EUA

Com Bolsonaro, país aumenta risco de ficar fora de negociações da política externa

Avaliação é do professor no Insper Leandro Consentino, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), isolando-se da futura governança global. O alerta é do doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) Leandro Consentino, professor no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

Estados devem reconstruir os organismos internacionais quando a pandemia da Covid-19 tiver fim, segundo Consentino. Ele publicou artigo de sua autoria na revista Política Democrática Online de abril, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso é gratuito no portal da entidade.

Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

Bacharel em Relações Internacionais e também professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o analista de política externa diz que o país interrompeu um "círculo virtuoso” com o mundo após a vitória de Bolsonaro, em outubro de 2018.

Além disso, segundo artigo de Consentino na revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), a situação piorou ainda mais com a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de ministro de Relações Exteriores.

“Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável”, analisa o autor do artigo na revista mensal da FAP.

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

“Governo de turno”

De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, segundo Consentino, “o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional”.

Assim, conforme acrescenta, o governo coloca em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual.

“Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho”, lamenta o professor no Insper.

Isolamento

Dessa forma, destaca o autor do artigo na revista da FAP, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. “Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo”, afirma.

A íntegra da análise de Consentino pode ser vista na versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado. 

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Fonte:


Carlos Nobre: 'Brasil precisa diminuir desmatamento da Amazônia ainda neste ano para não receber sanções'

Cientista defende que o grande potencial econômico da floresta é mantê-la em pé, mas que é preciso um forte combate ao crime organizado para zerar a degradação o quanto antes

Felipe Betim, El País

O climatologista Carlos Nobre é uma das principais vozes da ciência que alertam para os riscos de savanização da Amazônia caso o desmatamento não seja freado e zerado até, no máximo, 2030. Em entrevista ao EL PAÍS por telefone às vésperas da Cúpula do Clima, o cientista afirmou que ou o Governo Jair Bolsonaro muda sua conduta ou corre o risco de sofrer sanções econômicas. “Se o Brasil quiser deixar de ser o pária ambiental do planeta, não dá para ficar em cima do muro nem deixar para mudar de postura depois, para a COP-26”, explica o cientista, referindo-se à conferência do clima da ONU que será realizada em novembro deste ano, em Glascow (Escócia). “Eu acho que vai ter muita sanção econômica. Podem enterrar de vez o acordo entre Mercosul e União Europeia, por exemplo. Por isso, é muito importante que o desmatamento caia ainda neste ano. Já se sabe que não vai cair muito, mas não pode crescer”, alerta ele.

Atualmente, pouco mais de 80% da cobertura original da Amazônia está preservada. O número parece alto, mas estudos científicos indicam que a floresta está “na beira do precipício da savanização”: a estação seca está três ou quatro semanas mais longa no sul da região e a floresta absorve menos carbono e recicla menos água, explica Nobre. “Há colegas meus que dizem que savanização ja começou. Eu ainda acho que dá para evitar o pior se a gente zerar rapidamente o desmatamento e restaurar grandes áreas, gerando chuvas e diminuindo temperaturas. Mas isso tem que acontecer a jato”. Para salvar a Amazônia, o mundo também precisa ter sucesso na aplicação do Acordo de Paris e não deixar que a temperatura do planeta suba mais que 1,5 grau celsius. Caso contrário, todo esforço de preservação será em vão, explica Nobre. Os desafios são enormes.

Durante seu discurso de três minutos na Cúpula do Clima nesta quinta-feira, Bolsonaro garantiu que o Brasil tem a meta de zerar o desmatamento ilegal até 2030. De acordo com Nobre, mais de 90% de todo o desflorestamento da Amazônia é ilegal e não tem a ver com produção agrícola, mas sim com o mercado de terra. Para mudar esse quadro, é preciso combater o crime organizado, o que praticamente zeraria toda a degradação da floresta, explica. Em sua fala, Bolsonaro reconheceu que medidas de comando e controle são parte da reposta. “Apesar das limitações orçamentárias do Governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados a ações de fiscalização”, assegurou o presidente. As metas apresentadas pelos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, foram elogiadas pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em seu discurso de encerramento nesta sexta.

Porém, um dia depois do pronunciamento de Bolsonaro, aconteceu exatamente o inverso do que ele prometeu diante de 40 líderes internacionais: entre os vetos no Orçamento de 2021, o Governo federal cortou nesta sexta-feira 19,4 milhões de reais do Ibama, sendo que 11,6 milhões seriam destinados para atividades de controle e fiscalização ambiental e seis milhões para a prevenção e controle de incêndios florestais. Bolsonaro também retirou sete milhões do ICMBio, outro braço da fiscalização ambiental, que seriam destinados à criação, gestão e implementação de unidades de conservação. Também cortou 4,5 milhões do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima. No total, os cortes do Ministério do Meio Ambiente somam 240 milhões de reais para o ano de 2021.

“Tem que haver um esforço de guerra para acabar ou diminuir o crime na Amazônia. Não pode ser só um discurso de tolerância zero, porque na prática o crime continua acontecendo”, enfatiza Nobre. Os anos de 2019 e 2020 registraram um importante aumento no desmatamento. Em 2021, o mês de março foi o pior dos últimos 10 anos. “O general Mourão [vice-presidente e responsável pelo Conselho da Amazônia] afirmou que o Exército iria sair da Amazônia no dia 30 de abril e que o Ibama iria contratar 700 fiscais temporários. Até agora não contratou nenhum. Muitos fiscais foram aposentados por idade ou estão fora de campo com a pandemia”, alerta o cientista, que teme novo aumento do desmatamento a partir de maio, quando começa o período mais seco na região amazônica.PUBLICIDADE

Nobre explica que o desmatamento das florestas tropicais representa 15% das emissões de gás carbônico no planeta, enquanto que a maior parte, 70%, vem dos combustíveis fósseis. Porém, o objetivo global de zerar as emissões até 2050 passa, necessariamente, por zerar o desmatamento ao mesmo tempo que se investe “em um mega projeto de restauração florestal em todos os trópicos para retirar gás carbônico da atmosfera”. Além disso, proteger as florestas significa, também, proteger a biodiversidade. “Existe um simbolismo imenso na proteção da Amazônia”, explica o cientista. Para ele, Biden percebeu essa preocupação dos consumidores de todo o mundo com a proteção da Amazônia. “E o Brasil tem a maior parte da floresta, o maior desmatamento, a maior incidência do crime organizado, de grilagem de terra, de roubo de madeira... Em função dos dois últimos anos de discurso do Governo federal contrário à proteção das florestas tropicais, o país se tornou o centro das atenções.”

Novo modelo econômico para a Amazônia

Nobre defende que a restauração da Amazônia não deve acontecer para compensar novas áreas desmatadas. Zerar o desmatamento e promover a restauração de áreas devem andar juntos. “Há áreas degradadas e baixa produtividade sem valor econômico. Há estudos indicando que poderíamos aumentar 35% da produção agropecuária reduzindo em 25% as áreas de pastagens. Só nessa brincadeira poderíamos liberar 150.000 quilômetros quadrados de áreas ruins que poderiam ser restauradas”, explica. Ele defende que parte dessa restauração seja feita para construir sistemas agroflorestais, “que são florestas com uma densidade maior de espécies com valor econômico”. Como exemplo cita a cooperativa de Tomé-Açu, no Pará, que gera “140 produtos diferentes a partir de 70 espécies, sendo a mais conhecida o açaí”.

Assim, ele reforça que “o grande potencial econômico da Amazônia” é mantê-la em pé. Também rebate a ideia, muito propagada pelo Governo, de que os mais 20 milhões de habitantes da região recorrem ao desmatamento para poderem sobreviver. “Os empregados do garimpo e da extração de madeira estão em semiescravidão e não ganham nem um salário mínimo por mês. São paupérrimos, estão na classe E. Não podemos dizer que isso é um modelo econômico”, argumenta. Além disso, argumenta que o minério e a madeira extraídos ilegalmente são contrabandeados. Não pagam impostos e nem geram riqueza ao país. “E veja o açaí, movimenta um bilhão de dólares [cerca de 5,5 bilhões de reais] na região e muitos produtores estão na classe C”.

O custo maior da mudança de modelo econômico seria na restauração florestal, garante Nobre. Com pouco investimento, afirma, é possível dobrar ou triplicar a produtividade da pecuária. Ele acredita que no setor privado o momento é positivo, com as grandes companhias de carne investindo em rastreabilidade para não comprar de áreas desmatadas. Sabem que o risco é perder mercados internacionais e investimentos. “O que precisamos, agora, é de uma grande mudança de postura nas políticas públicas, de efetividade no combate ao crime e na valorização da bioeconomia”, destaca.


Luiz Carlos Azedo: Ajoelhou, tem que rezar

Bolsonaro precisa dar demonstrações práticas de que mudou a política ambiental. A mais aguardada é a demissão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles

A narrativa ambiental do presidente Jair Bolsonaro mudou da água para o vinho, ontem, na Cúpula do Clima convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que não assistiu a seu discurso, mas mandou o porta-voz americano para o Clima, John Kerry, dizer que gostou do pronunciamento. Bolsonaro prometeu adotar medidas que reduzam as emissões de gases e pediu “justa remuneração” por “serviços ambientais” prestados pelos biomas brasileiros ao planeta.

De certa forma, surpreendeu o próprio Biden. Bolsonaro disse que “não poderia estar mais de acordo” com o apelo dos EUA sobre metas mais ambiciosas para o clima. Não mencionou o Plano Amazônia apresentado na semana passada, mas voltou a mencionar a eliminação do desmatamento ilegal, por meio do Código Florestal, reiterando a promessa da carta que enviara a Biden na semana passada. Anunciou, também, que o Brasil reduzirá emissões em 37%, em 2025, e 40%, até 2030, alcançando a neutralidade climática em 2050, ou seja, 10 anos antes da meta prevista pelo Brasil. São objetivos ambiciosos, porém ficarão por conta dos futuros governos. O problema é o agora.

Não faltaram referências à inclusão dos povos indígenas e comunidades tradicionais em questões de bioeconomia, bem como à melhoria nas condições de vida da população da Amazônia. Bolsonaro disse que os mercados de carbono são essenciais para impulsionar investimentos climáticos e anunciou a participação do Brasil na Convenção sobre Diversidade Biológica, na China, em outubro. Aproveitou para pedir ajuda financeira, ao falar da necessidade de pagamentos justos por serviços ambientais.

O problema do Brasil é que o discurso de Bolsonaro não corresponde aos fatos até agora. Mesmo que a intenção seja mudar de rumo, não é possível reconstruir da noite para o dia o que foi destruído, desestruturado ou desorganizado em termos de política ambiental nos últimos dois anos e quase meio. Bolsonaro precisa dar demonstrações práticas de que realmente mudou a política ambiental. Politicamente, a ação mais aguardada é a demissão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o homem que estava “passando a boiada” na Amazônia.

Questão de prática

Dificilmente, com Salles à frente do ministério, até por causa dos desgastes que sofreu com os interlocutores internacionais, ambientalistas e cientistas da área, o Brasil conseguirá ter acesso expressivo ao fundo de US$ 1 bilhão criado por Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia para preservação ambiental. Por causa da extinção do conselho que dirigia o Fundo da Amazônia, anunciada no início da gestão do ministro Salles, Alemanha e Noruega interromperam as doações do fundo, que tem uma reserva de R$ 2,9 bilhões para combater o desmatamento das florestas, congelada por causa da mudança do modelo de gestão dos recursos feita por Salles.

Presidente do Conselho Nacional da Amazônia, o vice-presidente Hamilton Mourão não participou do encontro. Foi uma sinalização negativa de empoderamento do ministro Salles, que está na mesma situação em que já ficaram o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o ex-chanceler Ernesto Araújo: “se ferraram” cumprindo cegamente as ordens negacionistas do presidente da República. E acabaram com a cabeça entregue numa bandeja para seus críticos.

Bolsonaro subordinou as ações do governo aos interesses de setores radicais de sua base eleitoral, como pecuaristas, madeireiros, garimpeiros e grileiros. O impacto do desmonte da política ambiental no desmatamento, na invasão de terras indígenas e nos indicadores de violência no campo escandalizou o mundo. O pecado original foi a aposta de Bolsonaro no negacionismo e poder do ex-presidente Donald Trump, seu aliado principal. Com a eleição do democrata Joe Biden, que reposicionou os Estados Unidos na cena mundial, se tornou mesmo um “pária” internacional. Os Estados Unidos voltaram a ser protagonistas na luta contra o aquecimento global. O isolamento do governo brasileiro exigiu uma mudança de rumo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ajoelhou-tem-que-rezar/

The New York Times: A morte de George Floyd reacendeu um movimento nos EUA. O que acontece com ele agora?

Crime fez eclodir os maiores protestos contra o racismo no país desde os anos 1960, mas ainda não está claro quais mudanças vão perdurar

George Floyd estava morto havia apenas algumas horas quando o movimento começou. Impelidas por um vídeo apavorante e pelo boca a boca, muitas pessoas foram para o cruzamento na zona sul de Minneapolis onde ele foi morto, logo após o feriado do Memorial Day, para exigir o fim da violência policial contra americanos negros.

Aquele momento de dor e revolta coletiva logo deu lugar a uma reflexão nacional, feita ao longo de um ano, sobre o que significa ser negro na América.

Primeiro vieram os protestos, em cidades grandes e menores em todo o país, convertendo-se no maior movimento de protestos em massa na história dos Estados Unidos. Então, ao longo dos meses seguintes, quase 170 símbolos confederados foram rebatizados ou removidos de espaços públicos. O slogan “Black Lives Matter” (vidas negras importam) foi reivindicado por uma nação que se esforçava para entender a morte de Floyd.

Ao longo dos 11 meses seguintes, chamados por justiça racial alcançaram aparentemente todos os aspectos da vida americana em uma escala que, segundo historiadores, não era vista desde o movimento pelos direitos civis, nos anos 1960.

Na terça-feira (20), Derek Chauvin, o policial branco que se ajoelhou sobre Floyd, foi condenado por duas acusações de homicídio e por homicídio culposo. O veredito trouxe algum alívio aos ativistas que lutam por justiça racial e que passaram as últimas semanas acompanhando cada detalhe do drama que transcorria no tribunal.

Também se veem sinais de uma reação contrária: legislação para reduzir o acesso de eleitores às urnas, proteger a polícia e, na prática, criminalizar protestos públicos vem aparecendo em Legislativos estaduais controlados pelo Partido Republicano.

O arco inteiro do caso de Floyd –desde sua morte e os protestos até o julgamento e a condenação de Derek Chauvin—se deu contra o pano de fundo da pandemia de coronavírus, que chamou ainda ainda mais a atenção para as disparidades raciais nos EUA, onde pessoas não brancas estão entre as mais duramente atingidas pelo vírus e pelas dificuldades econômicas que o acompanharam.

Para muitas pessoas, a morte de Floyd carrega o peso de outros episódios de violência policial na última década, uma lista que inclui as mortes de Eric Garner, Laquan McDonald, Michael Brown e Breonna Taylor.

Nos meses seguintes à morte de Floyd houve algumas mudanças concretas. Dezenas de leis de reforma do policiamento foram apresentadas nos estados. Grandes empresas reservaram bilhões de dólares para causas ligadas à equidade racial, e a NFL (a liga profissional de futebol americano) pediu desculpas por não ter apoiado protestos de seus jogadores negros contra a violência policial.

Mesmo as reações contrárias foram diferentes. Declarações racistas feitas por dezenas de figuras de autoridade, desde prefeitos até diretores de corpos de bombeiros, relacionadas à morte de George Floyd —o tipo de declaração que talvez fosse tolerada antes— custaram seus seus cargos e levaram alguns líderes a ser encaminhadas para aulas antirracismo.

E, pelo menos inicialmente, as opiniões americanas sobre uma série de questões ligadas à disparidade racial e ao policiamento mudaram em um grau raramente visto em sondagens de opinião. Os americanos, e em especial os americanos brancos, mostraram probabilidade muito maior que nos últimos anos de apoiar o movimento Black Lives Matter, dizer que a discriminação racial é um problema sério e que a força policial excessiva prejudica os afro-americanos de maneira desproporcional.

Em meados de 2020, a maioria dos americanos concordava que a morte de George Floyd fazia parte de um padrão maior, não constituindo um incidente isolado. Uma pesquisa do jornal The New York Times realizada em junho com eleitores registrados mostrou que mais de um em cada dez havia participado de protestos. Na época, até mesmo políticos republicanos em Washington estavam expressando apoio à reforma da polícia.

Mas a mudança de postura mostrou-se passageira no caso dos republicanos —tanto dos líderes eleitos quanto dos eleitores.

Quando alguns protestos ganharam tom destrutivo e quando a campanha de reeleição de Donald Trump começou a usar essas cenas em seus anúncios políticos, pesquisas de opinião mostraram que os republicanos brancos recuaram em relação à sua própria visão de que a discriminação é um problema.

“Para quem estava do lado republicano, que é na realidade o lado de Trump nesta equação, a mensagem passou a ser: ‘Não podemos admitir que o que aconteceu foi repulsivo, porque se o fizermos vamos perder terreno’”, disse Patrick Murray, diretor do Instituto de Sondagens da Universidade Monmouth. “Nossa visão de mundo é ‘somos nós contra eles’. E quem participa dos protestos está incluindo no ‘eles’”.

Mas a morte de George Floyd levou a algumas mudanças, pelo menos por enquanto, na consciência que os americanos brancos não republicanos têm da desigualdade racial e em seu apoio a reformas. E ela ajudou a fortalecer o movimento em direção ao Partido Democrata dos eleitores suburbanos com instrução superior, já consternados com o que viam como a promoção do racismo por Trump.

“O ano de 2020 vai ficar em nossa história como um tempo muito significativo, catártico”, comentou David Bailey, cuja ONG Arrabon, sediada em Richmond (no estado da Virgínia), ajuda igrejas em todo o país a trabalhar pela reconciliação racial. “As atitudes das pessoas mudaram, em algum nível. Não sabemos inteiramente ainda o que isso tudo significa. Mas eu estou esperançoso, acho que estou vendo algo diferente ganhar forma.”

Mesmo entre líderes democratas, porém, incluindo prefeitos e o presidente Joe Biden, a consternação diante da violência policial frequentemente vem acompanhada de avisos de que os manifestantes também devem evitar a violência. Essa associação entre revolta política negra e violência está profundamente entranhada nos EUA e não foi rompida no último ano, disse o cientista político Davin Phoenix, da Universidade da Califórnia em Irvine.

“Antes mesmo de terem a chance de processar seus sentimentos de trauma e dor, os negros estão ouvindo de pessoas que eles elegeram para a Casa Branca —que eles alçaram ao poder— ‘não façam isso, não façam aquilo’”, disse Phoenix. “Eu adoraria se mais políticos, pelo menos aqueles que se dizem nossos aliados, dissessem ‘não façam isso, não façam aquilo’ à polícia.”

Os protestos que se seguiram à morte de Floyd viraram parte da discussão americana sobre política, cada vez mais rancorosa. A maioria dos protestos foi pacífica, mas houve saques e danos a propriedades em algumas cidades, e essas imagens circularam com frequência na televisão e nas redes sociais. Os republicanos citaram os protestos como um exemplo de perda de controle da esquerda. Bandeiras com os dizeres “Blue Lives Matter” (em apoio à polícia) foram penduradas de casas no outono passado. Quando o apoio a Trump explodiu um violência no Capitólio, em 6 de janeiro, conservadores reagiram com raiva contra o que, para eles, foi um caso de dois pesos e duas medidas.

Biden tomou posse em janeiro prometendo fazer da equidade racial um aspecto fundamental de todos os elementos de sua agenda: a distribuição das vacinas contra o coronavírus, os locais de construção de infraestrutura federal, a definição das políticas climáticas. Ele efetuou rapidamente as mudanças que qualquer administração democrata provavelmente teria adotado, restaurando os decretos sobre consentimento policial e as regras habitacionais justas.

Mas, em um sinal do momento singular em que Biden foi eleito —e de sua dívida para com os eleitores negros que o promoveram—, sua administração também vem adotando medidas mais inovadoras, como declarar o racismo uma ameaça grave à saúde pública e apontar para o desemprego entre negros como uma medida para se avaliar a saúde da economia.

Algo que as pesquisas de opinião não captaram bem é se os liberais brancos vão mudar os comportamentos que reforçam a desigualdade racial, como por exemplo optar por escolas e bairros segregados. Ao mesmo tempo em que a revolta diante da morte de Floyd aumentou a consciência da desigualdade racial, outras tendências ligadas à pandemia apenas a reforçaram. Isso vem ocorrendo não apenas porque famílias e trabalhadores negros têm sido desproporcionalmente atingidos pela pandemia, mas porque estudantes brancos têm se saído melhor com o ensino à distância e proprietários brancos de imóveis vêm enriquecendo em um mercado habitacional superaquecido.

Numa pesquisa nacional com americanos brancos feita este ano, a cientista política Jennifer Chudy, do Wellesley College, constatou que mesmo os mais antirracistas têm tendência maior a endossar ações particulares e limitadas.

Estas incluem educar-se sobre o racismo ou ouvir pessoas não brancas, e não tanto, por exemplo, optar por viver em uma comunidade racialmente diversa ou levar questões raciais à atenção de autoridades eleitas.

Mesmo assim, dizem historiadores, seria difícil exagerar o efeito dinamizador que a morte de George Floyd teve sobre o discurso público, não apenas no que diz respeito à ação da polícia mas também a como o racismo está entranhado nas políticas das instituições públicas e privadas.

Alguns empresários negros vêm dando depoimentos públicos, falando em termos incomumente pessoais, sobre suas próprias experiências de racismo. Alguns deles criticaram o mundo empresarial por fazer muito pouco contra o racismo ao longo dos anos. “A América corporativa abandonou a América negra à própria sorte”, disse Darren Walker, presidente da Fundação Ford e membro do conselho da PepsiCo, Ralph Lauren e Square. Dezenas de empresas se comprometeram a diversificar sua força de trabalho.

Manifestações públicas contra o racismo nos Estados Unidos explodiram em todo o mundo, levando a protestos nas ruas de Berlim, Londres, Paris e Vancouver (Colúmbia Britânica) e em capitais da África, América Latina e Oriente Médio. Americanos brancos não familiarizados com o conceito de racismo estrutural empurraram os livros sobre esse tema para o topo das listas dos mais vendidos.

Audra D.S. Burch , Amy Harmon , Sabrina Tavernise e Emily Badger


Luiz Carlos Azedo: Reabrir as escolas, por que não?

Saúde, Trabalho, Universidade Em quase todos os lugares do mundo, as escolas públicas foram as últimas a fechar e as primeiras a reabrir durante a pandemia; aqui no Brasil, é o contrário

Depois de sete horas de disputa em plenário, na terça-feira, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que regulamenta a reabertura de escolas e faculdades durante a pandemia (PL 5.595/20), mas a polêmica continua. O texto torna a educação básica e superior serviços essenciais, ou seja, não podem ser interrompidos durante a crise sanitária. O texto seguirá para o Senado, onde a discussão deve pegar fogo. A proposta inverte a equação: proíbe a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas, exceto se houver critérios técnicos e científicos justificados pelo Poder Executivo quanto às condições sanitárias do estado ou município.

O fato de a relatora do projeto ser a polêmica deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), facilitou a vida dos setores de esquerda que se opõem à abertura das escolas, apesar de ter incorporado emendas que estabelecem protocolos para o retorno escolar. Autora da proposta, a deputada Paula Belmonte (Cidadania-DF) destaca que “o texto foi alterado para garantir segurança de professores e alunos”. Outros deputados de perfil conservador e liberal patrocinaram a aprovação. “Esse projeto é de suma importância para (…) aquela mãe ou para aquele pai que não tem onde deixar o seu filho, (…) que é analfabeto e que não pode colaborar com a educação domiciliar, (…) que não tem conexão, computador e, como muitos disseram aqui, não tem água nem luz, às vezes”, argumentou a deputada Aline Sleutjes (PSL-PR).

Tiago Mitraud (Novo-MG) criticou a mobilização sindical contra a proposta: “É ter as crianças fora da sala de aula, mais uma vez, ter que se submeter aos interesses das corporações dos sindicatos”. Ex-relatora do Fundeb, respeitada educadora, Professora Dorinha (DEM-TO), porém, critica o projeto. “A nossa preocupação é que a educação seja prioridade de investimento, de política, de formação”, disse. A líder do PSol, a deputada Talíria Petrone (RJ) endossa a crítica: o texto “prioriza interesses privados, e não, investimentos na adaptação da infraestrutura educacional para a pandemia ou para expansão de acesso à internet pelos alunos”.

Califórnia

Um dos argumentos contra o projeto é o de que o Brasil é muito desigual, e as escolas das periferias e pequenos municípios não têm condições de seguir os protocolos. Entretanto, há inúmeros exemplos de escolas em locais remotos com alto desempenho escolar. Por isso, lembrei-me do best seller A quarta revolução, a corrida global para reinventar o Estado, de John Micklethwait e Adrian Wooldridge. Lós Angeles tem 687 mil alunos, ao lado de 23 outros distritos escolares californianos com 20 alunos ou menos.

O glamour hollywoodiano da Califórnia, por causa de Beverly Hills e do Vale do Silício, esconde milhares de condados, cidades e distritos, nos quais se reproduz o abismo existente entre Palo Alto, com suas empresas de alta tecnologia, e a burocrática Sacramento, a capital do estado com a terceira Constituição mais longa do mundo. Milhares de leis estaduais e locais de iniciativa popular engessam três quartos do orçamento público.

Os lobbies mais poderosos da Califórnia são: o dos agentes penitenciários (republicano), que aumentaram os empregos nos presídios e a população carcerária, com a duplicação das penas para criminosos reincidentes, e o dos professores da rede pública (democrata), cujo sindicato gastou US$ 210 milhões em campanhas políticas, entre 2000 e 2010, para conquistar uma taxa de demissão de 0,3%, ou seja, não importa o desempenho, professores são “imexíveis”. Há 50 anos, a Califórnia tinha o melhor sistema de ensino dos Estados Unidos; hoje, disputa com o Mississipi os maiores índices de analfabetismo e gastos per capita. Quem manda na rede de ensino público não são seus gestores, são os sindicatos de professores.

Em quase todos os lugares do mundo, as escolas públicas foram as últimas a fechar e as primeiras a reabrir durante a pandemia; aqui no Brasil, é o contrário. Tem alguma coisa errada. Os prejuízos para as crianças fora da escola não são tangíveis, vão muito além dos boletins escolares. E são justamente as mais pobres que mais precisam voltar às salas de aula.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-reabrir-as-escolas-por-que-nao/

El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil

Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.

Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE  

A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.

A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.

Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.

Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.

Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.

Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.

Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.

Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.

A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.

As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.

As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.


Folha de S. Paulo: 'Somos parte do legado de Floyd', diz Kamala Harris após veredicto de ex-policial

Para Joe Biden, condenação de Derek Chauvin pode ser 'grande passo adiante' nos EUA

Patricia Pamplona, Folha de S. Paulo

Legado foi a palavra que permeou o discurso da vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e do mandatário americano, Joe Biden, sobre a condenação de Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd, nesta terça (20).

ex-policial foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio. A duração da pena será anunciada em até oito semanas, e ele pode pegar até 40 anos de prisão.

Primeira mulher negra na Vice-Presidência americana, Kamala falou primeiro e afirmou que o veredito é um passo, mas ainda há trabalho a fazer e insistiu que o Senado aprove a Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, apresentada em agosto do ano passado.

“Precisamos reformar o sistema. Essa lei é parte do legado de George Floyd”, disse a vice, descendente indiana e jamaicana. “Somos todos parte do legado de George Floyd, é nosso dever honrá-lo.”

Kamala sublinhou ainda as difíceis condições de pessoas negras no país. “Americanos negros e homens negros em especial têm sido tratados como se fossem menos que humanos”, afirmou a vice. “Suas vidas precisam ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa nação.

Na sequência, o presidente também insistiu na necessidade de reformas. “[O caso] Abriu os olhos para o racismo sistêmico que é uma mancha na alma da nossa nação”, disse Biden. “Esse pode ser um grande passo adiante.”

O democrata reconheceu a importância do veredito, apesar de criticar que não deveria levar um ano para que o caso fosse concluído, e ressaltou que o resultado é uma raridade nesses tipos de casos.

“Esse veredito não traz George de volta, mas por meio da dor, sua família encontrou propósito. Precisamos fazê-lo por sua memória”, disse Biden. “Vamos fazer com que esse seja seu legado, um legado de paz, não de violência."

O presidente condenou ainda protestos violentos que tentam atrapalhar o caminho para a justiça racial. “Não podemos deixar que tenham sucesso. Não pode haver um porto seguro para o ódio nos EUA.”

No ano passado, durante as manifestações antirracismo que se espalharam pelo país, indivíduos que eram contra os atos investiram contra ativistas com atropelamentos, armas de fogo, motosserra e até arco e flecha.

Em um dos casos, em junho do ano passado, um homem branco usou o carro para entrar no meio de uma manifestação em Seattle, no estado de Washington. Um dos ativistas, um homem negro, tentou impedi-lo e acabou baleado no braço.

Empunhando a arma, o motorista deixou o carro e correu entre a multidão até se entregar à polícia. Segundo autoridades locais, o manifestante baleado foi levado ao hospital em condições estáveis, e ninguém mais ficou ferido.

Na conclusão de sua fala, Biden lembrou as últimas palavras ditas por Floyd: “Eu não consigo respirar”. “Não podemos deixar que elas morram com ele”, disse o presidente. “Temos a chance de começar uma mudança na trajetória desse país. Espero fazer jus ao seu legado. Esse pode ser um momento de mudança significativa.”


Folha de S. Paulo: Ex-policial Derek Chauvin é condenado pela morte de George Floyd

Agente sufocou Floyd com o joelho por quase 9 minutos; caso gerou onda de protestos contra o racismo

Rafael Balago e Lucas Alonso, Folha de S. Paulo

morte de George Floyd, que gerou forte comoção nos Estados Unidos e deu impulso a uma onda global de combate ao racismo, teve a sua primeira sentença judicial nesta terça (20). O ex-policial Derek Chauvin foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio.

A duração da pena será anunciada em até oito semanas. Chauvin, 45, pode pegar até 40 anos de prisão. Como ele é réu primário, uma condenação do tipo geralmente levaria a 12 anos e meio de detenção, mas os promotores podem pedir a ampliação da condenação, com base em agravantes.

O ex-policial foi preso no ano passado, porém deixou a cadeia após pagar fiança de US$ 1 milhão. A decisão desta terça determinou que ele fosse detido novamente, e Chauvin deixou o tribunal algemado. Ele ainda pode recorrer da decisão.

Pela morte de Floyd, Chauvin foi condenado em três diferentes categorias: homicídio em segundo grau (quando o homicídio não é intencional, mas o réu mata alguém enquanto comete intencionalmente outro crime), homicídio em terceiro grau (quando o réu mata alguém ao tomar uma atitude perigosa sem levar em consideração o risco à vida humana) e homicídio culposo em segundo grau (quando o réu assume o risco de matar alguém ao tomar uma atitude imprudente).

A sentença foi dada por um grupo de 12 jurados, depois de um julgamento que levou três semanas. O grupo estava reunido para elaborar o veredicto desde segunda-feira (19) e permaneceu isolado, debatendo a portas fechadas, sob um rígido esquema de segurança.

Os jurados não foram identificados publicamente, e a Justiça deve proteger suas identidades por tempo indeterminado. O que se sabe a partir dos autos é que o grupo é composto por quatro mulheres brancas, dois homens brancos, três homens negros, uma mulher negra e duas mulheres que se identificam como multirraciais.

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As audiências começaram em 29 de março, e foram ouvidas 45 testemunhas, entre policiais, especialistas médicos e transeuntes que presenciaram a abordagem de George Floyd.https://s.dynad.net/stack/928W5r5IndTfocT3VdUV-AB8UVlc0JbnGWyFZsei5gU.html[ x ]

Ao apresentar seu caso ao longo de mais de duas semanas, os promotores reuniram testemunhas emocionadas, policiais que afirmaram que as ações de Chauvin violaram as políticas do departamento e especialistas médicos que disseram ao tribunal que Floyd, 46, morreu de asfixia.

Chauvin se declarou inocente de todas as acusações e renunciou ao seu direito de testemunhar perante os jurados. O principal advogado de defesa, Eric Nelson, reiterou na segunda que ele havia se comportado como qualquer "policial razoável", argumentando que ele seguiu seu treinamento de 19 anos na força.

Um dos principais pontos levantados pela defesa foi de que Floyd teria usado drogas antes da ação e que isso teria levado à sua morte. Foram encontrados traços de metanfetamina e de fentanil (um tipo de opióide) no corpo de Floyd, e a namorada dele confirmou que o casal era usuário de drogas. Médicos convocados pela acusação, porém, disseram que não há indícios de que Floyd tenha tido uma overdose. Segundo um deles, o homem não seria capaz de falar com os policiais e provavelmente estaria inconsciente se estivesse nessa situação.

Durante os dias de deliberação, os jurados foram mantidos em uma espécie de "fortaleza", uma torre cercada por barricadas e por arame farpado e vigiada o tempo todo por homens da Guarda Nacional.

Nesta terça, ativistas se reuniram perto do tribunal e também no local onde Floyd foi morto. Eles comemoraram a decisão com gritos de "Justiça" e "Vidas Negras Importam".

"Hoje foi um grande dia para o mundo. Para mim, [a decisão] significa que meus amigos e outras pessoas que também perderam entes queridos agora têm uma chance de terem seus casos reabertos", disse Courteney Ross, que era namorada de Floyd, na porta do tribunal, para a CNN.

Em nota divulgada por seu advogado, a família de Floyd disse que a decisão terá efeitos em todo o país e em outras partes do mundo. "Justiça para a América negra é justiça para a América inteira. Esse caso é um ponto de virada na história americana de responsabilização das forças de segurança e envia uma mensagem clara, que esperamos que seja ouvida em todas as cidades."

O presidente Joe Biden telefonou para a família de Floyd e disse estar "muito aliviado" com o resultado, segundo a AFP. Biden acompanhou o anúncio da decisão na Casa Branca e deve se pronunciar sobre o tema ainda nesta noite.https://player.mais.uol.com.br/?mediaId=16917695&onDemand=true

Em março, a família de Floyd fez um acordo com a cidade de Minneapolis para receber US$ 27 milhões como indenização pela morte do ex-segurança.

Entidades que lutam pelos direitos dos negros celebraram a decisão, mas apontam que ainda há muito a se fazer para evitar que mortes como a de Floyd se repitam. "O capítulo sobre Derek Chauvin pode ser fechado, mas a luta por responsabilização da polícia e respeito pelas vidas negras está longe de acabar", disse a Naacp (Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor), em nota.

O governador de Minessota, o democrata Tim Walz, disse que a busca por Justiça para Floyd não termina hoje, e que ela só virá com mudanças reais que previnam casos como o dele.

"Esperamos que o veredicto comece a mostrar que a supremacia branca não vencerá. Mas isso não trará nossos entes amados de volta. Não teremos George Floyd de volta. Sua filha terá de crescer sem ele", disse a Black Lives Matter Global Network Foundation, em comunicado.

A decisão da Justiça foi anunciada menos de 11 meses após a morte de Floyd. Em 25 de maio de 2020, a polícia foi acionada depois que ele usou uma nota falsa de 20 dólares em uma loja de conveniência em Minneapolis —no julgamento, o atendente da loja diria que Floyd parecia não saber que a cédula não era verdadeira.

O vendedor pediu o produto de volta, "mas ele não queria e estava sentado sobre o carro porque estava terrivelmente bêbado e não se controlava", disse o lojista, segundo transcrição do telefonema à polícia.

Os documentos de acusação dizem que os policiais encontraram Floyd em um carro azul estacionado, com dois passageiros. Logo chegaram unidades da polícia, e os policiais tentaram colocar Floyd em uma viatura, mas ele resistiu.

Durante a abordagem policial, ele teve o pescoço prensado no chão por Chauvin, por 8 minutos e 46 segundos, e o vídeo que registrou o momento viralizou nas redes sociais. Chauvin ignorou não só os avisos de Floyd de que não estava conseguindo respirar, como os apelos das testemunhas, que apontavam uso excessivo de força.https://player.mais.uol.com.br/?mediaId=16797063&onDemand=true

Floyd foi socorrido e morreu uma hora depois da abordagem, segundo os dados oficiais.

Os quatro policiais foram demitidos assim que o caso veio à tona. Os outros três policiais envolvidos na abordagem, Thomas Lane, J. Alexander Kueng e Tou Thao, foram indiciados como cúmplices de homicídio e aguardam julgamento.

Segundo a agência de notícias Associated Press, ao longo de 19 anos de carreira, Chauvin foi alvo de quase 20 queixas formais e duas cartas de reprimenda. A maioria foi arquivada.

A morte do ex-segurança gerou uma onda de protestos que se espalhou por dezenas de cidades dos EUA e outras partes do mundo. Floyd foi lembrado em atos na África, na Ásia, na Europa e também no Brasil. O caso virou um símbolo do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

Durante a primeira semana de manifestações, foram registrados incêndios em carros e prédios, saques e conflitos com policiais de costa a costa nos EUA. O mesmo ocorreu em cidade europeias.

Nos últimos dias, com medo de novos confrontos nas ruas após a divulgação do resultado do julgamento, muitas empresas de Minneapolis suspenderam atividades e usaram tábuas para fechar as janelas, enquanto as escolas optaram por aulas remotas.

Apesar de o julgamento de Chauvin avaliar a culpa de apenas um homem, ele é simbólico para os EUA que têm um histórico de assassinatos de jovens negros por policiais. A condenação pode trazer um certo alívio e uma sensação de acerto de contas após a onda de protestos liderados pelo movimento Black Lives Matter que circularam o mundo todo, nos quais a imagem de Floyd tornou-se símbolo da luta antirracista e contra a violência policial no EUA.

Só neste mês de abril, houve mais duas vítimas. Adam Toledo, 13, foi morto em Chicago, baleado por um policial mesmo após levantar as mãos, e Daunte Wright, 20, foi morto a tiros em Minnesota (a menos de 20 km da cena da morte de Floyd), em uma abordagem de trânsito.

Em março, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou um projeto de lei que proíbe táticas policiais controversas e facilita o caminho para ações judiciais contra agentes que violarem direitos de suspeitos. A medida foi apelidada de "Lei George Floyd de Justiça no Policiamento". Em junho do ano passado, os deputados aprovaram medida semelhante com votação mais expressiva —236 a 181—, mas o texto foi barrado pelo Senado, que tinha maioria republicana.


Thiago Amparo: Pós-veredicto, espera-se que a polícia tire o joelho de nossos pescoços

Condenação de Derek Chauvin ensina que apenas justiça nos salvará da morte

Pare e escute o sopro de esperança que está no ar; chama-se justiça. “Nunca esqueça que justiça é como o amor se apresenta em público”, nos ensina um dos grandes oradores negros vivos nos EUA, Cornel West. Justiça não é revanche, é a qualidade de despir a barbaridade de seu manto de autoridade e mostrar que o policial, no caso Derek Chauvin, está nu. Nu de razão, nu de poder legal, nu de respeito pelo próximo, nu da humanidade que partilhamos.

Nesta terça-feira (20), Chauvin, quem num ato de frieza macabra espremeu seu joelho no pescoço de George Floyd por longos nove minutos em maio de 2020, foi condenado por três crimes num veredicto unânime, como a lei determina. Chauvin foi condenado por "second-degree unintentional murder"(homicídio não premeditado, mas praticado com malícia criminosa de matar durante uma lesão corporal grave), por "third-degree murder"(ato perigoso sem consideração pela vida humana) e por "second-degree manslaughter" (homicídio culposo por negligência).

As penas máximas são respectivamente 40, 25 e 10 anos. Por lei, devemos aguardar o sentenciamento por parte do juiz para determinar as penas exatas que Chauvin deverá cumprir, o que acontecerá nas próximas semanas. Com razão, a acusação alega que pesam contra o ex-policial algumas circunstâncias que podem agravar a pena: ato ter sido realizado na presença de crianças, com “crueldade peculiar” e com abuso de sua “posição de autoridade”. A favor de Chauvin recai o fato de ele não ter formalmente histórico criminal.

O aspecto graficamente brutal das imagens do assassinato de Floyd pesou para a sua condenação. Durante o julgamento de Derek Chauvin, que durou três semanas, emergiram novas cenas das câmeras corporais dos policiais que mostram Floyd implorando por sua vida. "Por favor, não atirem em mim. Acabei de perder minha mãe", implorou no dia 25 de maio de 2020. Ele diz que "fará tudo o que [os policiais] disserem".

A defesa alegou que policiamento pode parecer violento, mas é necessário, que Floyd faleceu por complicações de saúde e uso de drogas, e que os transeuntes ameaçaram os policiais. Estas três teses da defesa caíram por terra, em especial pelas dezenas de testemunhas ouvidas, inclusive o chefe da polícia local que desacreditou Chauvin. Sua conduta não corresponde com o treinamento recebido, afirmou. O veredicto de Derek Chauvin, assim, nos ensina a separar policiamento de vandalismo policial e assassinato.

Quando os jurados entraram para confirmar o veredicto, os jurados não estavam sós. Ao seu lado estavam as multidões de negros e brancos que marcharam nas ruas dos EUA e de várias partes do mundo por justiça. Ao seu lado estava a família de Rodney King, que foi vítima de brutalidade policial em Los Angeles em 1992. Ao seu lado estavam todos que lutam por justiça num país que conta para si a história de ser a maior democracia do mundo, uma democracia que já pendurou negros em árvores. Ao lado dos jurados, estávamos todos nós, vivos ou mortos, brancos e negros, que lutamos por justiça.

Não tratemos o caso de George Floyd como episódico. O racismo é perverso posto que, ao menos, se revela horrendo e cotidiano. Durante as três semanas de julgamento de Chauvin, outros dois casos de violência policial ocorreram. Adam Toledo foi morto em Chicago mesmo tendo levantado as mãos para o policial, e Daunte Wright, 20, foi baleado a menos de 20 km de onde Floyd foi assassinado.

Casos de violência policial nos EUA nos ensinam que policiamento brutal ocorre ou na guerra às drogas ineficaz ou no policiamento de banalidades. Floyd foi acusado de usar nota falsa numa loja de conveniência. Breonna Taylor estava dentro de sua casa em Louisville, em março de 2020, quando foi morta pela polícia. Eric Garner vendia cigarro na rua quando foi sufocado pela polícia em Nova York. Michael Brown estaria indo para a casa de sua vó, quando foi alvejado por policiais em Ferguson.

Desde a morte de Floyd, mudanças ocorreram. Um grande número de departamentos policiais proibiu medidas de estrangulamento como tática policial. Uma lei, nomeada Lei George Floyd, passou na Câmara e, com o veredicto, deve andar no Senado. A lei diminui a imunidade legal dos policiais, expande o banco de dados sobre má conduta policial, aumenta a supervisão federal no tema, proíbe técnicas violentas como a que causou a morte de Floyd e torna ilegal perfilhamento racial.

E o Brasil? Polícias brasileiras mataram seis vezes mais do que a dos EUA, só o RJ matou mais do que a polícia americana inteira. Enquanto celebramos que Derek Chauvin foi condenado, lembremos que a investigação do caso de João Pedro, 14, morto antes de Floyd está parada, e que contra Evaldo dos Santos foram disparados 257 tiros por militares —e nenhum deles foi julgado ainda.

Lembremos as palavras da abolicionista americana do século 19, Sarah Moore Grimké. No Brasil e nos EUA, pós-veredicto, o que se pede é que a polícia tire o joelho de nossos pescoços.​

*Thiago Amparo é advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos e coordenador do núcleo de justiça racial e direito na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.


Folha de S. Paulo: EUA veem onda de ofensivas para restringir acesso ao voto em estados republicanos

Diversos estados americanos debatem mudanças que podem tornar pleitos menos democráticos

Marina Dias, Folha de S. Paulo

O comparecimento recorde às urnas na disputa que levou Joe Biden à Casa Branca ainda reverbera e tem gerado uma reação histórica contra o sistema eleitoral americano. Sob o pretexto de responder às falsas alegações de que houve fraude na eleição de 2020, diversos estados estão aprovando leis que restringem o voto e podem tornar os pleitos cada vez menos democráticos nos EUA.

Desde a derrota de Donald Trump, em novembro do ano passado, legisladores republicanos protocolaram centenas de projetos de lei para fazer do ato de votar mais difícil para pessoas negras e vulneráveis, em uma investida vista por especialistas como a mais perigosa desde as chamadas leis Jim Crow, que legalizaram a segregação racial no final do século 19.

Levantamento do Brennan Center for Justice, da Universidade de Nova York, mostra que, de novembro até 24 de março, 361 projetos de leis com restrições ao voto haviam sido apresentados em 47 dos 50 estados americanos. Em 19 de fevereiro, o número era 253, ou seja, um aumento de 43% nas ações em pouco mais de um mês.

A maioria desses projetos visa restringir o voto por correio, prática comum nos EUA e cuja utilização bateu recorde nas eleições do ano passado devido à pandemia —e um dos fatores para a vitória de Biden.

No fim do mês passado, a aprovação de um pacote eleitoral bastante restritivo na Geórgia alarmou especialistas, que detectaram uma espécie de efeito cascata sobre estados geralmente definidores da corrida à Casa Branca, como Texas, Arizona, Flórida e Michigan. Todos eles também avaliam aprovar novas normas eleitorais.

Com 10,6 milhões de habitantes, 32,6% dos quais negros, a Geórgia não votava em um democrata para a Presidência há 28 anos, mas em 2020 deu vitória dupla aos opositores de Trump: elegeu Biden e a cadeira que deu maioria aos democratas no Senado.https://s.dynad.net/stack/928W5r5IndTfocT3VdUV-AB8UVlc0JbnGWyFZsei5gU.html[ x ]

Os resultados mexeram com o humor dos aliados de Trump, que agiram rapidamente. Entre as medidas aprovadas pela Assembleia Legislativa do estado, de maioria republicana, está a exigência de um documento com foto para quem votar por correio, além da redução do tempo e do número de locais de votação onde essas cédulas podem ser depositadas. Houve até mesmo a criminalização do ato de distribuir comida ou bebida para quem estiver nas filas de votação.

Especialista em estatística para políticas públicas da Universidade de Michigan, Jonathan Hanson concorda que essa é a maior onda contra o sistema eleitoral que os EUA já viram desde as leis segregacionistas e que os pleitos têm ficado cada vez menos democráticos em estados republicanos.

“O impacto da aprovação dessas leis será a redução da participação eleitoral”, explica o professor. “A maioria delas é desenhada para tornar o voto mais difícil aos eleitores democratas, que tendem a ser de renda mais baixa, com empregos que não permitem, muitas vezes, dispensa para comparecer às urnas [eleições nos EUA acontecem em dia útil], e são menos propensos a ter documentos com foto.”

Nos EUA, o voto não é obrigatório, e o eleitor pode escolher seu candidato de três maneiras: a mais tradicional é ir à urna no dia da eleição, mas é possível também votar pessoalmente de forma antecipada ou depositar o voto por correio.

A democrata Stacey Abrams, que deve concorrer ao governo da Geórgia em 2022, condena as novas legislações. Ela foi um personagem-chave para estimular o comparecimento de jovens e negros às urnas no ano passado​.

“Esses projetos de lei estão sendo promulgados em todo o país com o objetivo de bloquear eleitores que estão se tornando inconvenientes para o Partido Republicano: minorias, jovens e pobres”, afirmou em entrevista ao Atlanta Journal-Constitution.

Ainda de acordo com dados do Brennan Center for Justice, das centenas de projetos protocolados com restrições ao voto, cinco foram aprovados —um deles o da Geórgia— e outros 55 estão caminhando rapidamente em 24 estados diferentes —29 deles já foram aprovados ao menos pela Câmara estadual e outros 26 passaram por comissões.

Os estados com maior número de projetos de lei desse tipo apresentados foram Texas (29), Geórgia (25) e Arizona (23), todos de tradição republicana mas que têm caminhado à centro-esquerda, com mudanças demográficas que refletem na tendência política de suas populações.

A avaliação de que o acesso ao voto tem ficado cada vez mais difícil em algumas regiões do país é cristalizada em um estudo da Universidade de Washington, liderado pelo cientista político Jake Grumbach. Ele mostra que essas leis restritivas seguem um padrão mais amplo e têm tornado as eleições menos democráticas nas duas últimas décadas, quase que exclusivamente em estados controlados por republicanos.

Grumbach desenvolveu o que nomeou de índice de democracia estadual, para medir a saúde das instituições democráticas em todos os 50 estados americanos entre 2000 e 2018, com base em direitos de voto e liberdades civis. Em um intervalo de -1 a 1, no qual 1 é mais democrático e -1 é menos democrático, estados comandados por republicanos têm ficado cada vez mais próximos do -1, enquanto aqueles controlados por democratas estão perto do 0,5.

Algumas regiões democratas têm investido em leis que ampliem o direito ao voto, mas ainda são minoria, já que cerca de 30 dos 50 estados americanos têm ao menos a assembleia legislativa controlada
por correligionários de Trump.

Não é de hoje que os republicanos tentam dificultar o voto de eleitores negros, mais pobres e mais vulneráveis, mas a batalha deste ano chamou a atenção pelo volume de esforços às vésperas das disputas de meio de mandato, em 2022, e pela tentativa de interferência direta de Biden. O presidente chamou a lei aprovada na Geórgia de “anti-americana” e pediu ao Departamento de Justiça avaliar as mudanças.

O professor Hanson, porém, alerta que Biden não pode fazer muita coisa sozinho —os estados têm autonomia para controlar seus processos eleitorais nos EUA— e diz que, em última instância, somente a Suprema Corte poderia barrar ações caso haja violações à Constituição americana.

“A Justiça pode impedir que pessoas negras sejam proibidas de votar, por exemplo, porque isso é uma violação do direito ao voto. Mas há ainda áreas cinzentas, como sobre o prazo para voto antecipado, em que o estado pode argumentar que é sua atribuição. O sistema eleitoral americano é tão complicado que, na verdade, cabe um pouco de tudo.”

Parte dos republicanos —que compõe a ala mais fiel a Trump— diz que as novas regras vão deixar as eleições mais seguras e acessíveis, mas os quadros mais moderados do partido temem o custo político da investida.

Em vez de tentar conquistar os grupos que votaram em peso em Biden, avaliam, o partido está tentando afastá-los do processo democrático em nome de teorias conspiratórias patrocinadas pelo presidente mais controverso da história americana.


Demétrio Magnoli: Retirada americana do Afeganistão é tão inevitável quanto a do Vietnã

O dia da queda de Cabul marcará um bárbaro retrocesso

No 11 de setembro, exatos 20 anos depois dos atentados jihadistas de 2001, as forças americanas e da Otan deixarão o Afeganistão, encerrando a mais longa guerra da história dos EUA. Quase meio século atrás, em janeiro de 1973, os Acordos de Paris colocaram ponto final no envolvimento militar dos EUA no Vietnã. No 30 de abril de 1975, as forças do Vietnã do Norte capturaram Saigon, capital do Vietnã do Sul. De quanto tempo, depois de setembro, precisará o Taleban para tomar Cabul?

O Afeganistão, cemitério de potências, foi o palco principal do Grande Jogo, a disputa política, diplomática e militar travada entre os impérios britânico e russo, desde 1830 até 1895, pelo controle sobre a Ásia Central. No país montanhoso, dominado pela cordilheira do Hindu Kush, sem saídas marítimas, a URSS travou sua última guerra, de 1979 a 1989, o conflito que empurrou o Império Vermelho ao precipício. O Taleban e a Al Qaeda nasceram das ruínas daquela guerra.

Obama definiu a intervenção americana no Afeganistão como a “guerra inevitável”, por oposição à “guerra estúpida” no Iraque. O 11 de setembro de 2001 não deixava alternativa senão a derrubada do regime do Taleban e a eliminação das forças da Al Qaeda abrigadas no país.

Mas George W. Bush e, especialmente, o cortejo de neoconservadores que comandaram sua política externa, queriam mais. A ambição geopolítica de hegemonia sobre o “coração da Ásia” inspirou a estratégia de “construção da nação” —e, por consequência, uma prolongada ocupação do Afeganistão. A “guerra inevitável” converteu-se numa segunda “guerra estúpida”.

Nos EUA, desde Woodrow Wilson, a realpolitik deve ser coberta pela túnica dos valores e ideais. Prometeu-se aos afegãos democracia, liberdades públicas, a igualdade das mulheres. A Constituição de 2004 garante, ao menos em palavras, os direitos básicos de cidadania. Ironicamente, sob esse ponto de vista, a presença militar americana separa os afegãos do fundamentalismo religioso tirânico. O dia da queda de Cabul marcará um bárbaro retrocesso.

A retirada do Afeganistão é tão inevitável quanto a do Vietnã —e por razões similares. Os americanos cansaram das guerras sem fim e, para eles, sem sentido. Os Acordos de Paris de 1973 foram negociados por todas as partes, inclusive o Vietnã do Sul, e previam um cessar-fogo. Dessa vez, os EUA correram rumo à porta de saída. Trump firmou com o Taleban um acordo de paz bilateral, que excluiu o governo afegão e só previne ataques contra as forças ocidentais. Biden adotou-o quase por inteiro, apenas postergando em quatro meses a retirada.

“Nós ganhamos a guerra e os americanos perderam”, declarou Haji Hekmat, um alto comandante do Taleban, enquanto Biden anunciava a data fatal. O Exército afegão, composto por 175 mil tropas e 150 mil paramilitares, é um tigre de papel. Sem o apoio aéreo fornecido pelos EUA, ninguém acredita que sobreviverá ao choque direto com o Taleban. Vietnã, outra vez.
2021 não é 2001. A Al Qaeda só existe como fiapos, e o Talebã dificilmente voltará a abrigar jihadistas dispostos a atacar os EUA. A retirada justifica-se, à luz da segurança nacional americana. Mas, ao contrário do Vietnã, é um ato de traição.

Na hora da queda de Saigon, em operação frenética, os EUA evacuaram mais de 7.000 pessoas, inclusive milhares de políticos e funcionários sul-vietnamitas. Nos anos seguintes, centenas de milhares embarcaram em frágeis botes para tentar a travessia do golfo da Tailândia e do mar do Sul da China. Mesmo assim, o êxodo abrangeu um setor minoritário associado, direta ou indiretamente, ao antigo regime.

Não haverá helicópteros americanos no dia da queda de Cabul. O povo afegão será deixado para trás, nas mãos dos fanáticos do Taleban e sua polícia religiosa. As mulheres serão trancafiadas em casa e não haverá escola para as meninas.​

*Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


RPD || Leandro Consentino: O ideologismo irresponsável

Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do Governo Bolsonaro, isolando-se da futura governança global. Estados devem reconstruir os organismos internacionais  quando a pandemia tiver fim

O breve governo de Jânio Quadros, inaugurado e concluído em 1961, não costuma trazer grandes lembranças sobre suas iniciativas políticas internas para além das folclóricas proibições do uso de biquinis, lança-perfumes e rinhas de galos. No flanco externo, contudo, o legado é evidente, com a emergência da chamada Política Externa Independente. 

Buscando diversificar os contatos externos e não se alinhar a nenhum dos dois lados da Guerra Fria, evitando a bipolaridade reinante por meio de princípios como a não-intervenção e a auto-determinação dos povos, o novo paradigma de política externa brasileira foi conduzido brilhantemente por nomes como Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas, durante os governos de Quadros e de seu vice, João Goulart.    

Com a ruptura democrática e a ascensão do Regime Militar, a Política Externa Independente foi brevemente substituída por um alinhamento automático aos Estados Unidos e, consequentemente, ao bloco capitalista. O interesse nacional acabou, então, subordinado ao interesse norte-americano, o que ficou patente pelas palavras do então embaixador brasileiro em Washington, Juraci Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.  

O alinhamento, contudo, não durou muito tempo e, na década seguinte, esta postura subserviente cedeu espaço, paulatinamente, para uma espécie de reedição da Política Externa Independente, cujo ápice ocorreria em pleno governo do general Ernesto Geisel. Sob a batuta do então chanceler Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o novo modelo foi batizado de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, apontando exatamente para uma política exterior pautada em uma postura realista e pouco afeita a constrangimentos de natureza ideológica, sobretudo no que diz respeito às negociações econômicas e comerciais. 

O pragmatismo responsável, como ficou mais conhecido, orientava-se pelo significado semântico de seu título e buscava assegurar, sem maiores preocupações com a orientação política dos governos com quem travava acordos, a primazia de nosso interesse, sobretudo em um ambiente internacional desfavorável, atingido pela escalada da Guerra Fria e pelo primeiro choque do petróleo. Os resultados não tardaram e aprofundaram nossos laços com regiões e países bastante diversos, com especial destaque para a África, o Leste Europeu e o Oriente Médio, além de nos garantir importante participação e até protagonismo em organismos internacionais. 

Com o fim do governo Geisel e posteriormente do próprio regime ditatorial, o advento da Nova República não abandonou tais princípios universalistas e legitimou, ao longo dos sucessivos governos democráticos, a inserção do país nos regimes internacionais, sempre pautado pela autonomia quanto às superpotências, em especial os Estados Unidos da América. 

Não obstante seus diversos problemas internos, o Brasil logrou posição de destaque na esfera multilateral, principalmente marcada pela continuidade de sua política externa, independente da disputa entre as forças políticas. As conquistas consolidadas por um governo – seja na esfera econômica, comercial, ambiental ou de direitos humanos - alicerçariam as bases para as conquistas posteriores, ainda que o presidente seguinte fosse de oposição ao anterior.  

Este círculo virtuoso foi bruscamente interrompido com a vitória de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018, e a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável.  

De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional, colocando em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual. Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho. 

Assim sendo, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo.  

Como disse o próprio Azeredo da Silveira: “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Ainda que sem grandes esperanças para o curto prazo, esperemos que essa renovação venha em breve, retirando a viseira ideológica que nos tolda a visão para buscar os reais interesses de nosso país.  

* Leandro Consetino é bacharel em Relações Internacionais, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Insper e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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