EUA
O Globo: Ex-chanceler cita teorias da conspiração, diz que não se alinhou aos EUA e que teve boa relação com a China
Ernesto Araújo publica seu primeiro texto depois de deixar o Itamaraty, no qual defende sua gestão e não faz nenhuma autocrítica
André de Souza e André Duchia, O Globo
BRASÍLIA - Hoje funcionário da gestão administrativa do Ministério das Relações Exteriores, o ex-chanceler Ernesto Araújo publicou, neste sábado, um texto em seu blog pessoal no qual defende sua gestão, encerrada há pouco menos de duas semanas sob pressão do Senado.
No texto, similar a tantos que escreveu ao longo de seu período à frente do Itamaraty, Araújo cita teorias da conpiração, defende-se da crítica frequente de que submeteu a soberania do Brasil ao governo de Donald Trump, afirma que teve boa relação com a China e lista o que considera ser realizações de seu mandato. O texto não inclui nenhuma autocrítica.
Araújo dedica boa parte do texto a contrariar quem o acusa de alinhar automaticamente a política externa brasileira à do governo de Trump. O chanceler diz que, no lugar disso, na verdade a política externa do governo de Jair Bolsonaro teria eliminado um suposto "desalinhamento automático" anteriormente vigente.
Araújo disse que não embarcou em "sequer uma única iniciativa com os Estados Unidos que não correspondesse à racionalidade dos interesses brasileiros". De acordo com ele, todas a iniciativas que "tomamos com os EUA contribuíram para o incremento dos investimentos e do comércio, para o aumento de nossa capacidade tecnológica, para nosso desenvolvimento na área de defesa, para o combate ao crime organizado e ao terrorismo em nossa região, para a promoção dos nossos valores básicos como o direito à vida e a liberdade religiosa, para nosso acesso a grandes foros internacionais, para a construção de um mundo que seja favorável à democracia e à liberdade".
Na prática, porém, as conquistas junto aos Estados Unidos foram poucas. O Brasil suspendeu unilateralmente vistos de cidadãos de lá, sem exigir reciprocidade. Abriu mão de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC), condição que lhe garantia algumas vantagens, em troca do apoio dos Estados Unidos para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas, com a troca de governo nos Estados Unidos, em que o ex-presidente Donald Trump deu lugar a Joe Biden, esse apoio ficou em suspenso. Além disso,o próprio Trump reduziu a importação do aço brasileiro.
O ex-ministro, conhecido por seus longos textos e sua concepção política considerada irrealista, cita também teorias da conspiração, como uma "junção narcotráfico-terrorismo-corrupção-socialismo na América Latina (o complexo criminoso-político consubstanciado no foro de São Paulo)" — o foro, no caso, de fato existe, mas não no sentido usado pelo chanceler, que, assim como o ideólogo Olavo de Carvalho, o compara a um poderoso complô de criminosos, acusação nunca provada.
Araújo também volta a abordar a teoria do grande reset, tese conspiracionista comum na extrema direita internacional que, citando um grupo de trabalho econômico do Fórum de Davos, afirma haver um complô para reorganizar as sociedades globais a partir da pandemia.
Araújo aborda também as acusações de que desgastou as relações brasileiras com a China, afirmando que manteve "relações produtivas com a China evitando atritos em torno das questões de Hong Kong, Taiwan e uigures, que hoje opõem a maioria dos países democráticos do mundo" ao país asiatico.
Araújo afirma que, apesar disso, "teve que exigir da Embaixada chinesa em Brasília o respeito ao Brasil e suas leis". A afirmação faz referência à crise diplomática entre o Brasil e a China no começo da pandemia, quando a embaixada chinesa reagiu com veemência a uma declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, acusando Pequim pela disseminação da Covid. Na ocasião, entendeu-se que o comportamento de Araújo agravou a crise.
Segundo ele, não houve qualquer problema comercial com a China por questões políticas, o que seria provado pelo fato de o Brasil ter sido "o país do mundo que mais recebeu vacinas e insumos de vacinas contra a Covid fabricados na China", informação confirmada pelo próprio embaixador da China em entrevista ao GLOBO.
O ministro também defendeu a posição do Brasil de não acompanhar a proposta da Índia de quebrar patentes de vacinas contra a Covid-19, afirmando que ela é "inviável diante da resistência de muitos membros". Segundo ele, há uma "narrativa torpe e caluniosa de que meu trabalho prejudicava a obtenção de vacinas, e de que bastaria minha saída do cargo para que mais vacinas afluíssem ao Brasil".
Sem especificar, o ministro se refere a acordos bem-sucedidos de "todos os tipos com União Europeia, Estados Unidos, Japão, Israel, Índia, EFTA, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Marrocos, Chile, Uruguai, Paraguai, Polônia, Hungria e outros".
Ele não se refere a como no acordo com a União Europeia o Brasil cedeu em demandas antigas, sem contrapartidas. Não fala, tampouco, que a ratificação do pacto pelos países da UE está congelada e é considerada muito improvável durante o governo Bolsonaro, após vários países Estados-membros se manifestarem contrários ao acordo, exigindo contrapartidas ambientais do Brasil.
Na área ambiental, considerada uma das mais desgastadas internacionalmente pelo atual governo, Araújo disse que foi o idealizador do fundo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) com recursos para o setor, e que trabalhou com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, "para concretizar uma nova mentalidade em relação à Amazônia, centrada no investimento produtivo sustentável e na bioeconomia, gerando emprego e renda, ao lado da luta contra o desmatamento ilegal".
Apesar das críticas à China e também à Venezuela, Araújo elogiou outros países com governos nacional-populistas ou autoritários, como Rússia, Hungria e Polônia, além das ditaduras árabes como a Arábia Saudita. Ele não diz que não houve nenhuma visita oficial a nível de chefe de Estado ao Brasil de lideranças de uma grande potência europeia em seus dois anos à frente do Itamaraty, nem o desgaste que a relação entre o Brasil e países como França e Alemanha sofreu nesse período.
Araújo atacou ainda críticos de sua política externa, chamando-os de "embaixadores aposentados lobistas" ou de políticos acusados de corrupção. O ex-ministro disse também que abriu dois órgãos vinculados ao Itamaraty — a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e o Instituto Rio Branco — "a novas correntes de pensamento, principalmente ao pensamento conservador, antes completamente ausente desses espaços".
A referência à Funag se refere a palestrantes sem experiência internacional, adeptos de teorias da conspiração, que fizeram discursos anticientíficos contra o uso de máscaras de proteção, comparando-as aos expurgos soviéticos. No Instituto Rio Branco, uma das primeiras medidas do ex-chanceler foi eliminar o curso sobre a América Latina.
Financial Times: Amazon derrota movimento trabalhista e Biden nos EUA
Funcionários rejeitam sindicalização inédita no país; presidente fez campanha
Dave Lee, Financial Times
Trabalhadores em um centro de distribuição da Amazon em Bessemer, no estado do Alabama, votaram por larga maioria contra a sindicalização, num forte golpe contra o movimento trabalhista nos Estados Unidos e suas esperanças de conquistar uma base na gigante do comércio eletrônico.
A campanha para criar o primeiro sindicato da Amazon nos Estados Unidos atraiu a atenção do mundo todo e o apoio do mais alto cargo político do país, mas por final falhou em causar impacto onde realmente importava: nas urnas.
Cerca de 55% dos quase 6.000 trabalhadores do centro de distribuição votaram, pelo correio devido às restrições da pandemia. Em uma apuração realizada por videoconferência para um público de mais de 200 advogados, observadores e jornalistas, o "não" teve 1.798 votos, contra 738 em apoio à sindicalização.
Apesar da dura derrota, representantes do sindicato mantiveram uma posição firme, dizendo que o voto em si já foi uma conquista histórica, a primeira vez que toda uma instalação na terra natal da Amazon teve essa oportunidade.
O Sindicato de Varejo, Atacado e Lojas de Departamento disse que vai apelar do resultado, citando, segundo a entidade, esforços numerosos e flagrantes da empresa para influenciar a votação de forma ilegal.
"A Amazon sabia muito bem que a menos que fizesse o possível, até mesmo atividade ilegal, seus funcionários continuariam apoiando o sindicato", disse Stuart Appelbaum, presidente da entidade.
Em um comunicado, a Amazon agradeceu a seus empregados. "É fácil prever que o sindicato dirá que a Amazon ganhou esta eleição porque intimidamos os empregados, mas isso não é verdade", afirmou a companhia em um blog na sexta-feira (9).
"Nossos empregados ouviram muito mais mensagens anti-Amazon do sindicato, de políticos e canais de mídia do que ouviram de nós. E a Amazon não venceu —nossos empregados é que decidiram votar contra a entrada num sindicato."
Como quer que a caracterizem, a vitória da companhia dá continuidade a uma série de esforços para evitar a sindicalização nos EUA. O depósito em Bessemer foi a primeira instalação no país a chegar ao ponto de realizar uma votação formal e sancionada, depois de ter indicações de apoio suficientes no final do ano passado.
Apesar da derrota sindical, a batalha poderá se arrastar por muitos meses. A apelação será ouvida primeiro por um escritório local do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB na sigla em inglês) e poderá acabar sendo decidida pelos membros do conselho, indicados politicamente em Washington, disse John Logan, professor de estudos do trabalho e do emprego na Universidade Estadual de San Francisco.
"É concebível que quando chegar ao conselho completo do NLRB poderá ter uma maioria democrata", disse Logan. O mandato de William Emanuel, um nomeado republicano, deverá terminar em agosto.
Em março, o presidente Joe Biden indicou forte apoio aos trabalhadores, pedindo que a Amazon se afastasse para permitir que os trabalhadores fizessem uma "opção livre e justa". Logan descreveu os comentários como "a declaração mais pró-sindicatos já feita por um presidente em exercício".
O governo Biden está apoiando a Lei de Proteção ao Direito de se Organizar, que busca tornar ilegais muitas das táticas adotadas pela Amazon durante a campanha. A Lei PRO, como é conhecida por sua sigla em inglês, foi aprovada na Câmara dos Deputados no início deste ano.
"Os trabalhadores americanos não terão acesso constante a eleições sindicais livres, justas e seguras enquanto não reforçarmos as leis trabalhistas do nosso país", disse o deputado Bobby Scott, da Virgínia, presidente da Comissão de Educação e Trabalho da Câmara, depois da votação na Amazon.
"Não podemos continuar permitindo que os patrões interfiram na decisão dos trabalhadores de formar ou não um sindicato. O Senado precisa aprovar a Lei PRO."
A campanha também obteve o apoio do movimento Black Lives Matter e foi observada atentamente por outras importantes figuras de grupos de direitos civis. A força de trabalho do centro de distribuição de Bessemer é mais de 75% afro-americana.
"Os trabalhadores sentiam que não tinham voz e não sabiam como se manifestar", disse Marc Bayard, diretor da Iniciativa de Trabalhadores Negros no Instituto para Estudos de Políticas em Washington. "Esses trabalhadores mostraram um caminho para o sucesso."
A apelação do sindicato vai se concentrar no fato de que uma caixa de correio foi instalada no estacionamento do centro, à vista de câmeras de segurança, medida que, segundo representantes, se destinou a intimidar os empregados quando depositassem seus envelopes.
E-mails obtidos pelo sindicato pareciam mostrar que a Amazon tinha pressionado o Serviço Postal dos EUA para instalar a caixa antes do início da votação. Depois ela foi retirada.
A Amazon disse anteriormente que foi "uma maneira simples, segura e totalmente opcional de facilitar a votação pelos funcionários, nem mais nem menos".
Outras queixas do sindicato incluem uma campanha de reuniões de "audiência cativa", durante as quais a empresa advertiu os empregados contra a sindicalização, assim como a exibição de cartazes contra o sindicato no centro de distribuição —alguns nas cabines dos banheiros.
No início da campanha, o sindicato chamou a atenção para alterações nos semáforos de trânsito diante do edifício, que deram aos sindicalistas menos tempo para falar com os empregados quando saíam do trabalho. A Amazon disse que a medida visava reduzir o congestionamento.
O sindicato UNI Global, que representa mais de 900 sindicatos setoriais, disse que o esforço em Bessemer criou uma discussão de alto nível sobre as condições de trabalho na Amazon, cuja força de trabalho inchou em mais de 500 mil pessoas desde o início da pandemia, e hoje totaliza 1,3 milhão em todo o mundo.
"O 'efeito Bessemer' está eletrizando o movimento trabalhista, inspirando ações de Mianmar a Munique a Montevidéu", disse Christy Hoffman, secretária-geral do UNI.
"Enquanto a votação acontecia, houve greves na Alemanha e na Itália, e um novo esforço maciço para alcançar trabalhadores da Amazon foi lançado no Reino Unido. Ele continuará dando esperança aos trabalhadores, que exigem ter voz no trabalho e um emprego com dignidade.
"Os empregados no Alabama —e trabalhadores da Amazon em toda parte— devem manter suas cabeças erguidas e os olhos fixos na vitória. Unidos, ela é inevitável."
Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves
Folha de S. Paulo: Julgamento de oficial que matou Floyd pode ser ponto de virada para polícias nos EUA
Americanos precisam ver que sistema funciona, diz ex-policial e professor de direito penal
Fernanda Mena, Folha de S. Paulo
Na avaliação assumidamente otimista de Kirk Bulkhalter, o julgamento de Derek Chauvin, o policial que sufocou George Floyd com o joelho diante de câmeras em maio do ano passado, pode ser o início de um processo de reconstrução da confiança dos norte-americanos em suas polícias.
“Nunca vi um chefe ou comandante de polícia testemunhar contra um de seus policiais num processo criminal. E esse pode ser um começo”, avalia Bulkhalter, que é professor de direito penal da New York Law School (NYLS) depois de 20 anos de experiência no departamento de polícia de Nova York (EUA), para onde foi seguindo os passos do pai.
“Mais do que ver Derek Chauvin punido, as pessoas precisam ver o sistema funcionando, a responsabilização e as mudanças sendo implementadas.”
Bulkhalter dirige o The 21st Century Police Project (projeto polícia do século 21), um programa de reforma policial e de aproximação entre departamentos de polícia e comunidades diversas às quais devem prestar serviço.
Ele participou nesta sexta (9) do webinar “Disparidades Raciais e Reforma Policial nos EUA e no Brasil”, promovido pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Direito SP.
O encontro teve abertura do diretor da FGV Direito SP e colunista da Folha, Oscar Vilhena, e da adida cultural do consulado americano em São Paulo, Madelina Young-Smith. O debate, além de Bulkhalter, incluiu a coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o pesquisador do núcleo, Marta Machado e Felipe Freitas. A mediação foi de Thiago Amparo, coordenador do Núcleo de Justiça Racial e Direito e colunista da Folha.
Desde 2012, a confiança da população americana nas forças de segurança e nos meios de sua responsabilização por abusos e crimes vem sendo traída. O ano marcou o início de uma triste série de escândalos envolvendo o assassinato de jovens negros por vigilantes e policiais, depois inocentados nos tribunais, e pavimentou o caminho para o surgimento do Black Lives Matter (BLM).
O movimento que denuncia a brutalidade policial contra pessoas negras tomou a dianteira na onda de protestos que eclodiram depois do assassinato de Floyd, apoiando pedidos de redução orçamentária para as corporações, o chamado “defund”.
“Hoje, os departamentos de polícia e o BLM estão mais apartados dos que nunca, e sem perspectiva de aproximação”, afirma Bulkhalten.
Para ele, o principal efeito dessa movimentação antirracista foi “tornar policiais mais paranóicos, achando que cada vez que saírem do carro alguém pode filmá-los e tentar puni-los”, o que teria criado um “efeito de recolhimento dos policiais nas ações em que o uso da força estaria respaldado em imunidade qualificada”.
“Distante das polícias, o BLM teve mais efeito nos processos políticos e em seus representantes, que agora colocam pressão aos departamentos de polícia do país”, aponta.
Desde junho de 2020 o congresso americano tenta aprovar a chamada Lei George Floyd, a maior reforma policial das últimas décadas. A lei, que foi aprovada na Câmara e ainda precisa passar pelo Senado, inclui medidas como a proibição de estrangulamentos durante a ação policial, o fim dos mandados de segurança que permitem que os agentes entrem em lugares sem se anunciarem —como na ação que matou Breonna Taylor— e o fim da “imunidade qualificada”, espécie de excludente de ilicitude aplicado a determinados casos.
Analistas têm evocado reduções orçamentárias e recolhimento das forças policiais como possíveis causas do aumento da criminalidade violenta no ano passado nos EUA. Chicago viu o número de homicídios dobrar em 2020. Em Nova York, os assassinatos cresceram 40%. Em Los Angeles, 30%.
“Sou totalmente a favor de mais transparência sobre os gastos nas corporações, mas a verdade é que talvez não estejamos gastando o suficiente nos itens certos”, afirma Bulkhalter.
“Em qualquer tipo de carreira é necessário aumentar os salários para atrair pessoas mais qualificadas. Então precisamos considerar isso quando falamos de gastos dos departamentos de polícia. O objetivo é ter uma polícia mais eficiente.”
Entusiasta da educação dos policiais, Bulkhalter gosta de ilustrar seu ponto de vista com um dado: “Hoje, um policial em Nova York recebe seis meses de formação e vai para as ruas. Já um barbeiro precisa de um curso de um ano para obter uma licença que permita a ele cortar cabelo”.
“A formação deveria durar dois anos e ser, depois disso, continuada. A polícia tem o poder de tirar a liberdade de uma pessoa e de usar a força contra ela. Misturar isso com a falta de educação e treinamento recebidos é algo tóxico.”
Negro, ele diz ter presenciado poucos episódios explícitos de racismo por parte de colegas policiais. “O que vi foram vieses raciais individuais, como quando um colega quis parar dois homens negros dentro de um Porsche com um rack para equipamento de ski porque tinha convicção de que negros não esquiavam”, lembra ele, rindo.
“Eu mesmo esquio desde pequeno! Fiz uma abordagem educada e tranquila que servisse de lição para o meu colega. E os esquiadores seguiram seu caminho.”
Para o professor e ex-policial, as corporações nos EUA são “clubes de meninos, quase todos brancos” desde sempre, e só depois do assassinato de George Floyd é que se viu “oficiais negros sendo promovidos para posições de chefia e de liderança”.
Ele avalia que o aumento da diversidade em posições de comando das corporações policiais é um passo importante para evitar que novos assassinatos de pessoas negras por policiais aconteçam nos EUA.
“Tudo emana das posições de comando. Alguém nessas posições de liderança tem que se levantar e dizer que determinadas atitudes simplesmente não são razoáveis.”
Christophe Cloutier-Roy: 'Joe Biden apresentou o programa mais progressista dos últimos tempos'
Por ocasião da posse de Joe Biden, Alternatives Économiques decifra as orientações do novo inquilino da Casa Branca. Para implementar seu programa, ele contará com maioria nas duas casas do Congresso, mas uma maioria muito pequena. E se ele ganhou 7 milhões de votos a mais que Donald Trump, o grosso dessa vantagem (5 milhões de votos) está concentrado apenas na Califórnia, o que confirma a profundidade das divisões que atravessam a sociedade americana, que só aumentaram durante o mandato do republicano.
Christophe Cloutier-Roy, pesquisador residente do Observatório sobre os Estados Unidos da Universidade de Québec em Montreal (UQAM) e autor de um artigo recente intitulado Le Parti démocrate en 2020: Joe Biden et l’hydre à quatre têtes (O Partido Democrata em 2020: Joe Biden e a hidra de quatro cabeças), analisa as razões dessas divisões e as opções que o novo presidente tem para tentar reduzi-las.
A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 20-01-2021. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
São as divisões que cindem a sociedade americana e que Joe Biden terá que tentar superar antes de tudo socioeconômicas ou sobretudo identitárias e culturais, raciais entre outras?
A sociedade americana é palco daquilo que nos Estados Unidos se chama de “guerra cultural”. Este não é um fenômeno recente, embora tenha se intensificado durante o mandato de Donald Trump.
Do que se trata? Desde o final da década de 1960 e a ascensão dos movimentos conservadores, as questões em torno das quais se dão os principais conflitos na sociedade têm sido amplamente ligadas à identidade, à moral, aos valores... São duas visões, duas representações do que deveria ser a sociedade americana, que se confrontam e se materializam através dos dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano.
Certamente há um pano de fundo econômico nessas visões, mas ele se combina com outras dimensões. Por um lado, entre os democratas, encontramos os partidários da nova economia implantada nas regiões costeiras, mas mais amplamente as populações das grandes cidades e as minorias étnicas em grande maioria. Por outro lado, os operários vítimas do declínio das indústrias tradicionais no Centro-Oeste e na região dos Grandes Lagos, mas de maneira mais geral as populações das áreas rurais e das pequenas cidades, populações principalmente brancas.
Além daqueles que às vezes são chamados de perdedores da globalização e que conseguiu trazer para o rebanho republicano, Donald Trump conseguiu capitalizar sobre a idealização do passado e a necessidade de o país reconquistar sua supremacia (“Make America Great Again”).
Qual é o papel do racismo nesta visão?
A visão retrógrada dos partidários de Donald Trump tem sido frequentemente interpretada como um desejo de fazer da “brancura” (“whiteness”) um elemento central da identidade americana. Esse racismo ideológico, inspirado na tradição escravista do sul do país, permeia algumas delas. Ao invés, entre os trabalhadores brancos decaídos em termos econômicos, é mais um racismo de ressentimento que se expressa. Eles têm o sentimento de que o Estado, as elites políticas e especialmente os democratas, que durante muito tempo foram os defensores do mundo operário, abandonaram-nos em favor dos afro-americanos e latinos.
Nessa visão altamente estereotipada, os primeiros se beneficiam das ajudas sociais, embora não trabalhem ou mesmo sejam criminosos, e os últimos imigram em massa para viver nas garras dos trabalhadores americanos. Esses trabalhadores brancos têm o sentimento de que são os perdedores em uma competição entre grupos sociais.
Como as divisões cada vez mais intensas na sociedade americana se refletem no cotidiano?
Por uma polarização preocupante de toda a sociedade. Até a década de 2000, a polarização afetava principalmente as elites dos dois principais partidos e a mídia. Hoje, nas pesquisas de opinião, os cidadãos de um campo político descrevem os do outro não apenas como adversários, mas como ameaças à segurança nacional e até mesmo traidores da nação.
Canais de notícias e redes sociais republicanas costumam se referir aos democratas como comunistas, e a mídia democrata retruca chamando os republicanos de nazistas. Todos vivem cada vez mais em uma bolha ideológica que alimenta seus preconceitos. Isso favorece o ativismo das minorias mais radicais dentro de cada partido e muitas vezes permite que obtenham a vantagem durante as primárias.
Essa desconfiança na opinião pública é tanto mais forte quanto na vida cotidiana os eleitores dos dois partidos têm cada vez menos oportunidades de se confrontar, mesmo porque vivem em diferentes áreas geográficas: litoral versus interior, metrópoles versus áreas rurais e pequenas cidades... Porém, quanto menos as pessoas têm a oportunidade de se conhecerem, mais os estereótipos se radicalizam e se solidificam.
Em um contexto onde as divisões são sensíveis, o que Joe Biden pode fazer para reconciliar a sociedade e, em particular, para apaziguar a raiva dos trabalhadores brancos decaídos economicamente?
Joe Biden se apresentou nas eleições de novembro com a plataforma mais progressista da história moderna do Partido Democrata. Muito mais progressista do que as de Bill Clinton e até mesmo de Barack Obama.
Claro, a esquerda de seu partido, liderada especialmente por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, julga-o muito tímido. E é verdade que ele não aceitou explicitamente algumas de suas propostas, como o seguro-saúde público obrigatório ou o Green New Deal. No entanto, na primeira área (saúde), prevê que todo americano tenha a possibilidade de ter acesso a seguro saúde público, se não puder pagar um privado. E no segundo campo, seu plano para o meio ambiente prevê grandes investimentos em energias renováveis, a reconversão de empregos de indústrias poluentes para os setores verdes...
Não acredito, entretanto, que Joe Biden deva enfrentar frontalmente a questão das divisões culturais e identitárias. Certamente, ele deve combater a discriminação racial, mas seus poderes são relativamente limitados porque, nessa área, muitas políticas públicas (polícia, educação, habitação, etc.) são principalmente de responsabilidade dos Estados federais e dos municípios. Penso que seria perigoso para o novo presidente americano reabrir o debate sobre assuntos como a ação afirmativa porque, por definição, tais políticas beneficiam exclusivamente as minorias étnicas e, portanto, correm o risco de alimentar o ressentimento dos brancos economicamente decaídos.
Por outro lado, pode combater esse ressentimento ao implementar programas econômicos e sociais universais, como no caso do seguro saúde. Se tais programas cobrirem brancos, afro-americanos ou latinos desfavorecidos da mesma maneira, os primeiros não sentirão que os outros dois grupos são favorecidos.
Deve-se notar também que os trabalhadores brancos estão muito mais apegados aos programas sociais do que à redução dos déficits públicos ou à redução dos impostos, dois grandes eixos de luta das elites tradicionais do Partido Republicano.
Joe Biden escolheu como futuros ministros, que ainda não foram confirmados pelo Senado, vários membros de minorias étnicas. Essas personalidades pertencem à esquerda do partido?
Não, a maioria dessas figuras é centrista, como o próprio Joe Biden. O Partido Democrata é formado por uma aliança circunstancial entre as minorias étnicas, sensíveis ao seu discurso sobre os direitos civis, e a esquerda progressista, voltada para as questões sociais e ambientais. No entanto, as minorias étnicas, e em particular os afro-americanos, costumam ser muito conservadoras no nível moral, especialmente por causa de sua forte religiosidade. Elas não têm automaticamente as mesmas prioridades que a esquerda do partido.
Muitos progressistas sonhavam em ver Bernie Sanders nomeado para o Ministério do Trabalho, mas a confirmação pelo Senado teria sido impossível. Eles continuam insatisfeitos porque sua corrente não tem representantes no governo. No entanto, isso não é surpreendente. Joe Biden certamente inclinou seu programa à esquerda depois das primárias, nas quais os progressistas tiveram bom resultado, mas ele acredita que, para superar as divisões na sociedade americana agravadas pela presidência de Trump, deve agora fazer um governo de centro.
Graças à vitória dos candidatos democratas na eleição parcial na Geórgia em 06 de janeiro, Joe Biden tem apoio da maioria, embora muito apertada, em ambas as casas. Mas os republicanos têm os meios institucionais para atrapalhar seus projetos?
Em teoria, sim, na maioria das áreas legislativas em que a aprovação do Senado é necessária. Nesta Casa, os parlamentares podem de fato recorrer ao que se chama de técnica de “filibuster” (obstrução parlamentar): um parlamentar ou um grupo parlamentar toma a palavra e a mantém o tempo que quiser para impedir a aprovação de um texto. Esse obstáculo só pode ser superado com o voto de 60 senadores entre 100 da casa. Hoje, porém, os democratas têm apenas 50 eleitos para o Senado, aos quais se somará a voz da vice-presidente Kamala Harris, caso houver empate.
Deve-se acrescentar, no entanto, que o uso de “filibuster” pode ter um custo político para o partido que a utiliza com demasiada frequência, porque a opinião pública pode ter uma visão muito obscura de uma obstrução sistemática do processo legislativo.
Eu acrescentaria que também na Câmara dos Representantes a atual maioria democrata é muito apertada, sendo apenas quatro votos a mais do que a maioria necessária, que é de 218 votos. Joe Biden, portanto, teria de estabelecer vínculos com republicanos moderados para ter certeza de que poderia aprovar suas reformas. Ao mesmo tempo, essas reaproximações correm o risco de alienar a esquerda de seu próprio partido.
Quando a decisão é bloqueada na esfera federal, é mais fácil atuar na esfera local (Estados federados, condados, municípios...) para superar as divisões da sociedade?
Em algumas partes do país, a polarização da sociedade e das elites políticas é pelo menos tão forte quanto no nível nacional, e é muito difícil superá-la. Especialmente em Estados como Pensilvânia, Flórida, Ohio, Illinois ou Maryland, a divisão das circunscrições eleitorais é da competência do Congresso local. O partido que o controla pode, portanto, traçar um mapa que lhe assegure futuras vitórias, dificultando alternâncias políticas em nível estadual, mas também em nível federal. Porque esses Estados, na maioria dos casos republicanos, têm um grande número de representantes no Congresso Nacional.
Em uma minoria de Estados (Washington, Califórnia, Havaí, Arizona, Idaho, Colorado, Michigan, Nova Jersey), por outro lado, os regulamentos locais atribuem a divisão das circunscrições a uma comissão independente, o que permite um melhor equilíbrio na distribuição dos eleitores.
Além das questões de divisão eleitoral, notamos que em Vermont, Massachusetts, Maine ou New Hampshire, as divisões partidárias são menos rígidas do que na Flórida ou em Ohio. Como resultado, mesmo que o Congresso local seja repetidamente dominado por um partido, os eleitores às vezes escolhem um representante do outro lado para o cargo de governador, ou seja, o chefe do executivo local. Dito isso, trata-se geralmente de um moderado em seu próprio campo.
Há um ditado político que diz que os Estados são o laboratório da democracia americana. É verdade que muitas vezes é no nível local que as reformas são experimentadas, as quais são então adotadas por outros Estados e, depois, possivelmente estendidas ao nível federal.
Por exemplo, foi em Massachusetts, sob o governador republicano Mitt Romney (2003-2007), que foi implementada uma reforma do seguro saúde que serviu de modelo para o Obamacare. Da mesma forma, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, autorizado em vários Estados a partir de 2003, acabou sendo generalizado em 2015 por decisão da Corte Suprema. E a legalização da maconha recreativa, em vigor desde 2014 no Colorado, agora está se espalhando para muitos outros Estados, embora ainda não seja o caso no nível federal.
Apesar do ataque ao Capitólio que chocou muitos americanos, o Partido Republicano pode se distanciar de Donald Trump se a base permanecer leal ao presidente em fim de mandato?
O sucesso de Donald Trump ao ser eleito em 2016 foi atrair às urnas muitos cidadãos que antes não participavam ou participavam raramente das urnas, mas que votaram nele nas primárias e depois nas eleições presidenciais. Se ele não participar das próximas eleições, não é certo que esses cidadãos voltem a votar.
Nas “midterms” [eleições de meio de mandato] de 2018 e durante o segundo turno da recente eleição para o Senado na Geórgia, vimos que, quando Donald Trump não está nas cédulas, a taxa de participação cai entre os republicanos.
A retirada dos eleitores mais leais a Donald Trump daria uma chance a figuras mais moderadas dentro do partido. Claro, Donald Trump pode permanecer ativo na vida política e assim influenciar o partido. Muita gente pensa que ele voltará a concorrer em 2024 – pelo menos se o processo de impeachment lançado nos últimos dias pela Câmara dos Deputados, que deve levar a um processo no Senado, não o impedir. Mas mesmo se ele tiver a oportunidade, o cenário político pode mudar muito em quatro anos.
A única certeza hoje é que em breve uma grande batalha será travada dentro do Partido Republicano. Em teoria, uma divisão não pode ser descartada, mas os dois grandes partidos são muito resilientes. Seu domínio sobre a vida política remonta a meados do século XIX.
As próximas eleições legislativas ocorrerão em 2022. Os líderes republicanos não têm interesse em bajular a base trumpista para vencê-las?
Nas eleições legislativas presidenciais de meio de mandato (“midterms”), os eleitores republicanos tradicionalmente votam mais do que os democratas, o que, a priori, dá uma vantagem ao Grand Old Party (apelido do Partido Republicano) para 2022.
Por outro lado, os “midterms” são vistos sobretudo como uma espécie de referendo sobre a ação do presidente, uma oportunidade para sancioná-lo. Para vencê-las, os republicanos têm mais interesse em criticar Joe Biden do que em defender Donald Trump e seu histórico polêmico. Seu objetivo será forçar Joe Biden a coexistir com um congresso de maioria republicana, como fizeram em 2010 com Barack Obama.
É concebível suprimir o Colégio Eleitoral que elege o presidente, na medida em que este método de votação indireta confere uma vantagem eleitoral indevida ao Partido Republicano, que regularmente tem uma minoria na população, mas maioria nesta instância?
Para suprimir ou reformar o Colégio Eleitoral, a Constituição teria que ser alterada. Isso pressupõe que a emenda seja aprovada por maioria de dois terços em cada uma das duas câmaras do Congresso Nacional e, em seguida, seja ratificada pelas legislaturas locais de pelo menos três quartos dos Estados federados. Essas maiorias supõem o apoio do Partido Republicano. No entanto, a supressão do Colégio Eleitoral seria um suicídio garantido para esse partido, pois os democratas são claramente maioria em toda a população, especialmente nas áreas urbanas mais populosas.
De fato, desde 1992, os republicanos conquistaram o sufrágio popular apenas uma vez, em 2004, em uma eleição presidencial. Dificilmente podemos contar com seu apoio para uma supressão ou uma reforma profunda deste sistema.
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“Governo Bolsonaro enfrenta dura realidade de manter regras fiscais importantes”
Afirmação é do economista Sérgio Vale, em artigo na revista Política Democrática Online de março
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O economista-chefe da AMB Associados, Sérgio Vale, afirma que o governo Bolsonaro falha ao enfrentar a realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento econômico do país. O analista publicou artigo na revista Política Democrática Online de março.
A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.
“O governo Bolsonaro enfrenta, hoje, a dura realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento”, diz o autor, no artigo da revista online da FAP.
Desconfiança
Na avaliação de Vale, há muita desconfiança quanto à capacidade de o governo de entregar o ajuste fiscal reclamado pela população, assegurando espaço fiscal para o gasto de qualidade em educação e saúde, por exemplo.
“Desde as manifestações de junho de 2013, o Brasil tem passado por série ininterrupta de instabilidades de difícil solução, tanto mais porque as demandas da classe média continuam não sendo atendidas”, observa o economista.
Ele lembra que, em artigo na década de 70, Albert Hirschman criou o conceito de efeito túnel, segundo o qual a classe média ganhou terreno na aquisição de bens com o aumento da renda, mas a contrapartida de serviços públicos de qualidade não seguiu a mesma trajetória.
“É como se, depois das conquistas materiais individuais, tivesse caído a ficha da população quanto à necessidade de demandar serviços públicos de qualidade do governo”, afirma. “Esse foi o grande tema das manifestações de 2013, depois de anos de forte crescimento de renda e do consumo da classe média e da ascensão de parte da classe mais baixa de renda para a classe média”, avalia.
Descontentamento
De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, como a classe média não foi atendida de maneira satisfatória, o descontentamento dela fez crescer a pressão sobre o setor público no sentido da qualidade da prestação dos serviços.
“Só que a conjunção de incerteza, que afugentou investimento e diminuiu o ritmo de crescimento, com a necessidade de responder à população via mais gastos públicos colaborou para agravar a crise fiscal que já se avizinhava. Seria difícil naquele momento de descontentamento da população para um governo de esquerda fazer um ajuste fiscal”, diz.
De acordo com Vale, o país vive no dilema desde então, “com diversos graus de incerteza que foram se acumulando na economia, diminuindo de forma duradoura o ritmo de crescimento, com a população cada vez exigindo respostas eficazes do governo”.
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Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, presidente do Irice analisa relação diplomática entre os dois países
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e embaixador aposentado, Rubens Barbosa, diz que o presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, adotou atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). A análise foi publicada em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de março.
A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.
Biden e Bolsonaro, segundo Barbosa, iniciaram conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Entre os assuntos estão diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil.
De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática, a divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden.
Crítica à política ambiental
“O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima”, escreve o presidente do Irice.
Segundo ele, o trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos e democracia.
Além disso, de acordo com Barbosa, o documento pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.
O autor do artigo na revista da FAP lembra que o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo, pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington.
Correspondência ao Senado
Por fim, segundo o embaixador, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara.
“O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil”, observa o presidente do Irice.
Na avaliação de Barbosa, “as relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021”. “Estamos apenas no início”, analisa.
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RPD || Rubens Barbosa: Biden e o Brasil
De forma pragmática, Biden adotou uma atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro, iniciando conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil
A divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden. O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima. O trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.
O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil.
Do lado do governo brasileiro, houve três ações concretas para tentar evitar medidas contra o Brasil. A carta do presidente Bolsonaro a Biden em que manifesta “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. O telefonema do Ministro Araújo com o Secretário de Estado Blinken e a reunião telefônica entre o Chanceler e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com John Kerry. O setor privado também se manifestou com Nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis para o intercâmbio comercial.
A forma como Biden no início de sua gestão vai tratar o Brasil foi definida pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado, segundo as quais “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro em questões em que haja Interesse Nacional comum pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não vai se limitar apenas a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”.
Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, demandada pela ala progressista do Partido Democrata, e iniciar as conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Foi uma atitude pragmática, vista pelo governo brasileiro como um avanço positivo na relação bilateral. Durante os meses de março e abril, a convite do governo norte-americano, o Brasil deve participar, a nível presidencial, nas conferências sobre Clima e sobre Democracia (com forte ênfase nos Direitos Humanos), além da Cúpula das Américas, na Florida. Nesses encontros, todos os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados.
Dependendo das posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial. Vão surgir, também, com força, nessa fase, as diferenças na área de mudança de clima e preservação da floresta Amazônica. Tudo vai depender da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e em anúncios de medidas com resultados verificáveis). A posição defensiva – que tem mais chances de prevalecer – poderá ter “consequências econômicas”, como disse Biden.
No telefonema com John Kerry, Araújo e Salles concordaram em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua e como transferir recursos ao Brasil para preservação da floresta amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Ernesto Araujo acreditarem em que a situação está sob controle e que avançará “business as usual”, como mencionado na carta a Biden, o que não deverá acontecer, na minha visão. Assim, os desdobramentos das políticas de Biden devem começar pelo meio ambiente, em relação à preservação da Amazônia e das comunidades indígenas, passando para as questões de Direitos Humanos, comércio (SGP e restrições a produtos brasileiros), defesa (Alcântara) e outras áreas de cooperação.
As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos apenas no início.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).
Rubens Barbosa: O governo Biden e o Brasil
As relações com os EUA começaram de forma tranquila, mas estamos apenas no início
O tom das relações entre o Brasil e os EUA, no início do governo Biden, foi definido pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado de que “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro nas questões em que haja interesse nacional comum, pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não se vai limitar a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”. A atitude do governo dos EUA pode ser explicada pela decisão da Casa Branca de adotar uma postura inicial firme e assertiva em termos de política interna (combate à pandemia, vacinação, imigração) e uma posição cautelosa em política externa (acordo nuclear com o Irã, China, Rússia) para não confrontar seus críticos republicanos.
Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, até mesmo na resposta de Joe Biden a Jair Bolsonaro, e iniciar conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Não deixa de ser uma atitude pragmática de ambos os lados e, do ponto de vista do governo brasileiro, a percepção de algum avanço. O governo americano, no entanto, não está alheio às manifestações públicas de grupos de pressão pedindo medidas duras contra o Brasil. O documento assinado por ex-ministros e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e pede medidas contra o Brasil caso não haja mudança nas políticas de proteção da Amazônia e de mudança de clima. O trabalho Recomendações sobre o Brasil ao Presidente Biden, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos à política ambiental, a direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas, como defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.
O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações julgadas favoráveis à invasão do Congresso em Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado pedindo a suspensão de programas de cooperação na área de defesa por problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com o anúncio da política ambiental pelo presidente Biden, com referência específica à Amazônia, causou preocupação pelos eventuais impactos no Brasil.
Do lado do governo brasileiro houve três ações para tentar evitar medidas concretas contra o País: a carta de Bolsonaro a Biden em que manifesta a “disposição” de continuar “nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”; o telefonema do ministro Araújo com o secretário de Estado Blinken; e a reunião telefônica entre o chanceler, o ministro do Meio Ambiente e John Kerry, responsável pelos EUA. O setor privado também se manifestou com nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis do intercâmbio comercial.
Uma segunda fase dos entendimentos começa a esboçar-se com os convites para a participação do Brasil, em nível presidencial, das conferências sobre clima e sobre democracia (em que terá destaque a questão dos direitos humanos), em abril, além da Cúpula das Américas. Nesses encontros, os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados e, dependendo da posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial em mudança de clima e preservação da Floresta Amazônica.
Na terceira fase de negociação bilateral, Washington deverá reagir à posição brasileira, em especial quanto ao pedido de recursos financeiros para controlar o desmatamento. No telefonema entre Kerry, Araújo e Salles houve concordância em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua para preservação da Floresta Amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Araújo desejarem acreditar que, a partir das políticas apoiadas por Donald Trump, o diálogo com os EUA evoluirá com Biden em “atmosfera de total confiança e entendimento recíproco” e “as boas relações começaram pela discussão sobre meio ambiente e mudança de clima”. E que a “parceria vai continuar”, como mencionado na carta a Biden, o que poderá não ocorrer, dependendo da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e algumas medidas, com resultados positivos verificáveis) às propostas americanas.
Todd Stern, um dos negociadores dos EUA, antecipou a posição de Washington nos próximos meses. “Os EUA usarão toda a força da diplomacia para conseguir atingir a meta: parar o desmatamento”. E mais: “Sem a Amazônia intacta o Acordo de Paris é impossível”.
As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos só no início.
PRESIDENTE DO IRICE
Hélio Schwartsman: Com Bolsonaro e Araújo, Brasil corre risco de ficar sem aliados
Nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano
Há uma diferença importante entre o policial e o diplomata. Diante de crimes mais sérios, policiais não têm opção que não a de indiciar os suspeitos, independentemente do que achem da lei ou das circunstâncias que levaram ao delito.
Nas relações internacionais, as coisas são um pouco mais complicadas. Mesmo quando a diplomacia está diante de um crime gravíssimo e muito bem documentado, pode ver-se compelida a pegar leve com o autor. É o que acaba de fazer o presidente dos EUA, Joe Biden, ao deixar de responsabilizar o príncipe saudita Mohammed bin Salman pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi em 2018.
O problema de base é que, nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano. Sem uma autoridade central forte que a todos submeta, cada Estado é mais ou menos livre para agir como quiser. As principais limitações são a força de outros países, seguida de acordos e tratados internacionais, cuja imposição, entretanto, é fraca, e, no caso de democracias, da repercussão política que as ações possam ter para o público interno.
A resultante desses vetores em nível nacional costuma ser uma política externa pragmática, com algum tempero moral. Os EUA não podem dar-se ao luxo de romper com os sauditas, um de seus principais aliados na região, então Biden optou por pegar leve com o príncipe, mas sem deixar de sinalizar que reprova o homicídio e que poderá reagir de modo mais duro se violações desse tipo se repetirem.
Uma diplomacia totalmente pragmática, pautada exclusivamente por interesses, até pode funcionar para países autocráticos, onde o líder não deve satisfações a ninguém. Já uma diplomacia que se guie apenas por princípios acabaria rapidamente isolada, sem nenhum aliado.
O Brasil, com Bolsonaro e Ernesto Araújo no comando da política externa, corre o risco de terminar sem aliados e defendendo posições imorais.
Cristina Serra: A profecia do imigrante haitiano
Há um ano ele enunciou a nossa desgraça
Um ano. Faz um ano que um imigrante haitiano enunciou a nossa desgraça: "Bolsonaro acabou (...) Você não é presidente mais. Precisa desistir. Você está espalhando o vírus e vai matar os brasileiros!". Um ano. Mas parece que um século nos separa dessa profecia, tão apavorante ela soou e tão terrivelmente se confirmou. Bolsonaro está matando os brasileiros e não conseguimos detê-lo.
Os 260 mil mortos até agora e os muitos que ainda virão, os sobreviventes com sequelas, os trabalhadores da saúde esgotados, uma geração de órfãos do vírus, os alertas de cientistas, os apelos de autoridades, os desempregados, os desesperados"... Nada abala a calculada estratégia assassina de Bolsonaro, demonstrada nas medidas que tomou ou que deixou de tomar na pandemia.
Bolsonaro tem a morte como projeto. Ele comanda o exército da peste, sustentado por um consórcio macabro de interesses. Cerram fileiras o centrão, militares, empresários adoradores de Paulo Guedes e setores necrosados do Judiciário. Com essa retaguarda, Bolsonaro continuará zombando de nós, mentindo, rindo de suicídios, regozijando-se enquanto empilha cadáveres.
O mundo já nos considera uma ameaça, porque demos ao vírus as condições ideais para ele se tornar mais agressivo. Os investimentos estrangeiros vão demorar anos para retornar. A economia quebrou. Bolsonaro tem a maior parcela de responsabilidade nessa hecatombe, mas outros também têm deveres e obrigações. Governadores e prefeitos, tenham a coragem de adotar confinamento mais rigoroso !
Não se conhece a identidade do haitiano que confrontou o contaminador-geral da República, nem se sabe se está vivo. Mas sua voz não para de ressoar na minha cabeça. Eleição e voto não dão a ninguém licença para matar. Bolsonaro e seu comparsa Eduardo Pazuello têm que ser interditados, processados e julgados. A pior escolha que podemos fazer como sociedade é a resignação, a apatia.
Demétrio Magnoli: Biopolítica da pandemia
Narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada
A eclosão da Covid-19 em Wuhan, em dezembro de 2019, foi muito mais ampla do que se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes da cepa A do novo coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia, silenciosamente, havia tempo. A descoberta da missão da OMS na China lança luz sobre a transformação de uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a gripe espanhola.
O percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o peso de um lockdown aplicado com a força implacável de um Estado totalitário, Wuhan emergiu da onda de contágios com poucos milhares de mortos. As cifras modestas desarmaram os espíritos no resto do mundo, semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma avalanche de óbitos atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em diversos países europeus.Hoje sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo vírus na Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O coronavírus da cepa “original” (A) era menos transmissível que o B.1, difundido fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário para impor um lockdown decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da biologia. Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
A árvore de mutações virais não tinha sido desenhada em meados de 2019. Naquele ponto, diante do chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e na Lombardia, analistas suspeitaram que a China escondia pilhas de cadáveres. Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.
Obcecado pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a notícia dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O tempo perdido propiciou a disseminação subterrânea do vírus fora da China e a eclosão das variantes que vergaram o mundo inteiro.Vírus mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades de reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois matar o hospedeiro contribui negativamente na velocidade de transmissão. A regra, porém, parece não valer para o novo coronavírus porque a fase de contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a carga viral concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade maior não traz desvantagens.
Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais transmissíveis como, também, mais letais no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil. As novas ondas pandêmicas resultam, ao menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que se espalhou por toda a humanidade, expandindo suas oportunidades de mutação.
A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada. A verdade é que o regime chinês lidou com um vírus menos eficiente. Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente fracassou no combate à pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente, quando a Covid já se disseminara nas sociedades, e enfrentou variantes mais transmissíveis do vírus.
2021, Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China, triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento, enquanto EUA, Reino Unido e, logo, União Europeia, protegerão antes suas populações.
A balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas, que poderão reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim das contas, tudo depende de uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os EUA se fecharem no nacionalismo vacinal, perderão sua vantagem potencial. Se, pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países em desenvolvimento, virarão o jogo.
Vinicius Torres Freire: Entenda a recaída do Brasil e por que os EUA afetam dólar e juros por aqui
Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre, mas convém olhar para os EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil
Em um país distante do Norte da Terra, que baniu o Ogro Laranja e vai distribuir poções medicinais para seu povo inteiro até maio, há um negócio em que os mercadores de dinheiro do mundo prestam a maior atenção. É a taxa de juros dos títulos de 10 anos do governo dos Estados Unidos.
Grosso modo, é o custo de o governo americano tomar empréstimos por dez anos. Define o custo do crédito para outros negócios, desde comprar casa no Texas a emprestar para o governo do Brasil. Pelo menos desde 25 de fevereiro, a alta dos juros de longo prazo americanos tumultua a finança mundial, em particular nos países “emergentes”.
O Brasil, um país submergente nas profundas dos infernos, padece em especial do remelexo americano. A gente precisa prestar atenção nisso. “Estruturalmente, a questão americana é a mais relevante, é central”, como diz em termos sóbrios Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV, professor de economia da UFRJ.
A alta da taxa de juros nos EUA é motivo da alta do dólar pelo mundo. A economia americana se recupera com rapidez. Vai receber US$ 1,9 trilhão de impulso de gasto do governo (35% mais que o PIB brasileiro anual). Conta ainda com o estímulo do Banco Central deles, o Fed, que continua comprando mais de US$ 100 bilhões por mês em títulos públicos e privados. Para resumir uma conversa enrolada, na prática isso significa que o Fed reduz as taxas de juros pagas por governo, empresas e mesmo indivíduos: o Fed subsidia, banca, parte da conta dos juros. Até maio, a população americana deve estar vacinada. Parte da dinheirama do mundo corre, pois, para os EUA.
Considerada ainda a volta a alguma normalidade sanitária no segundo semestre, a economia americana tende a acelerar. Haveria perspectiva de volta da inflação e, assim, de alta das taxas de juros de curto prazo, se diz.
Jerome Powell, o presidente do Fed, disse nesta quinta-feira que não, sem convencer “o mercado”. Não seria neste ano que estariam satisfeitas condições para alta de juros: mercado de trabalho recuperado, inflação a 2% e expectativas de inflação que fiquem por aí, ou algo mais, por alguns anos.
O efeito mais imediato dos EUA por aqui é a alta do dólar e dos juros brasileiros de prazo mais longo. Mas dólar mais caro por mais tempo sedimenta expectativas de inflação mais alta. Além do mais, houve aumento grande do preço de commodities (petróleo, grãos) e pressão em preços de bens de consumo por causa dos auxílios emergenciais. O IPCA deve ficar na casa dos 6% entre abril e setembro. A renda do trabalho está sendo carcomida.
A fim de deter essa inflação, o BC brasileiro deve elevar a taxa de juros básica (Selic), ora em 2%, a partir de 17 de março, embora ainda exista controvérsia sobre a persistência dessa carestia. Para Castelar, a Selic tem de ir a 5,5% no final do ano. Para os economistas do Itaú, a 5%. Pela opinião visível no custo do dinheiro na praça financeira brasileira, para algo entre 5,5% e 6%.
Seria uma paulada. Um aperto na atividade econômica. Um aumento no custo de financiamento da dívida pública já enorme, custo extra que ficará notável em 2022. Vai para o vinagre a ideia de que poderíamos ficar com juros reais perto de zero até bem entrado o ano que vem.
O morticínio crescente e o semiparadão também não estavam nas contas econômicas. As restrições oficiais e voluntárias a movimento e comércios não serão tão grandes como no início de 2020. Mas devem ter efeito por pelo menos até abril. É menos crescimento, se algum, até meados do ano. O PIB paulista caiu em janeiro, primeira baixa ante mês anterior desde abril de 2020 (no indicador PIB+30 do Seade). O indicador Cielo de vendas no varejo se recuperou bem até outubro, quando estava em queda de 7,7% ante igual mês do ano anterior. Em janeiro, estava em baixa de 12,6%.
O mundo de novembro de 2020, que deu um alento ao PIB do final do ano, se esfumaçou. Fevereiro foi fraco, março será pior. Sim, Jair Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre. Mas convém prestar atenção nos EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil.