EUA
Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a ONU
Governo atual é prova de que mundo acertou ao não conceder vaga no CS ao Brasil
O governo de Jair Bolsonaro e seus posicionamentos na arena internacional são a prova definitiva de que o mundo acertou ao não conceder ao Brasil um lugar como membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU, organização que completa 75 anos de existência.
Não que tenha havido uma chance clara de galgarmos tal condição. As discussões sobre reforma da ONU dificilmente passarão de discussões. Mas, durante muito tempo, em especial nos governos petistas, conquistar uma vaga permanente foi meta quase obsessiva do Itamaraty, o que, aliás, nos levou a posicionamentos moralmente discutíveis, incluindo a defesa de ditaduras de olho em seus votos.
Os despautérios sobre queimadas e pandemia que Bolsonaro deve proferir hoje em seu discurso de abertura da Assembleia Geral ficam mais ou menos limitados a nos expor ao ridículo, porque não passamos de um membro ordinário da organização Mas, se tivéssemos um papel de maior relevo, aí as inconstâncias e insensatezes de governos brasileiros teriam um impacto negativo mais concreto sobre o mundo. Uma das funções do CS é promover a moderação e limitar a capacidade das grandes potências de fazer o que bem entenderem.
O problema de fundo, que nos inabilita para uma vaga permanente no CS, é que nossa institucionalidade não evoluiu o bastante para diferenciar na prática os interesses estratégicos do Estado brasileiro dos objetivos propagandísticos de governos, que são por definição transitórios.
Pessoalmente, vou até um pouco mais longe e acho que o Brasil deveria abdicar permanentemente de alcançar uma vaga permanente no CS. Ela serviria para inflar o ego de presidentes, ministros e diplomatas, mas não vejo que benefícios traria ao cidadão. Pelo contrário, implicaria mais despesas para os cofres públicos e nos levaria a fazer alguns inimigos no cenário internacional. Não há nada errado em ser uma nação "low profile".
Cristina Serra: Itamaraty acovardado
Governo adotou postura indigna e covarde de submissão aos senhores da guerra
O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, usou o território brasileiro para bater os tambores da guerra, hostilizar a Venezuela e desfilar sobre o tapete vermelho da sabujice estendido pelo governo Bolsonaro.
A cruzada persistente de Trump contra nosso vizinho ecoa a de Bush filho contra o Iraque, que resultou na invasão do país, em 2003, em nome das armas de destruição em massa de Saddam Hussein, nunca encontradas. Coincidência que os dois países tenham imensas reservas de petróleo? Curiosa é a preocupação democrática seletiva dos EUA, aliados inabaláveis da Arábia Saudita, um dos regimes mais repressivos do mundo.
Felizmente, a presença de Pompeo aqui, em plena campanha de reeleição de Trump, foi contestada por lideranças das mais variadas filiações políticas e matizes ideológicos.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a considerou uma "afronta". Seis ex-chanceleres, que serviram aos governos Collor, Itamar, FHC, Lula e Temer, lembraram que a Constituição brasileira preconiza a independência nacional, a autodeterminação dos povos, a não intervenção e a defesa da paz.
A Venezuela de Nicolás Maduro está enredada em um labirinto, com uma democracia degradada, instituições em colapso, graves violações aos direitos dos cidadãos e uma crise econômica agravada pelas sanções norte-americanas, conforme registrado seguidamente pela alta-comissária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Michele Bachelet. Até o fim deste ano, estima-se o êxodo de até seis milhões de venezuelanos. Uma tragédia humanitária sem precedentes na América Latina.
É imperativo encontrar mecanismos de mediação entre governo e oposição para uma plena restauração democrática no país fronteiriço. A diplomacia brasileira tem história e reputação internacional na construção da paz. Mas, sob Bolsonaro, preferiu adotar a postura indigna e covarde de submissão aos senhores da guerra.
José Casado: Planos para uma guerra
É novidade a sincronia entre Brasília e Washington no planejamento do cerco militar ao regime de Caracas
Na sexta-feira, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, acabou enredado num roteiro quase cômico. Saiu de Washington, parou em Boa Vista, xingou o ditador vizinho Nicolás Maduro, desafiando-o a sair no braço, voltou ao avião e foi embora. Teve como coadjuvante o chanceler Ernesto Araújo, burlesco cruzado do obscurantismo bolsonarista, para quem um agente “comunista-globalista” é o responsável pela morte de mais de 137 mil brasileiros — o “comunavírus”.
Da visita de Pompeo, ex-chefe da CIA, restou o eco da investida contra o líder da cleptocracia venezuelana, qualificado como narcotraficante. Nada de novo, tudo verdade.
Inovador foi o aval do governo Jair Bolsonaro a um diplomata estrangeiro para usar o território brasileiro num ataque a governo vizinho. Esse delito constitucional foi flagrado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Desde a redemocratização, interferências indevidas na política dos vizinhos eram feitas no exterior. Lula, por exemplo, fez comícios na Venezuela pela reeleição do ditador Hugo Chávez e mobilizou a marquetagem do PT para ajudar a eleger o sucessor Maduro, enquanto a Odebrecht pagava as contas.
Outra novidade foi a sincronia entre Brasília e Washington no planejamento do cerco militar ao regime de Caracas. Mobilizaram-se três mil soldados brasileiros, satélites e baterias de foguetes, levadas por 4,6 mil km, numa simulação de guerra convencional na fronteira Norte.
A “Operação Amazônia” acaba amanhã. Foi desenhada junto com a “Poseidon” no Caribe, conduzida pelo Comando Sul dos EUA com tropas colombianas. O cerco a Maduro incluiu Guiana e Suriname, que disputam limites no Atlântico com a Venezuela para exploração de petróleo. Pompeo visitou-os e saiu com acordos de livre trânsito para os aviões do Pentágono.
Ontem, em Brasília, parlamentares preparavam “moção de censura” ao secretário americano pela cena insólita em Boa Vista. Alvo errado. Foi Bolsonaro e o seu chanceler que jogaram o Brasil num plano de guerra contra a Venezuela, e com explícito desprezo ao Congresso.
Luiz Sérgio Henriques: Duas nações, uma crise
Sinais de alarme soam diante da devastação que Trump e Bolsonaro têm promovido
Poucas vezes um evento terá tanta relevância além das fronteiras de um país quanto as iminentes eleições norte-americanas, a indicar como, acima das reivindicações exclusivistas de soberania nacional da parte de atores deliberadamente cegos ou orgulhosamente obtusos, os processos de interdependência terminam por impor sua lógica e tornar menos dessemelhantes realidades originalmente distintas. É como se – considerando Estados Unidos e Brasil – o sistema político de cada qual se destacasse das respectivas matrizes históricas, individualistas num caso, organicistas no outro, e apresentasse o mesmo problema, de tal modo que, sinalizando futuras e cada vez mais frequentes influências recíprocas, os resultados americanos de novembro viessem a condicionar vigorosamente as coisas por aqui.
Em tese, a matriz anglo-saxã asseguraria, com razoável grau de previsibilidade, a boa saúde da democracia na América, enraizando-a em indivíduos livres e acostumados à participação na vida pública. Em contrapartida, ibéricos como somos, tenderíamos à arquitetura social “barroca”, perdido o indivíduo numa totalidade que não domina e frequentemente o esmaga, pelo menos na versão pessimista tantas vezes predominante. Estruturalmente liberal-democratas, os americanos; intimamente autoritários e às voltas com autoritarismos, condenados a regar monotonamente a mirrada planta da democracia, nós, brasileiros.
O fato é que o sistema político das duas grandes nações, por artes de um mundo que parece ignorar particularismos, encontra-se desafiado por uma questão análoga. Como efeito do abrasileiramento dos EUA ou da americanização do Brasil, ambos se tornaram casos de manual dos procedimentos em curso de “morte das democracias”, com a corrosão das suas normas escritas e não escritas, das suas regras e dos seus valores. Os sinais de alarme soam diante da devastação que, quase em paralelo, Donald Trump e Jair Bolsonaro têm promovido em circunstâncias já de si muito difíceis. E como advertem os estudiosos, a obtenção de um segundo mandato por líderes desse tipo configuraria uma situação ainda mais perigosa, sem exclusão da possibilidade de crises institucionais.
Há uma coleção de ineditismos na conduta de Trump que requer algum esforço analítico maior. No plano externo, quem jamais imaginaria o afastamento entre EUA e seus aliados tradicionais, os países do Ocidente democrático, além da admiração de Trump por dirigentes autoritários, incluído o agora arquirrival Xi Jinping? Quem suporia, há alguns anos, a aliança tácita com Vladimir Putin em chave antieuropeia, minando um projeto de superação de rivalidades que conduziram, só no século 20, a uma prolongada “guerra civil continental” entre 1914 e 1945?
O lema “America first”, que sintetiza a retirada das instâncias multilaterais, a começar pela ONU, pode ter uma leitura realista de que todo governante deve cuidar antes de tudo do próprio país e estaria arruinado se não o fizesse. Mas deve-se entendê-lo mais adequadamente como sintoma de renúncia ao universalismo dos valores liberais trazidos audaciosamente ao mundo pela revolução americana – afinal de contas, uma moderna guerra de libertação nacional. Renúncia, portanto, que explicita incapacidade de direção dos processos globais e recuo para um horizonte “corporativo”, que aquele país, sob Trump, só tem abandonado de tempos em tempos em favor de ações erráticas e unilaterais.
O mesmo déficit de hegemonia ocorre internamente. Poucas vezes, como agora, ocupou a sala de comando um governante voltado apenas para o próprio gueto de fiéis, a bradar contra a diversidade social, os avanços culturais e as oposições políticas, entendidos todos eles como diferentes expressões de um “inimigo interno” que ameaça o excepcionalismo e o “manifesto destino” americano. A deslegitimação dos adversários, que está no coração do conservadorismo “revolucionário”, é uma traição aos princípios liberal-democráticos e implica, em perspectiva, a substituição da persuasão por meios autocráticos de mando – por uma ditadura, em suma. Mesmo um moderado como Joe Biden aparece como cavalo de Troia da revolução de esquerda que ameaçaria o americano comum. E já há quem monte cenários em que Trump denunciará os resultados caso lhe sejam adversos, ou se recusará a deixar o poder. Nada mais “latino-americano”, na velha conotação, que, por óbvio, mencionamos sem subscrever.
Difícil imaginar que a convergência de crises apague os sinais de batismo das duas sociedades. O mundo globalizado, ao contrário do que pensam os detratores, não é uma abstração vazia na qual sumam as combinações particulares de liberdade e igualdade, indivíduo e comunidade. Contudo, seja no mundo “ibérico”, seja no “anglo-saxão”, o requisito para despontarem a diferença e a multiplicidade é a universalidade da democracia. Sem ela, como o comprovam cotidianamente Trump e Bolsonaro – o original e o rascunho –, não equacionaremos a atual e aguda crise civilizatória. Na verdade, nem sequer a perceberemos.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Luiz Carlos Azedo: Senhor da guerra
Mike Pompeo, o secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente da Venezuela, Nicolas Maduro
A inusitada visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a um campo de acolhimento de venezuelanos refugiados em Boa Vista (RR) foi uma evidente provocação política, cujo objetivo é escalar as tensões entre a Venezuela e seus vizinhos. E, com isso, dar uma mãozinha para a campanha eleitoral do presidente Donald Trump, que está perdendo a reeleição para o candidato do Partido Democrata, Joe Biden. O Brasil armou o circo porque interessa ao presidente Jair Bolsonaro a vitória de seu amigo republicano. A eleição de um democrata provocaria o colapso da política externa desenvolvida pelo chanceler Ernesto Araújo, considerada um desastre por seus colegas mais experientes do Itamaraty.
O que o Brasil ganhará em troca? Em princípio, 30 moedas, ou seja, US$ 30 milhões para auxiliar a assistência social aos imigrantes. Não chega nem perto do que estamos perdendo em investimentos em razão da política ambiental de Bolsonaro, embora o presidente da República diga que é a melhor do mundo. Só no Fundo da Amazônia, Noruega e Alemanha, que suspenderam seus investimentos, foram responsáveis por 99% dos R$ 3,3 bilhões destinados à proteção da Amazônia. Voltemos à visita de Pompeo. O secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente Nicolas Maduro. Todo presidente dos Estados Unidos que está perdendo as eleições gosta de exibir seus músculos na política externa.
Do Brasil, Pompeo viajou para a Colômbia, cuja fronteira com a Venezuela é o ponto mais quente das tensões na América do Sul. O presidente Ivan Duque é outro aliado incondicional de Trump, que mantém assessores e aviões norte-americanos em território colombiano. Antes, Pompeu havia estado no Suriname e na Guiana, que também vive um estresse com a Venezuela, com o agravante de que sua fronteira nunca foi reconhecida pelos venezuelanos. Na Guiana, Pompeo voltou a criticar Maduro: “Sabemos que o regime de Maduro dizimou o povo da Venezuela e que o próprio Maduro é um traficante de drogas acusado. Isso significa que ele tem que partir”, afirmou. Para a situação política no país vizinho, a provocação só teria consequência prática se houvesse uma intervenção. Afora isso, fortalece a unidade das Forças Armadas venezuelanas e endossa a narrativa de Maduro para reprimir a oposição.
Operação Amazônia
Entretanto, vejam bem, a declaração que Pompeo deu em Boa Vista (RO) foi enigmática quanto ao que os Estados Unidos pretendem realmente fazer. Questionado sobre quando o ditador Nicolás Maduro deixará o poder, respondeu que em casos como a Alemanha Oriental, Romênia e União Soviética, todo mundo fazia a mesma pergunta. “Quando esse dia vai chegar? Ninguém imaginava, mas aconteceu”. Pompeo é ex-diretor da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, que se especializou em fomentar conflitos entre países vizinhos e guerras civis.
Republicano, Pompeo é um político reacionário do Kansas, que se destacou no Congresso norte-americano por combater o movimento LGBTQIA+. Também foi um dos proponentes de um projeto de lei que proibiria o financiamento federal de qualquer grupo que realizasse abortos, e outro que incluiria nascituros entre os categorizados como “cidadãos” pela 14ª Emenda. Ele também votou a favor da proibição de informações sobre o aborto em centros de saúde escolares e pela proibição de financiamento federal à Planned Parenthood e ao Fundo de População das Nações Unidas.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em razão das declarações de Pompeo, emitiu uma nota com duras críticas à visita do secretário de Estado. Deve saber de mais coisas sobre a conversa entre secretário norte-americano e o chanceler brasileiro. A visita também coincide com a mobilização de tropas, equipamentos e armamentos para a Operação Amazônia, que faz parte do Programa de Adestramento Avançado de Grande Comando (PAA G Cmdo), envolvendo mais de 3.000 militares, de cinco comandos diferentes. A operação será realizada nas proximidades de Manaus, até 23 de dezembro, portanto, bem longe da fronteira com a Venezuela.
O Ministério da Defesa e os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica nunca foram favoráveis à escalada de tensões com a Venezuela, embora tenhamos mais homens, tanques, embarcações e aviões do que o país vizinho. As vantagens venezuelanas são os 24 caças SU-30, os helicópteros Mi-17, os tanques T-92 e os mísseis S-300, capazes de atingir com precisão alvos a 250km, todos de fabricação russa e entre os melhores do mundo. Mas, o grande trunfo de Maduro é o apoio ostensivo do presidente Vladimir Putin, da Rússia, que adora jogar uma boia para ditadores que estão se afogando, e a discreta, mas robusta, ajuda econômica da China. Na proposta de atualização da Política Nacional de Defesa, enviada pelo governo ao Congresso, pela primeira vez, desde a Guerra Malvinas, o Brasil admite a possibilidade de um confronto militar com um país vizinho.
Oliver Stuenkel: Vitória de Biden nos EUA deixaria Brasil isolado no Ocidente
Pragmatismo do candidato democrata não seria suficiente para evitar uma ruptura na relação entre Washington e Brasília
Com menos de cinquenta dias até o pleito presidencial nos Estados Unidos, fica cada vez mais evidente que a reeleição do presidente Trump está em perigo. A reviravolta de 2016, quando Trump superou Hillary Clinton de última hora, sugere que é preciso ter cautela, mas a vantagem de Biden na maioria dos estados decisivos indica que o cenário mais provável hoje é uma vitória do candidato democrata. O Brasil, cujo presidente apostou todas as suas fichas na aproximação com Trump, seria um dos países mais afetados pela vitória de Biden. A parceria entre Bolsonaro e Trump pode não ter gerado frutos tangíveis para o Brasil, mas, ainda assim, o capitão perderia o líder que norteou a atuação externa do Brasil de Bolsonaro.
Vários especialistas acreditam que uma vitória de Joe Biden não necessariamente causaria uma ruptura nas relações entre os Estados Unidos e o Brasil. Roberto Simon, colunista da Folha de S. Paulo, recentemente escreveu que “um antagonismo profundo parece improvável”, afirmando que Biden seria “um pragmático convencido da importância da relação com o Brasil.” Não há dúvida de que o democrata teria pouco interesse em isolar o Brasil e empurrá-lo para os braços da China ― afinal, espera-se que Biden mantenha a atual estratégia de Trump em relação ao país asiático.
Porém, a avaliação dos otimistas tacitamente presume uma forte dose de pragmatismo do lado de Bolsonaro, e pouco na sua atuação externa até hoje sugere que tenha interesse ou capacidade para tal. O caso da derrota de Maurício Macri na Argentina no fim de 2019 serve como exemplo preocupante. A maioria dos analistas esperava que Bolsonaro adotasse uma postura pragmática quando ficou claro que Alberto Fernández, aliado de Cristina Kirchner, grande inimiga do bolsonarismo, se tornaria presidente. Deu-se o oposto. Bolsonaro disse que “bandidos de esquerda” estavam de volta ao poder em Buenos Aires e alertou que o Rio Grande do Sul teria que se preparar para a chegada de refugiados argentinos. Até hoje, Bolsonaro nunca falou com Alberto Fernández. A relação bilateral entre os dois maiores países da América do Sul está na sua pior crise desde os anos 1980.
O exemplo da relação bilateral com a China tampouco inspira otimismo. Muitos esperavam que Bolsonaro abraçaria o pragmatismo depois de ter atacado a China durante a campanha presidencial. Uma vez eleito, porém, pouco mudou. Enquanto o vice-presidente Mourão atuou como bombeiro em várias ocasiões e apagou incêndios, Eduardo Bolsonaro e o então Ministro de Educação, Abraham Weintraub, voltaram a atacar o Governo chinês neste ano, levando a um bate-boca público inédito, envolvendo o cônsul-geral chinês no Rio de Janeiro. A relação do Brasil com a China hoje está marcada pela desconfiança, longe daquilo que era poucos anos atrás.
No caso americano, portanto, não podemos ter a certeza de que o Governo Bolsonaro atuará de maneira diferente ― afinal, para Bolsonaro, a política externa é uma ferramenta chave para animar a base mais radical, e é utilizada para que o presidente possa se projetar como protetor do Brasil contra as numerosas ameaças internacionais. Mesmo com Biden liderando com folga, Eduardo Bolsonaro decidiu compartilhar, nas redes sociais, um vídeo pró-Trump, que levou o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Congresso Americano, controlado pelo Partido Democrata, a soltar uma nota de protesto.
Como o brasilianista americano Brian Winter apontou em um debate recente, para manter uma relação bilateral construtiva sob Bolsonaro e Biden, será preciso manter o presidente brasileiro longe do debate público americano. À primeira vista, parece viável ― afinal, o Brasil não é e nunca foi uma prioridade da política externa americana. Porém, três fatores sugerem que o plano de manter Bolsonaro longe dos holofotes nos EUA pode fracassar.
Em primeiro lugar, para pensar sobre a reação de Bolsonaro a uma possível vitória de Biden, é preciso lembrar que Trump dificilmente aceitaria o resultado ― afinal, mesmo em 2016, quando ganhou, insistiu, sem apresentar nenhuma evidência, que milhares de “imigrantes ilegais” teriam votado nos democratas. Agora, diz frequentemente que as eleições de 2020 serão as “mais corruptas da história”, outra vez sem apresentar nenhuma evidência para tal afirmação. Devido ao elevado número de eleitores que votarão por correio, serão dias ou semanas até que se finalize a contagem dos votos. Uma pesquisa recente da NBC News / Wall Street Journal mostrou que quase metade dos apoiadores de Biden planeja votar pelo correio, em comparação com apenas 10% dos apoiadores de Trump. Esse cenário aumenta a probabilidade de que Trump apareça como favorito nas primeiras pesquisas de boca de urna, uma vez que muitos democratas já terão votado. Não requer muita criatividade para imaginar que Trump poderia se aproveitar dessa situação para declarar vitória antes de a contagem dos votos enviados por correio começar.
Durante semanas ou meses de incerteza, em que Trump se recusasse a ceder e frequentemente apresentasse supostas evidências por fraudes, como reagiria Bolsonaro e sua família? Para um anti-globalista pró-Trump, como Olavo de Carvalho ou Ernesto Araújo, a teoria da conspiração que globalistas, comunistas, Biden, Maduro, o PT, George Soros e ateus e chineses se uniram para roubar a eleição de Trump poderia ser irresistível. Se Bolsonaro ou seus familiares optarem por defender publicamente Trump durante o impasse, haverá pouco espaço para pragmatismo quando Biden se tornar presidente.
Em segundo, o desmatamento e o aquecimento global tornaram-se, há tempos, uma preocupação não apenas do mainstream político no Ocidente, mas também são vistos, hoje, como uma ameaça de segurança por Forças Armadas ao redor do mundo. Presumindo-se que Bolsonaro continuará sua postura ambiental atual, seria ingênuo acreditar que Biden conseguiria ficar calado diante do tema ― e a crise diplomática causada pelos incêndios de 2019 nos dá pistas sobre como Bolsonaro responde a críticas internacionais.
Por fim, seria um erro acreditar que o trumpismo como movimento acabaria com a derrota de Trump. Mesmo fora da Casa Branca, Trump estará no controle do Partido Republicano e tentará emplacar sua filha Ivanka como candidata a presidente em 2024. Steve Bannon e outros estrategistas buscarão se reagrupar para atacar nas eleições parlamentares já em 2022. É evidente que Eduardo Bolsonaro manteria contato com redes de extrema-direita nos EUA. Defender uma abordagem pragmática em tais circunstâncias seria um desafio enorme para Biden.
Se a política brasileira dos últimos dois anos nos ensinou alguma coisa é que nunca podemos subestimar o presidente da República. Seria uma excelente notícia se ele conseguisse adotar uma postura pragmática caso, de fato, Biden saia vitorioso. Porém, diante do histórico da política externa bolsonarista até agora, é preciso se preparar para uma crise na relação com os EUA ― e o crescente isolamento do Brasil no Ocidente.
Affonso Celso Pastore: EUA, Europa e Brasil
Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana
Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana. Ciclos econômicos nos EUA afetam a economia mundial; a guerra comercial contra a China iniciada por Trump interfere com o Brasil devido às relações comerciais que mantemos com ambos; e, acima de tudo, o mercado financeiro centrado em Nova York, interage intensamente com a economia brasileira, afetando direta e indiretamente o seu comportamento. De um modo geral, temos muito a aprender com os EUA, mas não com a sua reação à pandemia e às suas consequências na política monetária. Neste caso, ganharíamos muito mais se prestássemos a devida atenção ao que vem ocorrendo na Europa.
Enquanto o governo dos EUA optou pela negação da pandemia, os vários governos europeus impuseram desde logo um rígido lockdown, que derrubou o contágio e permitiu o início mais rápido de uma cuidadosa reabertura, que favoreceu o bem estar de suas populações.
Como o PIB é uma medida imperfeita de bem-estar, não reflete o ganho devido ao já quase pleno retorno à livre movimentação dos europeus. Porém, acima de tudo, a boa reação europeia no campo sanitário levou a uma utilização bem menos intensa de estímulos monetários. De fato, o BCE vem gerando uma expansão de seu ativo significativamente menor do que a do Fed, e a maior preocupação dos governos europeus é com o “futuro do euro”, para cuja consolidação, na última reunião do Conselho Europeu, foi aprovado um fundo de recuperação de € 750 bilhões, com € 390 bilhões na forma de subvenções e € 360 bilhões em empréstimos. Os europeus reagiram racionalmente à pandemia; foram prudentes na política monetária, e apesar da oposição dos países “frugais” procuraram exorcizar o fantasma de uma nova versão do Brexit, defendendo a moeda única e a cooperação entre os países do bloco.
Já a negação da pandemia por parte do governo dos Estados Unidos levou o país, após uma segunda onda de contágio, a amargar uma média de mil mortes por dia, e para compensar os efeitos econômicos de sua omissão no campo sanitário teve que exagerar na concessão de estímulos monetários, cuja intensidade é melhor avaliada observando seus reflexos sobre os preços dos ativos.
A compra de treasuries por parte do Federal Reserve tem sido tão intensa que derrubou todas as suas taxas de juros para próximo da taxa dos fed funds. Os governos emitem dois tipos de passivo: o que rende juros – os títulos da dívida pública – e o que não rende juros – o papel moeda, e diante de uma estrutura de taxas gravitando em torno de zero tudo se passa “como se” estivesse jogando moeda de um helicóptero. No passado, as curvas de juros já foram inclinadas e planas, mas nunca devido a este comportamento do Fed. Uma de suas consequências é acentuar a tendência de enfraquecimento do dólar, porém a mais preocupante é que o Fed vem alimentando uma bolha no mercado de ações. Há várias semanas a Nasdaq já superou em muito o pico anterior ao início da pandemia, e esse patamar também foi superado pelo S&P 500. Ao se comprometer mais com a queda do desemprego do que com a inflação, Jerome Powell tende a inflar ainda mais a bolha no mercado de ações, e sabemos que estouros de bolhas têm custos econômicos elevados.
Na reação à pandemia o Brasil seguiu os EUA; há mais de 80 dias o país amarga em torno de mil mortes/dia, e para evitar uma recessão ainda mais profunda teve de lançar mão de estímulos. Felizmente o Banco Central nunca cogitou de realizar uma operação twist que reproduzisse a curva de juros norte americana, e esperamos que o lucro da depreciação cambial transferido ao Tesouro não tenha o seu uso desvirtuado. Porém, no campo fiscal, o País desperdiçou recursos de que não dispunha. Sendo incapaz de montar um cadastro que delimitasse corretamente qual seria o “grupo alvo” beneficiado pelas transferências, destinou-as a perto de 66 milhões de brasileiros!
Chegaremos ao final de 2020 com um déficit primário e uma relação dívida/PIB bem superiores ao que ocorreria na ausência desse erro, com as consequências de que: não salvamos as vidas que poderiam ter sido salvas com uma reação correta à pandemia; e deixamos para nós mesmos e para as gerações futuras um enorme custo fiscal.
Uma proeza, maximizamos os dois custos ao adotar um modelo que busca, apenas, viabilizar a reeleição do presidente. Melhor seria termos aprendido com a história dos países de sucesso, que priorizam o bem comum, como fizeram os europeus.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Luiz Carlos Azedo: O espelho côncavo
“No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo. Essa contradição está no DNA das nossas jabuticabas institucionais”
As eleições nos Estados Unidos estão sendo vistas como uma encruzilhada do destino do mundo, na qual o “sonho americano” está em risco e, com ele, a democracia em várias partes do planeta. O presidente Donald Trump, que disputa a reeleição, defende teses regressivas em relação à democracia norte-americana e um nacionalismo que contrasta com o globalismo que sempre pautou a atuação da Casa Branca na cena mundial; não por acaso, o ex-presidente Barack Obama, num pronunciamento inédito para quem já comandou o país, em apoio a Joe Biden na convenção democrata, acusou Trump de ser uma ameaça à democracia e aos direitos humanos.
O sonho americano é a grande invenção política da Independência dos Estados Unidos. Seu ethos sintetiza o comportamento social e cultural dos norte-americanos ao longo de sua história. Liberdade, segurança, oportunidades iguais e justas para o sucesso pessoal, bem-estar para as famílias e perspectivas de futuro ainda melhor para as crianças, graças ao trabalho duro, numa sociedade capaz de superar qualquer obstáculo e na qual qualquer um pode chegar ao topo. Essa é a ideia-força do The American Dream. A crise de 2008 e as mudanças em curso no mundo, com a emergência da China como grande concorrente dos Estados Unidos, porém, frustraram os norte-americanos.
Sem dúvida, o sonho americano foi ressignificado pela eleição de Barack Obama, mas foi amesquinhado com a chegada de Trump ao poder, que pôs a imagem dos Estados Unidos de cabeça para baixo, como num espelho côncavo. Em antropologia, o ethos é constituído pelos traços e modos de comportamento que formam o caráter e a identidade de um povo, ou seja, uma identidade social. Do ethos deriva a ética, isto é, as normas e regras de conduta que devem ser observadas pelos membros de uma sociedade.
Trump subverte o ethos do sonho americano, com uma narrativa na qual exalta o pior e não o melhor da sociedade e da história dos Estados Unidos. O problema é que não está sozinho no mundo, sua narrativa negacionista e reacionária, que reforça as autocracias, estimula retrocessos na ordem política de muitos países democráticos, inclusive, o Brasil.
Americanismo
Do ponto de vista objetivo, a força do americanismo estava diretamente associada ao fordismo. Forma mais avançada de organização da produção, o fordismo teve impacto mundial e serviu até de inspiração para o modelo soviético, cujo Estado reproduzia a estrutura organizacional da grande indústria mecanizada, assim como o funcionamento do partido comunista. O fordismo nasceu na fábrica e se expandiu para toda a sociedade americana; se projetou mundo afora depois da II Guerra Mundial. Foi a base material do americanismo, um conjunto de ideias de caráter ideológico, político, cultural e comportamental. As ideias puritanas tiveram um papel fundamental na organização do trabalho e da vida doméstica das famílias norte-americanas e estão na gênese da formação e consolidação das instituições da democracia americana, mas foram suplantadas pelo americanismo, que exacerbou a liberdade individual.
No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo, o que gera muitas polêmicas nos meios acadêmicos. Essa contradição está no DNA das nossas jabuticabas institucionais. Historicamente, a influência do americanismo foi determinante para o nosso processo de modernização conservadora. A influência de Trump, porém, como no espelho côncavo, é a negação do sonho americano e uma espécie de americanismo do mal para a democracia brasileira, pois reforça o viés autoritário do governo Bolsonaro. Se o que é bom para os Estados Unidos for bom para o Brasil, perdão pelo trocadilho, melhor torcer para o democrata Joe Biden.
Rubens Barbosa: Brasil atropelado
EUA lançam candidato à presidência do BID, quebrando uma tradição de 60 anos
Com sede em Washington, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi criado em 1959. Embora com participação acionaria majoritária dos EUA, ficou estabelecido que a presidência sempre caberia a um nacional da região e a vice-presidência, a um norte-americano. Nos últimos 60 anos essa regra não escrita (antigamente se dizia acordo de cavalheiros) foi mantida: o BID, um bem-sucedido banco de fomento econômico e social das Américas, foi presidido por chileno, mexicano, uruguaio e colombiano.
Na sucessão do atual presidente havia a expectativa de que Brasil ou Argentina pudessem apresentar candidatos, o que de fato foi feito. O Brasil lançou Ricardo Xavier, de pouco peso político, para a presidência do BID. O ministro da Economia, Paulo Guedes, havia avisado o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, da apresentação do nome brasileiro, na expectativa de que o Brasil pudesse pela primeira vez eleger o novo presidente. Mnuchin, contudo, com um telefonema acabou com a pretensão do Brasil ao informar que o governo de Washington havia decidido lançar para presidente do BID Mauricio Claver Carone, diretor para assuntos de América Latina no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, quebrando uma tradição de 60 anos. Na contramão do interesse brasileiro, em nota oficial conjunta Ministério da Economia e Itamaraty se alinharam aos EUA, ao afirmarem “ter recebido positivamente o anúncio do firme comprometimento do governo dos Estados Unidos com o futuro do BID por meio da candidatura norte-americana à presidência da instituição”. E completou a nota alinhada ao governo americano: “O Brasil e os Estados Unidos compartilham valores fundamentais, como a defesa da democracia, a liberdade econômica e o Estado de Direito. O Brasil defende uma nova gestão do BID condizente com esses valores”.
Os EUA sempre preservaram sua influência no BID pelo poder do voto, cerca de 30%, nas decisões, mais do dobro dos outros países latino-americanos maiores acionistas. O anúncio de Washington não causou nenhuma reação dos governos, pela ausência de lideranças afirmativas na região. Os principais países encontram-se vulneráveis e sem capacidade de reagir. A Argentina, pela delicada situação econômico-financeira e social, em meio a um processo de negociação de sua dívida externa para evitar mais um default; o México, por ter um passivo de atritos com os EUA nas áreas comercial, de imigração, da construção do muro separando os dois países; o Brasil, concentrado em seus problemas de saúde e políticos internos.
A reação política à medida de Washington veio inicialmente de cinco ex-presidentes latino-americanos, que lançaram uma declaração em que condenam a indicação de um norte-americano para a presidência do BID. “A proposta de nomeação não anuncia bons tempos para o futuro da entidade, o que nos leva a expressar nossa consternação com essa nova agressão do governo dos Estados Unidos ao sistema multilateral, com base nas regras acordadas pelos países-membros”, destaca o documento assinado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ricardo Lagos (Chile), Julio Maria Sanguinetti (Uruguai), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México).
Além da declaração dos presidentes, há também a que foi assinada por todos os ex-chanceleres, ex-ministros da Fazenda e vários do Planejamento brasileiros. A reação dos países começou timidamente com manifestação do governo chileno pedindo que a eleição fosse adiada por seis meses, depois da eleição presidencial dos EUA. México, Peru e União Europeia, associada ao BID, passaram a apoiar a iniciativa chilena.
Em seguida, ampliando a articulação contra a escolha de um norte-americano para a presidência do BID, conhecidas personalidades politicas somente dos EUA, entre as quais ex-secretários do Tesouro e do USTR, divulgaram carta contra a indicação de Trump e pedindo o adiamento da eleição para março de 2021, argumentando que com a eventual vitória de Joe Biden a indicação seria anulada. Na semana passada, em nota conjunta do Ministério da Economia e do Itamaraty, o governo brasileiro associou-se à declaração de um grupo de países favoráveis à manutenção da eleição virtual nas datas previstas (12 e 13 de setembro), assim como instou todos os países-membros a cumprirem as resoluções aprovadas. Essa nota foi resultado da pressão de Washington e indica o temor de que os que propugnam pelo adiamento da eleição estejam ganhando força. O resultado até aqui é imprevisível.
A crescente presença da China na América do Sul está na raiz da decisão de Washington de apresentar candidato à presidência do BID, contra um representante brasileiro, e pode ser indício de um renovado interesse político dos EUA em conter Beijing pela pressão financeira sobre os países da região. Seria a volta da Doutrina Monroe (América para os americanos) e do corolário Roosevelt (speak softly and carry a big stick).
Não é do interesse brasileiro apoiar medidas que tragam para nosso entorno geográfico preocupações geopolíticas globais com a volta da confrontação entre superpotências e a pressão por alinhamentos absolutos, deixando de lado o interesse da Nação, e não apenas do governo da vez.
*Presidente do IRICE
Luiz Carlos Azedo: Nos deixem fora dessa
“Na guerra de fake news, atribuir as mais de 100 mil mortes por covid-19 a um falso “genocídio comunista chinês” reproduz uma mentalidade reacionária, xenófoba e racista”
No seu livro Sobre a China (Objetiva), de 2011, Henry Kissinger analisa a história, a diplomacia e a estratégia chinesas na cena mundial. Artífice da reaproximação entre os Estados Unidos e o “Império do Meio”, durante o governo de Richard Nixon, Kissinger realizou mais de 50 visitas a Pequim e a diversas províncias chinesas, encontrando-se com as principais lideranças que antecederam Xi Jinping, o atual presidente chinês: Mao Zedong, Zhou Enlai e Deng Xiaoping. O ex-secretário de Estado norte-americano previu que a China e os Estados Unidos — uma potência continental e uma potência marítima — travariam uma longa disputa pelo controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocara do Atlântico pelo Pacífico. Até aí, nada demais. A coisa fica perturbadora quando ele mostra que essa disputa reproduziria o embate entre a Inglaterra, uma potência marítima, e a Alemanha, uma potência continental, pelo controle do comércio no Atlântico, o que provocou duas guerras mundiais no século passado. Quais seriam a forma e desfecho desse embate entre os Estados Unidos e a China?
A resposta começou a ser dada em fevereiro de 2012, com um anúncio da Chrysler, no intervalo da Superbowl, a final do campeonato de futebol americano: “As pessoas estão sem emprego e sofrendo… Detroit mostra-nos que dá para sair dessa. Este país não pode ser derrubado com um soco”. Começava ali a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China que agora estamos assistindo. A Chrysler traduzia o sentimento de milhões de norte-americanos que responsabilizavam a China pela perda de seus empregos. A empresa evocava o patriotismo ao dizer que comprar seus carros salvaria os americanos. Colou a tal ponto que a tese embalou a eleição de Donald Trump em 2016.
O anúncio fora visto por 111 milhões de pessoas, o que popularizou uma discussão que, na verdade, havia sido iniciada em 2005, por Ben Bernanke, então presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, e que ganhara força depois da crise financeira de 2008. O que dizia Bernanke? O deficit da balança de pagamentos dos Estados Unidos havia subido bruscamente no final dos anos 1990, atingindo US$ 640 bilhões, ou seja, 5,5% do PIB em 2004. A poupança interna também havia caído 16,5% do PIB desde 1996. O deficit só poderia ter sido financiado por investimentos estrangeiros. Para Bernanke, havia uma “fartura de poupança mundial” e os chineses, com um tremendo superavit comercial com os Estados Unidos, não estavam investindo nem comprando produtos norte-americanos, estavam aplicando os ganhos em poupança e reservas de moedas.
A pandemia
Bernanke citava outras causas, como o aumento do preço do petróleo e os “fundos de reservas” dos países para se prevenir em relação a crises, mas os chineses eram apontados como os grandes vilões. Na verdade, os americanos aproveitavam a fartura de crédito e se endividavam numa bolha imobiliária. A crise provocada pela falência do Lehman Brothers, porém, parecia corroborar a tese do então presidente do Fed: “Os superavits em conta-corrente da China foram usados quase todos para adquirir ativos dos EUA, mais de 80% deles em títulos do tesouro e de agências muito seguros”, dizia o ex-presidente do Fed. Muitos economistas contestaram a tese, culpar os chineses era uma desculpa para o próprio fracasso. A desregulamentação exagerada do sistema financeiro e a especulação no imobiliário norte-americano foram as principais causas da crise de 2008. A existência da tal “fartura de poupança” também é um mito. Entretanto, a narrativa está aí até hoje e ocupa o centro da campanha de reeleição de Trump, que, agora, também culpa os chineses pela pandemia de covid-19, que chama de “gripe chinesa”.
No Brasil, essa discussão também é pautada por interesses políticos, pois é uma forma de transferir responsabilidades e encontrar um bode expiatório para a pandemia. Na guerra de fake news, atribuir as mais de 100 mil mortes por covid-19 a um falso “genocídio comunista chinês” reproduz uma mentalidade reacionária, xenófoba e racista. Além disso, essa retórica pode trazer péssimas consequências para a economia brasileira, haja vista que o nosso principal parceiro comercial é a China e não os Estados Unidos, potência com a qual o presidente Jair Bolsonaro estabeleceu um alinhamento automático na nossa política externa. Bastou as autoridades sanitárias chinesas anunciarem a presença do vírus da covid-19 num lote de asas de frango congeladas exportado por um frigorífico brasileiro para que as Filipinas, um parceiro comercial importante, suspendessem as importações de frango do Brasil. Ou seja, melhor fazer o dever de casa e ficar fora dessa briga.
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-nos-deixem-fora-dessa/
Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, semelhanças inquietantes
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, claro, mas…
No início de maio um grupo de manifestantes ostensiva e fortemente armados irrompeu na Assembleia Legislativa de Michigan para protestar contra a quarentena decretada pela governadora democrata para deter o crescimento da pandemia. Donald Trump não demorou a disparar um tuíte em apoio aos manifestantes. O fato de o grupo de brutamontes (todos homens, todos brancos) estar portando rifles não pareceu digno de nota ao presidente americano. Jair Bolsonaro teria vibrado, a julgar pelo que disse na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que defendeu armar o povo para enfrentar prefeitos e governadores.
Em julho, a retórica incendiária do presidente americano inflamou-se ainda mais. Prefeitos democratas de cidades onde eram realizadas manifestações, em geral pacíficas, do movimento Black Lives Matter foram acusados de nada fazerem para evitar a “anarquia social”. Da retórica Trump passou à ação, enviando agentes policiais da União para reprimir os protestos, em decisão que pode configurar abuso do poder presidencial. Os agentes federais, camuflados como militares em guerra, têm agido com violência injustificável, enquanto Trump chama os manifestantes de “marginais”. Bolsonaro os teria chamado de “terroristas e maconheiros”. Ao menos foi o que disse a respeito de quem saiu às ruas no começo de junho para protestar contra o seu governo.
Atrás em todas as pesquisas de opinião, sem controle sobre a pandemia, Trump está na busca desesperada por uma narrativa que o mantenha no páreo para as eleições de novembro. Quer ser o candidato da lei e da ordem.
Parece uma reedição da estratégia de Richard Nixon, que se elegeu em 1968 prometendo pulso firme contra protestos de jovens universitários e negros. A semelhança, porém, é apenas aparente. Trump não busca mobilizar o conservadorismo tradicional. Sua aposta é a de um extremista, disposto a conflagrar o país e testar, ao máximo, os limites da institucionalidade. Mais do que o candidato da “lei e da ordem”, ele flerta com a ideia de ser o líder de um povo pronto a empunhar armas para defender a América contra “terríveis ameaças”.
A incitação de Trump à violência e a desfaçatez de suas teorias conspiratórias vêm se agravando. Ainda nas primárias republicanas para a eleição de 2016, ele disse que pagaria do próprio bolso a fiança de seus apoiadores que “descessem o cacete” em quem perturbasse os seus comícios. Na campanha para as eleições daquele ano, afirmou que se perdesse seria sinal de fraude, e se recusou a dizer se aceitaria o resultado. Em 2017 disse haver “gente boa” entre supremacistas brancos que brutalizaram manifestantes contrários. Em 2019 perguntou à multidão que o ouvia na Flórida como deveriam ser recebidos os imigrantes que tentassem cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos. Sorriso no rosto, escutou a resposta em coro: “Com tiros, com tiros”. No mesmo ano, acusado na Câmara por crimes de responsabilidade, brandiu a ameaça de uma guerra civil se o Congresso o impedisse de seguir na Presidência.
Com a aproximação das eleições de novembro, a retórica incendiária de Trump está chegando ao paroxismo: além de defender, semanas atrás, que a polícia atirasse em quem promovesse saques, desatou a repetir que há uma grande fraude em preparação, até mesmo com interferência de governos estrangeiros, nos votos que serão enviados pelo correio, uma prática antiga e segura em vários Estados americanos. Bolsonaro há muito propaga a lenda de ser a urna eletrônica um convite à manipulação dos resultados eleitorais.
Refletindo sobre o cenário político americano, Fareed Zakaria, em recente artigo no jornal The Washington Post, advertiu para o perigo que Trump hoje representa para a alternância pacífica de poder nos Estados Unidos. Zakaria tem razão em se preocupar: se o resultado for apertado, é provável que o presidente americano de tudo faça para “melar o jogo”. Felizmente, no Brasil existe segundo turno, inexiste o colégio eleitoral e não há contagem manual de votos.
Talvez mais preocupante seja o fato de que, mesmo com o eventual despejo de seu líder da Casa Branca, o trumpismo siga vivo ou mesmo se torne mais virulento. Não deve passar despercebida a desenvoltura crescente de grupos paramilitares imbuídos da missão de proteger a “verdadeira América”, onde os brancos mandam, os pretos obedecem e os imigrantes não entram. Mutatis mutandis, o mesmo “patriotismo” sectário, excludente e truculento se encontra nos bolsões mais radicais do bolsonarismo.
Estimulada pela retórica anti-imigrante de Trump, cresce a atuação de grupos de vigilantes que assumem funções de polícia de fronteira na divisa com o México. Atiçados pelo presidente, outros grupos de cidadãos armados se somam à intimidação e repressão contra os protestos antirracistas. Em nível local, não são raras as alianças implícitas entre esses grupos e forças policiais.
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, é claro, mas também semelhanças inquietantes.
*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
El País: Queda dos PIBs de EUA e Alemanha prenunciam tombo da economia brasileira
Pessimismo tomou conta das principais bolsas globais nesta quinta. Mercado financeiro estima um recuo de 5,77% da atividade no Brasil neste ano. FMI calcula recuo de mais de 9%
Heloísa Mendonça, do El País
O tamanho do impacto econômico inicial causado pela pandemia do coronavírus começa pouco a pouco a emergir, e os números não são alentadores. A economia dos Estados Unidos, a maior do mundo, encolheu a uma taxa anualizada de 32,9% entre abril e junho, a maior contração desde a Grande Depressão, na década de 1930, segundo dados divulgados pelo Departamento de Comércio na manhã desta quinta-feira. Um colapso da economia sem precedentes. Os efeitos da paralisia da atividade também são sentidos em outros indicadores. A onda de demissões causada pela crise sanitária continuou a avançar nos EUA, onde novos pedidos de seguro-desemprego aumentaram pela segunda semana consecutiva.
Na Alemanha, a maior potência econômica da Europa, o tombo da economia também foi histórico. O Produto Interno Bruto (PIB) alemão de abril a junho recuou 10,1% em relação ao trimestre anterior, de acordo com a agência de estatística do governo federal. É a queda trimestral mais acentuada desde 1970, quando os registros começaram. Se comparado ao mesmo período do ano passado, o recuo foi de 11,7%. Diante dos números divulgados, o pessimismo tomou conta das principais bolsas globais que operaram com perdas. O dia também foi de resultados negativos de balanços de empresas importantes, como o banco Lloyds, a AirBus e a Volkswagen. No Brasil, chamou a atenção a queda de 40% do lucro do banco Bradesco no segundo trimestre.
Os dados do PIB brasileiro de abril a junho ― período em que grande parte das atividades foi paralisada para conter a disseminação do coronavírus ― só serão divulgados no início do setembro, quando a extensão da crise gerada pela pandemia no país começará a se materializar em números. Mostrará um retrovisor do provável pior trimestre de 2020, segundo analistas. Por enquanto, as previsões sobre o tamanho do tombo da economia variam. A projeção do boletim Focus, desta semana, fala em um recuo de 5,77% no fim de 2020, enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) calcula que o PIB brasileiro irá despencar mais de 9%.
“Há ainda muita divergência sobre o que acontecerá até o fim do ano, porque não há certezas sobre como será de fato a retomada econômica e como irá evoluir o enfrentamento ao coronavírus no país. O que temos de fato agora é uma quebradeira muito grande das empresas no Brasil”, afirma o economista Mauro Rochlin, da FGV. Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, 716.000 empresas fecharam as portas, de acordo com a Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas, realizada pelo IBGE e publicada neste mês.
“Nos Estados Unidos, vimos uma leve melhora com a abertura das atividades, mas alguns Estados americanos começaram a ter que fechar parte das atividades e as empresas outra vez com o avanço de novos casos”, diz Rochlin. Os EUA registravam nesta quinta-feira 4,4 milhões de casos de coronavírus e mais de 151.000 mortes pela doença. Embora as piores perdas econômicas tenham se concentrado em abril, a ameaça de pausas na reabertura reduz as esperanças de uma recuperação mais robusta da maior economia do mundo. “Como os EUA são o segundo parceiro comercial do Brasil, essa retomada mais lenta da economia americana pode chegar a comprometer as nossas exportações e ainda mais o PIB brasileiro”, diz o professor.
Na avaliação do economista André Perfeito, da corretora Necton, a ação de enfrentamento à covid-19 por parte do presidente Jair Bolsonaro e governadores não foi suficiente para frear o coronavírus e fez com que as próprias reaberturas das atividades econômicas também fossem menos eficientes. “Não basta liberar a abertura da economia, porque as pessoas estão constrangidas e inseguras. Em vários locais os casos estão aumentando. Países que foram mais duros na quarentena, estão colhendo mais louros, com famílias mais confiantes em sair e consumir”, diz. Para Perfeito, nem a política liberal do ministro Paulo Guedes, que aposta no investimento privado para a retomada da economia, nem reformas, como a tributária que começa a tomar forma, serão capazes de gerar um efeito no curto prazo. “Infelizmente não temos uma evidência de melhora, por isso ainda projeto uma queda de cerca de 7%, 7,5%”.PUBLICIDADE
Também pessimista é a projeção da Comissão Econômica da Organização das Nações Unidas para América Latina e Caribe (Cepal) para a economia da região: um tombo de 9,1% com desemprego e pobreza aumentando. A expectativa da Cepal é de que o número de pessoas desempregadas aumente de 18 milhões para 44 milhões em toda a região, enquanto a pobreza deve subir 7 pontos percentuais, alcançando mais 45 milhões de pessoas.