EUA

Celso Rocha de Barros: Trump perdeu, falta Bolsonaro

Contraste com democracia dos EUA voltando ao normal faz situação brasileira parecer ainda mais triste

Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Em seu discurso da vitória, defendeu a união de todos os americanos, inclusive dos que não haviam votado nele, e prometeu que governaria para todos. Perdi o trecho seguinte porque comecei a rir lembrando que teve gente com fama de sério apostando que Bolsonaro um dia faria o mesmo.

Biden fez belas citações bíblicas e mencionou os transexuais entre os americanos que quer defender. Agradeceu especialmente aos negros americanos, que foram decisivos para sua vitória.

Só esclarecendo, não agradeceu apenas o Hélio Negão que estava ali do lado, agradeceu Kamala Harris, primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, agradeceu seu antigo companheiro de chapa, o ex-presidente Barack Obama, e agradeceu o poderoso movimento de organizadores negros que lhe deram vitórias decisivas em cidades como Detroit e Filadélfia.

Biden também anunciou que nesta segunda-feira (9) vai indicar uma força-tarefa de cientistas para lidar com a pandemia. Duvido que chame o Osmar Terra, duvido que alguém ali seja demitido ou humilhado publicamente se decidir trabalhar, como aconteceu com Mandetta, Teich e Pazuello. Biden deve trazer os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris, que proíbe ministros como Ricardo Salles.

Enfim, o contraste com um país voltando ao normal fez a situação brasileira parecer ainda mais triste. As pessoas dançando nas ruas da Filadélfia não estão comemorando porque Trump foi “moderado pelo centrão”.

A única coisa na eleição americana que me lembrou o Brasil de 2020 foi a tentativa de Donald Trump, o candidato derrotado, de dar um golpe de Estado. Mas é aquilo, se Trump não fosse golpista, Bolsonaro não gostaria tanto dele.

Até o momento de entrega dessa coluna, Trump ainda não havia reconhecido sua derrota. Mentiu que a eleição foi fraudada, mentiu que teve mais votos do que Biden, enfim, “went full Jair”. Torce para que haja protestos de rua que forcem uma judicialização da eleição, e já escalou Rudolph Giuliani, o genro do Borat, para conduzir a batalha legal.

Deve dar errado. Lá não há hipótese dos militares aceitarem um golpe. O Partido Republicano é, no geral, um partido sólido que tem certo interesse na manutenção das regras do jogo. A rede conservadora Fox News não bancou a palhaçada.

Mas esse último crime de Trump contra a democracia pode ter consequências. O artigo de Patrícia Campos Mello publicado neste sábado (7) mostrou que o discurso da “eleição roubada” pode manter a base trumpista permanentemente radicalizada, com cada vez menos fé nas instituições. Os próximos dias devem ser importantes para medirmos a viabilidade desse discurso. Talvez o trumpismo sem poder pareça patético demais para sobreviver.

É possível repetir no Brasil de 2022 a fórmula vencedora dos democratas americanos? O governador Flávio Dino propôs exatamente isso, uma aproximação da esquerda e do centro para derrotar Bolsonaro. Dino tem razão, mas ainda não bolamos uma forma de fazer isso funcionar dentro do multipartidarismo brasileiro.

No Partido Democrata americano estão os equivalentes ideológicos de boa parte do PSDB brasileiro, toda a centro-esquerda e quase toda a esquerda. Sem a estrutura partidária para forçar a união, teremos que ser mais hábeis politicamente do que os americanos.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Luiz Carlos Azedo: Entre a águia e o dragão

Candidato a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo

— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)

Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.

No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.

Marisco

Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.

No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.

O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/entre-a-aguia-e-o-dragaox/

Ascânio Seleme: O fim de um pesadelo

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade. Esta talvez seja a única boa notícia de 2020 até aqui. Melhor do que isso, quem sabe, pode ser o desenvolvimento final de uma vacina eficiente contra o coronavírus. Mas ainda assim, e apesar de a vacina ter o poder de salvar milhares de vidas que seriam perdidas prematuramente, a saída de cena do megalomaníaco Trump produz um grau também muito elevado de relaxamento, porque era grande o risco dele permanecer infernizando o mundo por mais quatro anos.

A saída de Trump representaria um recomeço para o mundo. Desaparecera a espada que pairava sobre o globo presa apenas nas mãos de um líder errático, egocêntrico e mentiroso. Se o mundo respirar aliviado com a vitória de Biden, os Estados Unidos terão de procurar entender o recado das urnas. O mais importante deles talvez seja a mensagem de respeito absoluto à democracia, onde quem manda é o eleitor, e ponto final. Mesmo com as imperfeições do modelo eleitoral americano, quem votou e deve eleger um novo presidente foi o eleitor.

Outra vencedora desta eleição foi a verdade. O maior mentiroso que já ocupou o Salão Oval deve deixar o poder acumulando extraordinárias 20 mil mentiras contabilizadas pelo jornal “The Washington Post” até agosto. Embora metade do país tenha votado em Trump, e destes muitos compraram e seguirão comprando as lorotas do presidente derrotado e seus alucinados seguidores, o fato é que a maioria foi às urnas e votou também massivamente num partido que absolutamente não é socialista, como Trump insistia em proclamar.

Restabelecida a verdade, falta ainda aos EUA recuperarem sua dignidade. Trump transformou o país numa chacota global, como Bolsonaro fez com o Brasil. A diferença entre os dois é que um é periférico e outro comanda a maior potência econômica e militar do planeta. Joe Biden é muito bem talhado para esta tarefa. Não importa como seja a saída de Trump, confirmada sua derrota, se esperneando como um menino mal-educado ou de modo civilizado, quem deverá mandar a partir do dia 20 de janeiro de 2021 será um homem educado, tolerante e conciliador.

Mesmo que Trump bata o pé e faça birra, insistindo com suas diversas ações nos tribunais regionais e na Suprema Corte, o resultado final será mais uma derrota para ele. Sem qualquer evidência que sustente as acusações de fraudes eleitorais que fez, as ações são ridículas e serão desconsideradas pela Justiça. Nesta empreitada, Trump já perdeu o apoio da sua maior aliada na mídia, a Fox News, que condenou a iniciativa. Falta perder o suporte do seu partido.

Ao ser retirado do ar na noite de quinta-feira por emissoras de TV americanas, quando fazia um pronunciamento na sala de imprensa da Casa Branca, Trump mentia descaradamente sobre como as alegadas fraudes se processavam. Os veículos que o silenciaram disseram que não podiam permanecer trazendo ao público americano mentiras que desinformavam quando sua missão é exatamente o contrário, bem informar a população.

Se a onda azul esperada não aconteceu, é verdade também que a vitória desenhada de Biden não será por pequena margem como se chegou a imaginar. O número de delegados no Colégio Eleitoral de Biden pode ser exatamente igual àquele que levou Trump para a Casa Branca em 2016. As filas de votação em plena pandemia, onde pessoas passaram até dez horas para votar, provam que os americanos entenderam o que estava em jogo. Por isso também esta eleição teve recorde de eleitores e o vencedor passa a ser o presidente com o maior número de votos da História.

No Brasil temos um problema interessante a ser considerado a partir de agora. Confirmada a vitória de Biden, o presidente Jair Bolsonaro terá de se adaptar aos novos tempo. Vai ser difícil. Por ora, o governo do Brasil pode se tornar em adversário das duas maiores potências globais, a China e agora os EUA. Para se reposicionar globalmente, terá de dar uma guinada de 180° na política externa e demitir o aloprado chanceler Ernesto Araújo. São novos tempos, absolutamente diferentes do que vivemos até aqui. Quem não se recolocar rapidamente, vai comer poeira.

Escapamos, Lenin

“A democracia alimenta os germes da sua própria destruição”. A frase é de Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, líder máximo da revolução soviética de 1917. “A democracia dá a cada um o direito de ser o seu próprio opressor”. Esta é do poeta, escritor, diplomata e abolicionista do século XIX James Russell Lowell. O que ambos queriam dizer é que é bem possível transformar uma democracia numa outra coisa qualquer através do voto. Basta votar errado. Os Estados Unidos tiveram tempo e clareza e estão prestes a impedir que o erro cometido em 2016 seja consolidado este ano.

Não sonhe

Quem acha que o presidente Jair Bolsonaro vai se reagrupar globalmente se Donald Trump for derrotado é melhor colocar as barbas de molho. Se internamente houve um reagrupamento, ele se deu em razão da habilidade do centrão e da fraqueza política do capitão. No plano externo, o Brasil vai precisar retomar o caminho da lucidez e do bom senso, no caso de Biden vencer. Além de demitir o chanceler Ernesto Araújo, o Brasil terá também de rever sua política ambiental, se quiser construir um entendimento com a nova Casa Branca. Neste caso, Ricardo Salles também terá de pirulitar.

Era da lorota

Eles se parecem até nisso. O filho de Donald Trump é tão primário quanto os três zeros de Bolsonaro. Não é necessário citar as besteiras que Eric Trump escreveu no Twitter, que as apagou por atentarem contra a democracia. No Brasil, você viu, o zerinho Eduardo Bolsonaro atacou a eleição americana e acusou Biden de fraudá-la. Claro que sem provas. O que os iguala é a impressão que têm de que as pessoas vão engolir todas as mentiras e invenções que colocam nas suas redes sociais. Pelo que se viu nos EUA, a era da lorota parece estar chegando ao fim.

Biden e as artes

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a arte não precisa necessariamente do dinheiro de empresas privadas e muito menos de dinheiro público para sobreviver. Os negócios da cultura são muito bem consolidados, e o público americano é mais maduro que o brasileiro. Mas ainda assim, é reconfortante saber que o provável presidente eleito Joe Biden é um entusiasta e um estimulador da arte. Segundo reportagem de Graham Bowley, do jornal “The New York Times”, Biden sempre viu a arte como “um instrumento importante para a economia, um gatilho para a ação política e um agente de construção comunitária”. De acordo com depoimento ao “NYT” feito por Robert L. Lynch, presidente do movimento “Americans for the Arts”, a atitude de Biden em relação à arte “é menor do ponto de vista do consumidor de cultura e mais de acordo com os valores inspiracionais e de transformação” que ela pode produzir na sociedade.

O que vale mais

“Em campanha eleitoral não importa apenas o que você apoia, mas também o que você é contra”. A frase é do personagem Eli Gold, um estrategista político da série “The Good Wife”. Ele explica a Alicia Florrick, a estrela da série e candidata a um cargo eletivo, que não basta apenas você apontar os bons caminhos que pretende percorrer se eleito, mas também os caminhos que vai necessariamente evitar na jornada. Biden deve ganhar porque disse claramente aos eleitores americanos que não seguiria pela trilha do moribundo Trump.

Bom para o Brasil

A eleição dos Estados Unidos prova a força do eleitor. Mesmo em meio a uma pandemia letal, milhões de eleitores bateram recorde e foram às urnas para julgar o governo de Donald Trump. O mesmo vigor que rejeitou Hillary Clinton há quatro anos, pode sabotar agora o homem que a derrotou. O exemplo americano precisa ser observado mundo afora, e especialmente aqui, porque todos sabem que o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.

Gota a gota

Você pode dizer tudo sobre a eleição presidencial americana, menos que ela não foi emocionante.


Sérgio Abranches: EUA de volta ao futuro

A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois. Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a diversidade americana no caminho da plena cidadania.

A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça, cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.

Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem é trivial.

Este resultado é importante, também porque demonstra, inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a insensatez.

Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como representante Kamala Harris.

No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais, por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.

Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário, no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris, presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de volta à trilha do futuro.

*Sérgio Abranches, cientista político


Bernardo Mello Franco: Medo e delírio na Casa Branca

Donald Trump já havia indicado que não deixaria o poder facilmente. Ontem, ele mostrou que é capaz de implodir a democracia americana para não reconhecer uma possível derrota.

Em desvantagem na apuração, o presidente dos Estados Unidos atentou contra o sistema que o elegeu em 2016. Sem qualquer base factual, ele alegou que a disputa deste ano estaria sendo roubada.

Em mais um abuso de poder, o republicano fez as declarações falsas na sala de imprensa da Casa Branca. Usou a estrutura e os símbolos da Presidência para difundir mentiras em interesse próprio.

Trump alegou que os votos enviados pelo correio, de acordo com as regras do jogo, seriam “ilegais”. O motivo é conhecido: os eleitores democratas aderiram em peso a essa modalidade de voto.

As grandes redes americanas interromperam a transmissão do discurso pela metade. Ainda assim, as mentiras do presidente atingiram milhões de americanos pela TV e pelas redes sociais.

Mais cedo, Trump já havia tuitado, em maiúsculas: “PAREM A CONTAGEM!”. Foi uma confissão de desespero. A cada hora que passava, Joe Biden reduzia a distância na Pensilvânia e na Georgia.

O presidente age como um sabotador da democracia. Sua ofensiva mina a confiança nas eleições e o respeito às regras do jogo. A esta altura, a judicialização da disputa parece ser o menor dos riscos. Trump encorajou os extremistas e acendeu um pavio que pode incendiar as ruas americanas.

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Em setembro de 1992, um deputado subiu à tribuna da Câmara e anunciou: “Tenho dignidade e vergonha na cara e não subirei jamais em palanque em que esteja o atual presidente”.

O presidente era Fernando Collor. O autor da promessa, Jair Bolsonaro. Ontem, os dois subiram no mesmo palanque em Piranhas, no sertão de Alagoas. Sorridente, o capitão definiu o novo aliado como “um homem que luta pelo interesse do Brasil”.


Rubens Barbosa: Judicialização do processo

O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos

Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.

A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.

Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.

O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.

Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.

A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.

A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.

*Foi embaixador do Brasil nos EUA


Luiz Carlos Azedo: Hora de cair na real

O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra”

Vinte e quatro horas passaram-se, e as eleições para a Presidência dos Estados Unidos continuam no rumo de uma crise institucional, porque Donald Trump não quer sair da Casa Branca como derrotado e, por isso, constrói uma narrativa de que a votação de Joe Biden foi fraudada. Desde ontem, a contagem dos votos estava 264 a 214, faltando apenas seis delegados para o desfecho já previsível — a vitória de Biden —, mas a chicana republicana, além de atrasar o resultado final e acirrar a tensão social, pode resultar na sobrevivência do trumpismo como robusta força de oposição, negacionista, ainda mais antidemocrática e reacionária. Não devemos subestimar esse fato aqui no Brasil, porque isso se reproduzirá como discurso da ala ideológica do governo Bolsonaro.

Amplos setores da sociedade e uma parte significativa do governo torcem por Biden, na esperança de que isso signifique uma mudança de rota na nossa diplomacia e na política ambiental. “O homem é o homem e a sua circunstância”, dizia o filósofo espanhol José Ortega e Gasset, 100 anos atrás. Bolsonaro precisa cair na real de que a situação na economia é perigosa e tanto a política externa quanto a ambiental complicam desnecessariamente a vida de nossos agentes econômicos. O Brasil está em apuros financeiros, a conta da pandemia do novo coronavírus está chegando a passos de ganso. O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra” e fugir à responsabilidade do ajuste nas contas públicas.

Ontem, o Tesouro teve dificuldades para rolar a dívida pública, nos relata Vicente Nunes, no Correio Braziliense. Da oferta de até 750 mil títulos indexados à taxa Selic, as chamadas LFTs, com vencimento em 2022 e em 2027, foram comprados 433,5 mil, ou seja, 49%. O Tesouro arrecadou R$ 4,7 bilhões, menos do que na semana passada, quando vendeu R$ 5,19 milhões em títulos. A taxa Selic (2% ao ano) está abaixo da inflação, que já passa dos 3%.

Para rolar a dívida pública, outra alternativa está sendo vender títulos pré-fixados, as chamadas LTNs, com taxas bem acima da Selic. Esses títulos são de curtíssimos prazo, com vencimentos em 2021, 2022 e 2024. Ontem, 8 milhões de títulos expirando em 2024 foram vendidos, com taxa de juros 6,39% ao ano, para o governo arrecadar R$ 6,6 bilhões. Mais R$ 1,8 bilhão foram arrecadados com a venda desses títulos com vencimento em 2022. Um terceiro lote, com vencimento no próximo ano, de 5 milhões de unidades, foi vendido que integralmente, arrecadando R$ 4,9 bilhões para os cofres do Tesouro.

Populismo
O problema é que o governo está pagando uma taxa de 7,39% ao ano para títulos pré-fixados com vencimento em 2021. É um excelente negócio para quem tem dinheiro para investir, mas péssimo para um governo que não tem como pagar suas contas sem se endividar ainda mais, e terá de resgatar esses títulos no próximo ano. É onde mora o perigo, porque os sinais de afrouxamento fiscal vêm de todo lugar. Na quarta-feira, por exemplo, o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro às desonerações trabalhistas, que foram prorrogadas por mais um ano, com uma impacto na queda de arrecadação de R$ 4,9 bilhões.

No lusco-fusco das eleições norte-americanas, foi aprovada pela Câmara uma garfada de R$ 1,4 bilhão dos recursos da Educação básica para obras de infraestrutura, uma reivindicação dos políticos do Centrão. Farinha pouca, meu pirão primeiro: tiraram do futuro das crianças para as obras indicadas pelas legendas que apoiam o governo, a cargo dos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura. Não é à toa que Bolsonaro mantém seu périplo pelo Nordeste. Em vez de avançar nas reformas administrativa e tributária, caminha-se para romper o teto de gastos e implantar, a qualquer preço, o projeto Renda Cidadã. A discussão sobre o Orçamento da União, em que o pacto populista pode ser consolidado, é empurrada com a barriga, na surdina, para o recesso parlamentar.

Há sinais de recuperação da indústria, muito positivos, que poderiam apontar noutra direção, se fossem acompanhados de uma proposta efetiva de retomada da economia. Entretanto, o governo não tem prioridades, improvisa. A política de Bolsonaro é feita sem estratégia, na base da transa com objetivos eleitorais imediatos. Nesse aspecto, as eleições municipais estão mostrando um cenário em que os eleitores estão sendo bem mais pragmáticos e objetivos, estão refratários a aventuras e apostam nos políticos com propostas e bons serviços prestados.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/hora-de-cair-na-real/

Bernardo Mello Franco: Trump igualou os EUA a uma república bananeira

Os americanos gostam de dar lições de democracia, mas não têm muito a ensinar sobre eleições. Mais uma vez, a corrida à Casa Branca terminou em tumulto. Ontem à noite, ainda não era possível cravar quem venceu a disputa presidencial.

Parte dos problemas decorre de um sistema arcaico. Os Estados Unidos resistem a abandonar o voto indireto, que distorce a vontade dos cidadãos. Quem recebe mais votos nem sempre leva a Presidência. Na matemática do colégio eleitoral, um morador do Wyoming vale por três da Califórnia.

A apuração dos votos também deixa a desejar. No país mais rico do mundo, muitos estados ainda usam cédulas de papel. Em 2000, a eleição empacou por falhas na contagem de cartões perfurados. Agora o problema é a demora para contabilizar os votos enviados por correio.

Na disputa deste ano, surgiu um novo e poderoso fator de incerteza. Mau perdedor, Donald Trump quer garantir sua reeleição no grito. Ele cantou vitória antes da hora e disse, sem qualquer prova, que haveria fraude para prejudicá-lo. Um factoide para tumultuar o processo e desacreditar os números oficiais.

O circo armado pelo republicano igualou os EUA a uma república bananeira. Se um líder latino-americano fizesse algo parecido, seria chamado de golpista e candidato a ditador. As ameaças de Trump não despertam a mesma indignação de entidades que dizem zelar pela democracia, como a OEA.

Vista do Brasil, a a confusão americana sempre causa espanto. Aqui a votação é eletrônica e os resultados são divulgados em poucas horas. Na noite da eleição, o país já sabe quem o governará pelos próximos quatro anos. Isso não significa, no entanto, que a nossa democracia seja muito melhor que a deles.

Enquanto os americanos contavam seus votos, o MP informou que Flávio Bolsonaro finalmente foi denunciado no caso da rachadinha. Acusado de embolsar dinheiro público, o senador passou o feriado em Fernando de Noronha com passagens pagas pelo Senado. Nos EUA, ele já teria perdido o mandato e trocado o paletó por um uniforme laranja.


Ascânio Seleme: Frustração, vergonha e medo

Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando em Trump

Mesmo que Joe Biden ganhe a eleição, o fato que se sobrepõe é que os poderosos Estados Unidos são uma nação aterrorizada pelo medo. Há diversas explicações para os milhões de votos dados a Donald Trump, o mais antidemocrático presidente americano de todos os tempos, mas o fantasma do radicalismo de esquerda é de longe o fator mais importante. Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando na acusação de Trump de que Biden e os democratas são perigosos socialistas. Uma bobagem sem tamanho. Nas questões econômicas, os democratas estão mesmo à direita dos republicanos.

Ainda assim, o discurso de que políticas socialistas dos democratas mudariam a cara dos EUA se Biden ganhasse conquistou número astronômico de eleitores. O avanço de Trump sobre os votos hispânicos, tradicionalmente democratas, ajuda a explicar esse medo. Trump disse ao longo da campanha, e mesmo antes dela, que os democratas abririam as fronteiras. Mentira. Mas, se fosse verdade, poderia se supor que seria uma boa novidade, porque enfim os imigrantes se reuniriam com familiares que ficaram para trás. Nada disso. Mais de 75% dos hispano-americanos nasceram nos EUA, seus círculos familiares e pessoais estão lá assentados, e uma abertura ampla para imigração ameaçaria diretamente seu posto de trabalho.

Deve-se considerar também que os hispânicos são religiosos e conservadores. Na Flórida, onde Biden perdeu, os cubano-americanos lideram a comunidade e extravasam seu ódio ao comunismo desde 1960, quando Fidel Castro tomou o poder em Cuba. Nos últimos 20 anos, um grande contingente de venezuelanos imigrou para o estado americano, fugindo da política de Chávez e Maduro, e trouxe na bagagem o mesmo espírito. Além disso, ao redor dos Estados Unidos, o medo do desarranjo econômico que os “esquerdistas radicais” poderiam produzir também impulsionou a campanha de Trump.

Apesar de a economia americana ter sofrido um impacto enorme com o coronavírus, como de resto o mundo inteiro, americanos médios que acreditam na retórica de Trump tremem de pavor só em pensar que a situação pode se degradar ainda mais sob o comando dos “radicais” democratas. A aposta de que a economia poderia definir uma eleição e o slogan “America First” (América em primeiro lugar) mais uma vez acalentaram corações assustados.

A verdade, até este ponto da apuração, é que os votos no presidente que busca a reeleição surpreenderam os republicanos e frustraram os democratas. Todos, uns efusivos e outros calados, esperavam uma vitória clara e incontestável de Joe Biden. O que se vê, mesmo que as projeções estejam certas e ocorra uma vitória democrata, é que as pesquisas mais uma vez erraram. A eleição que se esperava dar com uma vantagem categórica pode acabar nos tribunais.

A diferença entre a expectativa e o resultado que emergiu das urnas, que também se explica pelo medo, tem um outro componente, visto reiteradamente em eleições ao redor do mundo. As pessoas mentem aos pesquisadores por vergonha, sobretudo numa eleição como esta, inflamada pelo descaso do presidente com o coronavírus e pela campanha “Vidas negras importam”. Muitos dos que queriam manter Trump na Casa Branca por razões genuinamente políticas podem ter se sentido constrangidos em apontar corretamente seu voto. Poderiam parecer negacionistas ou, pior, aliados dos supremacistas brancos.

Claro que os Estados Unidos saem desta eleição mais divididos do que nunca. Isso já foi dito pelos analistas, desnecessário acrescentar qualquer coisa. Mas é importante ressaltar que a chance de se reconstruirem pontes é muito mais provável se Biden for o eleito. O democrata é um conciliador pragmático que saberá desobstruir canais e aproximar opostos em torno de objetivos comuns. Esse é seu perfil. O contrário, a reeleição de Trump, seria mais do que a manutenção do estado de beligerância interna, seria seu aprofundamento. Nesse caso, nada mais atual que o velho provérbio americano: “A única coisa que se aprende em uma nova eleição é que não aprendemos nada com a última”.


Luiz Carlos Azedo: Aposta de alto risco

Ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial

O presidente Jair Bolsonaro ontem, nas redes sociais, voltou a apostar todas as fichas na reeleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, além de denunciar suposta interferência externa na política norte-americana, sem dizer de quem. Ao mesmo tempo, o mundo aguarda em suspense o resultado do pleito, no qual o democrata Joe Biden é favorito nas pesquisas de opinião. Como escrevo antes da contagem dos votos, vou aguardar o resultado final da apuração; mesmo que, eventualmente, o presidente Trump autoproclame a sua vitória, na festa que organizou na Casa Branca para 400 convidados.

Aqui no Brasil, teríamos o resultado final da eleição, com precisão, no dia de votação, graças à urna eletrônica, à prova de fraudes, nossa melhor jabuticaba política, testada e aprovada. Nos Estados Unidos, com um sistema de votação anacrônico, que leva vários dias, inclusive com voto por correspondência, a apuração é mais complicada. Pode até gerar uma crise institucional, se Trump se declarar eleito e, depois, a contagem dos votos mostrar que o vitorioso é Baden. Como se sabe, o fato de o presidente ser eleito num colégio de delegados dos estados permite, inclusive, que o vitorioso não seja o mais votado nas urnas.

No dia da eleição, a maioria dos chefes de Estado manteve silêncio obsequioso sobre o pleito. Os líderes das democracias ocidentais, porém, torcem pelo democrata Biden, quando nada porque são confrontados pelo republicano Trump em todos os fóruns internacionais, até mesmo na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o pacto de defesa do Ocidente. Entretanto, ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial. Sem Trump, porém, essa linha de atuação se tornará insustentável, devido ao isolamento diplomático quase absoluto. Somente os governos de extrema direita, como o de Victor Orban, na Hungria, e os tiranos árabes mais sanguinários restarão como aliados, do Brasil nos fóruns internacionais, se Biden vencer o pleito.

A não ser que Bolsonaro se reposicione. O alinhamento automático com os Estados Unidos, de imediato, não muda o posicionamento do Brasil nas cadeias de comércio mundial, nas quais nosso principal parceiro é a China. A ideia de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, grande aposta de Araujo e do ministro da Economia, Paulo Guedes, não é exequível a curto prazo. Não era com Trump, muito menos com Biden. No segundo caso, para avançar nessa direção, o Brasil teria que mudar radicalmente sua política interna em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente, além do posicionamento nos fóruns internacionais em relação aos mesmos temas.

Momento difícil

Um momento de viragem na política norte-americana ilustra uma situação desse tipo: a eleição do presidente Jimmy Carter, que governou de 1977 a 1981. No seu governo, o Departamento de Estado deu uma guinada em relação às ditaduras da América do Sul, todas implantadas com forte apoio norte-americano. Carter pressionou muito o governo do general Ernesto Geisel, por causa das torturas e dos assassinatos de oposicionistas nos quartéis, o que ajudou a oposição a vencer as eleições de 1978 e resultou na anistia de 1979. Como naquela ocasião, a vitória de Biden pode ser um momento de viragem na política brasileira. Bolsonaro tem dificuldades para aceitar essa mudança, mas em torno dele esse assunto está em pauta, haja vista as declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, que manteve distância regulamentar das eleições norte-americanas.

Um outro fator recomenda mais cautela de Bolsonaro quanto ao resultado do pleito: a nossa situação econômica. O Palácio do Planalto se prepara para uma segunda onda da pandemia de corona vírus da pior forma possível, ao fomenta dúvidas quanto a eficácia e a necessidade das vacinas contra o COVID-19, o que é péssimo. Também empurra as reformas com a barriga para não contrariar interesses corporativos e empresariais. A base parlamentar do governo retarda a aprovação do Orçamento da União para não ter que anunciar cortes de despesas antes das eleições. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sonha com a prorrogação da “economia de guerra” para 2021, com o propósito de agradar o presidente Bolsonaro e criar o Renda Cidadã. É uma aposta de jogador compulsivo, que perde todos os bens e a família, acreditando na sorte grande.

O governo não tem prioridades, se movimenta de forma errática. A dívida publica brasileira, que já se aproxima de 100% do PIB, está sendo rolada a prazo de dois anos, com juros acima de 4,5%, o que é muito perigoso. Se a estratégia do governo for prorrogar a “economia de guerra”” por mais seis meses, a inflação vai disparar e a dívida pública crescerá mais ainda, vertiginosamente. Ontem, houve uma reunião dos governadores com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para discutir uma estratégia de vacinação contra a Covid-19, maneira de evitar uma segunda onda da pandemia no Brasil e a prorrogação da economia de guerra”. Quem deveria estar liderando isso é o Ministério da Saúde.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-aposta-de-alto-risco/

Celso Ming: Tamanho da vitória nos EUA importa

Impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória

A percepção que hoje prevalece, não só entre os administradores de empresas, mas também junto às classes médias dos EUA (e, portanto, no eleitor que agora vai escolher seu presidente) é a de que o ambiente de negócios está se estreitando e os empregos minguam. Os juros praticamente no campo negativo vêm destruindo também o futuro, na medida em que provocam o encolhimento do patrimônio dos fundos de pensão e das reservas familiares aplicadas no mercado financeiro.

O cidadão médio dos EUA parece ter dificuldade de entender que toda a economia mundial – não só a americana ou a de sua família – passa por enorme transformação. O mercado de trabalho não enfrenta apenas a concorrência do produto asiático, obtido com mão de obra mais barata. Reflete, também, a incorporação do trabalho feminino, que, em apenas três gerações, duplicou a concorrência com os homens por um mesmo posto de ocupação.

Há a revolução provocada pela tecnologia da informação, que, em praticamente todos os segmentos da economia, dispensa mão de obra ou tira importância de anos de estudo e de treinamento na obtenção de uma profissão que agora passa por sérias mutações. Além disso, há a revolução energética: o movimento irreversível em direção ao abandono dos combustíveis fósseis e de aumento da participação da energia limpa na matriz energética global, que muda os transportes, o uso do carro e a maneira de trabalhar.

Nessas horas de aflição e de baixa lucidez, procura-se mais um culpado do que uma solução. E o culpado da hora para o qual nestes últimos quatro anos o presidente Donald Trump apontou seu nervoso indicador foi a China. Com essa paisagem de fundo, o impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória. Isso não é válido apenas do ponto de vista político interno e externo, mas também do ponto de vista da condução da economia global.

Se o novo presidente arrebatar também maioria nas duas casas do Congresso, aumentará a capacidade de levar adiante seus projetos destinados a enfrentar a desarrumação provocada pelas transformações acima apontadas. Uma vitória por larga margem de Trump seguida com maior apoio dos representantes, encorajaria um reforço das decisões unilaterais, o acirramento dos conflitos comerciais e tecnológicos com a China, o aumento do protecionismo comercial, maior repulsa ao Acordo de Paris e maior rejeição de medidas de proteção ambiental.

Uma vitória expressiva do democrata Joe Biden, por sua vez, favoreceria a outra ponta da corda nesse cabo de guerra. Não se espera pelo desaparecimento dos conflitos com a China. Mas um governo Biden tenderia a assumir uma posição mais inteligente e mais estratégica em relação a Pequim. Provavelmente deixaria de hostilizar aliados históricos, como a União Europeia e o Japão; abandonaria políticas comerciais unilateralistas; e voltaria a fortalecer organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial.

*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA


Pedro Fernando Nery: O que é boa política?

Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas

Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.

Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.

Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).

Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).

Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.

Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.

Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.

Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.

Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.

O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.

O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.

Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.

  • Doutor em Economia