EUA
Eliane Cantanhêde: A volta do Tio Sam?
Com Bolsonaro e guinada à direita, volta a influência dos EUA na América do Sul
A decisão do Grupo de Lima de não reconhecer um novo mandato para Nicolás Maduro na Venezuela – aliás, por todos os motivos do mundo – marca a volta firme e determinada da influência direta dos Estados Unidos nos rumos da América Latina, particularmente da América do Sul. Washington, que não integra o grupo, participou ativamente da articulação.
É por essas, e por muitas outras, que o secretário de Estado Mike Pompeo disse em entrevista ao Estado que os EUA estão “entusiasmados” com a guinada à direita na região. Para ser exata: “Estamos muito entusiasmados diante dessa perspectiva e vislumbramos grandes oportunidades”.
Além das questões mais objetivas, comércio, negócios, investimentos e cooperação, essas “oportunidades” incluem uma presença política efetiva de Washington na região, com reflexos óbvios sobre posições conjuntas nos arranjos regionais, como no caso do Grupo de Lima, ou em organismos multilaterais, como a própria ONU.
Pompeo se encontrou com os presidentes Jair Bolsonaro e Iván Duque, da Colômbia, no dia seguinte à posse de Bolsonaro, ou seja, justamente dois dias antes de 12 dos 13 países do Grupo de Lima tomarem a necessária, mas igualmente audaciosa decisão de rejeitar a manutenção de Maduro no poder. Há a versão de que ele inclusive telefonou e manifestou a posição americana no meio da reunião na capital peruana.
Dos 13 países, o único a não subscrever a declaração enxotando Maduro da convivência regional foi o México, onde a eleição de López Obrador foi na contramão da América Latina. Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e de certa forma o Equador aderiram à “direita, volver”, somando-se à Colômbia e Peru, mas o México foi para a esquerda. Não, diga-se, a ponto de pular no naufrágio do “bolivarianismo”.
O papel do Brasil nesse novo ambiente, tão favorável – ou entusiasmante – para os EUA, é decisivo. Não só como o maior, mais populoso e mais rico país da região, mas principalmente pela ascensão de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Ernesto Araújo, com Olavo de Carvalho pairando sobre eles.
Não é trivial ter um chanceler de um país dessas dimensões assumindo publicamente que só Deus pode salvar o Ocidente e seus valores cristãos e, no fim, nomear o presidente Donald Trump como esse Deus tão poderoso. Também não é nada trivial, mas sim pueril, que o presidente eleito mande o próprio filho como a cara e a voz do Brasil em visitas até a membros da Casa Branca em Washington. Os sinais são de alinhamento automático aos EUA e de veneração a Trump.
Registre-se, porém, a cautela com que Pompeo respondeu sobre a conveniência e oportunidade de um alinhamento automático do Brasil aos EUA já. Em vez de fogos e comemorações, disse sóbria e vagamente que os dois países terão “um bom alinhamento nas suas políticas”.
Como bastidor: antes de saber exatamente a que Bolsonaro veio e até onde pode chegar, não convém a Washington um engajamento tão simbólico com o governo que está só começando. Forte aproximação, com certeza, mas o momento é de observação, acompanhamento, para ver como as coisas caminham.
De outro lado, grandes diplomatas e especialistas em política externa lembram que nem no regime militar houve sempre alinhamento automático aos EUA. E mais: alertam que, se Bolsonaro ainda é uma incógnita aqui, Trump vive tempos conturbados lá, perdendo subordinados um atrás do outro, sob acusações de relações heterodoxas com a Rússia e leniência com a Arábia Saudita.
Logo, o melhor é também observar e acompanhar, até por reciprocidade subjetiva. Como diziam nossas velhas tias, “prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”. Taí, elas dariam boas diplomatas.
O Estado de S. Paulo: ‘Ficamos satisfeitos com a oferta da base militar’, diz Pompeo
Secretário de Estado afirma que Estados Unidos estão ‘entusiasmados’ com guinada à direita na América do Sul
Eliane Cantanhêde, de O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O secretário de Estado Mike Pompeo disse que os Estados Unidos estão “muito entusiasmados” com a guinada da América do Sul à direita, liderada pelo governo Jair Bolsonaro no Brasil, e agradeceu particularmente a oferta do novo presidente para a instalação de uma base militar em solo brasileiro no futuro: “Nós ficamos satisfeitos.”
Em entrevista concedida por telefone ao Estado, nesta sexta-feira, 4, Pompeo disse que a recondução de Nicolás Maduro na Venezuela é “inaceitável” e alertou contra a “atividade predatória” da China. Ambos foram temas de Pompeo em sua vinda a Brasília para a posse de Bolsonaro.
É conveniente e apropriado um alinhamento automático do Brasil com os EUA desde já, logo depois da posse de Bolsonaro?
Estou muito satisfeito de ter tido a chance de passar algum tempo com o novo presidente e de nossas equipes terem ainda mais tempo juntas. Tivemos muito bom consenso sobre diferentes questões-chave de interesse não só para as relações entre os dois países, mas também para a região. Então, eu realmente creio que teremos um bom alinhamento nas nossas políticas daqui em diante, inclusive para desenvolver melhor as relações econômicas e comerciais e gerar empregos e oportunidades para os cidadãos no Brasil e nos EUA.
Quando será a visita do presidente Bolsonaro aos EUA?
Nós convidamos o presidente Bolsonaro para visitar Washington e espero que isso possa ocorrer já nessa primavera (que começa em março no hemisfério norte), ainda sem data. O presidente (Trump) espera recebê-lo aqui, por causa dessas coisas que acabei de descrever. Há tantas coisas em que nossos países podem trabalhar juntos, para tornar o mundo um lugar mais seguro e próspero.
Há também expectativa de reunião de Trump com os presidentes de Brasil, Colômbia e Chile, por exemplo? Qual a agenda?
Não sei se há um plano nesse sentido, mas sei que há momentos em que se ruma na mesma direção e essa coleção de países preza pelos mesmos princípios, logo, isso facilita bastante que todos eles trabalhem muito bem com a nossa nação em uma série de temas.
Ou seja, a posse de Bolsonaro lidera uma guinada à direita na região e um movimento de aproximação com Washington?
Exatamente. Estamos muito entusiasmados diante dessa perspectiva e vislumbramos grandes oportunidades.
Que tipo de apoio concreto Brasil e EUA pretendem dar para a Venezuela restaurar a democracia, como discutido com o chanceler Ernesto Araújo?
Não vou abrir o que conversamos privadamente, mas o chanceler e eu, de fato, falamos sobre a importância da restauração da democracia para o povo venezuelano e sobre a decisão da Assembleia Nacional no dia 10 janeiro – minha nossa! a menos de uma semana. O regime Maduro reivindica ocupar a Venezuela por mais um mandato, mas nós não consideramos que a eleição foi justa, achamos que foi uma farsa. Portanto, queremos ter certeza de que não só EUA e Brasil, mas os demais países da região deixem muito, muito claro que isso é inaceitável e que a democracia tem de ser restaurada. Há várias coisas que podem ser feitas e eu espero trabalhar com o nosso novo parceiro aí no Brasil em cada uma delas.
Esse foi seu principal tema na Colômbia, depois do Brasil?
Sim, também falei com o presidente (Iván) Duque (Márquez) e equipe e, além da Colômbia, outros países partilham nossa profunda preocupação com o impacto do regime Maduro na região. São mais de três milhões de pessoas querendo sair da Venezuela, o que joga um enorme peso sobre os outros países e, acima, de tudo prejudica e desvaloriza a vida dos que têm de fugir do regime.
O sr. concorda com a opinião do chanceler Araújo contra o “globalismo”? E com sua avaliação de que só Trump pode impedir uma ameaça liderada pela “China maoísta” contra os valores cristãos do Ocidente?
O presidente Trump tem sido muito, muito claro. Nos lugares onde as instituições globais fazem sentido e trabalham, nós desejamos integrá-las e ajudá-las a avançar, mas estamos reavaliando várias delas para determinar onde essas instituições estão atingindo os objetivos para os quais existem e onde não estão. Assim, podemos desistir de participar, se o trabalho delas vai num caminho contrário aos interesses dos Estados-Nações no mundo, não só nos EUA, mas certamente nos EUA e também nos demais países. Nós acreditamos profundamente que a ideia de soberania nacional, com os países usando sua soberania e seus poderes para trabalhar coletivamente, pode atingir grandes objetivos. E conversei com o ministro de Relações Exteriores sobre isso.
O sr. espera apoio do Brasil na disputa entre EUA e China, maior parceiro comercial brasileiro?
Nós chegamos a uma posição inquestionável de que a China não pode ser liberada para se engajar numa atividade econômica predatória ao redor do mundo. Isso não é do interesse de ninguém. Onde a China se apresenta, no Brasil, Chile, Equador ou qualquer parte, tem de haver competição, transparência e liberdade, então, se é bom para eles, isso é ótimo, companhias vêm de todos os lugares do mundo e competem e companhias americanas competem contra negócios chineses. Mas eles não podem ter permissão para se apresentar nos países e se engajar em práticas que não são abertas, transparentes, de forma a obter benefícios políticos usando esses fatores comerciais. Isso não é apropriado e vocês têm visto que nosso presidente (Trump) está preparado para lutar contra isso, onde quer que, em questões comerciais, a América não encontre práticas justas e recíprocas da China. Isso vale para outras atividades em que a China esteja envolvida.
Bolsonaro anunciou que o Brasil pode sediar uma base militar dos EUA no futuro. Há planos nesse sentido?
Isso é algo que estamos constantemente avaliando aqui nos EUA: qual a melhor forma de ter bons parceiros na região, bons parceiros ao redor do mundo, e onde, quando e como instalar nossas “US forces”. Essa é uma discussão colocada o tempo todo, e nós ficamos satisfeitos com a oferta do presidente Bolsonaro. Eu estou confiante de que vamos continuar as discussões sobre todo um conjunto de temas com o Brasil, enquanto o novo governo vai colocando seus pés no chão. Isso é algo que nós estamos desejando muitíssimo.
Qual a previsão para concluir o acordo bilateral para ativar a Base de Alcântara?
Nós temos muito interesse nessa questão e o Departamento de Estado está negociando esse acordo de salvaguardas tecnológicas com o Brasil, que liberará licenças para lançamentos de veículos espaciais e satélites dos EUA a partir da Base de Alcântara. Estou muito esperançoso de que iremos progredir também nesse tema.
O Globo: Fala de Bolsonaro sobre base americana no Brasil é sinal político
Para especialistas, instalação concreta está distante da realidade, mas declaração mostra maior aproximação com EUA em defesa e rejeição da Unasul
Por Heloísa Traiano, de O Globo
A hipótese de instalação de uma base militar americana no Brasil parece distante da realidade, apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter se dito anteontem aberto a negociações com os EUA sobre o tema em um “futuro” não determinado. Para analistas, no entanto, a declaração indica um novo alinhamento na área de defesa entre Brasília e Washington, em contraposição aos governos do PT, que buscaram articular na agora abandonada União de Nações Sul-Americanas (Unasul) uma arquitetura contrária à presença militar americana. A tendência acompanha outra, de inclusão da região nos radares de China e Rússia, após anos de reduzida atenção da Casa Branca.
Para David Magalhães, professor de Relações Internacionais da FAAP e da PUC-SP e especialista em defesa, a ideia levantada pelo presidente parece ter relação com a vontade do governo recém-empossado de avançar nas negociações para o uso pelos EUA do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, que haviam sido retomadas pelo governo Temer em junho último. Em novembro, o hoje ministro da Defesa de Bolsonaro, general Fernando Azevedo e Silva, cogitara firmar convênios para que outros países pudessem lançar satélites a partir da base, embora não tenha se referido especificamente aos Estados Unidos.
— Me parece que, se houvesse acordo, ocorreria dentro de negociação mais ampla da base de Alcântara. Mas poderia haver também conversas à parte — diz Magalhães.
Hoje não há bases militares dos EUA ativas na América do Sul. A última foi desativada em 2009 no porto equatoriano de Manta, depois da negativa do então presidente Rafael Correa de renovar o seu uso. No Brasil, a base em Natal que serviu aos americanos na Segunda Guerra Mundial deixou de ser usada pelos americanos em 1945.
Bases informais
Magalhães ressalta que os EUA vêm costurando acordos de defesa de outras modalidades com países sul-americanos. O próprio Bolsonaro disse na entrevista ao SBT que “a questão física pode ser simbólica, porque o poderio das Forças Armadas americanas, chinesas e russas alcança o mundo todo”.
—A ausência de bases formais na região não quer dizer que os americanos não estejam presentes militarmente. A estratégia tem sido estabelecer bases informais, como vemos em Peru e Argentina, com escritórios para que as forças americanas tenham contato direto com governos — diz Magalhães.
Segundo Matias Spektor, da FGV em São Paulo, uma base se traduziria em altos custos financeiros. Para justificá-los, seria necessário um cenário no qual o governo americano tentasse uma intervenção militar ou defender a região de outra potência. Na entrevista, Bolsonaro disse: “Sabemos a intenção da ditadura do Maduro, e o Brasil tem que se preocupar”.
— Bolsonaro tenta se consolidar como o principal aliado de Trump na América Latina, enquanto os EUA dão sinais de que a região voltou ao radar por conta do aumento das presenças chinesa e russa. Uma base transformaria de vez a dinâmica regional. Não há outro país latino que vá neste sentido. Criaria suspeitas em relação ao Brasil entre os vizinhos, por um lado, mas, por outro, transformaria o Brasil em aliado dos EUA — diz Spektor.
Magalhães argumenta que o novo presidente parece tentar mostrar rejeição ao legado do governo Lula, no qual foi acelerada a articulação da Unasul, que tem o seu Conselho de Defesa. Hoje paralisada, a organização não tem secretário-geral.
— É um movimento espalhado de oposição ao “legado lulopetista”. E os americanos percebem a mudança no temperamento político da região.
Pagador de promessas: Merval Pereira
Os EUA, liberal em relação à venda e ao porte de armas, são um país violento, com a maior população carcerária do mundo
O anúncio do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que editará um decreto facilitando a posse de armas no país é daquelas medidas suscetíveis de causar polêmica, mas muito pouco tem a ver com uma política de segurança pública, que deve ir muito além de uma visão pessoal ou de grupos.
O futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, sugeriu, na reunião de primeiro escalão do futuro governo para tratar dos 100 primeiros dias, que essa fosse uma das primeiras medidas a serem anunciadas, pagamento de promessas de campanha para um nicho importante do eleitorado que fez Bolsonaro presidente.
Tem a ver também com um conceito de segurança pessoal que é muito caro a um grupo de cidadãos da classe média, especialmente os das regiões Sul e Centro-Oeste do país, e dos moradores das grandes cidades.
Mas dar posse de arma não é a mesma coisa de liberar o porte de arma. O porte obedece a uma série de exigências que inclui o treinamento em clubes de tiro. A prioridade à posse de arma tem um simbolismo, em busca um efeito dissuasório, mas a medida liberalizadora permitirá apenas guardar armas em casa, não as portar em público.
Os defensores da medida, como o general Augusto Heleno, futuro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, consideram que seu efeito dissuasório pode ser efetivo, reduzindo os roubos em residências. Ele alega que a política de desarmamento não tem tido efeito na redução de crimes, pois o país bate o recorde de mortes violentas anuais.
A medida tem a ver também com reivindicações de certos grupos, como colecionadores, de obter com menos problemas burocráticos a permissão para ter uma arma. Mas a lei continuará a exigir antecedentes negativos, aptidão técnica e higidez mental, nisso não se pretende mexer, e também a demonstração da efetiva necessidade. O decreto apenas esclarecerá melhor o que seria isso, não deixando a decisão ao arbítrio do agente público.
Moradores de regiões violentas das cidades poderão ser autorizados a possuir uma arma em casa, por exemplo, assim como os que vivem em áreas rurais, mas o decreto ainda está em elaboração.
O propósito é flexibilizar as normas, sem ter que mudar a legislação, ampliando o acesso à posse de armas aos cidadãos comuns, sem antecedentes criminais.
Um dos objetivos é desburocratizar as exigências legais, tornando definitiva, por exemplo, a permissão para ter uma arma em casa, sem que seja preciso renovar a licença a cada cinco anos. Um dos argumentos dos que defendem a liberalização da posse de armas é que os crimes em abundância que ocorrem no país, em sua maioria, são cometidos com armas roubadas, às vezes com armamentos exclusivos das Forças Armadas.
Não seria, portanto, a liberalização das armas que provocaria maior número de crimes. Ao contrário, a medida, além de dar uma sensação de maior segurança aos cidadãos que vivem em áreas perigosas, teria o efeito de dificultar a ação dos bandidos, que passariam a saber que alguém armado pode reagir ao assalto de sua residência.
Bolsonaro costuma dar o exemplo dos Estados Unidos que, muito liberal com relação à venda e ao porte de armas, têm índices de criminalidade baixos se comparados com os do Brasil. No entanto, os números são enganosos, pois os EUA são um país violento, com a maior população carcerária do mundo. E os assassinatos em massa que vemos frequentemente certamente são decorrentes dessa liberalização.
Em Nova York, por exemplo, onde a legislação local não permite portar armas em público, o índice de criminalidade tem sido reduzido. O baixo índice de criminalidade é fruto de uma política nacional de repressão severa, o que não indica que o país não seja violento.
Os índices de criminalidade nos Estados Unidos são maiores que os dos países ocidentais mais avançados, como na Europa e no Japão. Na América Latina estão 18 dos 20 países com maiores índices de homicídios, e 43 das 50 cidades mais violentas do mundo. Por volta de 75% de todos os homicídios na região são relacionados a arma de fogo, enquanto o índice mundial é de 40%.
El País: EUA e China acertam trégua de 90 dias em guerra comercial e ganham tempo para novo pacto
Trump e Xi Jinping chegaram ao acordo, que entra em vigor a partir de 1 de janeiro, numa reunião de duas horas e meia após encerramento do G20 em Buenos Aires
Um compromisso que não termina com a disputa, mas que faz ganhar tempo. China e Estados Unidos chegaram neste sábado a um acordo para não impor novas tarifas comerciais a partir de 1.o de janeiro. O presidente do gigante asiático, Xi Jinping, e o da potência norte-americana, Donald Trump, comprometeram-se a continuar as negociações para buscar uma solução à guerra comercial entre os dois maiores blocos econômicos mundiais, segundo informaram os veículos estatais chineses e a Casa Branca. Mas o compromisso é estritamente temporário – uma trégua de 90 dias – e não inclui nenhuma medida mais relevante.
O pacto foi alcançado numa reunião de duas horas e meia que os dois mandatários realizaram em Buenos Aires, após o encerramento da cúpula do G20, e que se transformou na única notícia de peso da última jornada do encontro: na declaração final da reunião de chefes de Estado e Governo das 20 maiores economias do planeta, os líderes haviam reconhecido os “problemas do comércio” mundial e se abstiveram – por vontade dos EUA – de condenar o protecionismo, um dos sinais de identidade da Administração Trump. O texto reconhecia também que o comércio multilateral havia “falhado em seus objetivos” e destacava a necessidade de reformar a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Washington deu um passo além em seu ataque contra a China: informou que a reunião entre Trump e o presidente argentino, Mauricio Macri, tinha se concentrado na “atividade econômica predatória chinesa”. Havia sido num breve comunicado assinado pela porta-voz de Trump, Sarah Sanders. Mas a palavra “predatória” (“predatory Chinese economic activity”, no texto completo em inglês) caiu como uma bomba no país anfitrião, que esperava que Buenos Aires fosse o lugar escolhido para que ambos os países firmassem o “cachimbo da paz” ou que pelo menos afastassem suas diferenças. No final, acabou sendo assim graças à reunião de última hora.
Tarifas de 10%
Em declarações aos jornais na capital argentina, o vice-ministro chinês de Comércio, Wang Shouwen, explicou que as tarifas existentes continuarão em 10% e que não serão impostas tarifas a produtos novos. Ambas as partes seguirão as negociações para encontrar uma solução que permita retirar essas alíquotas. Se até lá não conseguirem chegar a um consenso, as tarifas subirão para até 25% – o valor que se esperava que entrasse em vigor a partir de 1º de janeiro.
Em nota, a Casa Branca confirmou o acordo de trégua. Segundo Washington, Pequim comprará “uma quantidade ainda não decidida, mas muito substancial, de produtos agrícolas, energéticos, industriais e outros dos Estados Unidos para reduzir o desequilíbrio comercial entre nossos dois países”. No caso dos produtos agrícolas – um dos objetivos buscados pela potência norte-americana –, as compras começarão de imediato. Trump e Xi, de acordo com a Casa Branca, “acordaram começar imediatamente negociações sobre mudanças estruturais com respeito à transferência forçosa de tecnologia, proteção da propriedade intelectual, barreiras não alfandegárias, pirataria e intrusões informáticas, serviços e agricultura”.
O objetivo é que essas negociações tenham conseguido fechar um acordo para dentro de 90 dias. “Se no final desse período as partes forem incapazes de chegar a um pacto, as tarifas que se encontram a 10% subirão para 25%”, confirma o comunicado dos EUA. Antes da reunião com Xi em Buenos Aires, Trump ameaçava elevar a 25% em 1º de janeiro as tarifas de 10% que os EUA agora impõem sobre 200 bilhões de dólares de produtos chineses. Esse passo preocupava não só a China, mas também o mundo todo: teria sido um passo de gigante, de consequências incalculáveis na escalada entre as duas maiores potências do globo. Os mercados financeiros devem respirar um pouco mais tranquilos na próxima segunda-feira.
Incluído nas conversações entre Xi e Trump, revelou a Casa Branca, há um pacto pelo qual a China, “num maravilhoso gesto humanitário”, designará o fentanil como uma substância controlada e castigará “com a maior pena de acordo com a lei” quem vender essa substância aos EUA. O fentanil é um analgésico entre 50 e 100 vezes mais potente que a morfina, cujo uso foi vinculado ao aumento de mortes por overdoses de opiáceos nos EUA. A substância entra nesse país sobretudo pelo tráfico de grupos mafiosos na China e no México.
O ministro chinês de Relações Exteriores, Wang Yi, confirmou em entrevista coletiva que Pequim acordou comprar mais bens norte-americanos para tentar reduzir o desequilíbrio na balança comercial. O ministro descreveu a conversa entre Xi e Trump como “amistosa e sincera”. Ambos, segundo Wang, concordaram que a China e os EUA “podem e devem” garantir o sucesso de suas relações.
Rubens Barbosa: Nacionalismo, patriotismo e interesse nacional
Vivemos momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional
As comemorações pelo centenário do fim da Guerra de 1914-18, em Paris, reforçaram minha convicção de que estamos vivendo tempos estranhos e um momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional, com consequências para todos os países.
Foi curioso ver pequenos detalhes protocolares desencadearem reações políticas, como no caso da Sérvia, que se sentiu insultada pela baixa posição que seu presidente ocupou em relação ao Kosovo, colocado mais próximo ao presidente francês pelo cerimonial. Afinal, foi em Sarajevo que tudo começou. Notei a ausência do Brasil, convidado pela primeira vez para um encontro dessa magnitude, que seria uma oportunidade para mostrar que nosso país existe, tem presidente e foi parte das duas guerras (quando estava como embaixador em Londres, participei com o presidente FHC das celebrações do Dia da Vitória da 2.ª Grande Guerra, a de 1939-45, com o Brasil sendo convidado pela primeira vez).
Todos puderam assistir à deliciosa coreografia do poder entre Putin e Trump, que chegaram em limusines cercadas de seguranças, enquanto os outros 82 chefes de Estado e de governo saíram juntos do Palácio Élysée em ônibus especiais. Os líderes norte-americano e russo esperaram, escondidos, que todos tomassem assento para assumirem seus lugares ao lado do presidente Macron. Putin, mais esperto, esperou para chegar por último...
O presidente Macron, em discurso na solenidade, em vez de saudar a presença dos líderes mundiais, de ressaltar a paz e a superação da guerra fria entre EUA e Rússia, resolveu chamar a atenção para as ameaças atuais que põem a estabilidade internacional de novo em perigo, põem em risco a democracia e dividem os países ocidentais. Observou que os pilares que sustentam os regimes democráticos são mais importantes que a unidade transatlântica e nesse contexto mencionou que o patriotismo é mais importante que o nacionalismo. Essa afirmação tinha endereço direto não só aos grupos de direita radical na França, como, de maneira pouco sutil, era uma crítica direta aos que dizem colocar os interesses de seus países em primeiro lugar e a consequência disso para os outros pouco importa. Ao qualificar o nacionalismo como traição ao patriotismo, exagerou, porque o termo na França é associado à extrema direita, enquanto em outros países a expressão se renova e tem conotação valorizada, como, por exemplo, na Irlanda e no Canadá.
A tensão estava criada. Não era a primeira vez que Macron, depois de ter sido um amigo muito próximo, divergia publicamente do presidente dos EUA. As boas relações pessoais se deterioraram diante das decisões de Washington de abandonar o Acordo de Paris sobre clima e pelo término do programa nuclear com o Irã. E também por estimular o protecionismo (ameaça de guerra comercial com a China), criticar o multilateralismo e tornar difícil a solução de dois Estados para o conflito Israel-palestinos.
Não foi surpresa a reação de Trump ao anfitrião, mas sim sua rapidez e virulência. Na tarde do dia 11, Macron organizou o Fórum da Paz, com o objetivo de defender o multilateralismo, um dos pilares da nova ordem internacional depois de 1945 com o surgimento da ONU e do Gatt/OMC, que os EUA ajudaram poderosamente a criar e agora procuram solapar. Todos os chefes de Estado compareceram, com exceção de Trump, que preferiu visitar sozinho cemitério militar americano na França. Além disso, desde a véspera havia iniciado uma troca de tuítes virulentos com Macron, trazendo a público a crescente rivalidade entre os dois líderes num momento de aumento das tensões transatlânticas. Apoio de Trump aos movimentos populistas-nacionalistas na Europa, despesas militares na Otan, criação de exército europeu, proposto por Macron-Merkel, e até ameaça velada à exportação de vinhos franceses para os EUA entraram na inusitada altercação presidencial. Ficou evidenciado o divórcio entre Trump e a Europa, em especial com as instituições supranacionais e multilaterais.
Cabem alguns comentários sobre o que se falou durante a cerimônia de Paris. A crítica de Macron ao nacionalismo está associada à direita populista de Marine le Pen, que, sob o pretexto de defender a nação, defende posições radicais contra o movimento de unidade europeia. Por outro lado, Trump não está preocupado com a unidade da Europa (agora ameaçada com a saída da Grã-Bretanha), mas sim com a China, e não quer continuar com os altos gastos militares na Otan. Por outro lado, talvez Macron não soubesse, mas a palavra patriotismo é pouco usada nos EUA, talvez por motivos históricos, além de ter ali um sentido algo pejorativo. Ao elogiar o patriotismo – com significado positivo nos países de língua latina –, Macron fez Trump se lembrar de frase atribuída a Samuel Johnson, “o patriotismo é o ultimo refúgio do canalha”. A oposição às instituições supranacionais e multilaterais representam um viés característico da superpotência norte-americana, agora exacerbado por Trump.
Qualquer semelhança disso tudo com alguns aspectos da discussão hoje no Brasil, em especial depois da eleição e da escolha do futuro ministro do exterior, não é mera coincidência.
A cerimônia parisiense mostra igualmente como é perigoso para qualquer país, nos tempos incertos que vivemos, declarar alinhamentos e afinidades definitivas com base em laços pessoais. Como aprendi nos meus primeiros anos no Itamaraty, os países (e os líderes) não têm amigos, têm interesses. O realismo e o pragmatismo na ação diplomática e comercial deverão prevalecer sobre vagos anseios conceituais, como o antiglobalismo e a defesa do Ocidente, de inspiração trumpista, bem assim sobre atitudes ideológicas em relação a China.
O interesse nacional, acima de países, grupos ou partidos, é a prioridade da política externa.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
Ascânio Seleme: Exemplo para o Brasil
A tentativa de explodir bombas nas casas dos ex-presidentes Bill Clinton e Barack Obama e na sede da rede de TV de notícias CNN é um bom exemplo para o Brasil no limiar de inaugurar um governo de extrema direita. Terrorismo não é novidade no cotidiano dos Estados Unidos. Atentados praticados por inimigos externos, como os ataques de 11 de setembro de 2001, ou por grupos de casa, como a explosão de Oklahoma City, são objeto de permanente e obsessiva vigilância da Inteligência e das forças policiais americanas.
Os atentados malsucedidos de ontem, contudo, têm outra característica. Foram fomentados, mesmo que indiretamente, contra pessoas e instituições sistematicamente ofendidas pelo presidente Donald Trump. Não falha um dia, desde que assumiu a Casa Branca Trump ataca sem trégua a imprensa, e sobremaneira a rede CNN e o jornal “The New York Times”. Os membros do Partido Democrata, dos ex-presidentes Clinton e Obama, também são objeto da fúria presidencial.
Trump chegou a dizer que os democratas apoiavam e poderiam estar por trás da caravana de refugiados centro-americanos que há dez dias marcham em direção à fronteira dos Estados Unidos. Há dois dias, a polícia explodiu um pacote-bomba enviado para a casa do bilionário George Soros. No início deste mês, Trump acusara Soros de financiar manifestantes que se mobilizaram contra a indicação do conservador Brett Kavanaugh para Suprema Corte.
Trump é um fomentador de ódio entre os americanos. Os que se deixam convencer por sua retórica podem se tornar potenciais agressores de “inimigos” e, no limite, terroristas amadores capazes de fazer barulho como o que se ouviu ontem e na véspera. O pior inimigo dos Estados Unidos pode ser o seu principal líder, se levadas em consideração as suas seguidas manifestações de onde emanam rancor e espírito de vingança.
No Brasil, poderemos viver experiência que tem tudo para ser parecida. O candidato Jair Bolsonaro, líder das pesquisas e que está muito próximo de ser eleito presidente da República, destila seu ódio aos adversários, que não vê como competidores, mas como inimigos a serem varridos do mapa. Foi o que ele disse naquele discurso de domingo, endereçado aos manifestantes a favor da sua candidatura concentrados na Avenida Paulista.
Bolsonaro disse que “os vermelhos” (referindo-se ao PT e demais partidos de esquerda) se enquadram ou serão presos ou banidos do Brasil. Uma falácia, claro, mas muito perigosa. Ainda no primeiro turno, em Rio Branco, o candidato empunhou um tripé de câmera de vídeo como se fosse um arma e, apontando para frente, disse que era hora de “fuzilar a petralhada” do Acre. Sinal mais claro não há. Bolsonaro, eleito, terá de imediatamente moderar o seu discurso ou acabará criando monstros como aqueles que ontem tentaram explodir bombas em Nova York.
Não começou no domingo, nem no primeiro turno, Bolsonaro tem usado o discurso do ódio muito antes de se lançar candidato a presidente da República. Era olhado como figura exótica, ultrapassada, que não representava perigo para um país consolidado e de instituições sólidas. Muito mais do que uma vez, o deputado enalteceu a ditadura, a tortura e sempre banalizou a morte dos inimigos. Políticos ou militantes de esquerda, bandidos ou traficantes, são todos iguais aos olhos do capitão candidato.
Do outro lado da cerca, o PT também estimulou o ódio a adversários ao longo dos anos finais de seus quatro governos, sobretudo durante o período em que se encaminhou o impeachment da ex-presidente Dilma e a prisão do ex-presidente Lula. Os que defendiam a saída da primeira e o encarceramento do segundo eram chamados de fascistas, nazistas, entreguistas. Não escapou ninguém. Juízes, políticos, partidos, jornalistas, não importa, bastava não condenar o impeachment e a prisão para ser objeto da ira petista.
O Brasil piorou muito ao longo dos últimos anos. E tem tudo para caminhar ainda mais rapidamente para o fundo do poço. Não dá para imaginar o futuro governo apenas pela pauta econômica ou social. Estas agradam a uns e desagradam a outros. A qualquer uma o Brasil sobrevive, doído, mas íntegro. O problema é quando se alcança o nível da intolerância, onde adversários passam a ser inimigos. E inimigos que precisam ser eliminados.
P.S. O Brasil, cada vez menos inteligente e mais mal-humorado, ficou pior ontem. Morreu o jornalista Raymundo Costa.
Míriam Leitão: O que pesa sobre a lira turca
Brasil tem vulnerabilidades nas contas públicas, e risco da lira turca é virar uma crise em dominó que afete outros emergentes
Agora é o momento em que as autoridades econômicas vão lembrar que o Brasil não é a Turquia. E não é mesmo, há várias diferenças entre os dois países. A Turquia enfrenta os déficits gêmeos — fiscal e externo — e está sendo hostilizada pelo governo Trump. O Brasil tem uma boa situação externa e uma grande fragilidade fiscal. A questão é que quando há uma crise em país emergente todos os outros recebem olhares de desconfiança. O ideal era não sermos vulneráveis, mas somos.
Desde abril, quando começou este período de aversão a risco que pegou Argentina, Brasil e outros, a Turquia já estava com problemas. O real se desvalorizou, o Banco Central teve que vender dólares e fazer operações de oferta de garantia contra risco cambial. Logo depois a volatilidade foi controlada. Mas com a lira turca a situação continuou piorando. A Turquia tem problemas parecidos com os da Argentina: inflação alta, em torno de 16%, déficit nas contas públicas e uma grande exposição cambial.
O endividamento bruto do governo turco é baixo, de apenas 28% do PIB, segundo o FMI. Mas o problema é a dívida privada extremamente elevada que chega a 170% do PIB. Para se ter uma ideia, segundo a economista Monica de Bolle, diretora de estudos de mercados emergentes da SAIS/Johns Hopkins, nos EUA, as empresas privadas turcas têm US$ 66 bilhões em papéis para rolar nos próximos 12 meses, e os bancos, US$ 76 bilhões. As reservas cambiais turcas, que chegam a US$ 100 bilhões, ficam pequenas diante de um serviço de dívida tão alto e com prazos tão curtos.
— A Turquia precisa desesperadamente de entrada de dólares, e o que está acontecendo é justamente o contrário. A briga com Trump dificulta ainda mais as coisas, porque os EUA têm poder de veto no FMI. O país não tem a quem pedir ajuda, nem ao Fundo. Além disso, nos anos 2000 a Turquia recorreu ao FMI, mas não cumpriu nada do que estava no acordo. Portanto, o histórico não é bom — explica Monica de Bolle, que trabalhava no FMI nesse período.
A Turquia vive também uma profunda crise institucional. O presidente Erdogan fez um plebiscito para aumentar seus próprios poderes e o país se tornar presidencialista. Houve uma tentativa de golpe e a resposta dele foi uma violenta repressão. A prisão de um religioso americano, que está na Turquia, desencadeou a reação dos EUA. Trump incluiu o país na lista suja do comércio. Os turcos já têm déficit comercial com os americanos e agora podem ter parte de suas exportações, principalmente de aço e alumínio, barradas pelas sobretaxas impostas pelo governo Trump.
Mônica de Bolle explica que a crise tem um ingrediente ainda mais delicado que é o conflito com a própria União Europeia. Os países europeus têm todo o interesse em evitar a crise turca porque a entrada de imigrantes se dá pela Turquia. Ou seja, de novo EUA e UE estão com visões diferentes diante de um problema. A Alemanha particularmente tem boas e densas relações com a Turquia.
A política econômica do governo Erdogan, executada pelo próprio genro, nomeado ministro da Fazenda, é de crédito farto para estimular consumo e aumento do gasto público. Soa familiar? Mesmo com a desvalorização da lira turca, o Banco Central não sobe os juros porque Erdogan não deixa. Mas estimular consumo, via crédito, no meio de uma crise cambial, é como jogar gasolina no fogo. Apesar de o país ter crescido forte no ano passado, 7%, o desemprego está em 10%. O quadro é de desajuste e desequilíbrio.
A realidade da Turquia é bem diferente da nossa, mas o Brasil tem seus próprios riscos. O país enfrenta uma eleição de extrema incerteza e está no quinto ano consecutivo de déficit primário com a dívida pública crescendo. A dívida da Turquia é em grande parte junto a bancos europeus e por isso teme-se o contágio de outros países. Nossa dívida é interna, com uma parte muito pequena dolarizada. O Brasil não tem déficit importante em suas contas externas e tem reservas cambiais altas.
A inflação já foi reduzida e os juros caíram fortemente nos últimos dois anos. A Argentina ontem mesmo elevou de 40% para 45% a taxa de juros. Nosso maior desequilíbrio macroeconômico é o fiscal. Mas quando há um ambiente de crise em dominó, os fluxos de capitais se invertem e vão em direção a portos mais seguros. O risco da lira é virar uma crise em dominó.
O Estado de S. Paulo: Após cúpula histórica, Trump diz que interromperá ‘jogos de guerra’ na Península Coreana
Em entrevista coletiva, o presidente americano afirmou que Kim iniciou um processo de destruição de uma grande instalação de testes de mísseis, mas não especificou sua localização
WASHINGTON - Em entrevista coletiva realizada em Cingapura nesta terça-feira, 12, após a histórica cúpula com o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou que seu país irá interromper "seus jogos de guerra" na Península Coreana. Os dois se reuniram para discutir a desnuclearização da região, no primeiro encontro já realizado entre líderes dos dois países. Ao final da reunião, eles se sentaram em frente a jornalistas e assinaram um documento de cooperação.
+ Após encontro histórico, Trump e Kim Jong-un assinam documento de cooperação
+ Primeira selfie de Kim é divulgada pelo chanceler de Cingapura
+ Kim aceita convite de Trump para visitar EUA
Trump destacou que encerrará as manobras militares conjuntas com a Coreia do Sul, mas que ainda não tem previsão para reduzir sua ampla presença militar no país. A suspensão dessas atividades culminará em uma "grande economia" para os EUA, de acordo com o líder americano, que qualificou esses exercícios como "provocativos". "Enquanto negociamos um acordo global, muito completo, acredito que não é apropriado realizar manobras militares."
+ 1866: um marco na hostilidade entre americanos e coreanos
+ Cada passo do encontro entre Trump e Kim será ensaiado por protocolo
O líder americano ressaltou que convidará Kim a visitar a Casa Branca "no momento apropriado" e que o norte-coreano já aceitou o convite. Além disso, afirmou que está aberto a visitar Kim um dia em Pyongyang.
O encontro de Donald Trump e Kim Jong-un em Cingapura
O americano também disse que Kim iniciou um processo de destruição de uma grande instalação de testes de mísseis, mas não especificou sua localização. Ele afirmou que os detalhes sobre este local não estão na declaração conjunta que os líderes assinaram após quase cinco horas de conversas. Para Trump, a destruição desta instalação é uma "grande coisa".
O republicano destacou que Pyongyang tem um "arsenal significativo" de armas nucleares, e que o encontro com Kim deveria ter sido realizado há cinco anos. O presidente americano ressaltou ainda os esforços feitos para pressionar Kim a se livrar desses armamentos.
As negociações com o líder norte-coreano foram "francas, diretas e produtivas", segundo o americano, que acrescentou que abordou a questão dos direitos humanos durante o encontro histórico. Além disso, ele garantiu que as sanções contra Pyongyang prosseguem neste momento. "As sanções serão suspensas quando tivermos certeza de que as armas nucleares não serão mais eficazes", disse.
Trump afirmou ainda que espera que a Guerra da Coreia termine em breve. "Agora podemos ter a esperança de que termine em breve", disse ele, ao recordar que as hostilidades do conflito (1950-1953) terminaram com a assinatura de um armistício e não um tratado de paz.
O republicano afirmou que os EUA não têm muitas informações obtidas por órgãos de inteligência na Coreia do Norte, mas "temos o suficiente para saber que o que eles têm é muito significativo". Trump disse que Kim entende o que Washington tem pressionado durante as conversas e acredita que ele "fará essas coisas".
Ao fim da entrevista coletiva, Trump destacou que "provavelmente precisaremos de outro encontro", ou ao menos uma segunda reunião, com a Coreia do Norte enquanto discutem o compromisso de Kim com a desnuclearização de seu país.
Ainda assim, o líder americano disse que ele e Kim conseguiram abordar mais assuntos do que o esperado durante a cúpula. "Fomos muito mais longe do que eu poderia imaginar."
G-7
Trump afirmou que a reunião do G-7 realizada em Quebec foi boa, apesar das disputas, mas advertiu que as declarações do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, custarão caro ao seu país. "Tive uma boa reunião com o G-7", disse o americano, ao rebater os comentários de que o encontro foi um fracasso. As declarações do premiê custarão "muito dinheiro" ao Canadá, completou.
Reações
O presidente sul-coreano, Moon Jae-in, qualificou o acordo assinado em Cingapura como um "acontecimento histórico que acaba com a Guerra Fria". "O acordo de Sentosa de 12 de junho ficará registrado como um evento histórico que ajudou a derrubar o último legado que restava da Guerra Fria na Terra", declarou ele após a reunião entre Trump e Kim.
O governo da China, maior aliado de Pyongyang, celebrou a cúpula e fez um novo apelo à "desnuclearização total" de seu vizinho. "Hoje, o fato de que os principais dirigentes dos dois países se sentam juntos para negociações de igual para igual tem um significado importante e constitui o começo de uma nova história", afirmou o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.
"A China celebra e dá seu apoio", declarou o ministro ao ser questionado se o país sentia estar marginalizado pela aproximação entre Washington e Pyongyang. "É um objetivo que esperávamos e pelo qual trabalhamos."
Wang defendeu uma "desnuclearização total", tal como exige o governo americano. "Ao mesmo tempo é necessário um processo de paz para a península, para resolver as preocupações razoáveis da Coreia do Norte em termos de segurança", afirmou o ministro chinês. "Ninguém pode duvidar do papel importante e único desempenhado pela China. E este papel continuará", prometeu.
A União Europeia (UE) qualificou a cúpula como "passo crucial", que envia um "claro sinal" em direção à desnuclearização. "Esta reunião foi um passo crucial e necessário para aproveitar os avanços positivos obtidos com as relações intercoreanas" até esta data, indicou a chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini. / EFE, AP e AFP
Demétrio Magnoli: Um mundo que desaparece
EUA subordinaram sua política para o Oriente Médio aos interesses geopolíticos de Israel (ou melhor, à linha extremista do governo israelense) e da monarquia saudita
‘O mais poderoso preditor único da posição do presidente em qualquer tema é a posição de Obama. Ele faz o exato oposto do que Obama fez.” O guia de análise, formulado por Michael Hayden, ex-diretor da CIA, logo após a decisão da Casa Branca de abandonar o acordo nuclear com o Irã, está essencialmente correto. Mas não se trata apenas de Obama: Donald Trump rompe com uma tradição mais antiga, cujas raízes encontram-se no imediato pós-guerra. Nas palavras do próprio Hayden: “Quase todos os presidentes americanos disseram: ‘No fim das contas, quanto mais comércio livre, melhor para os EUA; no fim, a imigração é positiva para os EUA; no fim, os EUA se fortalecem por terem aliados fortes’. Agora, temos um presidente que se opõe ao livre comércio, enxerga os imigrantes como ameaça e vê os aliados como um fardo.”
A ruptura com o acordo nuclear e a inauguração da embaixada americana em Jerusalém, dois gestos conexos separados por apenas uma semana, formam um grande ato de abdicação de influência. Os EUA subordinaram sua política para o Oriente Médio aos interesses geopolíticos de Israel (ou, dito melhor, à linha extremista do atual governo israelense) e da monarquia saudita, renunciando à interlocução com quase todo o mundo árabe e, ainda, com a Turquia.
Livres da teia de compromissos do acordo, os falcões iranianos ampliarão a presença militar na Síria e reforçarão a cooperação com o Hezbollah libanês, enquanto os moderados, enfraquecidos, buscam amparo diplomático na Rússia, na China e nas potências europeias traídas pela Casa Branca. Respaldado por Trump, Netanyahu avançará no projeto de perenização da ocupação dos territórios palestinos, aprofundando o isolamento internacional e regional de Israel.
As pedras do dominó desabam em sequência. Sob o patrocínio da Rússia, as negociações sobre o futuro da Síria envolvem o regime de Assad, o Irã e a Turquia, excluindo os EUA. Nas eleições libanesas, em 6 de maio, a coalizão liderada pelo Hezbollah, partido-milícia xiita financiado pelo Irã, converteu-se no maior grupo parlamentar. Já nas eleições iraquianas, em 13 de maio, triunfou a heterogênea aliança articulada pelo clérigo xiita Moqtada al-Sadr, um inimigo dos EUA. Enquanto isso, no Iêmen, a campanha saudita de bombardeios indiscriminados revela-se incapaz de dobrar os rebeldes houthi, que contam com o apoio iraniano.
Trump bloqueou as estradas da diplomacia. A erosão da autoridade do presidente Hassan Rouhani, que apostava no acordo nuclear para recuperar a economia iraniana, desloca poder para a linha-dura dos aiatolás. Depois do massacre de palestinos em Gaza que assinalou com sangue a transferência da embaixada americana, as forças iranianas na Síria e o Hezbollah tendem a multiplicar as provocações contra Israel. Ao mesmo tempo, um Irã submetido a novo ciclo de sanções americanas ampliará seu programa de mísseis e reativará gradualmente o enriquecimento de combustível nuclear.
“Será aberta a caixa de Pandora”, profetizou o francês Emmanuel Macron, concluindo que “pode haver guerra”. De fato, fazendo o “exato oposto do que Obama fez”, Trump monta, involuntariamente, o cenário para uma guerra. Macron observou, acertadamente, que Trump não deseja um conflito militar com o Irã. Deve-se acrescentar, porém, que esse é precisamente o resultado almejado pelo secretário de Estado Mike Pompeo e pelo conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, seus novos timoneiros de política externa.
As reverberações da explosão representada pela ruptura do acordo nuclear ultrapassam em muito a esfera do Oriente Médio. “A primeira linha de confrontação não é com os iranianos, mas com nossos aliados europeus”, enfatizou Hayden. Um editorial do semanário alemão “Der Spiegel” caracterizou a decisão de Trump como “a mais perigosa e arrogante” desde a invasão do Iraque, em 2003, mas destacou que, desta vez, os EUA unificaram a Europa inteira, em “choque”, “cólera” e, especialmente, “desamparo”. O impacto abala as fundações da aliança transatlântica erguida pelo Plano Marshall e corporificada na Otan. “O Ocidente, como o conhecemos, não mais existe”, constata o “Der Spiegel”.
Na hora da ruptura americana do acordo, Ali Khamenei fugiu a seus hábitos, experimentando a ironia. O líder supremo iraniano disse que seu país discutiria o tema com “as duas potências mundiais, China e Rússia”. Os EUA conservam o estatuto de maior potência global, uma condição assegurada pelo seu incontrastável poderio militar e pelo fato decisivo de que o Federal Reserve emite a moeda do mundo. Não estamos diante de uma súbita derrocada americana, mas de algo mais sutil — e inédito.
No passado, a influência do Reino Unido declinou devido ao surgimento de potências mais fortes, enquanto a da URSS se exauriu sob o impacto da combinação de falência econômica doméstica com sucessivas intervenções externas. Sob Trump, como assinalou Richard Haass, os EUA declinam por efeito de uma “renúncia voluntária ao poder e às responsabilidades”. Não é uma boa notícia para o mundo.
* Demétrio Magnoli é sociólogo
Fernando Gabeira: Os loucos e o poder
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental
- O Globo
A discussão sobre a saúde mental do homem mais poderoso do mundo é algo novo para mim. Mas o tema associando loucura e política certamente apareceu em muitos momentos da História. Nos tempos mais recentes, sempre foi mais comum uma discussão sobre a saúde física. No caso de Franklin Rooosevelt, o que estava em jogo era sua mobilidade, algo aparentemente superado nos dias de hoje: a cadeira de rodas não é um obstáculo intransponível.
A questão da loucura apresenta dificuldades: como definir que uma outra pessoa é louca contra a vontade dela, sobretudo quando ocupa o cargo político mais importante do planeta?
O debate sobre a saúde mental de Trump se acentuou com o lançamento do livro “Fogo e fúria”, de Michael Wolff. Os argumentos que tenho lido não me convencem de que Trump é louco. Às vezes detêm-se em análises de gestos simples como levantar um copo de água, sem considerar que certas hesitações se devem mais à velhice do que à loucura.
A disputa com Kim Jong-un sobre quem tem o botão maior, embora infantil na boca de um presidente, expressa uma tendência à competição onipresente em inúmeras atividades humanas.
No tempo em que Stalin dominava a União Soviética, muitos opositores foram mandados para o hospício. Era algo bastante temido, sobretudo entre intelectuais. O regime comunista não só monopolizava o poder como também se sentia em condições de monopolizar a razão. Ser de oposição era sintoma de uma doença mental. Numa sociedade democrática deve haver alguns protocolos, inclusive para uso da Justiça, determinando se a pessoa cruzou ou não a fronteira da sanidade. Quando se trata de algo tão político, é evidente que se formem duas grandes correntes, cada uma desconfiando abertamente da imparcialidade científica da outra.
Não tenho condições de afirmar se Trump é louco ou não. Outro dia, em Porto Alegre, um jovem me fez uma longa e complexa pergunta, concluindo: acha que estou louco? Quem sou eu para dizer que uma pessoa está louca, respondi. Tenho dúvidas a respeito de mim mesmo. No passado, Francisco Nelson, um grande amigo do exílio, sempre me confortava: tudo bem, você está lúcido.
Chico Nelson morreu de enfarte. Desde então, dedico-me a responder sozinho e falta energia para julgar os outros.
Mesmo para quem vive num país surreal como o Brasil, é estranho ver dois líderes mundiais trocando insultos, e Trump dizendo que tem um botão maior que o do outro.
Às vezes acho que discussão sobre a saúde mental de Trump mascara outra mais delicada: até que ponto ele representa a normalidade estatística, até que ponto o que está em jogo não é a sanidade da própria sociedade americana?
Ainda assim, restaria a dúvida sobre o é que normalidade nos dias de hoje. Antigamente, em Minas, um ditado popular tentava fixar a fronteira entre loucura e lucidez: é louco mas não rasga dinheiro. Que sentido tem essa fronteira numa sociedade consumista? Até que ponto a ostentação dos bilionários não é um rasgar dinheiro com base na realidade? Muitos de nós se lembram que loucura e poder estão associados de tal forma que, num dos clichês das comédias do passado, o louco aparecia sempre dizendo que era Napoleão Bonaparte.
Melhor, no exame dos atos de Trump, é analisar um a um, não sob a ótica da saúde mental, mas de sua eficácia política.
Trump retirou os EUA do Acordo de Paris. É um cético quanto ao aquecimento global. A dúvida dele a respeito de evidências que nos parecem esmagadoras tem consequências políticas. Uma delas é abrir espaço para que China tente ocupar o vácuo deixado pelos Estados Unidos, e a França recupere um pouco de sua grandeza perdida.
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental.
Na atual fase do capitalismo, o entretenimento de milhões de pessoas tornou a indústria da diversão tão importante que tendem a surgir dela os nomes mais viáveis para liderá-la.
O próprio Trump usou a indústria da diversão para ampliar sua popularidade e, agora, utiliza o Twitter como seu programa particular.
Não nego que os critérios de sanidade e loucura ainda são importantes e mobilizam milhões de profissionais dedicados a, pelo menos, atenuar o sofrimento humano.
Transplantados para a política, esses critérios talvez não tenham a mesma validade. Minha suspeita é de que na luta cotidiana para espantar o tédio, a excentricidade torne-se uma espécie de capital para os candidatos ao poder.
Trump é um sintoma de algo bem mais sério e bem mais louco do que podemos imaginar. Aceitar essa premissa é incômodo mas nos aproxima da realidade. Não foi por acaso que, depois da Segunda Guerra Mundial, os intelectuais se voltaram não para dissecar a psicologia de Hitler, mas para se investigar o que havia na sociedade alemã para tornar possível sua liderança.
São outros tempos, mas, creio, a tarefa ainda é a mesma.
Fernando Gabeira: As brumas de janeiro
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança
Viajaram todos no réveillon, fiquei só em casa, com uma delicada missão: acalmar os quatro gatos durante os 17 minutos dos fogos em Copacabana. No fim, deu certo. Vieram todos para a minha cama, redobrei a atenção com uma delas que tem o hábito de fazer xixi fora do lugar, quando contrariada. Nessa breve semana de férias, constatei que em 2018 vou trabalhar mais ainda. São as circunstâncias. Minha pergunta é esta: que tipo de qualidade necessito para encarar as novas tarefas?
Para fazer mais e melhor, destaco sempre uma delas, que nem sempre me acompanha, na trajetória agitada: concentração. Costumo levar na mochila um velho livro do sexto patriarca da Escola do Sul: Hui Neng, um sábio budista. Volta e meia, bate na tecla da concentração. No seu universo, a concentração é indispensável ao caminho espiritual. Mas nada impede que seja também um instrumento valioso na nossa vida cotidiana.
Definidos objetivo e método, nada melhor que usar os restantes momentos de férias para me dispersar. Ou, pelo menos, sentir a força avassaladora das múltiplas atrações que disputam nossa atenção. Dentro de casa, com livro, tevê e internet, é possível se perder completamente, em romances, ensaios, biografias, perfis, curtas, debates inteligentes e bobagens engraçadas.
Vi um perfil de Francis Bacon, cujos quadros sempre me impressionaram e a quem só conhecia de um livro de entrevistas. Fiquei triste com seu cotidiano pontilhado de crises, suicídio de um de seus amantes no momento de sua grande consagração internacional: a exposição no Grand Palais, em Paris. Lembrei-me de Van Gogh, pobre, dando sua própria orelha para uma prostituta. É como se fosse uma lenda: não me comove tanto. E pensei: as dores dos contemporâneos parecem ser as nossas dores.
Vi os episódios de série “Black mirror”, especialmente “Arkangel” me fez divagar de novo. A mãe decide implantar um dispositivo no cérebro da filha. Através dele, pode localizá-la e até mesmo ver e ouvir o que a menina Sarah vê e ouve. Na sua telinha, a mãe acompanha a cena de sua filha fazendo amor com o namorado. Ela vê o namorado de baixo, com os olhos de Sarah. E ouve a menina dizer frases pornográficas. Numa cena anterior, Sarah aparecia vendo no recreio da escola um filme pornográfico.
É apenas um detalhe em toda a história. No entanto, acionou uma conexão na minha cabeça: andei lendo um pouco sobre um debate acerca do tema nos EUA. Uma das críticas enfatizava que o imaginário sexual da juventude estava sendo colonizado pelos roteiristas de filmes pornográficos. Isso alterava o vocabulário e os próprios sentimentos. “Arkangel” me provoca a voltar ao tema.
Passados os momentos de dispersão, ainda fico intrigado como sou atraído por eles. Como se concentrar num mundo em que milhares de focos disputam sua atenção?
Na estrada, às vezes com pobre conexão, isso é possível. O chamado fluxo de trabalho é também uma âncora no presente. Ainda assim, os fatos seguem acontecendo e não se pode descuidar deles. No entanto, é preciso fazer uma espécie de barreira sanitária. Em outras palavras, o volume de informações que nos orgulhamos de consumir e produzir também pode se voltar contra nós, sobretudo em doses cavalares.
De volta ao futuro imediato, está diante de todos nós um ano desafiador. Acompanhar as eleições, tentar extrair delas a maior mudança possível nas relações entre sociedade e governo é uma tarefa inescapável. O primeiro grande traço do ano eleitoral será desenhado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre: o julgamento do recurso de Lula pelo TR4. Teoricamente, o Tribunal pode confirmar, rejeitar, reduzir ou ampliar a pena de Lula. Em qualquer hipótese, tudo terá de ser equacionado de novo, a partir dessa decisão.
Pelo que vi em Curitiba, quando Lula foi depor, as tensões que surgem nesses momentos podem ser superadas com serenidade e algum planejamento para evitar a violência.
Protestos, abaixo assinados, todos fazem parte do jogo político. Mas servem mais como um consolo para Lula do que propriamente uma visão apontando para o futuro. Em caso de confirmação da pena, como conduzir uma candidatura que se choca com a Lei da Ficha Limpa?
Não posso prever em detalhes esse primeiro grande momento do ano eleitoral. Na verdade, ainda o encaro como um incidente do passado. Lula resolveu se candidatar para fugir da Lava-Jato pelos melífluos caminhos da política.
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança. Entre o destino de um condenado e as tarefas de reconstrução do país há uma considerável mudança de foco.
Os anos pertencem a uma teia maior do tempo. Nunca são totalmente novos. Como todos nós, trazem consigo a carga do passado. Até os motins nas cadeias são planejados na véspera do réveillon. Esperemos pois, com paciência, 2018 surgir nas brumas de janeiro.