EUA
Ricardo Noblat: [Des] governo de Bolsonaro ignora o vírus, Biden e a China
À caça de novos conflitos
Uma vez que desistiu, não se sabe por quanto tempo, de bater de frente com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro, que só vive à base de conflitos, saiu à procura de novos alvos. E, no momento, elegeu pelo menos três de grande porte: a pandemia, o futuro governo Joe Biden e a China.
Uma segunda onda, ou o recrudescimento da primeira, bate às portas do país segundo todos os indicadores conhecidos até agora. E o que faz o [des] governo? Por ora, nada. Estoca quase 7 milhões de kits de testes do Covid-19 por ser incapaz de distribuí-los com os Estados. Ou simplesmente porque não quer distribuir.
Arrasta-se no processo de compra de vacinas suficientes para imunizar toda a população do país. Persiste em discriminar a vacina chinesa que será produzida pelo Instituto Butantã, em São Paulo, Estado governado por seu arqui-inimigo João Doria (PSDB). E sequer tem um plano para a vacinação em massa.
Joe Biden, candidato do Partido Democrata, foi eleito presidente dos Estados Unidos há duas semanas. Estados onde ele venceu recontaram os votos e confirmaram sua vitória. Donald Trump, o tutor de Bolsonaro, ordenou o início da transição de governo. Nem assim, Bolsonaro cumprimentou Biden até hoje.
Difícil imaginar que os filhos Zero de Bolsonaro ajam à revelia do pai. Jamais ousariam desafiar um patriarca tão mão de ferro, e que os educou para que obedecessem às suas ordens. Carlos, o Zero Dois, quando foi para cima do general Santos Cruz, então ministro da Secretaria de Governo, tinha sinal verde do pai.
Eduardo, o Zero Três, teve o aval para escrever no Twitter que a adesão do Brasil ao programa Clean Netwok, dos Estados Unidos, sobre a tecnologia 5G, reforça a “aliança global por um 5G seguro, sem espionagem da China”. Verdade que Eduardo apagou o que havia escrito 24 horas depois, mas aí já era tarde.
Em uma longa e dura nota oficial, a embaixada da China no Brasil acusou Eduardo e “algumas personalidades” de produzirem “uma série de declarações infames que, além de desrespeitarem os fatos da cooperação sino-brasileira solapam a atmosfera amistosa entre os dois países e prejudicam a imagem do Brasil”.
E disse também: “Instamos essas personalidades a deixar de seguir a retórica da direita americana e cessar as desinformações e calúnias sobre a China. […] Caso contrário, vão arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil.”
A China é o maior parceiro comercial do Brasil no mundo. O tal programa americano citado por Eduardo quer convencer governos estrangeiros a somente permitir em suas redes 5G equipamentos de fornecedores não chineses. As principais empresas brasileiras já usam tecnologia chinesa em suas redes 4G.
O que Bolsonaro pensa ganhar com o avanço da Covid-19, a falta de cortesia com Biden e a hostilidade à China? Votos o bastante para se reeleger em 2022? É apostar que um raio é capaz de cair duas vezes num mesmo lugar. As chances disso acontecer são desprezíveis.
Luiz Carlos Azedo: A nova onda
O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista da covid-19, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social
A pandemia da covid-19, no Brasil, virou um endemia e assim será, até que a população seja vacinada em massa. A segunda onda, que está sendo avassaladora nos Estados Unidos e na Europa, aqui está começando, sem que a primeira tenha ido embora, ou seja, se inicia de um patamar muito alto, como aconteceu nos EUA. O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social. Deveria prestar um pouco de atenção ao que acontece na Suécia, que tratou o novo coronavírus como uma gripezinha, mas, agora, mudou de paradigma e resolveu aceitar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
São Paulo, por ser o estado mais populoso e também o mais conectado com os demais e o exterior, registra um aumento de 18% no número de casos de internações nas redes hospitalares pública e privada neste mês. Como na primeira onda, as classes A e B estão sendo as mais afetadas; a explosão deve ocorrer quando chegar à população de mais baixa renda, com menos capacidade de se manter a salvo do contato com o vírus. O grande dilema é como lidar com as medidas de proteção individual e, ao mesmo tempo, evitar o colapso econômico e social.
Bolsonaro reage a isso como quem entra em pânico numa emergência, apesar da retórica de valentão. Insiste na tese de que o isolamento social é a causa da crise econômica, culpando governadores, prefeitos, o Supremo e os “maricas” que têm medo do vírus, ou seja, a maioria de nós. Não reconhece que, em todo mundo, a origem da crise econômica é a pandemia; e que a política de isolamento social é uma maneira de evitar desastre ainda maior.
Um breve comentário de um confeiteiro do Sudoeste, bairro do Plano Piloto, em Brasília, resume a questão. Ele observa o comportamento dos clientes e conclui: a maioria dos que tomam os devidos cuidados no balcão de seu pequeno comércio — máscara e higienização das mãos — não teve a doença. Os que chegavam com máscara no queixo e não utilizavam o álcool em gel, em sua maioria, com a evolução da pandemia, disseram-lhe que contraíram a doença. “Um deles me disse que 22 pessoas da sua família tiveram a covid-19.”
Dívida pública
Este é o xis da questão: é impossível manter as atividades econômicas sem protocolos rígidos de procedimento nas empresas e um comportamento equivalente por parte dos consumidores. A maioria das pessoas não está contraindo o vírus nos locais de trabalho, que seguem regras rígidas de funcionamento, mas em razão de seu comportamento social. A generalização das aglomerações — e não apenas os bailes funks — e a campanha eleitoral, de certa forma, contribuíram para a segunda onda, mas é preciso verificar as características do vírus que está circulando, para saber seu grau de mutação genética. Mesmo quem já teve a doença, por essa razão, deve tomar cuidado.
O presidente continua negando a chegada da segunda onda, mais ou menos como fez na primeira. O problema é que não terá como negar seu impacto na economia, porque a situação do Tesouro é muito diferente. A dívida pública deve chegar a 100% do PIB no fim do ano. O governo não terá como prorrogar o auxílio emergencial por longo período, mesmo mantendo seu valor em R$ 300.
Eleições
Estão saindo as primeiras pesquisas do segundo turno. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) lidera a corrida com 47% de intenções de votos, 12 pontos de vantagem em relação a Guilherme Boulos (PSol), com 35%, segundo o Ibope. Será uma disputa que reproduz a polarização tradicional da capital, com o candidato do PSol no lugar de um petista.
No Rio, o Ibope apurou uma grande vantagem de Eduardo Paes (DEM), com 53% de intenções de votos, contra o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), que empacou nos 23%. Devido à rejeição astronômica do atual prefeito carioca, a eleição está no colo do ex-gestor da cidade.
No Recife, Marília Arraes (PT) assumiu mesmo a liderança, com 45%, contra João Campos (PSB), com 39%. A novidade é a coalizão entre a petista, que disputa a herança política do avô Miguel Arraes, e a direita pernambucana.
O Estado de S. Paulo: Mourão reconhece vitória de Biden, mas diz não responder pelo governo
Em entrevista à Rádio Gaúcha, vice-presidente afirmou que julga a vitória do democrata como 'cada vez mais irreversível'
Emilly Benhke, O Estado de S.Paulo
O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta sexta-feira, 13, que, apesar de não responder pelo governo, julga a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos como "sendo cada vez mais irreversível".
"Como indivíduo eu reconheço, eu não respondo pelo governo, mas como indivíduo eu julgo que vitória de Biden está cada vez mais sendo irreversível", afirmou em entrevista à Rádio Gaúcha nesta manhã.
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Mourão citou que é responsabilidade de Bolsonaro o possível pronunciamento sobre o pleito norte-americano. O governo brasileiro é um dos poucos que ainda não reconheceu o resultado das eleições norte-americanas. Outros países que não o fizeram são a Coreia do Norte, liderada por Kim Jong-Un, a Rússia, de Vladimir de Putin, e o México, de López-Obrador.
A China, que ainda não havia reconhecido a vitória do democrata, parabenizou Biden nesta sexta. "Respeitamos a escolha do povo americano. Enviamos nossas felicitações a Biden e a Harris", declarou o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Wenbin.
Nesta sexta, a imprensa americana informou que o democrata venceu no Estado do Arizona e consolidou a liderança no Colégio Eleitoral que escolherá formalmente o novo chefe da Casa Branca. Com isso, chegou a 290 delegados, contra 213 de Trump.
O vice-presidente negou que haja uma tensão entre Brasil e EUA e afirmou que os dois países mantêm uma relação de "Estado para Estado". Disse ainda que continuaram buscando pontos em comum nas suas relações diplomáticas. “Independente do momento que for reconhecido resultado da eleição americana, vamos manter diálogo constante”, disse.
Mourão também voltou a minimizar a fala do presidente Jair Bolsonaro de que "quando acaba a saliva tem que ter pólvora". "Vejo a coisa da seguinte forma, o presidente, a gente tem que prestar atenção mais nas ações do que nas palavras (de Bolsonaro)", justificou.
Na última terça-feira, 10, sem citar Biden diretamente, Bolsonaro comentou possíveis barreiras comerciais impostas ao Brasil pelos EUA caso as queimadas na região amazônica não fossem contidas. "Apenas a diplomacia não dá", disse o presidente na ocasião.
Merval Pereira: Na boca do mundo
A mistura de ignorância com empáfia numa mente desequilibrada jogou o Brasil no ridículo internacional ao ameaçar os Estados Unidos com uma guerra, devido à possibilidade de sanções econômicas por causa do desmatamento da Amazônia.
O presidente Bolsonaro vive se queixando de que sua vida está “uma desgraça” (e a dos brasileiros?), e parece por esses dias mais fragilizado do que normalmente. Transformar o país que governa em motivo de piada no mundo, no entanto, é arriscar-se na linha que separa a sanidade mental da simples gafe.
A paráfrase que fez do conceito de guerra de Carl Von Clausewitz é uma humilhação para os generais brasileiros que fizeram a preparação acadêmica que faltou a Bolsonaro, um tenente que foi promovido a capitão quando foi para a reserva, depois de uma expulsão branca por ser um militar incompatível com a instituição do Exército.
“Quando falta saliva, tem que ter pólvora” é a simplificação vulgar que Bolsonaro fez da definição de guerra de Clausewitz, especialista em estratégias e autor do mais famoso tratado sobre o tema no Ocidente: “Sobre a Guerra” (do alemão Vom Kriege), publicado em 1832, depois de sua morte.
“A guerra é a continuação da política por outros meios” é uma frase que resume bem o que Clausewitz pensava sobre a guerra, que o vice-presidente General Hamilton Mourão chamou de “antigo aforismo”, na tentativa de dar um lustro nas bobagens que o presidente disse.
O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, durante um debate na campanha, disse que buscaria "organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões para a Amazônia". Afirmou também que o Brasil pode enfrentar "consequências econômicas significativas" se não parar de "destruir" a floresta.
Bolsonaro sentiu-se ofendido, disse que não queria esmolas, e várias vezes já se referiu a essa “ameaça” para justificar porque ainda torce pela vitória de Trump: “É isso que vocês querem para o Brasil?”perguntou recentemente a um grupo de apoiadores."
No discurso em questão, Bolsonaro não se referiu diretamente a Biden, mas a um “um grande candidato à chefia de Estado” ( para Bolsonaro, assim como para Trump, a eleição americana ainda não terminou) que ameaça o Brasil com sanções econômicas: “E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto [Araújo, ministro das Relações Exteriores]? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão, não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas tem que saber que tem. Esse é o mundo. Ninguém tem o que nós temos", declarou.
Muitos se lembraram de filmes associados a essa pataquada, como o “O Incrível Exército de Brancaleone”, com Vittorio Gassman, ou “O rato que ruge”, com Peter Sellers. O primeiro trata das alucinações de um grupo de maltrapilhos que se armam para uma guerra na Europa medieval. O segundo, de um país periférico que declara guerra aos Estados Unidos para receber algum auxílio financeiro, e acaba ganhando.
Eu fiquei mais preocupado ao me lembrar do general ex–ditador argentino Leopoldo Galtieri, que declarou guerra à Inglaterra em 1982 ao tomar militarmente as Ilhas Malvinas, hoje definitivamente Falklands. A decisão teria sido tomada em meio a um tremendo porre de uísque, bebida frequente do General.
Assim como o país fictício de “O rato que ruge”, o Grão Ducado de Fenwick, também a Argentina estava em crise econômica gravíssima, e a ditadura militar estava prestes a cair. No dia 30 de março daquele ano, 40 mil pessoas estavam na Praça de Mayo, em frente à Casa Rosada, pedindo o fim da Ditadura. A invasão das Malvinas deu-se três dias depois, numa manobra para tentar unir o país contra um inimigo externo.
“Que venga el principito, gritavam os argentinos nas ruas diante da notícia de que o Príncipe Andrew estava no porta-aviões Invencible, como co-piloto de helicóptero. Deu certo durante poucos dias, pois, ao contrário do que o General Galtieri imaginava, a primeira-ministra Margareth Thatcher ordenou o envio de tropas às Malvinas, e a Argentina foi humilhada militarmente.
Ao que me consta, Bolsonaro não bebe. Mas anda muito estressado. Só faltava essa loucura para humilhar mais ainda os generais que se atrelaram a seu governo, a cada dia mais insustentável.
Sergio Fausto: Lições para o Brasil da eleição nos Estados Unidos
A mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo adversário
O título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.
A mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata. Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso construir uma alternativa já para o primeiro turno.
Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.
Mas na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país, como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.
Ao contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”. Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).
A batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e reproduzida pelo eleitor comum.
Cada país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a partir do próximo mandato presidencial?
Para ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com “representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
William Waack: As riquezas dos maricas
Bolsonaro é o pior inimigo de si mesmo quando se trata de ridicularizar sua autoridade
Era óbvio e esperado que, ao perder a aposta feita em Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro fosse incluído na coluna “perdedores” em todas as listas de governantes que se deram mal com a vitória de Joe Biden. Não são poucos, e incluem países tão diferentes entre si como Israel, Arábia Saudita, Turquia, Reino Unido e Hungria. Mas o que a língua solta do presidente está produzindo é uma rápida perda da própria autoridade
A popularidade que resulta de auxílios emergenciais é tão efêmera quanto a duração desses auxílios, e até aqui o governo não conseguiu dizer como vai incluir uma renda básica no Orçamento do ano que vem (que, aliás, não foi votado). Sim, é popularidade que pode ser reconquistada, ainda que a custo literalmente alto para os cofres públicos – e enquanto a economia não sofrer desarranjos maiores, fantasma que o próprio ministro Paulo Guedes anda alimentando.
Com autoridade é diferente. Um presidente não precisa necessariamente ter grande autoridade para ser popular, mas precisa ser levado a sério para governar. A autoridade de Bolsonaro está sendo diluída por ele mesmo ao cair no ridículo, um ácido capaz de corroer qualquer pedestal. Personagens que dizem coisas “folclóricas”, toscas, ofensivas, desvinculadas da realidade, abusivas ou mentirosas avançam até o ponto em que afundam nas próprias palavras.
A briga de Bolsonaro com a vacina “chinesa” conseguiu gerar desconfiança em qualquer vacina, justamente quando os especialistas alertam para o fato de que o Brasil provavelmente enfrentará uma segunda onda de covid-19, tal como acontece no momento na Europa e nos Estados Unidos. E a politização afeta a confiança em duas instituições essenciais para saúde pública: as que produzem a vacina (como o Instituto Butantan) e as que regulam sua aplicação (como a Anvisa). O resultado geral é péssimo para todos os governantes e causou séria apreensão nos governadores.
Da mesma maneira, pode-se argumentar indefinidamente sobre quem atrasa mais a aprovação das reformas que lidem com a questão fiscal, se é o Congresso ou se é a equipe do Ministério da Economia. Mas, no sistema político brasileiro, é o presidente quem tem o poder de ditar a agenda política, e a pergunta cada vez mais pesada no ar é se alguém sabe o que Bolsonaro pretende além de manter popularidade a um custo que a passagem do tempo só torna mais caro do ponto de vista fiscal.
O grau de isolamento internacional do Brasil por conta das apostas de Bolsonaro é inédito, ainda que lhe reste o consolo de estar na companhia de países como China, Rússia e México, que até aqui se recusam a parabenizar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais. Ocorre que esses três países tem contenciosos importantíssimos com os Estados Unidos, enquanto Bolsonaro está aparentemente ávido para encontrar um: a Amazônia.
Biden mencionou US$ 20 bilhões de possível ajuda, o agronegócio tecnológico e nossa matriz energética têm tudo para ganhar num impulso rumo à economia “verde”, mas o presidente prefere falar de “pólvora” quando esgotar a diplomacia em relação à pressão americana em questões ambientais. No caso brasileiro, nossa diplomacia esgotou-se ao exercer a ridícula opção preferencial de se subjugar a Donald Trump. Os que realmente possuem “pólvora”, como China e Rússia, não ficam falando disso.
De qualquer forma, faltou Bolsonaro esclarecer como pretende usar eventualmente pólvora para enfrentar os malandros de olho nas nossas riquezas, se ele considera que preside um país de maricas.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Ruy Castro: O mundo que espere por Bolsonaro
E espere sentado porque, enquanto não for a hora certa, ele não cumprimentará Biden
O vice-presidente, general Hamilton Mourão, declarou que Jair Bolsonaro irá cumprimentar o presidente eleito americano, Joe Biden, “na hora certa”. Significa que, para Mourão, os líderes mundiais que ignoraram o esperneio de mau perdedor de Donald Trump e reconheceram a vitória de Biden, como os representantes de Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Índia, Israel, Emirados Árabes, Irã, Iraque, Egito, Jordânia, Líbano, União Europeia, ONU, OMS, Otan e até nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, fizeram isso na hora errada.
Para Mourão, especialista em dizer platitudes ao ser abordado em trânsito entre um gabinete vazio e outro desocupado, Bolsonaro faz bem em “esperar que termine esse imbróglio aí, de discussão, se tem voto falso, se não tem, para dar o posicionamento dele”. Deve imaginar que Biden e os países mais adultos e responsáveis estão esperando sentados, sem respirar, por Bolsonaro. E que, quando ele falar, as relações entre Brasil e EUA tomarão seu caráter institucional normal, como entre dois países com o mesmo peso.
Mas não é assim, claro, ou Bolsonaro e seus zeros não teriam dedicado os últimos dois anos a abjetos shows de subserviência diante de Trump —que, ao contrário do que eles pensam, não foram recebidos com apreço pelo clown americano, mas com o desprezo devido aos que rastejam diante do nhonhô. Se, como se diz, Trump chama seus próprios seguidores de “otários”, imagine sua opinião sobre Bolsonaro —se é que alguma vez este lhe veio à cabeça fora da agenda oficial.
Além disso, Trump tem mais com o que se preocupar neste momento do que com o apoio de remotos políticos bananeiros. Está consciente de que, assim que for evaporado da Casa Branca, uma chuva de processos o espera na dona Justa.
Recomenda-se a quem achar no lixo o boné de Eduardo Bolsonaro com os dizeres “Trump 2020” que o deixe lá. Pode ter sido ele que deu azar.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Ricardo Noblat: Bolsonaro é a mais perfeita tradução do seu (des) governo
De volta à normalidade
Em dia de fúria, o presidente Jair Bolsonaro teve pelo menos um momento de argúcia. Foi quando desabafou, em cerimônia no Palácio do Planalto: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”. De fato, não está. Do contrário, não teria feito o que fez em um período de poucas horas.
Começou o dia celebrando o falso insucesso da vacina chinesa contra a Covid-19. Depois disse que o Brasil, temeroso do vírus, não passa de um país de maricas. Por fim, afirmou que se não houver entendimento com o futuro governo de Joe Biden em torno do futuro da Amazônia, chegará a hora de usar a pólvora.
Biden ameaça o Brasil com sanções econômicas se Bolsonaro não cuidar melhor da Amazônia, onde aumenta o desmatamento e multiplicam-se os focos de incêndio. Bolsonaro tenta vender aos brasileiros a ideia de que outros povos querem ocupar a Amazônia porque ela é muito rica em minérios. Daí a referência a guerra.
Foram os chineses que inventaram a pólvora. Segundo garantiu há oito anos o general Maynard Marques Santa Rosa, ex-secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, as Forças Armadas do Brasil não possuem munição suficiente para sustentar uma hora de combate.
Bravata pura de Bolsonaro! Que mereceu, uma hora mais tarde, a resposta indireta do embaixador americano no Brasil. Viralizou nas redes sociais o vídeo postado pelo embaixador sobre a passagem de mais um aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Uma demonstração de força bem a propósito.
O saldo do dia em que Bolsonaro despiu a fantasia recém-vestida de presidente normal e reconciliou-se com o que sempre foi, é e será, pode ser resumido assim:
- Aumentou a desconfiança em relação a uma vacina promissora como tantas outras que estão sendo testadas aqui e lá fora;
- Aumentou também a desconfiança nas decisões técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, até aqui amplamente respeitada no exterior;
- O Supremo Tribunal Federal sentiu-se obrigado a interferir na questão dando um prazo de 48 horas para que o governo explique por que suspendeu os testes com a Coronavac;
- Outra vez, os governadores se uniram contra o presidente da República e o acusaram de politizar o combate à pandemia.
O que mais, além do medo de não se reeleger em 2022, levaria Bolsonaro a comportar-se da forma estúpida e amadora como se comportou criando uma uma nova crise? Não é possível que a derrota do seu ídolo Donald Trump o tenha afetado tão gravemente a ponto de ele perder o juízo.
Maior do que o medo de não se reeleger deve ser o medo de assistir ao colapso da carreira política do seu filho mais velho Flávio Bolsonaro, réu pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no esquema de desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio de Janeiro.
O presidente acidental eleito há dois anos transformou-se num presidente atormentado. Ruim para ele, pior para o país.
Para o livro dos pensamentos de um presidente atormentado
Medo de perder a cadeira e apelo para que deixem sua família em paz
- “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o [governador João Doria] queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”, escreveu o presidente como resposta. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
- “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”.
(Maricas, segundo os dicionários, quer dizer: que tem comportamentos tidos como femininos; efeminado; que é homossexual; gay; repleto de covardia e medo.)
- “Começam a amedrontar o povo brasileiro com a segunda onda. […] O que faltou para nós não foi um líder, foi não deixar o líder trabalhar”.
- “Vem uma turminha aí falar ‘queremos o centro’, nem ódio para cá nem ódio para lá. Ódio é coisa de maricas. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora chamar um cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil, não terão outra oportunidade”.
- “Querem chegar lá [na presidência] não pelos seus próprios méritos. Não querem chegar pelos seus méritos, mas derrubar quem está lá. Se alguém acha que tenho ‘uma tesão’ por aquela cadeira lá está completamente enganado.”
- “Não teremos um líder feito no Brasil de dois anos, não vai aparecer. A não ser montado na grana, comprando um tantão de coisa por aí, em especial os marqueteiros. Fora isso, não terão outros líderes num curto espaço de tempo”.
- “O Brasil não pode ir para esse lado (da esquerda), meu Deus do céu. Minha cadeira está à disposição. [Vejo pessoas] criticando, falando mal, falando besteira, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo meus familiares o tempo todo”.
Elio Gaspari: Diplomacia sem cloroquina
Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países
Donald Trump está oferecendo ao mundo uma cena de desequilíbrio explícito recusando-se a admitir sua derrota eleitoral. Problema dos americanos. O Brasil nada tem a ver com isso. Desde o fim da semana passada, criou-se uma saia justa porque o presidente Jair Bolsonaro não felicitou Joe Biden pela sua vitória. É um bom tema para alimentar conversas, mas sua relevância é igual à da cloroquina para a cura da Covid. Pode, no máximo, ser um silêncio descortês, mas, nesse negócio de reconhecimento indevido, a medalha está com a diplomacia americana, que, em 1964, reconheceu o deputado Ranieri Mazzilli como presidente, enquanto João Goulart ainda estava no Brasil. Pior, fizeram isso sem consultar o presidente Lyndon Johnson.
No dia 20 de janeiro, Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. No limite, Trump deixará a cidade antes disso. Tudo bem. Em 1801, John Adams foi-se embora e não participou da posse de Thomas Jefferson. Talvez Trump fique de cara fechada na limusine que o levará, ao lado de Biden, da Casa Branca ao Capitólio. Tudo bem de novo. Em 1953, o general Eisenhower e o presidente Truman mal trocaram algumas palavras durante o percurso. Malquerenças à parte, no dia seguinte Jefferson e Eisenhower governavam os Estados Unidos, e, a partir da tarde do dia 20, Joe Biden assinará seus primeiros papéis na Casa Branca.
Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países. Bolsonaro e Biden têm opiniões diferentes em relação ao meio ambiente, uma ninharia se comparadas a divergências anteriores, como a do Acordo Nuclear que o Brasil assinou com a Alemanha, e o governo americano ostensivamente ajudou a detonar. Salvo a ação de agrotrogloditas nacionais e de suas milícias piromaníacas, há um imenso campo para o entendimento com os Estados Unidos e as grandes nações europeias em relação à floresta. Até há bem pouco tempo, o Brasil não era um pária. Se passou a sê-lo, com um chanceler que se orgulha disso, o problema é do atual governo. Assim foi com a agenda dos direitos humanos no século passado. Ela era um espinho no pé da ditadura, não de Pindorama. Nunca é demais lembrar que a famosa frase “o Brasil não é um país sério” jamais foi dita pelo presidente francês Charles De Gaulle. Seu autor foi o embaixador brasileiro em Paris.
Como perguntou o documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal revelado pelo repórter Mateus Vargas: “Será que vale a pena a troca de provocações nas Relações Internacionais?”.
Joe Biden é um dos poucos presidentes eleitos americanos que estiveram no Brasil. Isso garante que ele não pensa que a capital do país seja Buenos Aires. George Bush não sabia que aqui há negros, e em 1945 Franklin Roosevelt achava que Getúlio Vargas fosse um general. Ao contrário de Trump, o presidente eleito dos Estados Unidos tem uma relação racional com o Departamento de Estado, e pode-se esperar que pratique uma diplomacia ouvindo os profissionais. Em 2015, ele cruzou com o venezuelano Nicolás Maduro numa reunião em Brasília. Tudo pronto para um piti, Biden cumprimentou-o e disse que, se tivesse a cabeleira do colega, seria presidente dos Estados Unidos. Mesmo com uns poucos fios transplantados, conseguiu.
Quem preferir algum tipo de diplomacia temperamental jogará para seu público interno.
Monica De Bolle: O governo Biden
Há razões para ver no governo Biden o começo de um ciclo de restauração do conhecimento das ciências
Sim, já devemos pensar no governo de Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, independentemente dos esperneios de Trump e da hipocrisia do Partido Republicano. Sim, a tentativa de judicialização e contestação das eleições estarão conosco por um tempo. Mas as margens alcançadas por Biden em todos os Estados onde venceu são largas demais para serem revertidas. A matemática é inexorável. Também não é razoável supor que no complicado sistema norte-americano, em que as eleições para presidente são indiretas, haverá revoltas no colégio eleitoral que culminarão na decisão das eleições por parte da Câmara. A margem de Biden no voto popular e a solidez institucional dos Estados Unidos – ela ainda existe a despeito de Trump – tornam esse cenário quase fantasioso. Portanto, a pergunta é pertinente e oportuna: o que se deve esperar do governo Biden?
O discurso da vitória que o presidente eleito proferiu de Wilmington, sua cidade natal, na noite do último sábado, à nação fornece-nos algumas pistas. Nele, Biden deixou claro que não haverá recuperação econômica caso não exista um plano de combate à pandemia. Além de afirmar a predominância da crise de saúde pública sobre qualquer outro tema, a declaração do presidente eleito deixa em evidência, assim, quais serão as prioridades de seu governo e a ordem delas. Essas impressões se confirmam pelos próprios atos do presidente eleito no pouco tempo que se seguiu. Após a vitória declarada no fim de semana pondo fim a dias de apuração sob escrutínio e ansiedade de todo o mundo, a primeira ação de Biden foi nomear um conselho de especialistas e cientistas para ajudá-lo a reverter o descalabro norte-americano. Há vários dias são registrados aqui nos EUA mais de 120 mil casos diários de covid-19, os hospitais em algumas localidades do país estão chegando à sua capacidade máxima, os óbitos superam a marca de 1.000 por dia. Nesse ritmo, não tardará para que se alcance a marca de 200 mil casos por dia, como têm advertido vários infectologistas de renome.
Biden assumirá a Presidência em 20 de janeiro de 2021, momento em que, por força do descaso do governo Trump, a epidemia provavelmente estará em seu ápice – e isso contando as duas ondas anteriores de disseminação do vírus no país. A boa notícia, entretanto, é que até lá é provável que se tenha clareza sobre o sucesso das vacinas no último estágio de ensaios clínicos, antes que elas possam ser autorizadas para a comercialização. O recente anúncio da Pfizer sobre os resultados preliminares de sua vacina em colaboração com a BioNtech é promissor por várias razões. A principal delas é o uso de uma parte da mesma proteína do vírus – codificada no material genético da vacina – que vem sendo usada para o desenvolvimento de outras vacinas. Ou seja, se a vacina da Pfizer de fato tiver a eficácia comprovada nas próximas semanas, é razoável supor que outras vacinas também apresentarão eficácia, ainda que em níveis diferenciados. Portanto, a primeira metade do governo Biden pode vir a ser marcada pela resposta bem-sucedida à pandemia, com o auxílio das vacinas que serão distribuídas ao longo de 2021 e 2022. Caso tudo corra bem, o presidente eleito chegará no meio de seu mandato com um legado definitivo.
Tal legado terá grande influência nas eleições para o Congresso em 2022, com ou sem trumpismo residual ou escancarado. Nos EUA, há eleições a cada dois anos, e em 2022 será eleita nova Câmara e um terço do atual Senado. Se Biden conseguir dar cabo do vírus até lá, a chance de que obtenha um Congresso de maioria democrata será concreta. Nesse cenário, poderá pôr em andamento sua agenda legislativa com vistas aos planos de infraestrutura verde, fortalecimento das redes de proteção social nos EUA, reconfiguração do sistema de saúde, cujas falhas ficaram tão visíveis ao longo da pandemia.
Soa bom demais para ser verdade? Talvez. Mas a política e, por conseguinte, a história não são feitas apenas de obscurantismo, negacionismo, terraplanismo e outros “ismos” nefandos. A política e a história também são espaço do imprevisto, do imponderável, de grandes construções, de avanços e do término de ciclos de horror cujo fim muitas vezes não vemos e temos mesmo dificuldade de imaginar. Há razões para crer que o ciclo do trumpismo esteja no início do fim . Há razões para ver no princípio do novo governo o começo de um ciclo de restauração do conhecimento, das ciências – todas as ciências –, da verdade, isto é, a promessa que a política também nos oferece, para além do horror. Torçamos para que essa promessa também retorne ao Brasil em pouco tempo.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Eliane Cantanhêde: O impacto em 2022
Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar
Derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, fragilidade do presidente Jair Bolsonaro nas eleições municipais e total falta de estratégia para enfrentar a crise econômica e social. É nesse ambiente que viceja a articulação de uma chapa alternativa de centro para 2022, com participação de Luciano Huck, João Doria, Rodrigo Maia, Luiz Henrique Mandetta e agora Sérgio Moro, além de Fernando Henrique Cardoso. O cerco vai se fechando contra Bolsonaro.
Mais à centro-direita do que propriamente ao centro, a ambição é atrair a direita moderna, que votou em Bolsonaro, mas agora só pensa em se descolar dele, e a parcela da esquerda que cansou da hegemonia e dos erros do PT, mas tem como prioridade livrar o País de Bolsonaro. Os ventos favoráveis vêm de fora, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris, e de dentro, com as eleições municipais e as investigações sobre rachadinhas no Rio.
Como sempre, Bolsonaro vai na contramão do mundo democrático e se recusa a cumprimentar o vitorioso nos EUA, até mesmo a explicar por que não, o que só piora as perspectivas para a relação com o novo governo. Tão negacionista quanto Trump na pandemia, ele também nega os votos e a realidade, como ele. Bolsonaro acha que Trump venceu? Foi tudo fraude?
Assim, ele repete a campanha de 2018 só na forma, animando claques com muita antecedência pelo País afora, mas vai ter de inventar um novo conteúdo. O de dois anos atrás caducou: “nova política”, combate à corrupção, apoio à Lava Jato, reformas e carta-branca para o “Posto Ipiranga”, caneladas no mundo árabe e alinhamento automático com os EUA de Trump.
No governo, ele mergulhou no Centrão, derrubou Moro, botou a mão em PF, Coaf e Receita, abandonou as reformas tributária e administrativa, tirou gás de Paulo Guedes e agora fica sem Trump – e sem política externa. É bem mais complicado dar caneladas na China. Sem falar da pandemia…
Logo, Bolsonaro precisa, para se reeleger, muito mais do que fazer piadas de profundo mau gosto com Guaraná Jesus, assim como precisa mais do que Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio para escapar da derrota no domingo. Dificilmente a onda bolsonarista de 2018 se mantém agora e em 2022. O PSL foi um meteoro e passou.
O quadro que se desenha também é outro. Pela esquerda, o ex-presidente Lula, sem viço e sem discurso, já não é o mesmo. E as eleições municipais são um bom presságio do que vem pela frente, com o PT perdendo espaço para PSOL, PDT e PSB, pela ordem, em São Paulo, Rio e Recife e projetando que em 2022 é cada um por si, ou todos por um – que não será o PT.
Pela direita, Bolsonaro reina sozinho, agarrado ao mesmo Centrão que não deu para o gasto com o tucano Geraldo Alckmin em 2018. Mas ele, Bolsonaro, não é mais novidade, sofre o desgaste do poder e não tem o que mostrar. As “qualidades” eram falsos brilhantes, os defeitos se tornam mais e mais evidentes.
Há, portanto, um cenário que favorece o centro conhecido, confiável, que não dará cambalhotas, com surpresas e choques. Os articuladores de uma chapa alternativa veem insegurança por toda parte – na economia, na política, no meio ambiente, na política externa… – e chegaram a uma conclusão: a palavra de ordem de 2022 será estabilidade.
Reunir tanta gente, com tantos interesses e divergências ideológicas, porém, não será fácil. Rodrigo Maia se opõe à integração de Moro, que tenta incluir até o general Hamilton Mourão, rifado da chapa de Bolsonaro. De concreto, portanto, só é possível dizer que a derrota de Trump é um forte baque no bolsonarismo e terá impacto na eleição presidencial de 2022. Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar. Alguém acredita que seja capaz?
Rubens Barbosa: Notas sobre a eleição presidencial nos EUA
A sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador
A histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a maioria no Senado.
A polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.
Os EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do emprego e da renda.
Apesar da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da sociedade norte-americana.
Outro aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes muçulmanos.
As incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais, ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024? Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas isolacionistas?
Uma vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.
Os institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do que na eleição de 2016.
Ficam no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos, qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir ao trumpismo?
*Presidente do IRICE