EUA

Maria Hermínia Tavares: Improviso e dispersão

Brasil e EUA poderiam coordenar de maneira mais eficaz a administração pública para prover saúde

Polarização política, descentralização federativa e desigualdades são condições prévias que permitem entender a dramática situação do país na pandemia. A constatação, que se aplica sem tirar nem pôr ao Brasil, é do cientista político Bruce Cain, da Universidade Stanford, ao falar dos Estados Unidos.

Mas as semelhanças vão além. Ali como aqui, eleições alçaram à Presidência políticos populistas que cultivam a mentira, desprezam a ciência, alimentam-se de conflitos e pouco se importam com a vida humana. Isso posto, o argumento do professor tem a virtude de chamar a atenção para um dado menos perceptível: mesmo se os dois países contassem com dirigentes responsáveis, circunstâncias anteriores restringiriam a capacidade de seus governos de combater a pandemia.

Os antagonismos políticos poderiam ser algo mais civilizados, não fossem Trump e Bolsonaro, a um tempo, suas criaturas, principais agentes e beneficiários. Ainda assim, os outros dois fatores apontados por Cain estariam presentes e de formas distintas continuariam dificultando a luta contra a Covid-19.

A federação, consequência quase inevitável da opção pela democracia em nações de porte continental, requer do governo central, além da aptidão para definir rumos, disposição e engenho político para negociar e coordenar a ação de estados com competências e atribuições próprias.

As desigualdades cumulativas de renda, condições de vida e acesso a serviços públicos básicos tornam virtualmente impossível a aplicação eficiente da principal medida em face da crise sanitária, na ausência de vacinas: o isolamento social. Por essa razão, nos países —entre eles Brasil e Estados Unidos— onde a pobreza é disseminada e as desigualdades, profundas, duas pandemias coexistem, com características e probabilidades distintas de levar à morte: a dos que podem se proteger em casa e a dos muitos para os quais isso é impossível.

Fossem outros os governos em Brasília e Washington, outro seria o debate, e bem maior o aprendizado sobre a forma mais eficaz de coordenar os diferentes níveis da administração pública para prover saúde; como melhor proteger os que não podem se isolar; como usar organizações públicas ou comunitárias para fazer chegar água, comida e regras de cuidado às moradias mais pobres ou para aqueles que vivem nas ruas. Tudo, em suma, o que está sendo feito de maneira improvisada e dispersa.

Para tanto, outro precisaria ser o governo, com ministros à altura do desafio e um presidente antes preocupado em criar consensos do que em dar cloroquina para as emas do Palácio.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Luiz Carlos Azedo: Estado de choque

“Guedes propõe solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Como sabe que é isso, pode ser para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo”

A ideologia de livre mercado do vienense Friedrich August Von Hayek, paradigma da política liberal conservadora do pós-guerra, foi historicamente associada às doutrinas de choque. Embora originárias das décadas de 1920/1930, suas ideias somente ganhariam força após a II Guerra Mundial. Esse caráter de “choque” foi resultado do envolvimento de Hayke com regime ditatoriais da América Latina, entre os quais a ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet, no Chile. A doutrina de choque funciona como uma chantagem, porque as pessoas são persuadidas de que a única opção é aceitar o “mal menor” diante das crises, o que se traduz em soluções selvagens para a desregulamentação da economia e alienação patrimonial, assim como a naturalização do desemprego em massa e da chamada “destruição criativa”.

Obviamente, Hayke foi um crítico das teorias de John Maynard Keynes, o que dificultou muito sua vida no imediato pós-guerra, por causa do sucesso das políticas keynesianas nos Estados Unidos, depois da Grande Depressão de 1929, e na reconstrução da Europa Ocidental, com o Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Entretanto, Hayke ganhou o prêmio Nobel de 1970 e conquistou corações e mentes dos dois principais líderes ocidentais da década seguinte, Ronald Reagan, presidente republicano dos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido. Com isso, sua figura controversa deixou de ser associada aos ditadores latino-americanos e passou ser identificada com a bem-sucedida política “neoliberal” desses dois líderes.

Com o colapso da antiga União Soviética e do comunismo no Leste Europeu, o mundo ingressou num período de aparente unipolaridade, até a Rússia de Putin se reerguer como potência energética, a aliança franco-alemã se consolidar na Europa e a China, emergir como novo player da economia mundial, cujo eixo comercial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Simultaneamente, um filósofo norte-americano, John Rawls, que cresceu em Baltimore e havia servido no Pacífico — Nova Guiné, Filipinas e Japão —, durante a II Guerra Mundial, começou a ser muito discutido nos Estados Unidos, por causa de suas teses sobre a justiça, o direito dos povos e a equidade. Formado em Princeton, no começo dos anos 1950, estudou na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde conviveu com outro gigante do liberalismo, Isaiah Berlin.

Equidade
Justiça, equidade e desigualdades eram as principais preocupações de Rawls, que questionava a forma como os princípios de justiça se baseavam. Ele estava preocupado com a relação entre a política e as desigualdades, que ultrapassa os julgamentos morais individuais. Por essa razão, estabeleceu uma correlação entre os princípios da justiça e a forma como os sistemas educacional, sanitário, tributário e eleitoral funcionam. Crítico da guerra do Vietnã e simpático aos movimentos de direitos civis das minorias, concluiu que todos têm as mesmas demandas para as liberdades básicas e que as desigualdades sociais e econômicas deveriam ter um limite razoável, que fossem associados a cargos e posições acessíveis a qualquer um, de forma a que todos pudessem sobreviver com dignidade. Nesse aspecto, o Estado deveria ser garantidor da justiça com equidade. Suas palestras sobre o tema foram reunidas num livro por ele revisado em 2001: Justiça como equidade: uma reformulação (Martins Fontes), muito adotado nas escolas de direito no Brasil. Sua Teoria da Justiça era o livro de cabeceira do presidente Bill Clinton, do Partido Democrata.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, é um discípulo da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, outro prêmio Nobel de Economia, de quem foi aluno e apadrinhado na ida para a equipe econômica do general Pinochet. A essência do seu pensamento se baseia na formação de preços, livre mercado e expectativas racionais dos agentes econômicos. Há um ano, o ministro anuncia uma reforma tributária, sem apresentá-la, enquanto o Congresso discute dois projetos, um no Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), e outro na Câmara, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), com base em estudos do economista Bernard Appy.

Como já vimos, é preciso compatibilizar nosso liberalismo com a justiça social. O que a pandemia escancarou foi o sucateamento da saúde e da educação e a brutal violência e iniquidade social nas favelas, periferias e grotões do país. Entretanto, agora, Guedes anuncia uma proposta de reforma tributária cujo eixo é a criação de imposto com tributação automática de operações digitais, para arrecadar mais de R$ 100 bilhões. Na prática, é uma exumação da antiga CPMF, que foi criada originalmente para viabilizar recursos para a Saúde.

O problema de Guedes é o crescimento da dívida pública por causa da pandemia, que deve elevar o deficit fiscal de R$ 134 bilhões para, aproximadamente, R$ 700 bilhões, o que inviabiliza as políticas de transferência de renda e pode provocar o colapso financeiro do governo federal, se não houver uma reforma administrativa e nova reforma previdenciária no próximo ano. Guedes propõe uma solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Política de choque. Como sabe que é isso mesmo, pode ser, também, para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo.

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Luiz Carlos Azedo: O grande jogo

“A intenção do Palácio do Planalto é conquistar o comando da Câmara, via articulação com o Centrão, para limitar o protagonismo do Congresso”

Em meio à tragédia da pandemia do novo coronavírus, discute-se intensamente o que virá depois da covid-19. Existem várias dimensões nesse debate, do cotidiano doméstico ao novo mundo das inovações tecnológicas, mas a política não perdeu centralidade. Destaco as eleições nos Estados Unidos e a escolha do novo comando do nosso Congresso, principalmente da Câmara dos Deputados. Nosso futuro imediato dependerá muito desses dois eventos.

A pandemia de coronavírus colocou em xeque a reeleição do presidente Donald Trump, republicano, no pleito de 3 de novembro. Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, hoje lidera a disputa com uma vantagem de 14 pontos. Trapalhadas no combate à pandemia e a recessão jogaram Trump para baixo. A sua esperança é a recuperação da economia em V, mas o coronavírus se espalha por todo o território e Trump terá mais dificuldades. Além disso, a violência policial, que estimulou, provocou forte reação da sociedade, principalmente dos jovens.

Os sinais de que a recuperação acelerada da economia norte-americana seria possível vinham da China, após dominar a pandemia, e também da Alemanha, que segue a mesma trajetória, o que ainda pode se reproduzir em outros países da Europa com economias fortes, principalmente a Inglaterra e a França. Entretanto, a projeção do PIB dos EUA aponta para uma queda de 6,5% em 2020.

A disputa comercial entre os Estados Unidos e a China pelo controle das cadeias de comércio mundiais, cujo eixo se deslocou para o Pacífico, pauta a política mundial. Com a eventual derrota de Trump, não deixará de existir, mas sofrerá mudança radical na forma de atuação dos Estados Unidos. A política de Trump tensiona as relações do Brasil com a China, nosso principal parceiro comercial, porque a atual política externa é esquizofrênica: o alinhamento automático com os EUA está em contradição com nosso lugar na divisão internacional de trabalho. Por isso mesmo, a eventual derrota de Trump terá reflexos na nossa política externa. Como os democratas, hoje, têm melhores relações com a oposição, isso acabará influenciando o governo Bolsonaro.

Sucessão

Vamos à política interna. Nossas eleições municipais serão em 15 de novembro. É pouco provável que a polarização política nacional se reproduza em nível municipal, embora seja previsível o surgimento de candidatos bolsonaristas na maioria dos municípios. Entretanto, a recíproca não é verdadeira: os resultados das eleições municipais repercutirão fortemente na política nacional, principalmente no Congresso.

Depois do tsunami de 2018, que promoveu grande renovação no Congresso, nossa elite política reagiu com muito protagonismo, principalmente nas reformas econômicas. Resgatou para si o grande jogo da política, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se enredava na pequena política. Foi uma inversão de tendências, pois sempre coube ao Executivo a iniciativa de reformar o Estado e a economia. Muito desse protagonismo se deve ao desempenho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cujo mandato está acabando, não pode ser reeleito nem tem um sucessor consolidado para o cargo.

É aí que o presidente Jair Bolsonaro pode passar da defensiva à ofensiva em relação ao Congresso. A intenção dos militares que ocupam o Palácio do Planalto, principalmente do ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Ramos, é conquistar o comando da Câmara via articulação com o Centrão: PP (40 deputados), PL (39), PSD (36), Republicanos (31), Solidariedade (14), PTB (12), PROS (10), PSC (9), Avante (7) e Patriota (6). Por ora, o governo joga com pau de dois bicos: Arthur Lira (PP-AL), o preferido do “baixo clero”, e Marcus Pereira (PP-S), bispo da Igreja Universal e atual vice-presidente da Casa. O MDB (34), o DEM (28) e o PSDB (31), apesar da liderança de Maia, ainda não têm um candidato competitivo, que possa dividir o Centrão e obter votos da oposição, para manter a autonomia da Casa.

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Luiz Carlos Azedo: A rede do ódio

“O Facebook revelou que as contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e ‘comportamento inautêntico’, ou seja, enganavam os usuários das redes sociais”

O chamado “gabinete do ódio”, grupo de funcionários da Secretaria de Comunicação da Presidência da República que opera o jogo bruto do presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e principais apoiadores nas redes sociais, foi praticamente desmantelado no Facebook, que cancelou 35 contas, 14 páginas e um grupo; e no Instagram, no qual eliminou 38 contas. O grupo reunia, aproximadamente, 350 pessoas, que eram seguidas por 883 mil bolsonaristas no Facebook e 917 mil, no Instagram. O Facebook revelou que as contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e “comportamento inautêntico”, ou seja, enganavam os demais usuários sobre quem eram e o que faziam nas redes sociais. Foram gastos US$ 1,5 mil em anúncios por essas páginas, pagos em real.

Segundo a empresa, foi possível identificar as ligações dessas pessoas com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro, do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos -RJ) e também dos deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos, do PSL no Rio de Janeiro. “A atividade incluiu a criação de pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicação de conteúdo e gerenciamento de páginas fingindo ser veículos de notícias”, diz o Facebook. A empresa antecipou-se às conclusões do inquérito presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que investiga ameaças à Corte e aos ministros que a integram, e também da CPMI das Fake News, cujo relator, deputado Angelo Coronel (PSDD-BA), comemorou a decisão.

O grupo usava uma combinação de contas duplicadas e contas falsas para evitar a aplicação de políticas de combate ao conteúdo de ódio e perfis falsos. Não houve divulgação das contas, mas, entre elas, estão os perfis “Jogo Político” e “Bolsonaro News”, no Facebook. Nos Estados Unidos e na Europa, está havendo uma forte reação à utilização das redes sociais para manipular as eleições, como aconteceu nas eleições de 2016, que elegeram Donald Trump. O Congresso norte-americano investigou a suposta interferência da Rússia naquelas eleições, em favor de Trump, e convocou o presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, para explicar o caso da Cambridge Analytica, que teria utilizado informações sigilosas dos usuários das redes para manipular as eleições e recebeu uma multa de US$ 5 bilhões da Free Trade Comission (comissão reguladora dos Estados Unidos), por vazamento de dados.

Mais controle

Para evitar complicações judiciais, o Facebook e o Twitter, desde então, resolveram adotar novos procedimentos. No fim do ano passado, o presidente e fundador do Twitter, Jack Dorsey, baniu anúncios políticos da rede social. O presidente e fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, porém, manteve os anúncios. Twitter e Facebook têm nos anúncios ou posts patrocinados mais de 80% de suas receitas.

Impulsionamentos fazem com que uma postagem chegue a mais pessoas. O anunciante consegue delimitar seu público, por idade, região, interesses. Com isso, os políticos alcançam públicos específicos e formam bolhas de seguidores. Bolsonaro estruturou sua campanha fazendo isso com eficiência, mas sempre jogando pesado contra os adversários. A rede de perfis falsos e robôs desmantelada, ontem, servia para isso. O modelo era o mesmo da campanha de Trump: fake news.

Em 2016, o portal Breitbart espalhou notícias falsas sobre a candidata democrata Hillary Clinton. O homem forte do Breitbart era Steve Bannon, que foi chefe de campanha de Trump. Aqui no Brasil, nas eleições de 2018, ele também foi o estrategista de Bolsonaro nas redes sociais. Entretanto, o principal canal utilizado foi o WhatsApp. Os disparos em massa patrocinados por empresários fizeram a diferença. Pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com a Agência Lupa, analisaram mais de 300 grupos de WhatsApp sobre política e constataram que 56% das imagens eram enganosas.

Ontem, o Facebook revelou que os conteúdos publicados nas contas canceladas no Brasil eram sobre notícias e eventos locais, incluindo política e eleições, memes políticos, críticas à oposição, organizações de mídia e jornalistas e sobre a pandemia de coronavírus. O Facebook também removeu contas nos Estados Unidos e na Ucrânia, que miravam audiências internas. No Canadá e no Equador, foram canceladas contas que operavam em outros países: El Salvador, Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador e Chile.

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Luiz Carlos Azedo: Aposta na hidroxicloroquina

“Com covid-19, Bolsonaro tenta fazer do limão uma limonada, pois se iguala aos brasileiros que contraíram a doença; antes, era visto por eles como vilão da pandemia”

O presidente Jair Bolsonaro testou positivo para covid-19. Sentiu-se mal no domingo, teve febre e dores musculares na segunda-feira e, ontem, ele próprio confirmou o diagnóstico. Aproveitou a oportunidade para anunciar que está se tratando com hidroxicloroquina, desde a segunda-feira. Chegou, inclusive, a divulgar um vídeo no qual toma a terceira dose e incentiva a população a recorrer ao medicamento para se tratar da doença. Com um sorriso irônico, disse que está se sentindo muito bem. O exemplo do presidente da República não deve ser subestimado, para o cidadão comum é como se sua aparente melhora fosse a prova dos nove em relação à eficiência do medicamento, que, até agora, não tem nenhuma comprovação científica. O que têm comprovação são seus efeitos colaterais.

A hidroxicloroquina é um remédio muito utilizado na Região Norte do país, por causa da malária; nas demais regiões, em tratamentos para afecções reumáticas e dermatológicas; artrite reumatoide e lúpus. Seus efeitos colaterais mais comuns são: anorexia, porfiaria, labilidade emocional, cefaleia, visão borrada, arritmia, enjoo, dor abdominal, diarreia e vômito, erupção cutânea e prurido. Deve ser utilizado com muita precaução em pacientes que estejam recebendo medicamentos antiarrítmicos, antidepressivos, antipsicóticos e alguns anti-infecciosos, devido ao aumento do risco de arritmia ventricular. Drogas antiepilépticas podem ser prejudicadas pela hidroxicloroquina.

Como um jogador compulsivo, Bolsonaro se expôs permanentemente ao risco de contaminação, desobedecendo de todas as formas as recomendações de distanciamento social, até contrair a doença. Demitiu dois ministros da Saúde e nomeou um general da ativa para o cargo, Eduardo Pazuello, por causa da não-adoção do medicamento como política de governo. Ordenou ao Exército produzir em seus laboratórios uma quantidade imensa do medicamento, com um estoque suficiente para combater a malária por 18 anos.

O Ministério da Saúde passou a distribuir o medicamento em grande escala, para tratamento precoce, recomendado por médicos que adotam esse procedimento. A maioria dos estudos científicos realizados sob patrocínio da OMS não comprovou a eficácia do medicamento, mas apontou os riscos de seus efeitos colaterais. Mesmo assim a polêmica continuou; muita gente acha que se curou graças à hidroxicloroquina, associada a outros medicamentos. Agora, a polêmica foi novamente intensificada pelo presidente da República.

Limonada

Bolsonaro defende a “imunização de rebanho”, menospreza o isolamento social, critica governadores e prefeitos que adotaram a quarentena e naturaliza as mortes por covid-19, que já comparou a uma “gripezinha”. Ontem, disse que a pandemia é como uma chuva, todo mundo vai se molhar. Estava perdendo a batalha das narrativas sobre a doença na opinião pública, com seu prestígio em baixa nas pesquisas, mas começou uma lenta recuperação de imagem graças ao auxílio emergencial de R$ 600 distribuídos à população de baixa renda, principalmente no Nordeste.

Agora, acometido da covid-19, tenta fazer do limão uma limonada, pois se iguala a todos os brasileiros que contraíram a doença, quando antes era visto como uma espécie de vilão da pandemia. Já se apresenta como pioneiro na defesa do uso de hidroxicloroquina como medicamento eficaz no tratamento precoce. É uma posta de alto risco, que depende mais de suas condições físicas e resistência ao vírus do que da eficácia do remédio. Se a hidroxicloroquina fosse realmente a solução para evitar os casos graves, não haveria tanta letalidade na pandemia e ela já teria sido adotada em todo o mundo, inclusive, nos Estados Unidos, onde seu uso foi defendido pelo presidente Donald Trump, mas não pelas autoridades médicas.

Bolsonaro pretende despachar por videoconferência na residência oficial do Palácio da Alvorada e, talvez, receba auxiliares para assinar documentos. Cancelou as viagens que faria a Bahia e Minas Gerais. No Palácio do Planalto, todos os ministros e funcionários com quem teve contato estão sob observação, mas até agora ninguém testou positivo. Ao todo, 62 pessoas estão sendo monitoradas e rastreadas. Oito governadores e alguns prefeitos já contraíram a doença; nenhum havia se exposto tanto quanto Bolsonaro.

No momento, o caso mais grave é o do prefeito de Manaus (AM), Arthur Virgílio Netto, que está internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Bolsonaro foi atendido no Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, e é acompanhado pelos médicos da Presidência da República. Pelo protocolo do Ministério da Saúde, o paciente que utiliza hidroxicloroquina precisa autorizar seu médico a adotar a prescrição e correr os riscos dos efeitos colaterais por sua própria conta. Ontem, o Brasil registrou mais de 66 mil mortes por coronavírus, com 1,643 milhão de casos.

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Bruno Carazza: Os números estarão certos desta vez?

Temporada de pesquisas nos EUA favorece Biden

George Gallup chegou a Madison Avenue muito antes de Donald Drapper, o fictício publicitário da aclamada série Mad Men. Aos 31 anos ele foi contratado para ser diretor da agência Young and Rubicam, levando para o centro criativo da publicidade em Nova York o seu revolucionário método de aferir a opinião pública por meio de levantamentos por amostragem.

Gallup aplicava suas técnicas para medir a efetividade de anúncios e comerciais de produtos em jornais, revistas e rádio, mas naquele ano (1932) resolveu fazer um experimento familiar. Sua sogra, Ola Babcock Miller, iria se candidatar a um cargo em Iowa, e o estatístico começou a realizar algumas pesquisas de opinião para aferir suas chances. Ela acabou vencendo, pegando carona na onda democrata de Franklin Roosevelt, com suas propostas para tirar o país da Grande Depressão - e Gallup percebeu que estava diante de uma grande oportunidade de negócios.

Nas eleições presidenciais seguintes veio a sua consagração. Uma revista popular na época, a The Literary Digest, enviou 10 milhões de formulários para seus assinantes pedindo que eles respondessem em quem votariam: no presidente Roosevelt ou no republicano Alf Landon. 2,27 milhões responderam à enquete e, quatro dias antes da eleição, a revista anunciava que o desafiante Landon venceria com 57,1% dos votos.

George Gallup trilhou um caminho diferente. Sua equipe foi a campo e, consultando apenas 50.000 pessoas, chegou à conclusão de que Roosevelt seria reeleito. Ao abrirem as urnas, Gallup tinha razão: Roosevelt venceu, arrebatando 62% dos votos.

A façanha de Gallup ao prever o resultado das eleições presidenciais americanas tinha explicação. Apesar de se apoiar numa amostra muito grande, a pesquisa da Literary Digest sofria de dois problemas graves. O primeiro é que, ao se basear apenas nas respostas de seus assinantes, sua enquete deixava de fora o imenso contingente de desempregados da crise de 1929 - havia, portanto, um viés de seleção a favor de respondentes mais ricos. Mais do que isso, os respondentes tinham que se dirigir aos correios para enviar o formulário de volta à revista, somente aqueles mais motivados participaram e, assim, a amostra não era aleatória.

Ao conduzir sua pesquisa com técnicas modernas de amostragem, Gallup provou que era possível obter resultados muito mais confiáveis a um custo consideravelmente menor - bastava desenhar corretamente uma amostra que refletisse a composição da população em relação às suas principais características de distribuição geográfica, renda, idade e assim por diante.

A partir de então o instituto Gallup reinou absoluto por muitas décadas, expandindo seus negócios para diversos países. Essa trajetória, porém, também teve seus fracassos retumbantes.

No pleito de 1948, Gallup aferiu 45 dias antes da eleição que o presidente Harry Truman seria derrotado pelo republicano Thomas Dewey por uma diferença de 46,5% a 38%. Baseando-se na experiência passada de que os eleitores decidem seus votos logo após as primárias e as convenções dos partidos, Gallup descartou a possibilidade de uma virada no placar às vésperas da votação.

Fiando-se na opinião de Gallup e de outros analistas políticos, o jornal pró-republicano Chicago Daily Tribune chegou a estampar na primeira página, no dia seguinte à eleição, a manchete “Dewey derrota Truman”. Contados os votos, Truman venceu por 49,6% a 45,1% - e sua foto sorridente, segurando a capa do jornal que anunciou equivocadamente a sua derrota, entrou para a história das eleições americanas.

E então chegamos a 2016. Ainda há controvérsia sobre as razões do fracasso dos institutos de pesquisas em prever a vitória de Trump. Algumas hipóteses são quase consensuais. A primeira delas é que, como em 1948, muitos eleitores decidiram seu voto na última hora, e os levantamentos não conseguiram captar esse movimento.

Também contribuiu para o erro uma taxa de comparecimento à votação mais alta do que a média histórica entre os republicanos, ao mesmo tempo em que aconteceu o contrário entre os apoiadores de Hillary Clinton - é sempre bom lembrar que as eleições nos EUA são voluntárias e ocorrem em dias úteis. Por fim, os institutos falharam ao não ajustar suas amostras para levar em conta as diferenças de escolaridade do eleitorado, uma clivagem que foi muito mais acentuada em 2016.

A praticamente quatro meses das eleições, está aberta a temporada de pesquisas para tentar descobrir quem ocupará a Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2021. Na última semana, o jornal NYTimes publicou seus primeiros resultados, mostrando uma expressiva liderança de 14 pontos percentuais entre Joe Biden (com 50% das intenções de voto) e o presidente Trump (36%).

Além de ter ampliado a margem de apoio em redutos tradicionalmente dominados pelos democratas (como negros, latinos e jovens), Biden parece estar roubando importantes fatias de eleitores que foram decisivos para a vitória de Trump em 2016, como brancos com baixa escolaridade, idosos e moradores dos chamados swing states - aqueles sem uma inclinação partidária definida e que, no último pleito, fecharam com Trump por uma pequena margem, como Michigan, Flórida, Pensilvânia, Wisconsin, Arizona e Carolina do Norte.

A revista inglesa The Economist, por sua vez, divulgou um modelo que combina levantamentos de intenção de votos e diversos indicadores econômicos para estimar as probabilidades de vitória de cada candidato. Com dados atualizados diariamente, a publicação concluiu que o apoio a Biden começou a subir em meados de março e hoje atinge uma surpreendente taxa de 90% de chance de derrotar Trump em 04 de novembro. Os dados deixam claro que a gestão da crise da covid-19 e a reação aos protestos contra a discriminação após o assassinato de George Floyd têm pesado bastante na popularidade de Trump.

Há poucos meses ninguém poderia imaginar que o mundo viraria de ponta a cabeça por causa de um vírus; extrapolar esses resultados para novembro, portanto, seria uma temeridade. Mas, como Gallup diria, quando um político analisa os resultados de pesquisa, ele está ouvindo as visões das pessoas. E, neste momento, a maioria dos americanos parece estar se afastando de Donald Trump.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Cristiano Romero: Brasil não consegue superar modelo dos 80

Brasil demorou para superar inflação e crise da dívida

Depois de ter sido o país que mais cresceu entre as décadas de 1950 e 1970, o Brasil perdeu todos os “bondes” da história desde então, tornando-se uma economia de baixo crescimento. Demorou muito para superar a crise da dívida e livrar-se do processo hiperinflacionário, dois problemas que assolaram de forma indistinta nações subdesenvolvidas no início da década de 1980. Na verdade, foi justamente por não aceitar o fim do modelo de substituição de importações que a Ilha de Vera Cruz nunca mais se reconciliou com o crescimento acelerado.

Uma medida da “estagnação” está na comparação com os Estados Unidos. Dados do FMI mostram que em 1980, ano em que crescemos 9,2%, o PIB do Brasil, a preços correntes e pelo Poder de Paridade Compra (PPP, na sigla em inglês), era de US$ 590,9 bilhões. Naquele ano, pelo mesmo critério, o dos EUA era de US$ 2,857 trilhões, portanto, 4,8 vezes o brasileiro. No ano passado, segundo estimativa do FMI, a relação aumentou para 6,22 vezes - respectivamente, PIB (PPP) de US$ 3,479 trilhões e US$ 21,665 trilhões.

Em 1980, a China, ainda um gigante adormecido, mas com despertador programado para acordá-lo logo mais, tinha um PIB, também pelo critério usado pelo FMI, de US$ 304,3 bilhões, quase metade do brasileiro. Bem, 40 anos depois, os chineses já registram PIB, medido pelo PPP, superior ao dos EUA - US$ 30,9 trilhões, quase nove vezes o do Brasil. Uma observação importante: isso não faz da China nação mais rica que os EUA, afinal, seu PIB per capita, estima o FMI, chegou a US$ 20 mil no ano passado, enquanto o dos americanos é de US$ 67,7 mil.

Uma curiosidade da série “quando-é-que-nosso-despertador-vai-tocar”: em 2020, pela primeira vez, o PIB per capita chinês (pelo critério de PPP) superou o brasileiro, estacionado (ou atolado) em US$ 18,7 mil. Em 1980, o dos chineses estava em US$ 302,3 e o nosso, em US$ 4,8 mil.

Motivada por interesses de grupos específicos, principalmente de seus maiores beneficiários, a negação de que o velho modelo de desenvolvimento é obsoleto e insustentável nos fez perder a revolução tecnológica que se deu, primeiro, no Japão, depois nos chamados tigres asiáticos e nos EUA e, mais recentemente, na China. Quase 40 anos depois da falência daquele modelo, nossa economia continua bastante fechada e o Estado brasileiro, falido desde aquela época, continua ajudando e custeando alguns de seus beneficiários.

Para que o leitor não acuse este humilde repórter de omissão, aqui vai o maior exemplo de resistência ao fim do regime de substituição de importações: a indústria automobilística, toda ela multinacional. Além de se beneficiar de barreiras tarifárias e não tarifárias contra a competição internacional, tem direito a incentivos fiscais e subsídio creditício desde que chegou por aqui, há quase 70 anos. Agora mesmo, em meio à pandemia e à evidente escassez de recursos públicos para o enfrentamento da mais grave crise da história, movimenta-se em Brasília para receber algum socorro financeiro. O discurso não muda nem neste pandemônio - se o governo não ajudar, ameaçam os executivos, as montadoras deixarão o mercado brasileiro. Eles pedem dinheiro aqui, sendo que, na maioria dos países onde estão suas matrizes, a liquidez é farta e o juro real (descontada a inflação), negativo.

A Ilha de Vera Cruz não atolou sozinha. Na década de 1980, o Ocidente constatou que a produtividade da economia japonesa era assombrosamente superior à de suas economias e que o despertador da China já tinha tocado. Foi aí que os EUA de Ronald Reagan e a Inglaterra de Margaret Thatcher adotaram uma série de medidas para desregulamentar, isto é, diminuir a presença do Estado na produção de bens e serviços, abrindo espaço para que o setor privado, por definição mais eficiente, assumisse protagonismo.

Enquanto isso, na Terra de Santa Cruz, deu-se o seguinte:

  1. Fernando Collor confiscou poupança, outras aplicações financeiras e até depósito à vista, mas, com um voluntarismo típico de um “outsider”, coisa que na verdade ele não era, decretou, no segundo dia de gestão, a 16 de março de 1990, o fechamento de dezenas de estatais (esquisitices como Siderbrás, Portobrás, cuja falta a sociedade jamais sentiu); demitiu 108 mil funcionários sem estabilidade no emprego, dentre os quais, empregados das estatais extintas; colocou milhares de servidores da ativa em disponibilidade (possibilidade prevista pela Constituição em caso de calamidade, justificado pelo fato de a inflação ter alcançado 89% em apenas um mês, fevereiro de 1990); iniciou as privatizações; começou a abrir lentamente a economia e lançou agenda para desregulamentar diversos setores; como, a exemplo de Bolsonaro, Collor chegou a Brasília sem base de apoio no Congresso, seu capital político esvaiu-se após o fracasso do confisco - a “bala de prata” contra a inflação, disse o então presidente - e, justamente quando se rendeu aos partidos, seu governo desmoronou a partir de denúncias feitas pelo próprio irmão, levando-o ao impeachment; a agenda de Collor tinha, sim, cunho liberal, mas, antes de mais nada, atendia à aritmética - o Estado tornou-se insolvente, a dívida pública, inadministrável, e, consequentemente, a inflação era altíssima (e, por essa razão, um pesado imposto sobre os mais pobres), logo, as medidas se destinavam a encaixar o setor público dentro do PIB;
  2. Itamar Franco, o vice, assumiu em outubro de 1992 e deu sequência à agenda do antecessor; foi ele quem, fazendo muxoxo, privatizou em 1993 a CSN; esperava-se do presidente, porém, que lançasse logo um plano para debelar a inflação, que àquela altura já estava em quatro dígitos ao ano; teimoso que só ele, nomeou e demitiu três ministros da Fazenda no espaço de apenas sete meses, antes de dar ao cargo a Fernando Henrique Cardoso.

Esta é a terceira coluna dedicada a relatar e discutir o passado recente da história econômica do país. O objetivo é humildemente tentar entender onde estamos, uma vez que, há sete anos, nosso PIB parece preso numa espécie de areia movediça. Na próxima semana, tem mais, mas, antes, um registro para mostrar como o patrimonialismo, isto é, o hábito secular de grupos sociais de ver a coisa pública como algo que lhes pertença, é uma característica mais forte entre nós do que o populismo: 30 anos depois do Plano Collor, congressistas e Judiciário ainda tomam medidas para compensar servidores públicos que, sem estabilidade constitucional, foram demitidos na ocasião.


Luiz Carlos Azedo: A 'gripezinha'

“Passou da hora de o presidente Bolsonaro ir a Manaus para ver o colapso do SUS. Os profissionais de saúde precisam de mais apoio e distanciamento social”

O biólogo e escritor britânico Richard Dawkins, professor emérito do New College da Universidade de Oxford — autor de O Gene Egoísta e Evolução, entre outras obras —, num comentário no Twitter, chama a atenção para um artigo da revista Science Magazine, da Associação Americana para Avanço da Ciência (AAAS), intitulado Como o coronavírus mata?, publicado no dia 17 deste mês. De autoria dos médicos Meredith Wadman, Jennifer Couzin-Frankel, Jocelyn Kaiser, Catherine Matacic, é um dos melhores textos sobre a pandemia, segundo Dawkins: “Se as pessoas na administração entenderem isso ou se importarem com isso, haveria um resultado melhor para a sociedade”, avalia.

Tratar desse assunto pode parecer chover no molhado, pois não se fala de outra coisa, mas o artigo realmente é muito bom. Ele faz um relato de como o novo coronavírus ataca o corpo humano e seus efeitos devastadores, “do cérebro aos pés”, ultrapassando o senso comum do diagnóstico de que é apenas uma síndrome respiratória aguda. “Pode atacar quase tudo no corpo, com consequências devastadoras”, segundo o cardiologista Harlan Krumholz, da Universidade de Yale e do Hospital Yale-New Haven, que lidera vários esforços para reunir dados clínicos sobre a Covid-19. “Sua ferocidade é de tirar o fôlego e é humilhante.”

O artigo corrobora o relato dos sobreviventes da doença e o testemunho dos médicos e de outros profissionais da saúde que atuam nas unidades de terapia intensiva aqui no Brasil. Muitas vezes esses últimos são duplamente derrotados: além de perderem pacientes, acabam adoecendo também e, em alguns casos, até morrem. Já passou da hora de o presidente Jair Bolsonaro ir a Manaus para ver o que é um colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em meio à pandemia e parar de falar bobagens sobre a “gripezinha”. Tudo o que os profissionais de saúde precisam neste momento dramático é de mais apoio (equipamentos de proteção, respiradores, medicamentos) e distanciamento social.

Médicos e patologistas de todo o mundo estão lutando para entender os danos causados pelo coronavírus no corpo humano. Embora os pulmões sejam o ponto zero, o alcance do patógeno pode se estender a muitos órgãos, incluindo o coração e os vasos sanguíneos, rins, intestino e cérebro, o que explica a grande subnotificação do número de mortos, inclusive aqui no Brasil, devido às dificuldades de diagnóstico e falta de autópsias.

A escalada

O vírus age como nenhum patógeno que a humanidade jamais viu. Quando uma pessoa infectada expele gotículas carregadas de vírus e outra pessoa as inala, o novo coronavírus (Sars-CoV-2) encontra um lar bem-vindo no revestimento do nariz, cujas células são ricas em uma enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), assim como na traqueia. Em todo o corpo, a presença de ACE2, que normalmente ajuda a regular a pressão sanguínea, marca os tecidos vulneráveis à infecção, porque o vírus entra nessa célula receptora. Uma vez dentro, o vírus sequestra as máquinas da célula, fazendo inúmeras cópias de si mesmo e invadindo novas células.

À medida que o vírus se multiplica, uma pessoa infectada pode lançar grandes quantidades dele, principalmente durante a primeira semana. Os sintomas podem estar ausentes neste momento. Ou a nova vítima do vírus pode desenvolver febre, tosse seca, dor de garganta, perda de olfato e paladar ou dores de cabeça e corpo. Se o sistema imunológico não repelir o Sars-CoV-2 durante esta fase inicial, o vírus marcha pela traqueia para atacar os pulmões, onde pode se tornar mortal. Mas o vírus, ou a resposta do corpo a ele, pode ferir muitos outros órgãos: cérebro, olhos, fígado, coração e vasos sanguíneos, rins e intestinos.

Alguns médicos suspeitam de que o ataque vertiginoso do coronavírus no organismo seja uma reação exagerada e desastrosa do sistema imunológico conhecida como “tempestade de citocinas”, na qual os níveis de certas citocinas sobem muito além do necessário, e as células imunológicas começam a atacar tecidos saudáveis. Pode ocorrer vazamento de vasos sanguíneos, queda de pressão arterial, formação de coágulos e falência catastrófica de órgãos. Mas o pior dos mundos, com a presença de vírus no trato gastrointestinal, pode ser a possibilidade inquietante de que ele seja transmitido pelas fezes, ainda mais num país como o nosso, no qual somente uma parcela da população tem esgoto tratado. A sorte, porém, é de que ainda não está claro se as fezes contêm vírus infecciosos intactos ou apenas o seu RNA (ácido ribonucleico), uma molécula responsável pela síntese de proteínas das células do corpo.

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Demétrio Magnoli: Operação geopolítica da China na pandemia terá implicações de longo prazo

Na aurora de 7 de fevereiro, o nome de Li Wenliang surgiu numa inscrição imensa, desenhada na neve, à margem de um rio chinês.

Três meses e uma pandemia depois, em 29 de abril, a página A5 da Folha foi inteiramente ocupada por um informe publicitário que canta as glórias da China. As duas imagens contam uma história —ou melhor, a inversão de uma história. A operação terá implicações geopolíticas de longo prazo.

O médico Li Wenliang, um dos primeiros a soar o alarme da nova doença, foi calado pelo Estado, contraiu o coronavírus e morreu. A notícia correu nas redes sociais, convertendo-o em herói popular: o símbolo da perversidade do regime.

A página publicitária na Folha traz a voz de Xi Jinping, dublada por um "especialista" brasileiro, um diplomata chinês e o médico-burocrata responsável pela medicina tradicional chinesa. É o segundo funeral de Li Wenliang: o panegírico da "eficiência" sanitária do sistema totalitário.

O primeiro pilar da "guerra da informação" deflagrada por Xi Jinping é a manipulação das estatísticas de óbitos. Segundo os números oficiais, a China encerra sua epidemia com 4.600 mortos, 13 vezes menos que os EUA, onde o vírus continua a ceifar 2.000 vidas por dia.

Deborah Birx, a chefe da força-tarefa dos EUA para a Covid, classificou a contabilidade chinesa como "irreal". A palavra quase apareceu num relatório da Comissão Europeia, mas foi suprimida por temor à represália do principal fornecedor de respiradores, máscaras e EPIs.

O segundo pilar é a campanha de "filantropia sanitária", pela transferência gratuita desses equipamentos e materiais a países em desenvolvimento. Nessa frente, o governo chinês divide o trabalho com Jack Ma, fundador do Alibaba, a "Amazon do Oriente". A iniciativa faz parte de um projeto muito mais ambicioso, a "rota da seda sanitária", que almeja converter a China em ator global no setor multibilionário da indústria farmacêutica.

O surto do ebola na África Ocidental, em 2014, foi o palco da aventura pioneira chinesa na política sanitária internacional. Na ocasião, a China cooperou com os EUA, cumprindo papel coadjuvante. Já na "rota da seda sanitária", ela opera unilateralmente, projetando influência no Sudeste Asiático, na Ásia Central e na África.

A escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS, em 2017, alavancada por um lobby chinês, converteu a organização em trampolim para a diplomacia sanitária de Xi Jinping na África, que utiliza a Etiópia como cabeça de ponte.

O FMI estima violentas quedas do PIB anual nos EUA (-5,9%), na Zona do Euro (-7,5%), no Reino Unido (-6,5%) e no Japão (-5,2%), mas discreto crescimento na China (1,2%). A crise do coronavírus acelera as tendências prévias de deslocamento do eixo econômico global. Mas o triunfo geopolítico chinês, apoiado na falsificação da história, deriva essencialmente dos fracassos ocidentais.

Os EUA praticaram o esporte primitivo do negacionismo, retrocederam para o isolacionismo e, no fim, renunciaram a disputar influência com a China na OMS. Trump tenta, pateticamente, livrar-se da responsabilidade pela negligência, atribuindo a pilha de 65 mil cadáveres ao "inimigo estrangeiro" (o "vírus chinês") e disseminando teorias conspiratórias (o "vírus de laboratório"), enquanto faz da emergência sanitária um pretexto para radicalizar a xenofobia.

Do outro lado do Atlântico, a União Europeia fechou descoordenadamente suas fronteiras internas e reativa a tensão entre Alemanha e o trio França/Itália/Espanha em torno das estratégias de resgate da economia.

"Para a China, tudo serve a uma utilidade política; um número nada significa para eles", explica Ai Weiwei, o célebre artista dissidente chinês, referindo-se à macabra piada estatística. A China da página A5 soterra a China da inscrição na neve fofa. Ao mentiroso, as batatas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Luiz Carlos Azedo: A caneta fatal

“Desde que assumiu, Bolsonaro tenta centralizar e verticalizar o poder, o que é uma fonte de conflitos, mas também de equívocos políticos e administrativos”

A caneta Bic é um “case”” de qualidade e produtividade, funciona muito bem e custa relativamente barato. Do ponto de vista da sua finalidade, não fica nada a dever a uma Mont Blanc, objeto de desejo de muitos empresários e executivos vaidosos, como símbolo de riqueza e/ou poder. Lembro de um velho conhecido recém-chegado ao poder que exibiu a sua Mont Blanc na hora de pagarmos o almoço, ficou bravo comigo porque lhe disse, ironicamente, que era caneta de rico. Lascou-se depois, porque a caneta havia lhe sido presenteada por Marcos Valério, aquele publicitário carequinha do escândalo do “mensalão”do PT. Seu nome estava na lista de mimos em poder da secretária, havia ganho a caneta de presente, como brinde de ano-novo.

Secretárias podem ser protagonistas da grande política, assim como a ex-mulher, o motorista ou o caseiro. A política deixou de ser monopólio dos políticos, dos diplomatas e dos militares, como era antigamente. Quando exibe a sua Bic, o presidente Jair Bolsonaro sinaliza para a sociedade que é um homem austero, simples, que não se deixou deslumbrar pelo poder. É um recado que passa para preservar a sua imagem de presidente da República eleito contra o “sistema de poder” e a “velha política”. Será? No seu caso, isso é falso; o problema não é a caneta, é a tinta. Não existe caneta mais poderosa e endinheirada do que a sua Bic. Haja vista a negociação em curso com o Centrão.

Ontem houve a nova troca de cadeiras na Esplanada. Bolsonaro nomeou dois novos ministros: André Mendonça na Justiça e José Levi na Advocacia-Geral da União. Ambos foram elogiados pela competência técnica por Gilmar Mendes e Luís Barroso, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro desistiu de nomear o atual secretário-geral da Presidência, ministro Jorge Oliveira, que trata como afilhado, para o lugar que era ocupado por Sergio Moro, por pressão dos ministros militares e a pedido do próprio Oliveira. Mas ninguém se iluda, a causa da dança nas cadeiras foi a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, no lugar de Maurício Valeixo, pivô da crise entre Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro. O novo diretor-geral chefiava a Agência Brasileira de Informações (Abin).

O juiz federal Francisco Alexandre Ribeiro, de Brasília, deu prazo de 72 horas para a União prestar informações sobre a exoneração de Maurício Valeixo da direção-geral da Polícia Federal. Ele é relator de três ações populares que buscam impedir a nomeação de Alexandre Ramagem por desvio de finalidade. O fato é importante para se ter a dimensão do problema criado pelo presidente Bolsonaro para si próprio, supostamente com objetivo de obter informações confidenciais sobre investigaçoes criminais e relatórios de inteligência. Embora subordinada administrativamente ao Executivo, a Polícia Federal é técnica e judiciária, tem sua própria autonomia, que se traduz na competência dos delegados para presidir os inquéritos policiais.

A Polícia Federal é um órgão de excelência, com pessoal concursado e altamente qualificado, recrutado entre os melhores com vocação para esse tipo de atividade. De certa forma, foi blindada pela Constituição para não cumprir o papel de polícia política, como aconteceu durante o regime militar, quando complementou e legitimou a atuaçao de órgãos clandestinos de repressão política das Forças Armadas. Esse trauma fez com que os constituintes atribuíssem claramente à PF o papel de um órgão de coerção do Estado, e não do governo. A nomeação de Ramagem, um delegado de carreira, resgata esse trauma, não por causa de sua competência técnica, mas devido à motivação da mudança. Além disso, sendo mais novo na carreira, fura a fila das promoções, o que sempre deixa sequelas, haja vista a situação no Itamaraty.

Inércia continental
Vivemos numa democracia de massas, o Estado brasileiro é ampliado, não no sentido da quantidade de servidores ou da intervençao na economia, mas de sua relaçao com os demais Poderes e entes federados, com a sociedade e suas instituições. Desde que assumiu, Bolsonaro tenta centralizar e verticalizar o poder, o que é uma fonte de conflitos, mas também de equívocos políticos e administrativos. Num país de dimensões continentais, a força de inércia das decisões do governo federal é imensa, como a de um grande navio cargueiro na hora de manobrar e de parar. Por isso mesmo, uma decisão equivocada pode se tornar um desastre irreversível. O fato de termos um Executivo que interage com outros poderes e esferas de governo, permeável à sociedade e que se relaciona com suas instituições, reduz a margem de erro e amplia a de soluções.

Agora mesmo, na epidemia de coronavírus, estamos sofrendo as consequências da mudança de postura do governo federal em relação ao distanciamento social. Ultrapassamos a China em número de mortos — mais de cinco mil — e estamos no limiar da barreira das 500 mortes por dia, em consequência do relaxamento da quarentena estimulado por Bolsonaro. É patético ver o ministro da Saúde, Nelson Teich, com cara de mareado no navio; o general encarregado da logística, não se dar conta de que o número de novos contaminados que precisam de UTI é muito maior do que o de respiradores que consegue distribuir; e o principal sanitarista do MS guardar o colete do SUS no armário e, de paletó e gravata, esquecer o bordão que disseminou por todo o país: “Fiquem em casa”. Depois dos Estados Unidos e Reino Unido, somos o terceiro em número de mortos por dia. Ou seja, estamos virando o epicentro da pandemia.

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Demétrio Magnoli: As mentiras nos EUA luzem sob o sol, enquanto na China seguem abaixo da superfície

Trump mente ininterruptamente; já o regime de Xi Jinping fabrica 'verdade' paralela da pandemia

“Na guerra, a primeira vítima é a verdade.” Essa verdade célebre, cuja autoria atribui-se tanto ao senador americano isolacionista Hiram Johnson (1918) quanto ao grego Ésquilo, o pai da tragédia, no século 5º a.C., vale também para a Peste Negra em curso. Mas as mentiras são diferentes: nos EUA, luzem sob o sol; na China, seguem escondidas abaixo da superfície.

Donald Trump mentiu ininterruptamente, retardando a preparação dos EUA para enfrentar a pandemia.

No fim de janeiro, disse à rede CNBC: “Temos isso sob controle total. É uma pessoa vinda da China, e a temos sob absoluto controle”. No início de fevereiro, gabou-se na Fox News: “Nós basicamente desligamos isso, que vinha da China”.

No final de fevereiro, garantiu que “isso é mais ou menos como a gripe; logo teremos uma vacina” e, referindo-se ao número de infecções, acrescentou: “Vamos substancialmente para baixo, não para cima”. Os EUA tinham, então, 68 casos; hoje, são 240 mil.

No meio de março, quando finalmente admitiu que o vírus “é muito contagioso”, ainda adicionou: “Mas temos tremendo controle sobre isso”.

A mentira trumpiana é uma narrativa política em constante mutação. Apoia-se nas muletas dos “jornalistas” chapa-branca e do aparato de difusão de fake news da direita nacionalista nas redes sociais.

Acredita quem quer —e não são poucos. Contudo, ela concorre com as vozes discordantes, que não são caladas pela força, e sobretudo com a verdade (factual), que emana tanto de órgãos oficiais quanto da imprensa independente. A hora da verdade (política) chega nas eleições, ocasião em que a maioria decidirá se prefere a mentira.

A China também mente sem parar, mas de modo diferente, fabricando uma “verdade” paralela.

A mentira chinesa tem raízes fincadas no chão do controle social totalitário. Ela se espraia por toda a vida cotidiana, propiciando a manipulação centralizada das estatísticas hospitalares —isto é, da fonte primária de informações sobre a natureza da crise.

Há indícios alarmantes de que os números fornecidos pelo governo chinês miniaturizaram a epidemia. Nos EUA, estima-se que a Covid produzirá entre 1 e 3 milhões de casos positivos e algo entre 100 mil e 240 mil mortes.

Já na China, situada em latitude semelhante e com mais de quatro vezes a população americana, a Covid teria praticamente estancado, com menos de 83 mil casos acumulados e cerca de 3.200 mortes. O contraste intriga os mais respeitados epidemiologistas —inclusive Deborah Birx, coordenadora da força-tarefa dos EUA para o coronavírus.

No centro do mistério está a contabilidade de óbitos. Os casos pioneiros da Covid em Wuhan ocorreram em dezembro, mas a notícia foi interditada e os médicos que os relataram, silenciados. A quarentena começou em 23 de janeiro. O vírus teve mais de três semanas para se disseminar, enquanto comemorava-se o Ano-Novo chinês.

Testemunhos anônimos de agentes de saúde chineses dão conta de incontáveis internações sem testagens e centenas de óbitos atribuídos a influenza ou pneumonia. No final de março, veículos online chineses publicaram fotos, tomadas por cidadãos comuns, de milhares de urnas funerárias ainda alinhadas em crematórios de Wuhan.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) nada viu de estranho nos números chineses —e celebra a “eficiência” totalitária de Xi Jinping. Tedros Adhanom, seu diretor-presidente, eleito com decisivo apoio chinês, um ex-integrante do núcleo duro do governo autoritário etíope, não parece alimentar dúvidas entre as alternativas de assegurar a bilionária parceria da China com a OMS ou proteger a verdade (estatística).

Mas, de acordo com relatórios sigilosos da inteligência americana que começam a vazar, a China engajou-se na fabricação de uma mentira monumental, iludindo o mundo.

Mentiras são diferentes. Todas elas, porém, cobram vidas.

*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Luiz Carlos Azedo: Reflexões sobre a epidemia

“Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica”

Quando as ideias liberais clássicas de Adam Smith pareciam consagradas no Ocidente, em meio à corrida mundial para reinventar o Estado, a epidemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar. O revisionismo reformista de Lord John Maynard Keynes parece renascer das cinzas, com sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro. Para conter a epidemia, o mundo está mergulhando numa recessão geral, fruto da globalização tanto quanto a propagação do novo coronavírus, que começou na China, tomou de assalto a Europa, se instala nos Estados Unidos e se expande na periferia, na qual países como a Índia e o Brasil se preparam para a uma tragédia anunciada.

Para o keynesianismo, os níveis de consumo, de investimentos público e privados e aplicações dos cidadãos são determinantes da política econômica. Quando eles se retraem, a crise vem a galope. A velha fórmula de Keynes para enfrentar essa situação está sendo exumada por ninguém menos do que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que pretende injetar mais de US$ 1 trilhão na economia norte-americana para aliviar o sufoco gerado pela paralisação da economia. A Casa Branca foi o centro da resistência à política de distanciamento social preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas capitulou, diante da tomada de Nova York pela epidemia. Da cidade mais rica do mundo, a epidemia se espalha por todos os estados da União.

Como na Grande Depressão de 1929, só o Estado pode conter o atual desequilíbrio da economia. Aquela crise teve outras causas: foi consequência da grande expansão de crédito por meio de oferta monetária (emissão de dinheiro e títulos), que precisou ser freada. O governo parou, começou a enxugar o mercado e a operar uma política de restrição de empréstimos. Temendo a desvalorização da moeda, muitas pessoas e empresas retiraram suas reservas dos bancos, dando início a um processo de recessão.

A solução para esse problema seria controlar a recessão, permitindo a liberdade de preços e salários, até que o mercado se adequasse à nova situação. No entanto, ao contrário disso, o governo passou a exercer arrochado controle sobre os preços e os salários, além de promover aumento de impostos. Isso agravou a recessão e, em cinco dias, a Bolsa quebrou, levando à falência empresas e bancos e, ao desemprego, 12 milhões de pessoas nos Estados Unidos, uma recessão que se alastrou por todo o mundo.

A fórmula de Keynes era os governos aplicarem grandes remessas de capital na realização de investimentos que aquecessem a economia de modo geral, além de linhas de crédito a baixo custo para garantir a realização de investimentos do setor privado e a elevação dos níveis de emprego. Mas isso era uma ofensa ao “livre mercado”. Coube ao presidente Franklin Delano Roosevelt, um homem paraplégico por causa da poliomielite, enfrentar a recessão.

Governador de Nova York desde 1928, disputou e ganhou a Presidência dos Estados Unidos em 1932, prometendo um novo e ousado plano de ação para resgatar a nação dos efeitos da grande depressão. Convenceu os americanos de que não havia mais nada a temer. Empossado em março de 1933, em apenas 100 dias, Roosevelt conseguiu aprovar no Congresso seu plano baseado nas ideias keynesianas. O New Deal (Nova Ordem) garantiu US$ 3,3 bilhões para investir na criação de empregos e na recuperação industrial. Nascia o Estado de bem-estar social.

Errático
Roosevelt propôs programas inovadores, que geraram milhões de empregos, e criou a Lei de Seguridade Social, um plano de aposentadoria com abrangência nacional, a grande herança de seu governo. Reeleito três vezes (1936, 1940 e 1944), morreu pouco antes do fim da II Guerra Mundial, na qual foi um dos Três Grandes, ao lado de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico, e Youssef Stálin, o líder da antiga União Soviética, que comandaram as forças aliadas contra o nazifascismo.

Aqui no Brasil, diante da epidemia de coronavírus, a política econômica ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, entrou em colapso. Tornou-se insustentável diante da redução da atividade econômica. Na verdade, seus resultados já eram pífios antes da epidemia.. Economistas como Armínio Fraga, Monica de Bolle e André Lara Rezende já vinham questionando o ministro. O mercado já está com saudades do ex-ministro Henrique Meirelles, hoje secretário da Fazenda de São Paulo.

É esse debate que está por trás do embate entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores em relação às medidas de quarentena adotadas nos estados e municípios. Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica. O remédio é deixar morrer. Ontem, foi à tevê, em cadeia nacional, para atacar a imprensa, os governadores e os prefeitos e criticar as medidas de distanciamento social adotadas para conter a epidemia, que continua chamando de gripezinha. Quando parecia ter entrado em entendimento com os demais governantes, recrudesceu. Temos um presidente errático em relação à crise que o país enfrenta.

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