, os primeiros se beneficiam das ajudas sociais, embora não trabalhem ou mesmo sejam criminosos, e os últimos imigram em massa para viver nas garras dos trabalhadores americanos. Esses trabalhadores brancos têm o sentimento de que são os perdedores em uma competição entre grupos sociais.

Como as divisões cada vez mais intensas na sociedade americana se refletem no cotidiano?

Por uma polarização preocupante de toda a sociedade. Até a década de 2000, a polarização afetava principalmente as elites dos dois principais partidos e a mídia. Hoje, nas pesquisas de opinião, os cidadãos de um campo político descrevem os do outro não apenas como adversários, mas como ameaças à segurança nacional e até mesmo traidores da nação.

Canais de notícias e redes sociais republicanas costumam se referir aos democratas como comunistas, e a mídia democrata retruca chamando os republicanos de nazistas. Todos vivem cada vez mais em uma bolha ideológica que alimenta seus preconceitos. Isso favorece o ativismo das minorias mais radicais dentro de cada partido e muitas vezes permite que obtenham a vantagem durante as primárias.

Essa desconfiança na opinião pública é tanto mais forte quanto na vida cotidiana os eleitores dos dois partidos têm cada vez menos oportunidades de se confrontar, mesmo porque vivem em diferentes áreas geográficas: litoral versus interior, metrópoles versus áreas rurais e pequenas cidades... Porém, quanto menos as pessoas têm a oportunidade de se conhecerem, mais os estereótipos se radicalizam e se solidificam.

Em um contexto onde as divisões são sensíveis, o que Joe Biden pode fazer para reconciliar a sociedade e, em particular, para apaziguar a raiva dos trabalhadores brancos decaídos economicamente?

Joe Biden se apresentou nas eleições de novembro com a plataforma mais progressista da história moderna do Partido Democrata. Muito mais progressista do que as de Bill Clinton e até mesmo de Barack Obama.

Claro, a esquerda de seu partido, liderada especialmente por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, julga-o muito tímido. E é verdade que ele não aceitou explicitamente algumas de suas propostas, como o seguro-saúde público obrigatório ou o Green New Deal. No entanto, na primeira área (saúde), prevê que todo americano tenha a possibilidade de ter acesso a seguro saúde público, se não puder pagar um privado. E no segundo campo, seu plano para o meio ambiente prevê grandes investimentos em energias renováveis, a reconversão de empregos de indústrias poluentes para os setores verdes...

Não acredito, entretanto, que Joe Biden deva enfrentar frontalmente a questão das divisões culturais e identitárias. Certamente, ele deve combater a discriminação racial, mas seus poderes são relativamente limitados porque, nessa área, muitas políticas públicas (polícia, educação, habitação, etc.) são principalmente de responsabilidade dos Estados federais e dos municípios. Penso que seria perigoso para o novo presidente americano reabrir o debate sobre assuntos como a ação afirmativa porque, por definição, tais políticas beneficiam exclusivamente as minorias étnicas e, portanto, correm o risco de alimentar o ressentimento dos brancos economicamente decaídos.

Por outro lado, pode combater esse ressentimento ao implementar programas econômicos e sociais universais, como no caso do seguro saúde. Se tais programas cobrirem brancos, afro-americanos ou latinos desfavorecidos da mesma maneira, os primeiros não sentirão que os outros dois grupos são favorecidos.

Deve-se notar também que os trabalhadores brancos estão muito mais apegados aos programas sociais do que à redução dos déficits públicos ou à redução dos impostos, dois grandes eixos de luta das elites tradicionais do Partido Republicano.

Joe Biden escolheu como futuros ministros, que ainda não foram confirmados pelo Senado, vários membros de minorias étnicas. Essas personalidades pertencem à esquerda do partido?

Não, a maioria dessas figuras é centrista, como o próprio Joe Biden. O Partido Democrata é formado por uma aliança circunstancial entre as minorias étnicas, sensíveis ao seu discurso sobre os direitos civis, e a esquerda progressista, voltada para as questões sociais e ambientais. No entanto, as minorias étnicas, e em particular os afro-americanos, costumam ser muito conservadoras no nível moral, especialmente por causa de sua forte religiosidade. Elas não têm automaticamente as mesmas prioridades que a esquerda do partido.

Muitos progressistas sonhavam em ver Bernie Sanders nomeado para o Ministério do Trabalho, mas a confirmação pelo Senado teria sido impossível. Eles continuam insatisfeitos porque sua corrente não tem representantes no governo. No entanto, isso não é surpreendente. Joe Biden certamente inclinou seu programa à esquerda depois das primárias, nas quais os progressistas tiveram bom resultado, mas ele acredita que, para superar as divisões na sociedade americana agravadas pela presidência de Trump, deve agora fazer um governo de centro.

Graças à vitória dos candidatos democratas na eleição parcial na Geórgia em 06 de janeiro, Joe Biden tem apoio da maioria, embora muito apertada, em ambas as casas. Mas os republicanos têm os meios institucionais para atrapalhar seus projetos?

Em teoria, sim, na maioria das áreas legislativas em que a aprovação do Senado é necessária. Nesta Casa, os parlamentares podem de fato recorrer ao que se chama de técnica de “filibuster” (obstrução parlamentar): um parlamentar ou um grupo parlamentar toma a palavra e a mantém o tempo que quiser para impedir a aprovação de um texto. Esse obstáculo só pode ser superado com o voto de 60 senadores entre 100 da casa. Hoje, porém, os democratas têm apenas 50 eleitos para o Senado, aos quais se somará a voz da vice-presidente Kamala Harris, caso houver empate.

Deve-se acrescentar, no entanto, que o uso de “filibuster” pode ter um custo político para o partido que a utiliza com demasiada frequência, porque a opinião pública pode ter uma visão muito obscura de uma obstrução sistemática do processo legislativo.

Eu acrescentaria que também na Câmara dos Representantes a atual maioria democrata é muito apertada, sendo apenas quatro votos a mais do que a maioria necessária, que é de 218 votos. Joe Biden, portanto, teria de estabelecer vínculos com republicanos moderados para ter certeza de que poderia aprovar suas reformas. Ao mesmo tempo, essas reaproximações correm o risco de alienar a esquerda de seu próprio partido.

Quando a decisão é bloqueada na esfera federal, é mais fácil atuar na esfera local (Estados federados, condados, municípios...) para superar as divisões da sociedade?

Em algumas partes do país, a polarização da sociedade e das elites políticas é pelo menos tão forte quanto no nível nacional, e é muito difícil superá-la. Especialmente em Estados como Pensilvânia, Flórida, Ohio, Illinois ou Maryland, a divisão das circunscrições eleitorais é da competência do Congresso local. O partido que o controla pode, portanto, traçar um mapa que lhe assegure futuras vitórias, dificultando alternâncias políticas em nível estadual, mas também em nível federal. Porque esses Estados, na maioria dos casos republicanos, têm um grande número de representantes no Congresso Nacional.

Em uma minoria de Estados (Washington, Califórnia, Havaí, Arizona, Idaho, Colorado, Michigan, Nova Jersey), por outro lado, os regulamentos locais atribuem a divisão das circunscrições a uma comissão independente, o que permite um melhor equilíbrio na distribuição dos eleitores.

Além das questões de divisão eleitoral, notamos que em VermontMassachusettsMaine ou New Hampshire, as divisões partidárias são menos rígidas do que na Flórida ou em Ohio. Como resultado, mesmo que o Congresso local seja repetidamente dominado por um partido, os eleitores às vezes escolhem um representante do outro lado para o cargo de governador, ou seja, o chefe do executivo local. Dito isso, trata-se geralmente de um moderado em seu próprio campo.

Há um ditado político que diz que os Estados são o laboratório da democracia americana. É verdade que muitas vezes é no nível local que as reformas são experimentadas, as quais são então adotadas por outros Estados e, depois, possivelmente estendidas ao nível federal.

Por exemplo, foi em Massachusetts, sob o governador republicano Mitt Romney (2003-2007), que foi implementada uma reforma do seguro saúde que serviu de modelo para o Obamacare. Da mesma forma, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, autorizado em vários Estados a partir de 2003, acabou sendo generalizado em 2015 por decisão da Corte Suprema. E a legalização da maconha recreativa, em vigor desde 2014 no Colorado, agora está se espalhando para muitos outros Estados, embora ainda não seja o caso no nível federal.

Apesar do ataque ao Capitólio que chocou muitos americanos, o Partido Republicano pode se distanciar de Donald Trump se a base permanecer leal ao presidente em fim de mandato?

O sucesso de Donald Trump ao ser eleito em 2016 foi atrair às urnas muitos cidadãos que antes não participavam ou participavam raramente das urnas, mas que votaram nele nas primárias e depois nas eleições presidenciais. Se ele não participar das próximas eleições, não é certo que esses cidadãos voltem a votar.

Nas “midterms” [eleições de meio de mandato] de 2018 e durante o segundo turno da recente eleição para o Senado na Geórgia, vimos que, quando Donald Trump não está nas cédulas, a taxa de participação cai entre os republicanos.

A retirada dos eleitores mais leais a Donald Trump daria uma chance a figuras mais moderadas dentro do partido. Claro, Donald Trump pode permanecer ativo na vida política e assim influenciar o partido. Muita gente pensa que ele voltará a concorrer em 2024 – pelo menos se o processo de impeachment lançado nos últimos dias pela Câmara dos Deputados, que deve levar a um processo no Senado, não o impedir. Mas mesmo se ele tiver a oportunidade, o cenário político pode mudar muito em quatro anos.

A única certeza hoje é que em breve uma grande batalha será travada dentro do Partido Republicano. Em teoria, uma divisão não pode ser descartada, mas os dois grandes partidos são muito resilientes. Seu domínio sobre a vida política remonta a meados do século XIX.

As próximas eleições legislativas ocorrerão em 2022. Os líderes republicanos não têm interesse em bajular a base trumpista para vencê-las?

Nas eleições legislativas presidenciais de meio de mandato (“midterms”), os eleitores republicanos tradicionalmente votam mais do que os democratas, o que, a priori, dá uma vantagem ao Grand Old Party (apelido do Partido Republicano) para 2022.

Por outro lado, os “midterms” são vistos sobretudo como uma espécie de referendo sobre a ação do presidente, uma oportunidade para sancioná-lo. Para vencê-las, os republicanos têm mais interesse em criticar Joe Biden do que em defender Donald Trump e seu histórico polêmico. Seu objetivo será forçar Joe Biden a coexistir com um congresso de maioria republicana, como fizeram em 2010 com Barack Obama.

É concebível suprimir o Colégio Eleitoral que elege o presidente, na medida em que este método de votação indireta confere uma vantagem eleitoral indevida ao Partido Republicano, que regularmente tem uma minoria na população, mas maioria nesta instância?

Para suprimir ou reformar o Colégio Eleitoral, a Constituição teria que ser alterada. Isso pressupõe que a emenda seja aprovada por maioria de dois terços em cada uma das duas câmaras do Congresso Nacional e, em seguida, seja ratificada pelas legislaturas locais de pelo menos três quartos dos Estados federados. Essas maiorias supõem o apoio do Partido Republicano. No entanto, a supressão do Colégio Eleitoral seria um suicídio garantido para esse partido, pois os democratas são claramente maioria em toda a população, especialmente nas áreas urbanas mais populosas.

De fato, desde 1992, os republicanos conquistaram o sufrágio popular apenas uma vez, em 2004, em uma eleição presidencial. Dificilmente podemos contar com seu apoio para uma supressão ou uma reforma profunda deste sistema.

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“Governo Bolsonaro enfrenta dura realidade de manter regras fiscais importantes”

Afirmação é do economista Sérgio Vale, em artigo na revista Política Democrática Online de março

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O economista-chefe da AMB Associados, Sérgio Vale, afirma que o governo Bolsonaro falha ao enfrentar a realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento econômico do país. O analista publicou artigo na revista Política Democrática Online de março.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

“O governo Bolsonaro enfrenta, hoje, a dura realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento”, diz o autor, no artigo da revista online da FAP.

Desconfiança

 Na avaliação de Vale, há muita desconfiança quanto à capacidade de o governo de entregar o ajuste fiscal reclamado pela população, assegurando espaço fiscal para o gasto de qualidade em educação e saúde, por exemplo.

“Desde as manifestações de junho de 2013, o Brasil tem passado por série ininterrupta de instabilidades de difícil solução, tanto mais porque as demandas da classe média continuam não sendo atendidas”, observa o economista.

Ele lembra que, em artigo na década de 70, Albert Hirschman criou o conceito de efeito túnel, segundo o qual a classe média ganhou terreno na aquisição de bens com o aumento da renda, mas a contrapartida de serviços públicos de qualidade não seguiu a mesma trajetória.

“É como se, depois das conquistas materiais individuais, tivesse caído a ficha da população quanto à necessidade de demandar serviços públicos de qualidade do governo”, afirma. “Esse foi o grande tema das manifestações de 2013, depois de anos de forte crescimento de renda e do consumo da classe média e da ascensão de parte da classe mais baixa de renda para a classe média”, avalia.

Descontentamento

De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, como a classe média não foi atendida de maneira satisfatória, o descontentamento dela fez crescer a pressão sobre o setor público no sentido da qualidade da prestação dos serviços.

“Só que a conjunção de incerteza, que afugentou investimento e diminuiu o ritmo de crescimento, com a necessidade de responder à população via mais gastos públicos colaborou para agravar a crise fiscal que já se avizinhava. Seria difícil naquele momento de descontentamento da população para um governo de esquerda fazer um ajuste fiscal”, diz.

De acordo com Vale, o país vive no dilema desde então, “com diversos graus de incerteza que foram se acumulando na economia, diminuindo de forma duradoura o ritmo de crescimento, com a população cada vez exigindo respostas eficazes do governo”. 

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Novas relações do Brasil e EUA estão “apenas no início”, diz Rubens Barbosa

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, presidente do Irice analisa relação diplomática entre os dois países

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e embaixador aposentado, Rubens Barbosa, diz que o presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, adotou atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). A análise foi publicada em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de março.

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

Biden e Bolsonaro, segundo Barbosa, iniciaram conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Entre os assuntos estão diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil.

De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática, a divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden.

Crítica à política ambiental

“O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima”, escreve o presidente do Irice.

Segundo ele, o trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos e democracia.

Além disso, de acordo com Barbosa, o documento pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O autor do artigo na revista da FAP lembra que o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo, pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington.

Correspondência ao Senado

Por fim, segundo o embaixador, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara.

“O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil”, observa o presidente do Irice.

Na avaliação de Barbosa, “as relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021”. “Estamos apenas no início”, analisa.

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RPD || Rubens Barbosa: Biden e o Brasil

De forma pragmática, Biden adotou uma atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro, iniciando conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil 

A divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden. O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima. O trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil.

Do lado do governo brasileiro, houve três ações concretas para tentar evitar medidas contra o Brasil. A carta do presidente Bolsonaro a Biden em que manifesta “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. O telefonema do Ministro Araújo com o Secretário de Estado Blinken e a reunião telefônica entre o Chanceler e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com John Kerry. O setor privado também se manifestou com Nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis para o intercâmbio comercial.  

A forma como Biden no início de sua gestão vai tratar o Brasil foi definida pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado, segundo as quais “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro em questões em que haja Interesse Nacional comum pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não vai se limitar apenas a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”.  

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, demandada pela ala progressista do Partido Democrata, e iniciar as conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Foi uma atitude pragmática, vista pelo governo brasileiro como um avanço positivo na relação bilateral. Durante os meses de março e abril, a convite do governo norte-americano, o Brasil deve participar, a nível presidencial, nas conferências sobre Clima e sobre Democracia (com forte ênfase nos Direitos Humanos), além da Cúpula das Américas, na Florida. Nesses encontros, todos os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados.

Dependendo das posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial. Vão surgir, também, com força, nessa fase, as diferenças na área de mudança de clima e preservação da floresta Amazônica. Tudo vai depender da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e em anúncios de medidas com resultados verificáveis). A posição defensiva – que tem mais chances de prevalecer – poderá ter “consequências econômicas”, como disse Biden.

No telefonema com John Kerry, Araújo e Salles concordaram em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua e como transferir recursos ao Brasil para preservação da floresta amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Ernesto Araujo acreditarem em que a situação está sob controle e que avançará “business as usual”, como mencionado na carta a Biden, o que não deverá acontecer, na minha visão. Assim, os desdobramentos das políticas de Biden devem começar pelo meio ambiente, em relação à preservação da Amazônia e das comunidades indígenas, passando para as questões de Direitos Humanos, comércio (SGP e restrições a produtos brasileiros), defesa (Alcântara) e outras áreas de cooperação. 

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos apenas no início.  

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).  


Rubens Barbosa: O governo Biden e o Brasil

As relações com os EUA começaram de forma tranquila, mas estamos apenas no início

O tom das relações entre o Brasil e os EUA, no início do governo Biden, foi definido pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado de que “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro nas questões em que haja interesse nacional comum, pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não se vai limitar a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”. A atitude do governo dos EUA pode ser explicada pela decisão da Casa Branca de adotar uma postura inicial firme e assertiva em termos de política interna (combate à pandemia, vacinação, imigração) e uma posição cautelosa em política externa (acordo nuclear com o Irã, China, Rússia) para não confrontar seus críticos republicanos.

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, até mesmo na resposta de Joe Biden a Jair Bolsonaro, e iniciar conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Não deixa de ser uma atitude pragmática de ambos os lados e, do ponto de vista do governo brasileiro, a percepção de algum avanço. O governo americano, no entanto, não está alheio às manifestações públicas de grupos de pressão pedindo medidas duras contra o Brasil. O documento assinado por ex-ministros e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e pede medidas contra o Brasil caso não haja mudança nas políticas de proteção da Amazônia e de mudança de clima. O trabalho Recomendações sobre o Brasil ao Presidente Biden, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos à política ambiental, a direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas, como defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações julgadas favoráveis à invasão do Congresso em Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado pedindo a suspensão de programas de cooperação na área de defesa por problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com o anúncio da política ambiental pelo presidente Biden, com referência específica à Amazônia, causou preocupação pelos eventuais impactos no Brasil.

Do lado do governo brasileiro houve três ações para tentar evitar medidas concretas contra o País: a carta de Bolsonaro a Biden em que manifesta a “disposição” de continuar “nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”; o telefonema do ministro Araújo com o secretário de Estado Blinken; e a reunião telefônica entre o chanceler, o ministro do Meio Ambiente e John Kerry, responsável pelos EUA. O setor privado também se manifestou com nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis do intercâmbio comercial.

Uma segunda fase dos entendimentos começa a esboçar-se com os convites para a participação do Brasil, em nível presidencial, das conferências sobre clima e sobre democracia (em que terá destaque a questão dos direitos humanos), em abril, além da Cúpula das Américas. Nesses encontros, os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados e, dependendo da posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial em mudança de clima e preservação da Floresta Amazônica.

Na terceira fase de negociação bilateral, Washington deverá reagir à posição brasileira, em especial quanto ao pedido de recursos financeiros para controlar o desmatamento. No telefonema entre Kerry, Araújo e Salles houve concordância em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua para preservação da Floresta Amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Araújo desejarem acreditar que, a partir das políticas apoiadas por Donald Trump, o diálogo com os EUA evoluirá com Biden em “atmosfera de total confiança e entendimento recíproco” e “as boas relações começaram pela discussão sobre meio ambiente e mudança de clima”. E que a “parceria vai continuar”, como mencionado na carta a Biden, o que poderá não ocorrer, dependendo da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e algumas medidas, com resultados positivos verificáveis) às propostas americanas.

Todd Stern, um dos negociadores dos EUA, antecipou a posição de Washington nos próximos meses. “Os EUA usarão toda a força da diplomacia para conseguir atingir a meta: parar o desmatamento”. E mais: “Sem a Amazônia intacta o Acordo de Paris é impossível”.

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos só no início.

PRESIDENTE DO IRICE