ética
Luiz Carlos Azedo: O otimismo do mercado e o mal-estar da sociedade
“Apostar no ‘quantos pior, melhor’ na economia nem sempre é uma boa estratégia. Quando as coisas começam a dar certo, leva a oposição ao descrédito, como no Plano Real”
A conclusão da reforma da Previdência, aprovada ontem pelo Senado, desde o começo da semana exerce no mercado um efeito catalisador, confirmando o otimismo de seus principais analistas em relação ao impacto fiscal positivo da economia de mais de 800 bilhões de reais para o Tesouro, em 10 anos, com os ajustes feitos nas aposentadorias dos servidores federais e dos trabalhadores do setor privado. O impacto social são outros quinhentos, que só o tempo revelará, mas não é essa a principal causa do mal-estar na sociedade, se o fosse, provavelmente, a votação de ontem ocorreria em meio a grandes manifestações de protestos, com vidraças quebradas e muito gás lacrimogêneo nas principais cidades do país. Vamos por partes.
Para a maioria dos economistas, a reforma da Previdência, o teto de gastos e a reforma trabalhista, as duas últimas uma herança do governo Michel Temer, estabeleceram fundamentos para que o gasto público fosse controlado, a inflação se mantivesse abaixo da meta e, consequentemente, a taxa de juros em declínio. Mas a recuperação da economia continua lenta. Os mais otimistas, como o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, em artigo publicado na segunda-feira, no Valor Econômico, intitulado La Nave Va, porém, já falam em outra dinâmica da economia, uma “recuperação cíclica”. Segundo ele, a reforma da Previdência evitou uma catástrofe fiscal.
Mendonça de Barros questiona o pessimismo dos que valorizam o peso negativo da estrutura de despesas criadas pela Constituição de 1988 e por leis ordinárias subsequentes, principalmente na educação e na saúde, por exemplo, e pelas respectivas transferências compulsórias para estados e municípios. Também relativiza os problemas do desemprego, da informalidade e da capacidade ociosa da indústria. Segundo ele, são problemas reais e limitadores da força da recuperação cíclica, porém, são compensados pela nova legislação trabalhista, pela autonomia da política monetária e por uma gestão orçamentária competente. O desempenho do agronegócio e a lenta, mas consistente, recuperação do mercado de trabalho seriam indicadores de um novo ciclo de expansão da economia.
A “malaise”
O mal-estar da sociedade está diretamente associado às desigualdades, à violência e às injustiças. O sucesso de filmes como Coringa e Bacurau, para citar um blockbuster hollywoodiano e uma produção nacional que também glamoriza a violência, são indicadores de que algo de errado se passa. As notícias que chegam do México, do Equador, da Espanha, do Líbano e, principalmente, do Chile, para citar os que estão em mais evidência, corroboram a tese de que o problema não é isolado, embora se manifeste de forma diferenciada em cada país.
Do ponto de vista econômico, por exemplo, os indicadores brasileiros são piores do que os chilenos. Salário mínimo: R$ 1.700 (Chile) / R$ 998 (Brasil); Renda média anual: US$ 25,2 mil (Chile) / US$ 15,7 mil (Brasil); Desemprego: 7,3% (Chile) / 12,2% (Brasil); Inflação: 2,4% (Chile) / 2,9% (Brasil); Expectativa de alta do PIB neste ano: 2,9% (Chile) / menos de 1% (Brasil). De certa forma, convém ponderar, o que está havendo no Chile ocorreu no Brasil em 2013, com o mesmo estopim: o aumento do preço das passagens. A diferença é que havia um governo de esquerda, que não recorreu às forças armadas, enquanto no Chile, o presidente Sebástian Piñera, de direita, não hesitou em recorrer ao Exército para reprimir os protestos, o que já provocou a morte de 15 pessoas.
Além disso, o Brasil vem de eleições muito recentes, o que dá ao presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica mais tempo para reverter a situação que herdou na economia, mesmo que seu prestígio popular tenha caído. Tanto que a aprovação da reforma da Previdência mostra reduzida capacidade de mobilização por parte dos sindicatos de trabalhadores, ainda que enfraquecidos com o fim do imposto sindical e pela desmotivação causada pelo fantasma do desemprego.
O crédito de que dispõe Bolsonaro falta ao Congresso, que corre atrás do prejuízo blindando a política econômica do governo. No fundo, a “malaise” na sociedade tem muito mais a ver com a ética na política do que com a situação econômica. E é ainda mais fomentada pela radicalização política e por certas agressões ao bom senso por parte do governo. Entretanto, apostar no “quantos pior, melhor” na economia nem sempre é uma boa estratégia. Quando as coisas começam a dar certo, leva a oposição ao descrédito. Foi o que aconteceu durante o “milagre econômico”, no regime militar, e com o Plano Real, no governo Itamar Franco, com o qual o Fernando Henrique Cardoso se elegeu presidente da República por duas vezes.
Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra
“O PSL é belicoso e midiático, na primeira crise interna, o que se vê são gravações feitas sem autorização, ameaças de denúncias e muito bate-boca entre seus deputados nas redes sociais”
Usada à farta no Brasil para caracterizar uma atitude fadada ao fracasso, não existe uma explicação para a existência da expressão “Foi assim que Napoleão perdeu a guerra”, sobre a qual não há referências em alemão, francês, russo ou inglês. Alguns atribuem a expressão aos portugueses, uma espécie de vingança sarcástica devido à invasão de Portugal pelo exército francês e a consequente fuga de D. João VI e sua corte para o Brasil, em 1808.
As especulações vão da desastrosa retirada de Napoleão da Rússia, em 1812, depois da ocupação de Moscou, pois a cidade fora evacuada e, depois, incendiada (o exército russo evitou o confronto aberto e perseguiu as tropas francesas em pleno inverno, até Paris) a uma suposta crise de hemorroidas que o impedira de montar durante a Batalha de Waterloo, em 1815, quando foi definitivamente derrotado pelos ingleses.
O chiste lusitano é sob medida para a crise do PSL, cujo último lance foi a renúncia do líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), e sua substituição pelo deputado Eduardo Bolsonaro (SP), filho do presidente da República. Jair Bolsonaro se encontra no Japão, primeira etapa de sua viagem à Ásia, mas de lá monitora a operação que levou seu filho à liderança do PSL.
Apesar de ter a maior bancada governista da Câmara, com 53 deputados, o PSL nunca foi o partido hegemônico na Casa, embora seja muito estridente na tribuna e nos apartes, além de agitar as redes sociais. Agora, com essa divisão, corre o risco de ser tornar irrelevante, a não ser que haja um acordo interno que apazígue a disputa. Falta à bancada do PSL cultura parlamentar para o entendimento e a composição, num ambiente com ritos de convivência consolidados.
O modus operandi do partido é belicoso e midiático. Na primeira crise interna, o que se vê são a divulgação de gravações feitas sem autorização, ameaças de denúncias sobre os podres partidários e muito bate-boca pelas redes sociais, às vezes em linguagem completamente estranha à vida parlamentar, como a guerra de emojis entre a ex-líder do governo no Congresso Joice Hasselmann (PSL-SP) e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (PSL), filho do presidente da República, que nem da bancada é.
Decantação
A reviravolta de ontem, quando Eduardo Bolsonaro conseguiu finalmente o número de indicações para se tornar o líder, não encerra a crise, apenas restabelece a lei da gravidade, pois seria um aborto da natureza o presidente da República ser derrotado na sua própria bancada, como aconteceu na sexta-feira. Entretanto, é um jogo de perde-perde: se 29 deputados apoiam o novo líder e 24 são contra ele, em certas circunstâncias, isso reduz o peso da bancada a cinco deputados, principalmente em questões interpares. Vamos supor, por exemplo, que a eleição para a presidência da Câmara fosse hoje.
A confusão na bancada do PSL faz parte de um processo de decantação, após o tsunami eleitoral que renovou a Câmara. Começa a separar os parlamentares eleitos para brilhar e que se destacam entre as principais lideranças daqueles que vão permanecer no baixo clero. Alguns serão deputados de um só mandato.
A aposta do clã Bolsonaro é que os adversários internos não sobreviverão sem o apoio do presidente da República, porque chegaram ao Congresso na aba do seu chapéu. Além disso, ficarão a pão e água, conforme a narrativa usada para pressionar os rebeldes a apoiarem o novo líder. Tem lógica, mas muita água ainda vai rolar sob a ponte.
O primeiro ato de Eduardo Bolsonaro foi destituir os 12 vice-líderes da legenda, cargos importantes no funcionamento da Câmara, porque seus ocupantes substituem o líder nas comissões e no plenário, além de terem direito à partilha dos cargos da liderança. O líder é poderoso quanto ao funcionamento da Casa, pois indica os integrantes das comissões e relatores, comanda as negociações e intermedeia a ocupação de espaços e liberação de recursos nos ministérios.
Para o presidente Bolsonaro, controlar a liderança é uma forma de confrontar o poder da cúpula do partido, principalmente do presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), com quem entrou em rota de colisão por causa dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, que somam mais de R$ 200 milhões. O papel de líder, principalmente nos grandes partidos, exige capacidade de diálogo e negociação. Esse não é o forte de Eduardo Bolsonaro, cujo perfil é mais agressivo. Pode ser que a estratégia de Bolsonaro pai seja mesmo essa, porque a agenda econômica do governo vai bem sem o PSL. O grande negociador das reformas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O papel do filho seria fazer um contraponto e demarcar território.
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Luiz Carlos Azedo: Cria corvos
“A crise de Bolsonaro com o PSL não tem nada a ver com os temas em discussão no Congresso, nem com a polarização política direita versus esquerda. É o varejo do varejo que a move”
“Cria cuervos que te sacarán los ojos” (crie corvos e eles te arrancarão os olhos) é um velho provérbio espanhol. A citação inspirou a obra-prima do cineasta Carlos Saura, que se passa em pleno franquismo. Aqui, porém, tem mais a ver com a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e seu partido, o PSL, que ameaça implodir a legenda, quiçá o próprio governo, se o líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), nesse caso, fosse levado a sério. A sua ameaça vazou em gravação divulgada à imprensa, como vazara antes uma declaração do presidente da República articulando a substituição do líder por seu filho, deputado Eduardo Bolsonaro (SP) — aquele mesmo que o pai pretendia nomear embaixador do Brasil nos Estados Unidos — numa reunião no Palácio do Planalto com 20 deputados da legenda.
A crise começou com uma declaração de Bolsonaro de que o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), estaria queimado, evoluiu para um questionamento sobre a transparência da gestão e uma ação de busca e apreensão da Polícia Federal na casa e no escritório do cacique da legenda. Fechou a semana com uma mudança na liderança do governo no Congresso, a destituição da deputada Joice Hasselmann (SP), que foi substituída pelo senador Eduardo Gomes (MDB-TO), e a fracassada tentativa de destituição do líder da bancada na Câmara, por meio de duas listas cujas assinaturas não atingiram o número de deputados necessários para o reconhecimento da Mesa.
Nesse bafafá, além dos vazamentos de conversas gravadas sem autorização, houve muito disse-me-disse e articulações de bastidor para destituir os filhos do presidente Bolsonaro do comando da legenda no Rio de Janeiro, no caso, o senador Flávio Bolsonaro, e em São Paulo, o deputado Eduardo Bolsonaro. No fim da tarde, Delegado Waldir tentava minimizar as próprias ameaças: “É uma fala num momento de emoção, né? É uma fala quando você percebe a ingratidão. Tenho que buscar as palavras”, disse. Ao encontrá-las, a emenda foi pior do que o soneto: “Nós somos Bolsonaro. Nós somos que nem mulher traída. Apanha, não é? Mas, mesmo assim, ela volta ao aconchego”.
A crise de Bolsonaro com seu partido parece reprise de outros momentos da história, em que presidentes eleitos numa onda antissistêmica, por pequenos partidos, sem uma base sólida no Congresso, acabaram interrompendo o mandato: Jânio Quadros, eleito pelo PTN, que renunciou em 1961, sonhando com a volta nos braços do povo, e Fernando Collor de Mello, eleito pelo PRN, que também renunciou, mas para evitar um impeachment. Ambos tiveram comportamentos histriônicos na Presidência, foram eleitos com uma narrativa de combate à corrupção, numa onda populista de direita. Os contextos, porém, eram diferentes. A eleição de Jânio foi pautada pela Guerra Fria; a de Collor, pela modernização do país após a redemocratização.
Varejo
O mais impressionante na crise de Bolsonaro com o PSL é que a disputa não tem nada a ver com os grandes temas em discussão no Congresso, nem mesmo com a polarização política direita versus esquerda protagonizada pelo presidente da República. É o varejo do varejo da política partidária que a move. Bolsonaro considera todos os parlamentares do PSL caudatários de seu próprio prestígio, porque foram eleitos pela base bolsonarista, que descarregou votos nos candidatos proporcionais que o apoiavam. Nesse aspecto, está cheio de razão. Ocorre que os parlamentares pensam diferente, descobriram seu próprio poder na convivência com outros líderes e bancadas partidárias, querem mais espaço no governo e não abrem mão de seu quinhão na partilha dos recursos dos fundos partidário e eleitoral.
Bolsonaro não desistiu de remover Delegado Valdir. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (GO), continua as articulações para fazer de Eduardo Bolsonaro (SP) o novo líder da bancada. A briga tem muito a ver com o posicionamento da legenda em relação às eleições municipais do próximo ano. Bolsonaro quer indicar os candidatos apoiados pelo PSL, principalmente nas capitais. A experiência mostra que esse tipo de envolvimento direto do presidente da República nas eleições não costuma dar muito certo. Nacionalizar as eleições municipais não é a tendência dos eleitores, mesmo nas grandes metrópoles. Foram raros os momentos em que isso aconteceu, como na eleição de Luiza Erundina, então no PT, à Prefeitura de São Paulo, em 1988, durante o governo José Sarney.
O maior problema é que a disputa ocorre num momento em que o governo está sem agenda no Congresso. A aprovação da reforma da Previdência deverá ser concluída na próxima quarta-feira, no Senado. Com o engavetamento da reforma tributária, o governo não sabe ainda o que fazer em termos de iniciativa legislativa. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ontem, negociava uma pauta com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), mas foi atropelado pela crise entre seu chefe e seus correligionários. Não fossem o DEM e o MDB, principalmente, o governo estaria no sal, sem a menor governabilidade.
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Luiz Carlos Azedo: A caverna da Lava-Jato
“Ex-supervisor da Receita preso seria o responsável pela investigação ilegal de cerca de 134 autoridades, entre as quais os presidentes do Supremo, do Senado e da Câmara”
Às vezes, quem pensa que enxerga tudo descobre que está como os prisioneiros da caverna de Platão, a alegoria famosa sobre os sentidos e a razão. Discípulo de Sócrates, o filósofo grego separava o mundo sensível, onde residia a falsa percepção da realidade, do mundo inteligível, alcançado pela razão. A alegoria serve para aguçar nosso olhar sobre o vale-tudo no qual mergulhou a força-tarefa da Lava-Jato, que, agora, coloca em xeque o seu futuro, pela reação que enfrenta no Congresso, no Supremo Tribunal Federal (STF) e na própria Procuradoria-Geral da República.
Na alegoria de Platão, havia um grupo de pessoas que viviam numa grande caverna, com seus braços, pernas e pescoços presos por correntes, forçando-os a olharem unicamente para a parede do fundo da caverna. Atrás dessas pessoas existia uma fogueira e outros indivíduos, que transportavam ao redor da luz do fogo objetos e seres, cujas sombras eram projetadas na parede. Os prisioneiros viam apenas as sombras das imagens, confundindo-as com a realidade. Entretanto, uma das pessoas conseguiu se libertar das correntes e saiu para o mundo exterior.
A princípio, a luz do sol e as cores cegaram o ex-prisioneiro, que se assustou. Assim, quis voltar para a caverna e compartilhar com os outros prisioneiros todas as informações e as experiências que viveu, mas ninguém acreditava no que relatava, e o taxaram de louco. Para evitar que suas ideias atraíssem outras pessoas para os “perigos da insanidade”, os prisioneiros mataram o fugitivo. A história tem a ver com o destino de Sócrates, que foi morto pelos atenienses porque suas ideias eram consideradas subversivas.
A realidade somente é compreendida a partir do pensamento crítico e racional. Essa é a moral da história. Ontem, o Banco Central informou ao juiz Marcelo Bretas que o auditor-fiscal Daniel Gentil e sua mãe, Sueli Gentil, presos na Operação Armadeira, têm R$ 13,9 milhões depositados em 11 contas bancárias, dos quais R$ 10,9 milhões foram encontrados na conta materna. A família Gentil é apontada pelo Ministério Público Federal como a responsável pelo esquema de lavagem de dinheiro de suspeitos, entre os quais Marco Aurélio Canal, supervisor nacional da Equipe Especial de Programação da Lava-Jato, o grupo responsável por aplicar multas aos acusados da operação por sonegação fiscal. Daniel Gentil era subordinado a esse setor.
Delação
A investigação não só confirma as denúncias de que informações da antiga Comissão de Controle de Operações Financeiras (Coaf), tratada como intocável pela força-tarefa da Lava-Jato, estavam sendo utilizadas em investigações ilegais, como revela que o objetivo dos investigadores não era dar mais eficiência e celeridade ao combate à lavagem de dinheiro, mas achacar os investigados. Em troca, eles anulariam multas por sonegação fiscal decorrentes de fatos descobertos pela operação. Canal é suspeito de ter atuado na cobrança de propina de R$ 4 milhões junto à Fetranspor (federação das empresas de ônibus do Rio de Janeiro) e no recebimento de 50 mil euros de Ricardo Siqueira Rodrigues, acusado na Operação Rizoma, mas esse é apenas um ponto de partida. Com as investigações em curso, será possível saber qual a verdadeira extensão da atuação da quadrilha de auditores-fiscais, inclusive no âmbito da Lava-Jato.
Segundo o Ministério Público Federal, bens usados pela família de Canal estão em nome de empresas ligadas a outros auditores, especialmente Daniel Gentil. É o caso da cobertura em que sua família mora, na avenida Lúcio Costa, orla da Barra da Tijuca, que está em nome da empresa B. Magts, cuja única sócia é Sueli, que nunca teria recebido pagamento de aluguel. Também estão em nome da empresa o Honda Fit e o Mitsubishi Outlander usados pela filha e pela mulher de Canal, respectivamente. O Volkswagen Golf do ex-supervisor da Receita está em nome da empresa de outro amigo. Canal teria lavado dinheiro na construção de um shopping center em Itaguaí, município vizinho à capital fluminense, no qual uma empresa em nome de sua mulher tem participação.
Canal foi personagem central do duro ataque à força-tarefa da Lava-Jato feito pelo ministro Gilmar Mendes, na quarta-feira, em seu voto no julgamento do habeas corpus do ex-gerente da Petrobras Márcio de Almeida, que foi concedido. O ex-supervisor da Receita seria o responsável pela investigação ilegal de cerca de 134 autoridades, entre as quais o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Sua prisão terá impacto no julgamento, pelo plenário do Supremo, da polêmica liminar concedida pelo presidente da Corte, Dias Toffoli, ao senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), suspendendo todas as investigações com base em dados do Coaf obtidos sem autorização judicial. Por essas voltas que o mundo dá, Canal pode fazer uma “delação premiada”, e contar tudo que sabe.
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Luiz Carlos Azedo: Lava-Jato “sub judice”
“Lula pode ser um dos beneficiados pela decisão do Supremo, pois sua defesa também pediu anulação das condenações nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia“
Por 6 a 3, a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) endossou a tese de que réus delatados, na última etapa do processo, devem apresentar alegações finais após os réus delatores. Faltam votar o ministro Marco Aurélio, que teve de se ausentar da sessão plenária, e o presidente da Corte, Dias Toffoli, que adiantou seu voto a favor do habeas corpus do ex-gerente da Petrobras Márcio de Almeida, mas suspendeu o julgamento e anunciou que apresentará, na próxima quarta-feira, uma proposta de modulação dos efeitos da decisão em relação aos demais processos.
A suspensão do julgamento deixa “sub judice” 32 sentenças da Lava-Jato, nas quais foram condenados 143 réus. A decisão tem como paradigma a anulação, pela Segunda Turma do STF, da sentença do ex-juiz Sérgio Moro que havia condenado o ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras Aldemir Bendine a 11 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro. A defesa dele havia alegado que o executivo não teve respeitado o seu direito de defesa porque não apresentou suas alegações finais após as dos réus delatores.
Há duas questões a serem definidas pelo Supremo quanto ao alcance da decisão: primeiro, se a regra vale para todos os réus condenados nessas circunstâncias; segundo, caso não seja tão ampla, em que condições deve ser aplicada. Por exemplo, no caso de a defesa ter solicitado se manifestar depois dos delatores e o pleito não ter sido acolhido, o que restringiria bastante o alcance da jurisprudência.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ser um dos beneficiados pela decisão do Supremo, pois sua defesa também pediu anulação das condenações nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. Lula está preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba por ter sido condenado em segunda instância no primeiro caso. Na hipótese de ser beneficiado, deverá aguardar em liberdade um novo julgamento, após as alegações finais. Tal situação tende a provocar grande radicalização política.
Mesmo que adote o critério mais amplo, a decisão do Supremo não absolverá ninguém, determina apenas que o julgamento seja retomado a partir das alegações finais. A vantagem para os réus, além de eventual libertação até o novo julgamento, é o fato de que os prazos para prescrição dos processos estarão correndo e, alguns casos, os julgamentos ocorreram quase no prazo limite para a prescrição.
Freio de arrumação
Nos meios jurídicos, a decisão do Supremo está tendo ampla repercussão, porque atende aos questionamentos dos advogados quanto ao direito de ampla defesa dos réus da Lava-Jato. Em contrapartida, é grande o desgaste do Supremo na opinião pública, que majoritariamente apoia a operação de forma incondicional.
Na prática, a decisão do Supremo é mais um freio de arrumação na força-tarefa da Lava-Jato, que se soma à liminar do presidente do Supremo, Dias Toffoli, que suspendeu todas as investigações da Polícia Federal com base em informações da Comissão de Controle de Operações Financeiras (Coaf) sem autorização judicial. A liminar atendeu a pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, que estava sendo investigado no caso do seu ex-assessor na Assembleia Legislativa fluminense Fabrício Queiroz.
Ontem, tomou posse o novo procurador-geral da República, Augusto Aras, cujo nome foi aprovado pelo Senado por ampla maioria. Em seu discurso, disse que a Procuradoria-Geral da República (PGR) atuará de forma democrática, sem legislar (“é missão do Executivo) nem julgar (“missão do Judiciário”), mas pretende “induzir políticas públicas econômicas, políticas públicas sociais, de defesa das minorias, e, acima de tudo: que tudo se faça com respeito à dignidade da pessoa humana”.
Aras ressaltou que pretende dialogar “para solucionar os grandes problemas do Brasil”. Adiantou que pretende reorganizar administrativamente a Procuradoria-Geral da República. Há expectativa de que reestruture a força-tarefa da Lava-Jato, cuja atuação pretende estender aos estados e municípios. Tudo isso é visto com desconfiança pela força-tarefa da Lava-Jato de Curitiba, que se opôs a sua indicação.
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Luiz Carlos Azedo: Suprema decisão
"O julgamento de hoje terá ampla repercussão em relação à Operação Lava-Jato, pois pode levar à anulação de 32 sentenças e beneficiar 143 réus”
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma hoje um julgamento que pode representar o maior revés até agora para a Operação Lava-Jato. Trata-se do habeas corpus do ex-gerente da Petrobras Márcio de Almeida, no qual sua defesa alega que o réu foi condenado sem direito à ampla defesa, porque não foi ouvido após o corréu que o acusou em delação premiada. O relator do caso, ministro Edson Fachin, que solicitou a apreciação o caso pelo pleno da Corte, na abertura do julgamento, apresentou voto contrário à tese, que pode levar à anulação de outras 32 sentenças da Lava-Jato, beneficiando 143 réus.
A defesa de Márcio de Almeida surfa uma decisão da Segunda Turma do STF, em agosto, que anulou a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine. Foi a primeira vez que foi anulada sentença do então juiz federal e atual ministro da Justiça, Sergio Moro. Na ocasião, a defesa de Bendine tirou o seguinte coelho da cartola: réus delatados deveriam apresentar alegações finais após os réus delatores. A tese parte do princípio constitucional de que o réu tem o direito sagrado de se defender somente após a acusação.
Desde o início da Lava-Jato, a Justiça em primeira instância tem dado o mesmo prazo para as alegações finais a todos os réus, inclusive aos que fizeram delação premiada. Em consequência, os réus condenados pela Lava-Jato nessa situação podem se beneficiar da decisão do Supremo no julgamento de hoje. Entre os réus, ninguém menos do que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja defesa também pediu anulação das condenações nos casos do tríplex do Guarujá, pelo qual está preso, e do sítio de Atibaia, ainda em primeira instância. Mais quatro pedidos semelhantes já chegaram ao Supremo.
No julgamento de Bendine, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu anular a sentença de Moro que, em 2018, condenou o ex-presidente da Petrobras a 11 anos de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Com isso, o processo voltou à primeira instância da Justiça para nova sentença. Na segunda instância, a condenação de Bendine foi mantida, mas reduzida para sete anos, nove meses e 10 dias de prisão. O processo não chegou a ser concluído, porém, porque ainda falta a análise de um recurso.
Jurisprudência
Na Segunda Turma, Fachin também foi contra o habeas corpus de Bendine, mas foi derrotado pelos votos de Ricardo Levandowski, Gilmar Mendes e Cármem Lúcia. Supostamente, esses votos serão mantidos no julgamento de hoje. Para o habeas corpus ser aprovado, seriam necessários mais três votos. Há expectativas de que os ministros Luiz Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio acompanhem Fachin. O presidente do Supremo, Dias Toffoli, e o decano, Celso de Mello, votariam como a maioria da Segunda Turma. A grande incógnita seria o ministro Alexandre de Moraes.
Em situações como essa, o Supremo costuma ser bombardeado nas redes sociais pelos defensores da Operação Lava-Jato, e o cenário político acaba contaminando suas decisões. Não será surpresa uma solução salomônica, daquelas em que um ministro pede vista do processo e a Corte susta o julgamento. Os ministros também podem limitar a decisão aos casos em que a defesa pediu para fazer as alegações finais após as dos réus delatores e não foi atendida.
Desaprovação
Pesquisa Ibope divulgada ontem mostra nova queda na avaliação do governo e do presidente Jair Bolsonaro. Para 31% dos entrevistados, o governo é ótimo ou bom; 32% o consideram regular e 34% o consideram ruim ou péssimo. Não sabem/não responderam somam 3%. A avaliação do presidente Jair Bolsonaro registra inéditos 32% tanto para ótimo/bom, como para regular e ruim/péssimo; 2% não sabem/não responderam.
Trocando em miúdos, a estratégia política de Bolsonaro não está dando muito certo. Segundo a pesquisa, encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que ouviu 2 mil pessoas, em 126 municípios, 44% dos entrevistados aprovam sua maneira de governar, 50% desaprovam e 6% não opinaram. Já a confiança em Bolsonaro (42%) perde para a desconfiança (55%). Não sabe/não respondeu somaram 6%. O levantamento foi feito entre 19 e 22 de setembro. O nível de confiança da pesquisa é de 95%, com margem de erro de dois pontos percentuais, para mais ou para menos.
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Luiz Carlos Azedo: A mudança na PGR
“Aras tem enfatizado seu papel nos assuntos de natureza econômica e a independência do MPF. Sinaliza certo desalinhamento em relação ao Palácio do Planalto”
A despedida da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), da função de representante do Ministério Público Federal (MPF), virou um ato em defesa da democracia e da independência entre os Poderes da República. Seu mandato terminará na próxima terça-feira e, a partir de agora, todos os holofotes estarão voltados para o subprocurador-geral Augusto Aras, indicado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. Dodge foi muito reverenciada na sessão do Supremo, mas todos os discursos, inclusive o dela, soaram como advertência ao seu substituto. Até a aprovação do nome de Aras pelo Senado, a Procuradoria-Geral da República será chefiada interinamente pelo vice-presidente do Conselho Superior do MPF (CSMPF), Alcides Martins.
Raquel Dodge recebeu homenagens do presidente do STF, Dias Toffoli, e dos demais ministros. Toffoli disse que a procuradora “foi firme e corajosa” ao promover a efetivação dos direitos das pessoas e proteger a ordem constitucional, mas o seu principal recado foi a defesa da autonomia do Ministério Público Federal, “forte e independente na defesa dos direitos e das liberdades das pessoas e no combate à corrupção”, sem o que os valores democráticos e republicanos da Constituição de 1988 “estariam permanentemente ameaçados”.
Na mesma linha se pronunciou o decano da Corte, ministro Celso de Mello, cujo discurso foi uma espécie de resposta ao comentário feito pelo presidente Jair Bolsonaro de que o novo procurador-geral seria uma dama no seu jogo de xadrez, ou seja, o principal aliado político. “O Ministério Público não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República”, disse.
Dodge deixa a Procuradoria-Geral da República derrotada, pois pretendia permanecer no cargo e contava com apoios importantes no Congresso e no Supremo, porém, com altivez. Sua atuação não foi pautada por iniciativas espetaculares como as do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, mas foi particularmente intensa em defesa das mulheres, dos indígenas, das minorias e em questões ambientais. Seu discurso de despedida no Supremo reiterou essas preocupações: “No Brasil e no mundo, surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para todas as gerações”. E destacou o papel do Supremo: “É singularmente importante a responsabilidade do STF para acionar o sistema de freios e contrapesos para manter leis válidas perante a Constituição.”
Desalinhado
Augusto Aras faz uma grande peregrinação pelos gabinetes do Senado, em busca da maioria dos votos dos 81 senadores em plenário. Primeiro, porém, seu nome precisa ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que deve se reunir na próxima semana. Aras é uma espécie de anfíbio, até aqui acumulou o cargo com a sua banca de advocacia, uma das maiores da Bahia, estado cuja bancada o apoia com gosto, do ex-governador Jaques Wagner (PT) ao senador Ângelo Coronel (PSD). O senador Otto Alencar (PSD), titular na Comissão de Constituição e Justiça, é um dos principais articuladores da aprovação de seu nome pelos colegas.
Ontem, Aras sinalizou um reposicionamento em relação ao presidente Jair Bolsonaro, durante conversa com o senador Alexandre Vieira (Cidadania-SE), um dos articuladores da chamada CPI da Lava-Toga. No encontro, relatou que, na primeira conversa com o presidente da República, deixou claro que exerceria suas prerrogativas constitucionais plenamente. De forma inusitada, parte da conversa entre Aras e Vieira teve o vídeo divulgado.
“Tive o primeiro contato com o presidente da República através de um amigo de muitos anos e, nesse mesmo primeiro contato, disse ao presidente exatamente isso: ‘Presidente, o senhor não pode errar (…), porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem as garantias constitucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar ou admitir sua expressão. Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito’”, disse Aras.
No Senado, a aprovação do nome de Aras pode vir a ser consagradora, apesar da oposição do grupo de senadores que apoiam a Lava-Jato. Aras tem enfatizado o papel do procurador-geral nos assuntos de natureza econômica, além de defender a independência do MP junto aos senadores. Sinaliza um certo desalinhamento em relação ao Palácio do Planalto. Quem o conhece, diz que é polivalente como operador do direito e habilidoso na negociação política.
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Luiz Carlos Azedo: Supremo versus Lava-Jato
“Apoiadores de Moro fazem uma dura campanha contra Toffoli e, principalmente, Gilmar Mendes, que subiu o tom nas entrevistas contra a Lava-Jato”
O transfere-não-transfere o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da Superintendência de Polícia Federal em Curitiba para o Presídio de Tremembé, em São Paulo, foi mais um capítulo da queda de braços entre a força-tarefa da Lava-Jato e o Supremo Tribunal Federal (STF), no qual promotores federais e juízes de primeira instância deixaram na maior saia justa os ministros da Corte. A transferência foi decidida de forma tão repentina que o Supremo suspendeu a medida por 10 votos a um, o do ministro Marco Aurélio Mello, depois de a medida contra o petista ter provocado forte reação da Câmara, que chegou a interromper a votação da reforma da Previdência para que 80 deputados pudessem comparecer ao Supremo e pedir para que Lula continuasse preso em Curitiba, onde cumpre pena de mais de 12 anos de prisão.
A defesa de Lula recorreu ao Supremo depois que o juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci, da Justiça estadual de São Paulo, decidiu que o ex-presidente cumpriria pena em Tremembé. Essa decisão foi tomada horas depois de a juíza federal do Paraná Carolina Lebbos emitir ordem de transferência de Lula de Curitiba para um presídio paulista. Depois de uma audiência com deputados que havia sido solicitada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, decidiu, em caráter de urgência, submeter o recurso de Lula ao plenário do tribunal, que estava reunido para julgar uma ação sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A decisão dos ministros foi tomada em meia hora. Resolveram manter Lula em Curitiba até que a Segunda Turma do STF conclua o julgamento de um pedido de suspeição contra o ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, na condução do processo do triplex do Guarujá (SP), no qual o petista foi condenado. Relator da Lava-Jato no STF, o ministro Edson Fachin foi o primeiro a votar a favor da suspensão da decisão da juíza do Paraná e da manutenção do petista em uma cela especial no Paraná ou em São Paulo. Rejeitou, porém, o pedido da defesa de que o ex-presidente fosse colocado em liberdade até a conclusão da análise do habeas corpus. O voto de Fachin foi acompanhado por outros nove ministros.
Até a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ao se pronunciar sobre o pedido, defendeu que Lula não fosse transferido para um presídio comum, permanecendo preso na Superintendência da PF em Curitiba. Marco Aurélio Mello votou contra por questionar a inclusão do recurso na pauta do plenário do STF, com o argumento de que a decisão de manter Lula em uma cela especial caberia à Segunda Turma do tribunal, colegiado composto por cinco dos 11 magistrados da Corte. Classificou a decisão como queima de etapas.
Segunda Turma
Nos bastidores do Judiciário, o episódio é visto como uma escalada na disputa do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e dos procuradores da força-tarefa de Curitiba com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente o presidente da Corte, Toffoli. Como se sabe, a Segunda Turma do STF, formada pelos ministros Cármen Lúcia, presidente, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Edson Fachin ainda não concluiu o julgamento de um pedido de suspeição de Moro na condução do processo do triplex de Guarujá (SP), no qual Lula foi condenado, quando o atual ministro era o juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. A maioria da Turma é “garantista”, ou seja, prioriza o direito de defesa e as prerrogativas dos réus.
Na ação, a defesa aponta parcialidade do ex-juiz no julgamento e, em razão disso, pede que o ex-presidente seja libertado. O vazamento das conversas entre Moro e os procuradores da Lava-Jato durante o julgamento do ex-presidente Lula pelo Telegram, que foram hackeadas e estão sendo divulgadas pelo site The Intercept Brasil, para alguns ministros, revelou a violação dos princípios da impessoalidade e imparcialidade durante o julgamento, o que alimenta especulações de que o processo será anulado em razão do desrespeito ao devido processo legal. Consequentemente, Lula seria solto. Em razão desses rumores, os apoiadores de Moro fazem uma dura campanha contra Toffoli e, principalmente, Gilmar Mendes, que subiu o tom nas entrevistas contra a Lava-Jato, ao saber que estava sendo supostamente investigado pela força-tarefa, o que seria uma ilegalidade.
Duas decisões monocráticas de Toffoli tensionam os ministros do Supremo: a abertura de inquérito para investigar o vazamento de dados da Coaf (Comissão de Controle das Atividades Financeiras), conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes sem a participação do Ministério Público Federal, e a suspensão — a pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que estava sendo investigado em razão do caso Queiroz — de todas as investigações da Polícia Federal com base em informações sigilosas fornecidas pela Coaf, sem a devida autorização judicial.
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Luiz Carlos Azedo: Lava-Jato na ofensiva
“Embora no Rio de Janeiro, o juiz federal Marcelo Bretas mira os tucanos paulistas, por suspeita de superfaturamento e desvio de recursos públicos na ampliação da Marginal Tietê”
No último dia de recesso do Judiciário, a Operação Lava-Jato retomou a iniciativa, com nova denúncia contra o ex-diretor da Dersa (estatal paulista de rodovias) Paulo Vieira de Souza, pelo Ministério Público Federal (MPF), por corrupção, lavagem de dinheiro e fraude de licitação. Preso em Curitiba, Paulo é apontado como suposto operador financeiro do PSDB e responsável pela lavagem de milhões de reais a favor da Odebrecht.
Paulo Vieira é réu por suspeita de superfaturamento de uma obra de R$ 71,6 milhões que foi paga pela estatal Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa) ao consórcio Nova Tietê, cuja liderança pertencia à Delta, empresa de Fernando Cavendish. A denúncia foi oferecida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, mas foi enviada à 7ª Vara Federal do Rio em julho de 2016 porque os réus e os crimes são semelhantes aos da Operação Saqueador, um desdobramento da Operação Lava-Jato.
Embora no Rio de Janeiro, o juiz federal Marcelo Bretas mira os tucanos paulistas. A ampliação da Marginal Tietê custou R$ 360 milhões. As obras foram realizadas entre 2009 e 2011, na gestão de José Serra (PSDB-SP). Paulo Preto está sob forte pressão da Lava-Jato para fazer uma delação premiada. Ontem, Cavendish disse ao juiz Bretas que conheceu Paulo Vieira de Souza em 2008, durante uma reunião em São Paulo sobre a participação da Delta em obras do governo paulista.
O ex-diretor da Dersa teria pedido R$ 8 milhões em espécie para garantir a entrada da empresa carioca nos contratos. Cavendish disse que, além desse pagamento, depois do início das obras foram feitos outros, no valor de R$ 20 milhões, ao longo do contrato. O operador financeiro Adir Assad, que também prestou depoimento, aumentou a carga contra Paulo Vieira: disse que entregou a ele, em mãos, R$ 1,5 milhão.
Em outra frente de investigações, o doleiro Dario Messer foi preso em São Paulo, pela Polícia Federal. Estava foragido desde maio de 2018, quando foi deflagrada a Operação Câmbio Desligo, desdobramento da Lava-Jato no Rio de Janeiro. O doleiro estava no apartamento de uma amiga, Mary Oliveira Athayde, na Avenida Pamplona, nos Jardins. A prisão foi efetuada durante cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão expedidos por Bretas, com base em informações da inteligência da Superintendência da PF do Rio de Janeiro.
Lavagem de dinheiro
Messer vivia entre São Paulo e Paraguai. Engenheiro, é citado em inquéritos policiais desde os anos 1980, quando foi apontado como operador financeiro do banqueiro de jogo do bicho Waldomiro Paes Garcia, o Miro, então patrono da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que morreu assassinato numa guerra com outros chefões da contravenção fluminense. Também foi o operador do envio irregular de US$ 33 milhões para o exterior por fiscais da Fazenda do RJ e auditores fiscais. O escândalo ficou conhecido como “Propinoduto”.
No “Mensalão”, é apontado como responsável pelo envio de US$ 1 bilhão de forma irregular para o exterior e entregar o dinheiro, em reais, no Banco Rural, para integrantes do PT. Além de ser dono de uma offshore no Panamá citada no caso do Swissleaks, Messer coleciona citações em relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre operações suspeitas, entre 2010 e 2015.
Na operação “Câmbio, desligo”, Messer é citado como o “Cagarras”, alusão ao Arquipélago das Cagarras, defronte ao qual tem uma cobertura em Ipanema. Os doleiros Claudio Barbosa, conhecido como “Tony” ou “Peter”, e Vinicius Claret, o “Juca Bala”, apontaram Messer como o “doleiro dos doleiros”, por ser dono de um sistema de compensação on-line no Uruguai que conectava doleiros de 52 países e operava contas em 3 mil empresas “offshore” de paraísos fiscais. A expectativa é de que também faça delação premiada, como outros doleiros presos pela Operação Lava-Jato.
Para completar a ofensiva, foi decretada a prisão do empresário Valter Faria, presidente do Grupo Petrópolis, dono da cerveja Itaipava. Com outros executivos do Grupo Petrópolis, teria atuado na lavagem de cerca de R$ 329 milhões em contas fora do Brasil. Segundo a Lava-Jato, o presidente do Grupo Petrópolis usou o programa de repatriação de recursos de 2017 para trazer ao Brasil cerca de R$ 1,4 bilhão obtido.
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Luiz Carlos Azedo: Aloprados e hackers
“Uma coisa é revelar informações comprometedoras de autoridades preservando o sigilo da fonte, um direito constitucional dos jornalistas; outra, financiar o roubo de informações privadas, o que é crime”
Preso pela Polícia Federal, Walter Delgatti Neto, o principal acusado de hackear os telefones do ministro da Justiça, Sérgio Moro e de outras autoridades, assumiu em depoimento ser a fonte das mensagens publicadas pelo site Intercept, do jornalista americano radicado no Brasil Glenn Greenwald, e também pelo jornal Folha de S. Paulo e pela revista Veja. Delgatti disse que encaminhou o material a Greenwald de modo anônimo, voluntário e sem recompensa financeira. O jornalista confirmou a informação “nova e verdadeira”.
A Folha revelou que os contatos do hacker com o americano “foram virtuais, somente pelo aplicativo de conversas Telegram, e ocorreram depois que os ataques aos celulares das autoridades já tinham sido efetuados”. Mais de mil pessoas tiveram seus celulares invadidos pelos hackers, entre as quais os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha; além da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. O ministro Sérgio Moro pretende identificar e comunicar a ocorrência às centenas de vítimas de invasões de celulares.
Até celulares do presidente da República foram alvo dos hackers presos pela Polícia Federal, mas Jair Bolsonaro minimizou o fato, com o argumento de que não conversa assuntos sigilosos de Estado pelo celular e não tem nada a temer. Furou o balão que estava sendo inflado no Palácio do Planalto, de que haveria uma conspiração para desestabilizar o governo e afastar Bolsonaro do poder. Já havia até quem defendesse o enquadramento dos hackers na Lei de Segurança Nacional por ato terrorista, o que seria um grave precedente do ponto de vista institucional. Para esses setores, os quatro hackers presos em São Paulo não invadiram os celulares de autoridades e até jornalistas por conta própria, estavam a serviço de um grupo político e de grandes empresas.
Não se pode descartar essa possibilidade, porque realmente há muitos interessados em desmoralizar e/ou contingenciar a Operação Lava-Jato e o ministro Sérgio Moro. Mas é precipitado chegar a essa conclusão sem provas cabais dessas ligações, inclusive financeiras. Se existirem, é óbvio que a Polícia Federal e o juiz federal que comanda as investigações farão a denúncia formal, e os envolvidos terão de arcar com as consequências legais. Até agora, as investigações mostram que o grupo atuava de forma organizada e criminosa, e inclusive já tinha antecedentes criminais, mas essas relações não foram comprovadas.
Existe um mercado negro de informações roubadas pela internet. Hackers são contratados para bisbilhotar a vida alheia e vazar informações comprometedoras por todo tipo de gente, de marido traído a candidatos em dificuldades eleitorais, de velhos estelionatários a chantagistas de celebridades. A experiência da Polícia Federal nesse campo de investigação é grande, dispõe de equipe altamente especializada, recursos tecnológicos e uma gama de crimes cibernéticos já elucidados. Não foi à toa que rapidamente chegou aos quatro envolvidos. Mas trata-se de uma investigação criminal e não de uma investigação política, esse deve ser o divisor de águas.
Lava-Jato
O caso, porém, tem evidente dimensão política, que envolve a revelação dos métodos de atuação da força-tarefa da Lava-Jato e a liberdade de imprensa. A mesma investigação que prendeu os hackers confirma a veracidade dos conteúdos vazados, de um lado; e mostra uma relação perigosa entre os investigados e o jornalista Greenwald, de outro. Uma coisa é revelar informações comprometedoras de autoridades preservando o sigilo da fonte, um direito constitucional dos jornalistas; outra, financiar o roubo de informações privadas, o que é crime. Essa é a fronteira que não pode ser atravessada.
Houve uma evidente ofensiva de setores da oposição e do mundo jurídico contra o uso de métodos heterodoxos de investigação pela força-tarefa da Operação Lava-Jato, assunto que hoje está na esfera de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), como é caso do acesso a informações do Coaf sem prévia autorização judicial. O PT e outros partidos de oposição também apostaram no desgaste da Lava-Jato, vislumbrando a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com argumento de que as conversas do então juiz federal Sérgio Moro com os procuradores da Lava-Jato desnudaram um processo de perseguição política. Agora, porém, o vento virou com a prisão dos hackers. Se houve ligações financeiras entre eles e o PT, teremos outro caso dos aloprados. Até agora, porém, isso não se comprovou.
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Luiz Carlos Azedo: Nova esquerda pede passagem
“Dissidentes do PDT e do PSB podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira”
O presidente do PDT, Carlos Lupi, anunciou ontem a suspensão dos oito deputados que votaram a favor da reforma da Previdência contra a orientação do partido: Alex Santana (BA), Flávio Nogueira (PI), Gil Cutrim (MA), Jesus Sérgio (AC), Marlon Santos (RS), Silvia Cristina (RO), Subtenente Gonzaga (MG) e Tabata Amaral (SP). Todos desafiaram os caciques da legenda, inclusive o ex-governador Ciro Gomes, que exigiu punição dos rebeldes em caráter pedagógico. Segundo ele, os deputados não podem servir a dois senhores, numa referência aos movimentos Acredito e RenovaBR, dos quais fazem parte.
Esses parlamentares são alinhados ao programa de renovação política de alguns movimentos aos quais estão ligados, como Acredito e RenovaBR, antes mesmo de terem se filiado à legenda. É o caso da jovem deputada Tabata Amaral, uma estrela em ascensão na política nacional, que escolheu o PDT como legenda por lhe oferecer melhores condições do que o Cidadania e a Rede para disputar uma vaga de deputada federal por São Paulo. É jogo jogado, ninguém foi enganado.
O comentário de Ciro Gomes lembra a famosa polêmica que deu origem ao “centralismo democrático”dos partidos comunistas, entre o líder bolchevique Vladimir Lênin e o social-democrata Julius Matov, na fundação do Partido Socialista Operário Russo (PSOR), em 1902. Martov era um importante líder da União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, que havia aderido aos bolcheviques. Pretendia manter sua organização, mas foi impedido por Lênin, que proibiu a dupla militância com o argumento de que um partido revolucionário não poderia abrir mão de um “centro único” dirigente.
Curiosamente, no Brasil, o antigo PCB, que mudou para PPS e, agora Cidadania, aboliu o centralismo democrático e se tornou uma Babel de tendências políticas, o que se reflete no posicionamento contraditório da bancada em relação ao governo Bolsonaro. Entretanto, seus oito deputados votaram unidos a favor da reforma da Previdência e agora abrem as portas da legenda para os dissidentes do PDT, acusados de serem neoliberais. Outras siglas, como o Novo e a própria Rede, também disputam corações e mentes desses dissidentes.
Entretanto, pode ser que estejamos presenciando um outro fenômeno: a gênese de uma nova esquerda, em ruptura com a esquerda tradicional, da qual o PDT e o PSB fazem parte, como partidos mais moderados do que o PT e o PSol, por exemplo. É preciso atenção também para os 11 dissidentes do PSB, contra os quais o presidente do Conselho de Ética da legenda, Alexandre Navarro, abriu um processo disciplinar.
Os deputados Átila Lira (PI), Emidinho Madeira (MG), Felipe Carreras (PE), Felipe Rigoni (ES), Jefferson Campos (SP), Liziane Bayer (RS), Luiz Flávio Gomes (SP), Rodrigo Agostinho(SP), Rodrigo Coelho (SC), Rosana Valle (SP) e Ted Conti (ES) também votaram a favor da reforma da Previdência, contrariando a orientação da direção do PSB, cujo eixo dominante é o clã Arraes, em Pernambuco. A maioria também faz parte dos movimentos Acredito e Renova BR.
Fundo eleitoral
Somados, esses 19 deputados podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira. A agenda desses parlamentares, na verdade, está em choque com os programas e as estruturas partidárias das quais fazem parte. Democracia interna, ética, diversidade, pluralismo e transparência são valores dessa nova esquerda que nasce, sem os dogmas dos movimentos nacional-libertadores e socialistas. Falta-lhes um partido que ofereça essa possibilidade.
Obviamente, tanto o PDT como o PSB não têm nenhum interesse em que haja esse descolamento, por vários motivos, entre os quais o impacto que isso pode vir a ter no fundo eleitoral das duas legendas (os deputados carregam os recursos para onde forem). Por isso mesmo, não haverá expulsão. Se esses deputados deixarem o partido por causa do constrangimento que estão passando, os suplentes poderão pleitear as suas respectivas vagas na Justiça Eleitoral.
Até nova janela partidária, no próximo ano, haverá tensão entre os deputados dissidentes e as cúpulas partidárias. Pode ser até que haja alguma acomodação, em razão dos interesses regionais, que foram determinantes para a presença desses deputados nas respectivas legendas. O mais relevante, entretanto, é que a votação da reforma da Previdência revelou um choque de concepções entre o velho e novo nesses partidos de esquerda. Um choque que vai se reproduzir em outras votações, em razão da agenda de modernização da economia e reforma do Estado.
Esse choque não se resolve em termos de um conflito de gerações, que ele também reflete, mas dentro de cada geração. Esse é o fato novo do processo: no bojo da renovação promovida pelo tsunami eleitoral de 2018, uma nova esquerda germinou. Ela agora ganha sua própria cara no Congresso, assim como existe também uma nova direita, mais democrática e reformadora que os setores reacionários que defendem uma agenda regressista em relação aos costumes, à educação, aos direitos humanos, à saúde e à segurança pública. Mas essa já é outra história.
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Luiz Carlos Azedo: A mágica da política
“Ontem, vivemos uma inflexão no processo de confrontação que havia se instalado entre o Executivo e o Legislativo, um momento de afirmação da nossa democracia e do Congresso”
Por que a política exerce tanto fascínio, ainda que uma parte considerável da sociedade tenha repulsa aos políticos e nem sequer saiba que essa é uma atitude política, muito mais afirmativa do que a simples indiferença? Talvez a explicação seja seu poder de transformar a vida em sociedade, de viabilizar ambições e projetos coletivos. Essa é a grande mágica da política, embora sua definição básica, do ponto de vista clássico, seja a da ciência prática que tem por objetivo a felicidade humana.
Dizia Aristóteles: “Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras, tem, mais que todas, este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política”. Ou seja, é a arte das artes e a ciência das ciências.
Há, portanto, dois campos num mesmo universo: o da ética, associada à felicidade individual do homem; e a política propriamente dita, que se preocupa com a felicidade coletiva. O problema é que nem sempre as duas andam juntas, e esse divórcio costuma ser muito perigoso. O próprio filósofo grego, discípulo de Platão, provou desse veneno quando caiu em desgraça e foi parar no exílio. Isso não impediu, entretanto, que, milênios depois, seu pensamento metafísico fosse um dos pilares do processo civilizatório ocidental.
Embora defendesse a existência de um Deus único acima de tudo, base da teologia católica, Aristóteles considerava a existência de um mundo único, um só objeto. E que, para ser feliz, é preciso fazer o bem a outrem. Por isso, o homem é um ser social e, portanto, um ser político. Por consequência, cabe ao Estado “garantir o bem-estar e a felicidade dos seus governados”. Testemunha da crise da democracia escravagista, escreveu a Política, seu grande tratado sobre o tema, no qual discorreu sobre a democracia, a aristocracia e a monarquia.
No fundo, essa é uma visão otimista, que se faz necessária no momento em que estamos vivendo, de certa forma sombrio e até atemorizante, por essa razão, impregnado de pessimismo. Sob certos aspectos da atual crise da democracia representativa e de uma onda regressista em relação aos costumes, a política é a nossa grande esperança. A aprovação da reforma da Previdência pela Câmara, ontem, por 379 votos, contra 131, portanto, um escore bem maior do que os 340 previstos pelos governistas, ainda que existam muitos destaques a serem apreciados, é demonstração de que a política ainda é o caminho para resolver os problemas da nossa sociedade.
Há muitas críticas à reforma, e uma justa oposição dos setores que por ela se consideram mais prejudicados, porém, a votação de ontem foi um daqueles momentos mágicos da política, no qual o Congresso brasileiro encontra saída para os desafios da nação. Ao contrário do que alguns defendem, sem a política não há soluções pactuadas na sociedade, ainda que reflitam o melhor do Iluminismo. O que há é imposição.
Ontem, vivemos uma inflexão no processo de confrontação que havia se instalado entre o Executivo e o Legislativo, um momento de afirmação da nossa democracia e do Congresso. É óbvio que se avultam os líderes que protagonizaram esse processo, em particular, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-DF), o grande artífice da aprovação da reforma. Seu papel como articulador da maioria é conhecido, mas há que se destacar o papel de negociador com o Executivo e interlocutor com a oposição, pois sua atuação tem se pautado pelo diálogo, a moderação e a prudência, além do respeito às ideias divergentes e às minorias.
A nuvem se mexe
Não fossem certas atitudes do presidente Bolsonaro e de seu grupo ideológico, de confrontação e fustigação constante do Congresso, os méritos seriam mais compartilhados com o Executivo, que também teve um papel relevante ao priorizar a reforma, principalmente, o ministro da economia, Paulo Guedes. Na verdade, o Palácio do Planalto abriu mão de ser sócio majoritário da reforma em razão de atitudes nas quais mirou muito mais a sua base eleitoral originária do que os interesses majoritários da sociedade.
Como disse certa vez o ex-governador mineiro Magalhães Pinto, a política é como uma nuvem: você olha uma vez, ela está de um jeito, olha de outro, já mudou sua configuração. Está em curso um reequilíbrio de forças nas relações entre os Poderes da República. Provavelmente, após o recesso do Judiciário, veremos qual será o reposicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
Voltando à divisão aristotélica entre ética e política propriamente dita, que foram duramente contrapostas nas eleições passadas, sobretudo em razão da Operação Lava-Jato, em torno dessa questão terá que haver também um reposicionamento. O Congresso também terá protagonismo nesse terreno, talvez maior do que muitos gostariam. Na verdade, a discussão do chamado pacote anticrime e da lei de abuso de autoridade chama à responsabilidade todas as lideranças envolvidas nesse processo, entre as quais o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que não está acima do bem e do mal, e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)
Nesse aspecto, a surpresa de ontem foi o relatório do senador Marcos Do Val (Cidadania-ES), que se reposicionou em relação ao tema e mitigou muitas propostas polêmicas de Moro. O relatório foi claramente pactuado com seus pares e sinaliza certo protagonismo que o Senado assumirá nessa questão. No mesmo sentido, a aprovação da proposta que criminaliza o crime de caixa dois, com base no relatório do senador Márcio Bittar (MDB-AC), aponta para a busca de um reencontro da política com a ética, a partir do Congresso, e não dos tribunais.
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