Estados Unidos
Merval Pereira: Visão obtusa
O preocupante é que o que o deputado federal Eduardo Bolsonaro fez, colocando no twitter uma acusação à China de que usa a tecnologia 5G para fazer espionagem, corresponde ao que pensam seu pai, o presidente Bolsonaro, e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Se fosse um deputado qualquer, como sempre foi, Eduardo ou seus irmãos poderiam fazer as bobagens que sempre fizeram, e ninguém ligaria, como nunca ninguém ligou antes de eles sairem do anonimato para o proscênio da vida política nacional pelos azares da sorte.
Mas houve repercussão porque, além de filho do presidente, Eduardo Bolsonaro preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Então, o que ele diz vale mais do que qualquer deputado, vale como sendo o pensamento do presidente da República. Essa é a gravidade da atitude irresponsável que tomou.
Tentou remediar, apagou a mensagem, mas não dava mais para evitar a crise. É uma posição ideológica burra, e os membros da Comissão de Relações Exteriores já começam a se movimentar para retirá-lo da presidência. Ou pelo menos deixar claro que suas postagens pessoais no Twitter não representam o pensamento da maioria da Comissão.
A China é nosso maior parceiro, e tem sido o responsável pelo superávit de nossa balança comercial. O Brasil não tem que entrar nessa disputa ideológica dos EUA com a China. Os EUA têm razões para essa postura, porque a a disputa pela tecnologia 5G é a disputa do futuro, e quanto mais países ficarem do lado dos EUA, melhor pra eles. Faz sentido a Inglaterra, o Japão, e outros países barrarem as companhias chinesas em favor dos Estados Unidos, são regiões e países que dependem muito diretamente dos EUA, economicamente e até mesmo em questões de segurança nacional, e pretendem ser protegidos em caso de conflito.
Essa posição dificilmente mudará com o governo democrata de Joe Biden, mas provavelmente será menos truculenta do que atualmente. O objetivo, porém, é o mesmo: tentar neutralizar o avanço chinês. Mas o Brasil não tem nada a ver com essa geopolítica, tem que aproveitar o melhor dos dois mundos, dos EUA e da China. Não precisa necessariamente fechar com um deles para ter benefícios, tem que fazer uma análise técnica, ver o que é melhor para nosso estágio de desenvolvimento.
É certo que a tecnologia 5 G da China é mais adiantada, e se adapta melhor ao nosso sistema já instalado, porque muitas ferramentas e dispositivos já em uso no 4G são de empresas chinesas. Diante desse quadro, é preciso ver se há vantagem em optar por outra tecnologia.
A questão da espionagem chinesa parece ser uma fabulação trumpiniana, mas temos que ser realistas. A espionagem é uma atividade que todos os países utilizam, e é quase ridículo assumir que apenas um dos lados na disputa pelo predomínio internacional faz uso dela.
Recentemente, o Brasil já teve problemas com os Estados Unidos nessa área. Em 2015, o site Wikileaks divulgou uma lista classificada pela Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos como "ultrassecreta", a qual revelava que, além da própria presidente Dilma Rousseff, cerca de 30 números telefônicos, incluindo o de ministros, diplomatas e assessores foram espionados. Até mesmo o telefone via satélite instalado no avião presidencial era um desses números. O então vice-presidente Joe Biden esteve no Brasil para tentar aparar as arestas depois da revelação. Provavelmente os Bolsonaro devem ter achado pouco e bom o governo petista ter sido espionado.
Não é necessário, pois, criar embates diplomáticos com o maior parceiro comercial do Brasil. A nota da embaixada da China foi dura, fora dos padrões diplomáticos, mas a mensagem de Eduardo Bolsonaro foi fora dos padrões diplomáticos também, sem falar na reincidência.
Meses antes, o deputado acusara pelo Twitter o governo da China de ter espalhado propositalmente o coronavírus Covid19. Como se vê, o filho 03 não tem a menor noção do que seja diplomacia. Queria ser embaixador do Brasil nos EUA, mas não tem a menor capacidade, nem mesmo de diálogo, quanto mais de usar uma linguagem mais sutil no embate diplomático.
El País: Biden lança um Governo para enterrar a era Trump: “Os EUA estão de volta, prontos para liderar o mundo”
O presidente eleito delineia um Gabinete antagônico ao ideário do republicano, embora, por enquanto, sem gestos à ala esquerdista do Partido Democrata
O processo de transmissão de poderes começou formalmente nos Estados Unidos, com um Donald Trump finalmente derrotado pela realidade, que concordou em colocar em movimento a maquinaria da transferência, e um presidente eleito, Joe Biden, imerso na criação de sua equipe de Governo. O perfil do Gabinete que começa a tomar forma em Washington ainda não tem gestos para a ala esquerdista do Partido Democrata, aposta em veteranos da Administração de Barack Obama, mas deixa clara sua missão: enterrar a era Trump. “Os Estados Unidos estão de volta e prontos para liderar o mundo”, disse Biden, ao apresentar seus primeiros escolhidos.
As nomeações conhecidas até agora representam uma espécie de emenda a toda a estratégia externa de Trump e sua guinada isolacionista. Um adeus ao ‘América primeiro’ que caracterizou a doutrina do republicano. Antony Blinken, nomeado chefe da Diplomacia, é um paladino do multilateralismo; como Jake Sullivan, que trabalhou para Hillary Clinton no Departamento de Estado e será assessor de Segurança Nacional. Antigos membros da Administração de Barack Obama, ambos encarnam a doutrina, ou melhor, o estilo, que na época um funcionário democrata resumiu como “liderar por trás” no caso da Líbia e que muitos de seus detratores usaram como argumento de crítica. A própria criação de um czar do meio ambiente ―o ex-secretário de Estado John Kerry― é o sinal definitivo de que a era Biden tentará reverter boa parte das políticas de Trump, que por sua vez desmantelou os planos ambientais de Obama.
“Esta é uma equipe que manterá nosso país seguro e é uma equipe que reflete que os Estados Unidos estão de volta. Prontos para liderar o mundo, não para se retirar dele. Prontos para enfrentar nossos adversários, não para rejeitar nossos aliados e prontos para defender nossos valores”, destacou Biden durante a cerimônia de apresentação de seus primeiros indicados, em Wilmington (Delaware), a cidade do presidente eleito, de onde desenha o futuro Governo. De fato, acrescentou o democrata, “nas conversas por telefone que tive com líderes mundiais desde que venci as eleições, fiquei surpreso com o quanto esperam que os Estados Unidos recuperem o papel histórico de líder mundial”.
As intervenções posteriores ressaltaram essa vocação. Blinken defendeu que os Estados Unidos devem se comportar com “humildade e confiança” no mundo. Humildade, disse ele, porque eles não podem “resolver os problemas sozinhos e que é preciso cooperar com outros países”. E confiança porque, apesar disso, os Estados Unidos, na sua melhor versão, “são o país com maior capacidade de unir o resto para enfrentar os desafios do nosso tempo”. Alejandro Mayorkas, que será o primeiro hispânico a dirigir o Departamento de Segurança Interna, disse que os Estados Unidos devem “avançar” em sua “orgulhosa história” como país de “boas-vindas”. Kerry prometeu que Biden “confiará em Deus”, mas “também na ciência”. “E a afro-americana Linda Thomas-Greenfield, nomeada embaixadora nas Nações Unidas, proclamou: “O multilateralismo está de volta. A diplomacia está de volta. Os Estados Unidos estão de volta”.
Voltar, regressar. Esses foram alguns dos verbos mais repetidos. Até agora os nomes apontam mais para a restauração de uma era do que para o início de outra. Nenhum dos altos cargos tornados públicos significou uma integração dos setores mais progressistas do Partido Democrata, embora haja nomeações pendentes. O círculo do senador esquerdista Bernie Sanders fez saber que o veterano político de Vermont gostaria de ser secretário do Trabalho e outras fontes fizeram circularam neste outono a candidatura da senadora Elizabeth Warren como possível secretária do Tesouro, embora a própria Warren tenha comemorado a nomeação de Janet Yellen.
O Gabinete de Biden deve ser referendado pelo Senado, que atualmente tem maioria republicana, e perfis demasiado inclinados à esquerda enfrentariam dificuldades. Marco Rubio, senador da Flórida e candidato à presidência em 2016, adotou um tom trumpiano de crítica, agitando a bandeira antiestablishment. “Os escolhidos por Biden para o Governo frequentaram as universidades da Ivy League [de elite], têm bons currículos, vão às conferências certas e serão educados cuidadores do declínio dos Estados Unidos”, escreveu em sua conta de Twitter Rubio, que se apresenta como aspirante a manter o legado trumpista para 2024. “Apoio a grandeza dos Estados Unidos e não tenho interesse em voltar à ‘normalidade’ que nos deixou dependentes da China”, acrescentou.
Na realidade, o vínculo dos futuros membros do Governo, além de Biden, com a nata da educação universitária norte-americana ―seja este um sintoma melhor ou pior― é um dos poucos elementos de continuidade entre a era Trump e a que Biden começa a esboçar, pelo menos por enquanto. O secretário de Estado da atual Administração republicana, Mike Pompeo, formou-se em Harvard; o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, também, e o procurador-geral William Barr, em Columbia, por exemplo. O próprio presidente Trump estudou na escola de negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, membro do seleto grupo de oito universidades que fazem parte da Ivy League.
Com a transferência de poderes finalmente iniciada, o dirigente republicano cumpriu nesta terça-feira um dos últimos ritos presidenciais que o aguardam, o perdão de dois perus por ocasião do Dia de Ação de Graças, que se comemora nesta quinta-feira. Um Trump ciente de que o fim está próximo aproveitou o discurso para lançar um apelo a favor da “América primeiro” que marcou o seu tempo e que, disse ele, “não deveria ser abandonada”.
Embora continue sem aceitar publicamente o resultado eleitoral e ameace uma nova intentona nos tribunais, sua sorte está decidida. Se havia alguma dúvida, basta ver como a Bolsa de Valores de Nova York reagiu na terça-feira à luz verde que o republicano acabou dando na noite anterior para que todos os protocolos de transição de um Governo a outro fossem finalmente ativados. O Dow Jones, um dos índices de referência de Wall Street, bateu recorde impulsionado pelo cenário de estabilidade que se abre na maior potência mundial depois de vários dias de otimismo com as notícias sobre as vacinas contra o coronavírus. Enquanto isso, Pensilvânia, Nevada e Carolina do Norte se juntaram aos Estados que já confirmaram os resultados. A era Trump começa a se desfazer.
Raul Jungmann: Amazônia: decifra-me ou te devoro
Dependendo do olhar que se lance sobre a Amazônia Legal, ora ela parece um gigante, ora um anão. Geográfica e fisicamente ela é indiscutivelmente superlativa: 61% do território nacional, com mais de 5.2 milhões de Km2; um terço de todas as florestas tropicais do mundo, 20% da água potável do planeta, idem maior bacia hidrográfica, maior rio, maior banco genético e diversidade.
Se fosse um país, a Amazônia internacional seria o sexto maior em extensão, espalhando-se por nove países sul-americanos. Na outra face da moeda, a região detinha apenas 8% do PIB em 2018, e 12.3% da população total do país, algo como 23 milhões de habitantes – destes, 69% concentrados nas áreas urbanas.
Em 2007, as áreas protegidas (reservas indígenas + áreas ambientais + reservas militares) somavam 209 milhões de hectares, dos quais 53% em situação fundiária incerta, segundo o Imazon. Em resumo, a gigante Amazônia é um “vazio de poder”, em termos econômicos, populacionais e políticos. Historicamente, apenas em 1953, no segundo governo Vargas, foi criada a SPVEA – Secretaria Para a Valorização Econômica da Amazônia, antecessora da igualmente impotente SUDAM.
A Amazônia sempre foi para o Brasil um “outro” – longínquo, desconhecido, exótico, misterioso. Não sabemos o querer dela; inexiste um projeto nacional para a região. E sua voz, desde sempre, foi pouco audível. A região se caracteriza mais pelo olhar externo sobre ela, do que pela sua voz sobre si mesma.
E não por acaso vêm de fora os ventos da mudança. Globalização e alterações climáticas internacionalizaram definitivamente a região. Mais e mais, o mundo crê que a Amazônia está para o seu futuro como algo capital, em termos de equilíbrio ambiental e sobrevivência humana. A Amazônia é considerada um dos 15 “hot spots” do mundo com impacto no clima global. O que tende a exacerbar pressões que se chocam com nossa soberania sobre a região.
O desmatamento, queimadas e exploração mineral de terras indígenas no topo das mídias globais, são a expressão mais visível desse entrechoque, que ameaça setores exportadores, podendo levar à perda de mercados e sanções.
Não se iludam, a Amazônia, pela primeira vez estará na agenda presidencial de 2022. Afinal, ela está na agenda do mundo. Ergo, estará na nossa também, como atesta a criação da Coalizão Brasil, Clima Florestas e Agricultura, integrada por mais de 250 empresas do agronegócio, grandes bancos, academia e ONGs.
Decifrar essa esfinge e solucionar a atual e antiga crise, requer um projeto nacional voltado para o desenvolvimento sustentável. Sem este, não há como alinhar a defesa da nossa soberania, a preservação do meio ambiente e as preocupações globais.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fernando Schüler: Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?
Isto implica, quem sabe, a parar de pensar que sua posição política corresponda à própria democracia
Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”.
Observe-se como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?
Acho que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.
Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo.
Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.
Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade.
Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda).
Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia.
Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional.
Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família.
Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho.
John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural.
Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.
Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.
Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Na defesa da Amazônia, apenas jogo de cena
Apego a ideias arcaicas impede que o país volte a ter relevância internacional nas questões ambientais
A vitória de Joe Biden abre uma fresta de esperança de que se possa evitar a catástrofe climática provocada pelo aquecimento do planeta. O esperado retorno dos EUA ao Acordo de Paris, a disposição da União Europeia a abraçar uma agenda de recuperação econômica verde e o compromisso unilateral da China com a descarbonização total até 2060 dão margem a moderado otimismo.
Nesse quadro, o Brasil poderia voltar a ser um ator internacional relevante, numa das poucas arenas nas quais tem trunfos consideráveis. Para tanto, porém, o governo teria de abandonar a sua tola atitude negacionista, munindo-se de ânimo e aptidão para conter o desmatamento, a fim de proteger a Amazônia e sua biodiversidade —o cerne de nossa questão ambiental.
Apesar da limitada capacidade estatal de fazer cumprir as regras existentes, o país tem um bom marco legal e bons instrumentos de monitoramento —ainda que deliberadamente debilitados pela dupla Bolsonaro-Salles. Obstáculo tão ou mais importante é a concepção de soberania nacional que enquadra o pensamento dos militares no governo em relação ao meio ambiente.
Há pouco, o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo vice, Hamilton Mourão, ao lado de uma agenda de temas relevantes —combate aos ilícitos ambientais e estímulo à inovação e à bioeconomia—, debateu um documento revelador. O texto fala da gula das grandes potências e organizações internacionais pelo estoque de recursos hídricos do país e o suposto conluio entre entidades ambientalistas e governos europeus. No mesmo tom, durante a reunião se propôs o controle das ações das ONGs presentes na região, em nome do interesse nacional.
A fantasia de que toda pressão externa visa o acesso a nossos recursos estratégicos e que organizações não governamentais —ou mesmo populações indígenas— estão prontas a servir à ganância estrangeira cria uma linha de defesa contra inimigos imaginários e tolhe a capacidade de mobilização necessária para uma ação eficaz.
Há no Brasil forças valiosas —na opinião pública, na sociedade organizada, no empresariado e nos governos subnacionais— capazes de dar lastro a iniciativas comprometidas com a sustentabilidade, o que transformaria cobranças em apoio externo concreto. Mas, sem aposentar ideias arcaicas, fortalecer os meios de monitoramento e controle, incorporar a experiência das comunidades locais e das organizações ambientalistas enraizadas há décadas na região, e ainda sem recursos internacionais, as vistosas operações militares e os pronunciamentos do vice-presidente serão apenas jogo de cena, em prejuízo do país.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Sergio Fausto: Lições para o Brasil da eleição nos Estados Unidos
A mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo adversário
O título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.
A mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata. Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso construir uma alternativa já para o primeiro turno.
Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.
Mas na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país, como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.
Ao contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”. Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).
A batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e reproduzida pelo eleitor comum.
Cada país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a partir do próximo mandato presidencial?
Para ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com “representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
El País: Com menção a pólvora e maricas, Bolsonaro desvia atenção do desemprego e acusação contra seu filho
Foi mais um dia marcado pelas palavras do presidente, que pisou no acelerador, possivelmente com os olhos voltados para o primeiro turno das eleições municipais do próximo domingo
Naiara Galarraga Gortázar, do El País
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, lançou mão de um comentário homofóbico como fez tantas vezes ao longo de sua carreira política. Nesta terça-feira foi para se queixar da crise do coronavírus, de como está sendo administrada e da atenção midiática que recebe. “Temos que deixar de ser um país de maricas”, disparou durante uma cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília. Bolsonaro, conhecido negacionista da gravidade da doença, governa um dos países mais afetados do mundo, com 162.000 mortos e a caminho dos seis milhões de infectados. O mandatário populista dinamitou durante o dia a tônica dos últimos meses em que reduziu a frequência de suas típicas grosserias: comemorou a suspensão do teste clínico da vacina chinesa, insultou homossexuais, pela primeira vez se referiu a Joe Biden desde as eleições nos EUA, mas não para cumprimentá-lo, e gabou-se do poder de dissuasão militar diante dos EUA.
Foi mais um dia marcado pelas palavras do presidente, que pisou no acelerador, possivelmente com os olhos voltados para o primeiro turno das eleições municipais do próximo domingo. Bolsonaro é um artista que desvia a atenção dos problemas relevantes como o desemprego, a inflação ou a recém-formalizada acusação de corrupção contra o filho mais velho. Fica incomodado que o coronavírus ainda esteja no centro do debate político porque é um campo em que seu principal rival, João Doria, se movimenta bem.
Nenhum dos dois é candidato às eleições para prefeitos e vereadores, mas cada um apoia um candidato em São Paulo, a cidade mais rica e populosa do Brasil, onde o homem do presidente, Celso Russomanno, está bem atrás do atual prefeito nas pesquisas, Bruno Covas, apoiado por Doria.
Bolsonaro presidia uma solenidade no Palácio do Planalto sobre a necessidade de reativar o turismo, moribundo por causa da pandemia, quando deu renda solta à sua exasperação: “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento, mas todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, da realidade. Temos que deixar de ser um país de maricas e enfrentar isso de peito aberto, lutar”, disse Bolsonaro, um paraquedista militar aposentado que construiu sua carreira política como um dos políticos mais medíocres, mas provocadores, do Congresso. O atual presidente ganhou fama há muitos anos por seus elogios à ditadura, além de seus insultos machistas e homofóbicos.
O governador de São Paulo aproveitou a crise sanitária para se destacar entre os vários aspirantes a candidato às presidenciais de 2022. Doria apostou na ciência desde o início da pandemia e sua prioridade agora é a vacina chinesa produzida pela Sinovac em colaboração com Instituto Butantan. É por isso que a recente suspensão do teste dessa vacina por parte do Governo, em uma decisão cercada de suspeitas, é um revés para Doria que Bolsonaro comemorou com entusiasmo como uma vitória pessoal.
O chamado Trump dos trópicos também aproveitou para romper o silêncio sobre a vitória de Biden sobre o Trump verdadeiro, aliado e candidato preferido do brasileiro. Bolsonaro não mencionou o democrata pelo nome, referiu-se a ele como “um grande candidato a chefe de Estado”. Criticou as propostas do próximo presidente dos EUA de liderar um fundo de financiamento para preservar a Amazônia –que o Brasil considera um ataque frontal à sua soberania– e, diante de hipotéticas sanções comerciais, exibiu poder de dissuasão: “Apenas na diplomacia não dá. Porque quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona. Precisa nem usar pólvora, mas tem que saber que tem”, declarou o capitão.
Entre os graves problemas que o presidente quer afastar dos holofotes está o desemprego, que ronda os 14 milhões, incluindo um milhão de pessoas acrescentadas no último trimestre. Embora o Brasil tenha melhores perspectivas econômicas do que a maioria de seus vizinhos e o fluxo de dinheiro público para os bolsos dos brasileiros tenha mitigado o impacto, a pandemia interrompeu os ambiciosos planos econômicos. As reformas previstas avançam em passo de tartaruga. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, se diz frustrado por não ter conseguido privatizar uma única empresa pública em dois anos de mandato. E também existe o caso de corrupção contra o senador Flavio Bolsonaro. O filho mais velho do presidente acaba de ser formalmente acusado pelo Ministério Público de peculato, de ter aumentado o seu patrimônio em um milhão de reais graças ao desvio de fundos públicos no Rio de Janeiro.
As eleições de domingo não servirão para saber com precisão se o bolsonarismo goza de boa saúde porque o presidente está há meses sem partido e seus aliados estão espalhados em uma infinidade de siglas. Será mais fácil avaliar a situação do Partido dos Trabalhadores de Lula.
Merval Pereira: Bananas americanas
O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.
Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.
À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.
Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família.
A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.
A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.
Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.
Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.
O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.
Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos.
É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários.
Rubens Barbosa: Judicialização do processo
O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos
Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.
A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.
Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.
O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.
Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.
A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.
A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.
*Foi embaixador do Brasil nos EUA
Vinicius Torres Freire: Impasse, presidente fraco e alucinógenos animam donos do dinheiro nos EUA
Congresso e país divididos animaram os negócios nos mercados financeiros dos EUA
No estado do Oregon, aquele logo ao norte da Califórnia, ter pequenas quantidades de ecstasy, cocaína, LSD, metanfetamina e cogumelos alucinógenos ou seus derivados deixa de ser crime, decidiram os eleitores na terça-feira (4) de eleições e de outras votações americanas. Mais quatro estados legalizaram a maconha –agora são 15.
Na Flórida, aumentaram o valor do salário mínimo. Na Califórnia, o lobby das empresas de aplicativos de transporte e entregas convenceu o eleitorado a derrubar a decisão da Suprema Corte estadual que obrigava essas firmas a tratar motoristas e entregadores como empregados, não como terceirizados sem vínculo e direitos trabalhistas.
Mas o decisivo mesmo, como vai se vendo, é que os Estados Unidos continuam divididos até a medula, que o presidente não terá maioria no Congresso e que políticas públicas fundamentais podem não avançar por causa de impasses e desacordo partidário incontornável.
Os donos do dinheiro grosso tomaram conhecimento dessas fissuras fundas e acharam isso bom.
Até o momento em que se escreviam estas linhas, noite de quarta-feira, não se sabia quem fora eleito presidente dos Estados Unidos. Aparentemente o Partido Democrata não seria majoritário no Senado, mantendo a Câmara por maioria pequena. A possibilidade de “onda azul” (ampla vitória dos democratas) morreu na praia como marolinha, se tanto.
E daí?
Pelos “votos” nos ativos financeiros nos mercados e nas opiniões que os ilustravam pela mídia econômica, dá para ter uma ideia do que o povo do dinheiro estava pensando. Joe Biden, caso eleito, não terá votos para passar aumentos de impostos sobre empresas; talvez nem mesmo sobre cidadãos mais ricos.
Será improvável regulação mais pesada sobre as firmas, as “Big Techs” em particular, ou sobre setores como saúde. O Partido Republicado no Senado teria capacidade de barrar ou enrolar tais iniciativas.
Seria menos provável a aprovação de um plano amplo de despesas do governo federal com o objetivo de tirar a economia da recessão, de resto por meio de um programa de “obras verdes”. A contenção do aumento do gasto implica menos emissão de dívida pública, juros mais baixos e (é a mesma coisa) desvalorização menor dos títulos da dívida pública americana). O povo do dinheiro então comprou títulos da dívida.
A perspectiva de um governo em certo aspecto (econômico) fraco animou os donos do dinheiro e orientou decisões de investimento. Esses movimentos podem durar menos que dias, por vezes horas. Mas era assim que investidores “votavam” no mercado, olhando os resultados parciais da eleição para o Congresso e Casa Branca.
Sem um pacote de gastos federais gordo, não haveria risco de a economia americana perder fôlego, ao menos no curto prazo? Talvez. Os donos do dinheiro acham então que o Banco Central dos Estados Unidos, o Fed, vai dar conta do problema, embora o próprio comando do Fed diga que mais estímulo fiscal (gasto do governo) seja necessário. Os donos do dinheiro acham que haverá mais intervenções monetárias (em última análise, crédito de graça) e juros baixos por mais tempo. O Fed, como tanto Banco Central do mundo rico, teria ainda de fazer também o papel de banco comercial muito mal disfarçado.
Paralisia decisória e risco de polarização política ainda mais acentuada, talvez entrincheirada, não eram aflições. Na quarta-feira, os donos do dinheiro se animavam com o impasse político mais geral nos Estados Unidos.
Bruno Boghossian: Quatro anos de Trump levaram política marginal para o centro da democracia
Ciclo deu ares de normalidade a atitudes anômalas; efeitos devem ser duradouros
Os quatro anos desde a eleição de Donald Trump nos EUA consolidaram um método marginal na política. O show comandado pelo magnata a partir de 2016 deu ares de normalidade a recursos como a desinformação e o estímulo à violência. O efeito negativo desse ciclo para a democracia deve ser duradouro.
O americano abriu essa caixa de ferramentas para construir a imagem de um político disposto a desmantelar o centro corrupto do poder. A mentira, o discurso preconceituoso e a demonização de adversários eram marcas que pareciam conferir autenticidade a um personagem que ignorava as regras do jogo.
Aqueles que vestem esse figurino geralmente não têm vontade ou habilidade para desmantelar coisa nenhuma. Eles reclamam e dizem que o sistema poderoso impediu a missão. O único produto que são capazes de entregar é o retrocesso de governos e do exercício da política.
Trump e seus seguidores mundo afora levaram anomalias para o centro da arena pública. O americano adotou uma postura aberta de incentivo à violência quando se recusou a condenar grupos extremistas que atuam a seu favor. Ele explorou a desinformação como um lance aceitável e recorreu à negação da ciência na pandemia, sem se importar com seu impacto na saúde pública.
A fabricação mais nociva é a tentativa corriqueira de apontar fraudes em larga escala em eleições, sem apresentar provas. A artimanha passou a ser empregada com naturalidade para enraivecer militantes e abrir caminho para contestações que reduzem a crença no sistema político. Um presidente que usa essa carta só para manter o poder ativa uma corrosão grave da democracia.
Quando o uso desses instrumentos se torna comum na arena política, eles também servem como um diversionismo eficaz. Se um político mente ou inventa uma conspiração qualquer, o foco do debate público muda. A distração pode ser suficiente para que ele não seja punido politicamente por seus fracassos ou sua crueldade como governante.
Míriam Leitão: Hora de o país acertar o passo
O final desta eleição tensa e deste tempo infeliz pode ser o fortalecimento da democracia americana. Os Estados Unidos viram de perto os defeitos do seu sistema que permitiu a um presidente manipular os fatos, acirrar conflitos, dividir o país, tentar restringir o voto. O país chegou à eleição com tapumes nas lojas, cerca na Casa Branca e temor de escalada da violência. Nada disso é normal, como escreveu Dorrit Harazim.
Depois de duas eleições em 16 anos nas quais o vencedor do voto popular perdeu no colégio eleitoral, depois de um governo tão extremista quanto o de Donald Trump, está claro que os Estados Unidos precisam atualizar o legado dos fundadores da pátria. O federalismo não pode dar tanto poder às autoridades locais para restringirem o direito de voto, eliminando postos eleitorais. Não pode haver o temor de que o voto pelo correio vá para o lixo. Aumentaram as vozes respeitáveis nos Estados Unidos propondo reforma do sistema eleitoral.
Dias atrás, em conversa com o embaixador Rubens Ricupero, ouvi a sua expectativa:
— Eu tenho muita esperança de que as eleições provoquem uma reviravolta — ainda tenho medo de me decepcionar uma vez mais — mas se Trump perder nós vamos ter um verdadeiro terremoto, porque isso vai mudar todo o clima ideológico, político, psicológico do mundo. A eleição dele foi um choque de ruptura violentíssimo. A derrota dele não quer dizer que vamos voltar a uma situação maravilhosa, mas é como você despertar de um pesadelo, quando acorda você não está no paraíso. O fim do pesadelo não é o começo do sonho. É a volta à realidade.
A realidade tem uma recessão forte e uma pandemia descontrolada. Apesar disso, essa é a chance de um reencontro dos Estados Unidos com eles mesmos, se os líderes aproveitarem o momento para o recomeço.
Aqui também o melhor é acertar o passo. Quando Jimmy Carter foi eleito previa-se tensão com o Brasil porque ele defendia os direitos humanos e o fim da tortura nos países latino-americanos. O governo Ernesto Geisel torcia o nariz e se falava em intervenção em assuntos internos. Que país deve ser livre para torturar e desrespeitar os direitos humanos? Agora, se fala em tensão entre Joe Biden e Jair Bolsonaro. É, na verdade, a chance de Bolsonaro sair de duas posições erradas: o isolacionismo na política externa e o estímulo ao desmatamento da Amazônia.
Na sua série de tuítes ontem sem pé nem cabeça, Bolsonaro já estava em posição defensiva. Falou, no contexto da eleição americana, em ingerência estrangeira “visando às eleições de 2022”. E se referiu às “nossas riquezas, nosso futuro”.
A política ambiental do governo Bolsonaro até agora estimulou o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem. Isso é que põe em perigo o nosso futuro e destrói a nossa riqueza. O ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro acha bom o Brasil ser um “pária”. O cargo dele é cuidar das “relações exteriores”. Por óbvio, um país pária não as tem. Ernesto Araújo está no emprego errado. Biden prometeu um governo multilateralista, a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e defendeu a proteção da Amazônia. Tudo isso é ótimo porque o Brasil fez muito nas negociações do clima para que se chegasse ao acordo e somos os maiores beneficiários do combate ao desmatamento.
Uma pressão externa contra os crimes ambientais se somará aos grupos cada vez mais majoritários, até do agronegócio, que exigem mudança. Seria tão absurdo requerer soberania para desmatar quanto se Geisel tivesse defendido o direito soberano de o Brasil torturar.
A melhor resposta para a crise da democracia é mais democracia. Não se pode tolerar um presidente que pede a grupos supremacistas brancos que recuem e aguardem. Não se pode tolerar um presidente numa manifestação que pede fechamento do STF. Países lenientes com desvios dos seus governantes correm o maior dos riscos, o da perda da democracia.
A resposta da sociedade americana foi um comparecimento recorde às urnas. Uma senhora negra de 69 anos, da Carolina do Norte, entrevistada pela NBC, disse que votou pela primeira vez em sua vida. A repórter quis saber porque ela mudara de comportamento, e ela respondeu que ficou em casa por causa da pandemia, pôde se informou melhor e decidiu participar. Ela votou Biden-Harris. Os caminhos da democracia são sempre surpreendentes.