Estados Unidos
Submissão aos EUA não combina com nação do tamanho do Brasil, diz Hussein Kalout
Em artigo na revista da FAP de dezembro, pesquisador de Harvard critica política externa do Estado brasileiro
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O pesquisador da Universidade de Harvard e ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Hussein Kalout critica a subserviência do Brasil em relação aos Estados Unidos, no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não se coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil”, afirma ele, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.
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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. A submissão, segundo o pesquisador, é “francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos como em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses”.
Na avaliação de Kalout, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é uma política da destruição que substitui a racionalidade pela ideologia, o senso de realidade pela fantasmagoria, a luta por uma ordem baseada em regras por um desprezo do direito que flerta perigosamente com o caos. “O discurso fala em valores conservadores, liberdade e nacionalismo, mas a substância nos aproxima do precipício, isola o país e o condena à irrelevância”, afirma. “Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde tem encontro marcado com história”, diz.
Kalout, que também é professor de Relações Internacionais e cientista político, também analisa os ataques do Brasil contra a China. “A desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial, que é a China, revela o nível obtuso dessa diplomacia”, critica. “Atacar os chineses, em um momento em que nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir a renda de muitos brasileiros, revela, enfim, o grau de irresponsabilidade dos formuladores dessa ‘política externa’. O atrito com Pequim não serve aos interesses nacionais do Brasil”, alerta.
O cientista político também diz que, sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam a “política externa” brasileira de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é. “Devemos trazer a política externa a seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal”, lembra.
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Zuenir Ventura: E Biden não virou jacaré
Presidente eleito dos EUA, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina da Pfizer/BioNTech
Além de tudo, a vacinação em massa seria um bom negócio para o país. É o que dizem duas autoridades econômicas do governo: o presidente do Banco Central e o ministro da Economia. Roberto Campos Neto afirma que investir em vacina é mais barato do que o pagamento de benefícios emergenciais. Já Paulo Guedes traduz isso em números. Em entrevista, ele lembrou que o auxílio emergencial chegaria a R$ 55 bilhões por mês, enquanto a vacinação da população custaria menos da metade, R$ 20 bilhões.
Isso não deveria ser novidade. Desde criança, me acostumei ao ritual de ser picado contra diversas doenças, numa boa. Doía um pouquinho, mas valia a pena, porque fazia bem à saúde da gente e do país. Nunca chegou a me fazer chorar.
Até que ultimamente comecei a ouvir perguntas disparatadas sobre possíveis efeitos que seriam causados pela imunização. Ideia de algum maluco, como a hipótese de que quem tomasse corria o risco de virar jacaré. Parei de rir quando soube que não era uma fake news das redes sociais. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi quem, num evento na Bahia, advertiu os ouvintes assustados: “Se você virar um jacaré, é problema seu”.
Ele não costuma dizer coisa com coisa, mas dessa vez garantia, com a autoridade de presidente da República, acredite, que o contrato da Pfizer/BioNTech isentava o laboratório da responsabilidade pelos efeitos colaterais. E dava mais exemplos: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso”.
O teste definitivo aconteceu anteontem, quando o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina, justamente do laboratório contra o qual Bolsonaro lançara a advertência, o Pfizer/BioNTech.
Mas até ontem pelo menos, até o momento em que escrevo esta coluna, tudo indica que Joe Biden não virou jacaré. Se isso tivesse acontecido, acho que não só eu, mas o mundo todo teria sabido.
El País: Suprema Corte enterra a tentativa de Trump de reverter as eleições
O tribunal rejeita ação iniciada no Texas, com o apoio do presidente, para anular os votos de quatro estados, o que deixa quase morta a cruzada republicana contra sua derrota
Amanda Mars, El País
A Suprema Corte dos EUA rejeitou nesta sexta-feira uma ação movida pelo procurador-geral do Texas para anular os resultados eleitorais de quatro estados-chave na derrota do ainda presidente Donald Trump―Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin― e deixou praticamente morta a cruzada legal em andamento para reverter as eleições, acenando com o espectro da fraude. A resolução se soma à da terça-feira passada, que também rejeitou uma tentativa republicana da Pensilvânia na mesma direção, e deixa claro que a mais alta autoridade judicial do país, com maioria conservadora, não participará da campanha incomum do presidente.
Sim, participaram disso vários altos funcionários e membros do Partido Republicano, companheiros de viagem em mais de cinquenta iniciativas judiciais, todas e cada uma delas malsucedidas. Este último processo no Texas foi um dos mais desconcertantes, apresentado pelo procurador-geral Ken Paxton diretamente à Suprema Corte para anular o escrutínio de quatro outros territórios. “O Texas não demonstrou interesse judicial em sua jurisdição na forma como outro estado conduziu suas eleições. O resto das moções pendentes é rejeitado como discutíveis “, disse o tribunal superior em sua decisão.
Além do apoio do próprio presidente, a tentativa do Texas teve o suporte de uma centena de republicanos no Congresso e de mais de uma dúzia de advogados de estados da mesma cor política. Paxton alegou perante o tribunal superior que Joe Biden havia vencido graças a “votos ilegais” naqueles territórios, uma fraude causada pelo relaxamento das regras de votação antecipada e por correio (que um grande número de Estados promoveram pela pandemia). Assim, solicitou que sejam as câmaras legislativas desses Estados a conceder o voto final.
Trump lançou alegações infundadas de fraude ao longo da campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio era um terreno fértil para irregularidades. Assim que a derrota foi percebida, já na noite das eleições, ele disse que o levaria à justiça. Com os resultados finais, Biden é o claro vencedor das eleições, com seis milhões de votos à frente de Trump, e depois de ter recuperado para os democratas aqueles territórios que o republicano reivindicou para si em vários processos: Wisconsin, Pensilvânia, Michigan , Arizona e Geórgia.
No entanto, nenhum juiz, independentemente de sua cor política, nem seu próprio Departamento de Justiça encontraram vestígios de fraude nas urnas com entidades que alterariam esse resultado. Ainda há algumas questões legais pendentes, mas a Suprema Corte deixou a batalha de Trump mortalmente ferida. Nesta segunda-feira, o Colégio Eleitoral dará os votos finais ao democrata. Os norte-americanos elegem seu presidente de forma indireta: seus votos populares servem para eleger delegados que são os que, na próxima segunda-feira, 14 de dezembro, confirmarão a vitória de Biden. Ele obteve 306 dos 538 votos eleitorais em jogo (são necessários 270 para vencer), em comparação com 232 para Trump. Em 6 de janeiro, o Congresso deve contar esses votos e, no dia 20, Biden toma posse.
Mas Trump não planeja admitir a derrota. Seus seguidores mais leais também não. Neste sábado, eles convocaram novamente uma manifestação em Washington para protestar contra esta suposta fraude e pedir ao seu líder que não ceda.
El País: Saída de Trump prenuncia volta do multilateralismo nos organismos econômicos globais
Substituição na Casa Branca obriga que vários indicados pelo republicano no BID, Banco Mundial e FMI se realinhem com as prioridades de Biden
Ignacio Fariza e Isabella Cota, do El País
As ramificações da troca de guarda na Casa Branca são quase infinitas. Não só em chave interna: o abandono do unilateralismo, marca de Donald Trump, gera a necessidade de uma guinada na retórica imposta pelo republicano em vários organismos internacionais em que manobrou nos últimos anos para colocar nomes de sua confiança. “Quero dizer claramente: a América está de volta, o multilateralismo está de volta, a diplomacia está de volta”, sintetizou na semana passada Linda Thomas-Greenfield, futura embaixadora dos EUA na ONU na era Biden. Trata-se de uma declaração de intenções que deixa a baliza muita alta para os próximos quatro anos.
Desde sua chegada à Casa Branca, em janeiro de 2017, Trump dedicou-se o quanto pôde a colocar três homens de sua confiança na ponte de comando do Banco Mundial (David Malpass, nomeado em 2019), do Fundo Monetário Internacional (Geoffrey Okamoto, primeiro-subdiretor-gerente desde março passado) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Mauricio Claver-Carone, empossado em outubro). Nos três casos, a intenção era buscar reformar essas entidades à sua medida —sempre com a mentalidade de “a América [EUA] em primeiro lugar”— e reduzir ao mínimo as chances de colaboração multilateral: este Governo foi, afinal, marcadamente nacionalista, em que a condição para levar outros países em conta era que fosse Washington quem desse as ordens. E estas ordens deviam, acima de tudo, beneficiar os EUA.
“Não terão o mesmo peso que até agora, mas são pessoas não designadas diretamente pelo Governo dos EUA, e sim escolhidas pelos diretórios destas instituições”, recorda Arturo Valenzuela, subsecretário de Assuntos Hemisféricos dos Estados Unidos nos mandatos de Barack Obama, tendo o próprio Biden como vice-presidente. “Cabe perguntar por sua possível substituição, mas não há razão para esperar, de antemão, que não cumpram seus mandatos”, completa Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e ex-membro do conselho do FMI, que prevê em todo caso um giro radical nos valores e prioridades que terão que representar.
Cada caso, entretanto, é um mundo. Tanto Malpass como Okamoto têm sua continuidade praticamente garantida. O primeiro soube distanciar-se de seu padrinho político quase desde o primeiro dia, adotando uma invejável discrição. Embora crítico no passado quanto ao papel dos organismos multilaterais, como o que hoje comanda, modulou seu discurso e optou mais por reforçar um perfil de “reformista construtivo”, e não um mero espantalho de Trump no Banco. E não se deve esquecer que a nomeação do chefe do Banco Mundial sempre correspondeu aos EUA.
O segundo, Okamoto, embora muito próximo a Trump, também parece ter pista livre para esgotar seu mandato no FMI sem grandes sobressaltos: é o contrapeso norte-americano da búlgara Kristalina Georgieva —a cota europeia de um organismo que sempre esteve encabeçado por alguém com passaporte do Velho Continente. Com mil e uma frentes abertas, não parece que a nova Administração norte-americana vá querer abrir outra no fundo monetário.
O terceiro, Claver-Carone, é outra história, tanto pela poeira que sua nomeação levantou, a primeira de um não latino-americano à frente do BID, como pelo próprio perfil do cubano-americano, um falcão e membro da ala mais dura do Partido Republicano para assuntos do subcontinente. Também porque chegou ao cargo com a corrida eleitoral norte-americana já lançada e com boa parte das pesquisas contra Trump. “Vai ser difícil para ele trabalhar com o Governo Biden”, observa Valenzuela, recordando no entanto que o cubano-americano insistiu recentemente em nomear seus vice-presidentes no banco, que também precisam ser aprovados pelos Governos regionais, e não conseguiu: “Os países da região simplesmente disseram não”.
Seja como for, tanto Claver-Carone como Malpass e Okamoto se verão fadados a se alinharem com um direcionamento político oposto em muitos sentidos à sua própria visão de mundo. Terão, dito de outra forma, que deixar de lado sua própria ideologia e suas pulsões internas para defender princípios muito diferentes dos da Administração que os nomeou. “O presidente-eleito se apoiará no Banco Mundial, no FMI e no BID para enfrentar as dificuldades econômicas e sociais da pandemia, e esperará que estas pessoas respondam à direção da sua política”, esboça, em conversa com o EL PAÍS, Thomas Shannon, antecessor de Valenzuela nos tempos de George W. Bush. Poderão conviver com Biden no poder? “Dependerá de cada um deles: terão que se adaptar a um entorno completamente diferente em Washington”.
Mudança de retórica
Tudo indica que os anos de unilateralismo ficarão para trás a partir do próximo 20 de janeiro, quando Biden já estiver definitivamente instalado no número 1.600 da avenida Pensilvânia, em Washington. A julgar pelo discurso dele e da sua equipe, o democrata tratará de recolocar os EUA no centro da política econômica global, procurará tecer laços e cumplicidades com outros países em vez da política do “comigo ou contra mim”, defendida por seu antecessor e reforçará a capacidade de ação dos organismos internacionais quando o mundo mais precisa deles, em plena saída da crise do coronavírus. As indicações de Janet Yellen, ex-presidenta do Fed, como chefa do Tesouro e de Anthony Blinken como secretário de Estado são uma clara amostra dos rumos a partir de agora.
“Biden retornará à abordagem multilateral de Obama. Entre outras coisas, porque ficou demonstrado o fracasso das guerras comerciais unilaterais de Trump”, projeta Canuto. “O presidente-eleito utilizará o multilateralismo para demonstrar que os EUA voltam a se comprometer com o mundo, promovendo a cooperação e a colaboração”, salienta Shannon. “Se algo Biden fará é justamente recuperar o multilateralismo e fortalecer as instituições internacionais que ficaram à margem neste Governo”, conclui Valenzuela. À margem do FMI, do Banco Mundial e do BID, o caso da Organização Mundial do Comércio (OMC) brilha com luz própria: acéfala há meses e esmigalhada pelo impulso da retórica protecionista de Trump, deveria ser uma das entidades onde mais a substituição em Washington seria sentida. Sopram ventos de mudança na Casa Branca e nos principais organismos econômicos internacionais.
Pedro Doria: Facebook terá caminho mais difícil entre as gigantes de tecnologia
A década de 20 será a década do antitruste para as empresas de tecnologia
A década de 20 será a década do antitruste para as gigantes da tecnologia. Delas, três enfrentarão processos mais difíceis - Google, Facebook e Amazon. O primeiro contra o Google já saiu, agora é a vez do Facebook. A Amazon ainda aguarda a sua vez. E, das três, nenhuma empresa enfrentará um caminho tão difícil tanto politicamente quanto nos tribunais quanto o Face.
Politicamente, nos EUA, porque por motivos diferentes tanto o Partido Republicano quanto o Democrata olham para a gigante social com profunda desconfiança. Os republicanos têm convicção de que entre algoritmos e decisões de executivos, há censura de vozes conservadoras correndo solta. Os democratas veem algo completamente diferente: uma empresa que perdeu o controle de sua tecnologia ao mesmo tempo que substitui responsabilidade cívica por lucro. Que assim permitiu que a base de sustentação da democracia fosse sequestrada e ameaçada por manipulação do debate público e da informação.
Ambos podem ler de formas diferentes o problema, mas compartilham o fato de não confiarem na companhia.
Nos tribunais, a vida do Facebook não será mais fácil. A empresa é acusada de comprar WhatsApp e Instagram de forma agressiva para impedir que houvesse competição. Para bloquear o livre mercado. Será difícil argumentar o contrário. Afinal, há também a história da rede social que o Face não comprou — é a Snapchat. Quando os acionistas da startup se recusaram a assinar o acordo de venda, a gigante frustrada respondeu copiando os principais recursos e os aplicando no Insta. É o que chamamos de Stories.
O resultado concreto é que o que a Snap trazia de inovador foi copiado sem pudores pela gigante que tentou comprá-la. A rede nova foi abatida quando decolava em seu voo.
Ali, o Facebook mandou um recado para qualquer startup que ameaçasse seu mercado. No dia que uma proposta de compra viesse, melhor aceitar. Ou, então, sua criatividade seria copiada e suas chances de estourar, esmagadas.
A FTC, agência reguladora que garante que o mercado americano seja livre, não está pedindo pouco. Quer que o Facebook seja desmembrado. Que WhatsApp e Instagram voltem a ser empresas independentes. Para isso, precisará provar no tribunal que o Face abusa de seu poder de monopólio. Argumento, tem.
Folha de S. Paulo: Trump implodiu direita intelectual e deixa legado populista
Mesmo derrotado, presidente ampliou votação entre negros e latinos e pode moldar futuro do Partido Republicano
Carlos Gustavo Poggio, Folha de S. Paulo
[RESUMO] Mesmo derrotado, presidente se firma como a maior referência simbólica do Partido Republicano desde Reagan. Rejeitado pela elite partidária, ele implodiu a vertente conservadora mais intelectual, impôs uma agenda nacional populista no lugar da liberal internacionalista e ampliou a votação de sua sigla na classe média pouco instruída e entre negros e latinos, o que pode levar a uma completa reformulação trumpista do partido.
As eleições de 2020 nos Estados Unidos confirmaram o diagnóstico que já havia ficado claro em 2016: os republicanos enfrentam um desafio demográfico, ao passo que os democratas estão diante de um dilema geográfico.
A dependência dos republicanos em relação ao eleitorado branco e mais velho em um país que se torna cada vez mais diverso tem sido um problema que há anos assombra as lideranças do partido. Por outro lado, o apoio aos democratas se concentra crescentemente nos grandes centros urbanos.
Como eles perceberam dolorosamente em 2016, em um país que elege presidentes via Colégio Eleitoral e não por voto popular, não basta ser mais votado: os votos precisam estar distribuídos nos lugares certos.
O futuro da política norte-americana vai depender de como ambos os partidos vão lidar com esses impasses. O resultado das urnas neste ano pode nos dar algumas pistas.[ x ]
O caminho para o Partido Democrata, como a vitória de Joe Biden deixou claro, é contar com um alto índice de comparecimento às urnas para aproveitar a vantagem demográfica —e torcer para que a margem de vitória nos grandes centros urbanos de estados-chave seja grande o suficiente para compensar a vantagem republicana no interior.
Pode parecer uma fórmula relativamente simples, mas depende de algum fator que mobilize o eleitorado. Em 2008, esse fator foi Obama. Em 2020, Trump. A má notícia para os democratas é que uma candidatura que gere o tipo de entusiasmo verificado em 2008 e 2020, seja por estímulos positivos ou negativos, não ocorre com frequência.
O desafio dos republicanos, porém, é bem mais complexo. Antes de mais nada, terão de lidar com uma profunda crise de identidade. Até 2016, a referência central do partido era o ex-presidente Ronald Reagan —reconheça-se, contudo, que mesmo antes da eleição de Trump esse apelo dava sinais de enfraquecimento.
Em 2010, Lindsey Graham, senador republicano pela Carolina do Sul, chegou a dizer que mesmo Reagan, fosse vivo, teria dificuldades em se eleger pelo partido naquela ocasião. Todavia, foi com a vitória de Trump que, pela primeira vez em quase 40 anos, surgiu uma figura para disputar a influência simbólica no partido.
Reagan subiu ao poder em 1980 depois de anos de articulação intelectual do conservadorismo norte-americano, a partir da fundação da revista National Review em 1955, por William Buckley Jr. Por outro lado, Trump é produto da implosão dessa vertente conservadora. A questão agora é o que os republicanos vão fazer com os cacos.
A captura trumpista do Partido Republicano ocorreu de baixo para cima e não no nível do establishment —que, a propósito, ainda tem dificuldades em lidar com a novidade. Um dos poucos apoios da elite partidária a Trump veio de Bob Dole, que disputou a eleição presidencial de 1996.
Mitt Romney, candidato em 2012, tem sido um dos maiores críticos de Trump entre os republicanos. John McCain, que morreu em 2018, também rejeitou o atual presidente no pleito de 2016, e a sua esposa fez campanha para Biden neste ano. George W. Bush tem adotado uma postura mais discreta, mas sabe-se que não votou em Trump nem em 2016 nem em 2020. O filho de Reagan chegou a declarar em entrevista recente que o pai ficaria horrorizado com o governo que se encerra agora.
Parte do apelo de Trump, contudo, reside justamente na rejeição a esse establishment. Ele soube identificar uma parcela significativa do eleitorado americano que não se sentia representada, por exemplo, pela globalização e seus acordos de liberalização comercial, por uma postura aberta com relação à imigração e por uma política externa assertiva de promoção dos valores americanos ao redor do mundo, mesmo que pela via militar.
Como alternativa a essa postura liberal internacionalista, Trump requentou um nacional-populismo que até então se encontrava às margens no Partido Republicano. Em 1992 e 1996, o representante dessa vertente foi Pat Buchanan, que concorreu às primárias republicanas nas duas ocasiões defendendo uma pauta de caráter nacionalista, isolacionista, protecionista, de combate ao multiculturalismo e fortemente anti-imigração.
Tudo isso estava na contramão dos valores defendidos pela elite republicana nos anos 1990. A rejeição à retórica de Buchanan ficou clara quando ele deixou a legenda e concorreu às eleições de 2000 pelo Partido Reformista. Com o slogan “America first” (“Estados Unidos em primeiro lugar”), obteve menos de 0,5% dos votos e hoje poucos se lembram de sua campanha.
Ajudado pelas novas ferramentas de mídias sociais, que não estavam disponíveis à época de Buchanan, e pelas sequelas da crise econômica de 2008, Trump reuniu uma nova coalizão eleitoral que se mostrou vencedora em 2016 e competitiva em 2020, mesmo com os problemas demográficos enfrentados pelo Partido Republicano.
Da base que sustentava o partido desde Reagan —formada principalmente por defensores do livre-comércio, neoconservadores que advogam uma política externa intervencionista e os conservadores sociais representados pelo eleitorado evangélico—, Trump preservou apenas este último grupo. Os dois primeiros permanecem como os principais críticos internos do trumpismo, mas a sua influência parece ter diminuído consideravelmente.
Para o lugar deles, Trump cooptou uma parcela significativa da classe média e de brancos sem ensino universitário que costumavam votar nos democratas, enfraquecendo a chamada muralha azul em estados como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
Assim, quando Trump ressuscitou a agenda de Buchanan em 2016, encontrou uma audiência mais receptiva nos eleitores que se afastaram do Partido Democrata tanto por razões econômicas quanto culturais. Esse eleitorado passou a não enxergar diferenças significativas nas pautas econômicas dos dois partidos, dado que ambos levantavam a bandeira do livre-comércio, por exemplo.
Tal diferenciação deslocou-se então para o campo cultural, a partir da rejeição à agenda progressista na esfera dos valores, como a defesa de pautas identitárias e do aborto, e da percepção de que os democratas falavam apenas às elites costeiras, ignorando o interior do país. Nesse contexto, a adoção de uma linguagem politicamente incorreta por Trump ajudou a capturar esse eleitorado.
Não foi à toa que, na convenção republicana de 2016 em que foi sacramentado candidato, Trump voltou-se para o que chamou de os esquecidos pela elite política e bradou: “Eu sou a sua voz”.
O Partido Republicano deve responder agora se a coalizão reunida por Trump será uma divisão interna de relevo ou a nova base de toda a sigla. No médio prazo, parece descartada a hipótese de que a derrota neste ano signifique um retorno completo ao período anterior a 2016. O partido foi profundamente modificado pelo trumpismo.
A questão é de grau, ou seja, se o Partido Republicano irá se reformular completamente à imagem e semelhança de Trump ou se vai simplesmente absorver algumas mudanças, ao mesmo tempo que tenta preservar características da era pré-Trump.
Parte da resposta a essa pergunta passa por compreender quais lições os republicanos vão tirar de 2020, em especial no que se refere aos desafios demográficos —e elas não são óbvias.
Nas últimas oito eleições, da de 1992 à de 2020, os republicanos tiveram três vitórias (duas de Bush, em 2000 e 2004, e uma de Trump, em 2016), mas apenas a segunda de Bush também ocorreu no voto popular.
Desde 1964, nenhum candidato republicano em disputas presidenciais atingiu mais que 15% do voto negro —desde 1980, esse número tem flutuado entre 4% e 12%. Em 1992, um artigo na revista Political Science Quarterly indicava que os republicanos deveriam ter como meta capturar 20% do voto negro para permanecerem competitivos no futuro.
Em 2016, o partido obteve 8% do voto de negros com Trump. A estimativa para 2020 é de 12%, um crescimento de 50%, e apenas a terceira vez em 40 anos que os republicanos chegam a esse índice.
Se considerarmos somente homens negros, Trump chegou a 19%, bem próximo da desejada meta. Mesmo entre mulheres negras, Trump foi de 4% em 2016 para 9% em 2020, um incremento de mais de 100% nesse grupo.
Além disso, para serem eleitoralmente viáveis, os republicanos precisam se esforçar para atrair parcelas expressivas do eleitorado latino, o grupo minoritário que mais cresce nos Estados Unidos e que hoje representa parcela idêntica à do eleitorado negro: 13%.
Aqui também o trumpismo demonstrou ter algum apelo, conseguindo expandir a votação nesse grupo, de 28% em 2016 para 32% em 2020, o melhor índice para o partido em quase duas décadas, com ganhos expressivos em estados como Texas, Flórida e Nova York.
Assim como a expressiva votação obtida por Biden é em grande parte produto da rejeição a Trump, o desempenho de Trump entre alguns grupos demográficos pode ser mais uma rejeição da agenda democrata que um apoio explícito ao trumpismo. Afinal de contas, muitos eleitores negros e latinos, em especial os mais velhos, definem-se como conservadores.
A questão crucial sobre esses dados é se representam uma tendência ou se são pontos fora da curva. Ainda é cedo para responder. Uma hipótese plausível é que o aumento do apoio a Trump em determinados segmentos demográficos deve-se a uma percepção de melhora econômica, terreno em que a avaliação do presidente sempre foi relativamente boa.
Uma pesquisa do instituto Gallup publicada em setembro indicou que 56% dos americanos diziam que estavam em uma situação melhor que quatro anos atrás, um recorde desde que essa pergunta foi feita pela primeira vez, em 1984.
De qualquer forma, dado que muitos analistas estimavam que a retórica de Trump tenderia a afastar grupos minoritários, esses números apresentam um enigma a ser desvendado por estrategistas de ambos os partidos.
Se os republicanos concluírem que um efeito colateral não antecipado do trumpismo foi uma melhora no desempenho entre negros e latinos, isso pode ter impactos significativos para os rumos que o partido deve tomar a partir de 2021.
*Doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010)
Hélio Schwartsman: Casamento feliz
É boa a notícia de que técnicos da Anatel não restringiram participação da Huawei
Foi o casamento entre desenvolvimento tecnológico e economia de mercado que, a partir de fins do século 18, lançou o planeta numa era de prosperidade material sem precedentes.
Em tese, pode-se ter um sem o outro, mas é quando caminham juntos que os efeitos sinérgicos se materializam. Vale lembrar que a URSS detinha tecnologia de ponta em algumas áreas, mas, ainda assim, soçobrou por causa da economia.
À luz dessas considerações, nem haveria o que pestanejar em relação ao 5G. Se a tecnologia da chinesa Huawei é reconhecidamente melhor e mais barata do que a dos concorrentes e se um eventual veto à sua participação ainda exigiria refazer grande parte da infraestrutura de 3G e 4G, parece ilógico não incluir os chineses entre os fornecedores de equipamentos de 5G para o Brasil.
Não digo que outras questões, como a segurança nacional, não possam entrar na equação. Mas elas precisam ser reais e categóricas o bastante para justificar abrir mão do ganho econômico que teríamos com a participação da Huawei.
E não penso que sejam. O temor de espionagem é justificado, mas não apenas em relação aos chineses. O caso documentado mais recente de bisbilhotagem contra nossas autoridades leva a assinatura dos norte-americanos.
O remédio contra isso não é sonhar com uma rede telefônica inexpugnável, mas, pelo menos no caso do alto escalão, recorrer à criptografia avançada e a melhores rotinas de segurança. Quanto ao público geral, é possível e até provável que esteja mais interessado em preços baixos do que em proteção a dados pessoais, que, aliás, entrega com gosto e de graça às big techs.
Nesse cenário, é boa a notícia de que a área técnica da Anatel não restringiu a participação da Huawei. Se Bolsonaro quiser tirar os chineses da jogada, terá de escancarar que o faz por idiossincrasias suas. Decisões sem amparo técnico têm maior chance de ser revertidas a Justiça.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Míriam Leitão: Biden e vacina elevam mercado
Você não gosta de mim, mas seu mercado gosta. Os versos de Chico Buarque poderiam ser adaptados pelo presidente eleito Joe Biden, se ele estivesse preocupado com esse longo silêncio do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Desde que ficou claro que Biden era o vencedor das eleições americanas, houve um reviravolta nos ativos que favoreceu o Brasil, o real e até os investidores no país.
O dólar, por exemplo, caiu 11,11% aqui dentro, indo de R$ 5,76 em 29 de outubro para R$ 5,12 , ontem. A queda do dólar começou antes das eleições porque todas as projeções davam o que acabou acontecendo, uma vitória por larga margem no voto popular e no colégio eleitoral para Joe Biden.
Novembro foi o melhor mês da bolsa brasileira em muito tempo, recuperando uma parte das perdas que haviam sido provocadas pela pandemia, pela falta de entrega do programa econômico, e pelas incertezas do próprio governo. Isso trouxe de volta o investidor estrangeiro que havia ido embora. Em novembro entraram R$ 33 bilhões. No ano eles haviam sacado quase R$ 90 bi.
O mercado funciona de maneira diferente do que reagem as pessoas quando fazem as suas conexões neurais. O que liga uma coisa a outra pertence à lógica própria. A vitória de Biden é entendida pelos analistas como sinal de que haverá um pacote de ajuda mais robusto para a economia americana, o que levará à desvalorização do dólar. Isso aumenta os fluxos para os países em desenvolvimento e eleva o apetite para o risco. O resultado é essa volta do capital arisco, apesar de todos os sinais ruins dados pelo governo brasileiro.
Em resumo, não voltam porque passaram a confiar em Bolsonaro e no seu desgoverno, mas porque os fluxos globais estão nessa direção. Tanto que não foi só conosco. O dólar australiano, o dólar canadense, o won coreano e até o euro estão nos maiores valores frente ao dólar em dois anos.
O S&P 500 bateu novamente seu recorde histórico, chegando ontem a 3.699 pontos. Houve um tempo em que se dizia que o mercado gostava apenas dos republicanos. Não se confirmou nesta eleição, em que Biden recebeu mais doações do que seu opositor. A instabilidade provocada por Donald Trump e as ameaças institucionais passaram a ser disfuncionais. Um economista brasileiro que vive nos Estados Unidos disse que nunca viu tanta gente do mercado votando em democrata quanto nessa eleição.
Houve também o efeito vacina. Mas, de novo, a música pode ser a mesma, desta vez, da vacina para Bolsonaro: você não gosta de mim, mas a sua economia gosta. Tanto que todos os cenários positivos futuros estão dependendo dessa variável, aqui e no mundo. Se houver vacinação em massa, haverá economia retomando alguma normalidade. Do contrário, voltará a instabilidade negativa.
A dupla Biden e vacina, para o presidente brasileiro prisioneiro do seu negacionismo trumpista, pode ser tudo o que ele rejeita. Felizmente, para a economia do país, a chegada dos dois está elevando o humor, e reduzindo as perdas que todos os investidores, pequenos, médios e grandes, tiveram nesses longos meses de pandemia com Bolsonaro estimulando o contato e o contágio.
Claro que, da mesma forma que entrou, esse dinheiro pode sair em qualquer vento contrário. Se o governo brasileiro não conseguir organizar uma vacinação ágil e eficiente, o país será colocado para trás. Em um momento de mau humor com os emergentes, os capitais lembrarão que o Brasil tem uma dívida muito alta, o governo não tem programa crível de equilíbrio fiscal e Bolsonaro segue a política de isolamento diplomático. Acredita — até hoje — na vitória de Trump, hostiliza a China, levou um ano para fazer uma reunião com o presidente da vizinha Argentina, ameaçou “denunciar” Alemanha e França e agrediu a Noruega, que havia doado dinheiro para a proteção da Amazônia.
Mesmo com uma política ambiental desastrosa, uma condução perigosa da pandemia, e uma política econômica sem rumo, o Brasil conseguiu vender bônus no mercado internacional esta semana. O Tesouro emitiu títulos em dólar no mercado externo e atraiu três vezes mais demanda do que estava sendo oferecido. Há muitos riscos na dívida brasileira e ninguém desconhece isso. Mas neste momento tudo é festa. Começará um governo novo e mais racional nos Estados Unidos e a vacina está chegando.
Paulo Hartung: 2020, o ano que não termina
Desafios desta dúzia de meses atormentados ecoarão firmemente no correr dos dias de 2021
Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartimentada em calendários, nada nunca termina abruptamente, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significação inéditos.
Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementadas neste 2020 cujas repercussões já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavírus, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitária que assola o planeta.
Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretamente proporcionais à capacidade e à racionalidade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordinário de duas mulheres, em nações democráticas, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.
A relevância da diversidade e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualdades socioeconômicas, o terremoto na esfera produtiva, especialmente nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecimento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.
Mas não é só de repercussões desafiantes deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizados por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissores se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecimento do multilateralismo, a busca da sustentabilidade no planeta e as vastas experiências da digitalidade.
A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizadas. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidência estadunidense ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalismos radicais, obscurantismos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidamente conseguiu sintetizar conhecimentos sobre uma doença desconhecida e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.
Também ganham energia com esta mudança política o multilateralismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquecendo a onda global de populismo conservador. Da mesma maneira, a preservação do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuaremos a testemunhar a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicial por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividados no pós-pandemia.
A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementando como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunidades de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.
Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeiras pragas, como as fake news e as trevas da intolerância, potencializando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizatórios assumidos como organizadores dos laços sociais. É um desafio sociopolítico investir na apropriação humanística das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.
Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmente na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentados ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizados, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiência das possibilidades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
El País: Desmatamento na Amazônia dispara e atinge recorde em 12 anos
A maior floresta tropical do mundo perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores no ano passado, 9,5% a mais que no ano anterior
Naiara Galarraga Cortázar, El País
- Com Biden, futuro da Amazônia vira ponto central na nova relação entre EUA e Brasil
- Turnê de embaixadores pela Amazônia termina sem visitar áreas afetadas por queimadas e desmatamento
- “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, diz Bolsonaro para Biden sobre Amazônia
Más notícias para o planeta. O desmatamento na Amazônia ―a cifra anual com a qual o restante do mundo mede o desempenho do Brasil em meio ambiente― disparou no último ano e alcançou o nível mais alto dos últimos 12 anos. A maior floresta tropical do mundo, crucial para conter as mudanças climáticas, perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores, de acordo com o balanço anual divulgado nesta segunda-feira pelas autoridades. Esse aumento, de 9,5% em relação ao ano anterior, evidencia os graves efeitos da política do presidente Jair Bolsonaro de enfraquecer as fiscalizações do meio ambiente, encorajar a impunidade dos invasores de terras e desprezar os indígenas que querem preservar suas terras.
A Amazônia é tão vasta que o Greenpeace fez algumas contas para que seja mais fácil entender a dimensão da perda. São 626 milhões de árvores derrubadas. É como se a cada minuto do ano passado a Amazônia tivesse perdido o equivalente a três campos de futebol, até somar 1,58 milhão de estádios. A ONG sustenta em nota que “o desmantelamento de órgãos e das políticas ambientais nos levou a um índice quase três vezes superior à meta de redução do desmatamento para 2020 estabelecida por lei”.
Dois membros do Governo ―ambos militares da ala mais pragmática e menos ideológica do Gabinete― participaram da apresentação dos dados. No entanto, o ministro do Meio Ambiente não estava com eles. “Não estamos aqui para comemorar nada disso, porque isso não é para comemorar”, disse o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Ao seu lado, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, o primeiro astronauta do Brasil. O vice-presidente tem incentivado os inspetores, com frequência fustigados por Bolsonaro, a continuar a fazer seu trabalho orientados pela ciência, a tecnologia e a lei.
A cifra divulgada nesta segunda-feira é resultado das medições feitas por satélites pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). É um balanço anual que abarca a superfície de árvores destruída entre agosto de 2019 e julho de 2020. Sua difusão sempre demora vários meses. E representa um balanço preliminar que só se consolida com os dados definitivos no primeiro semestre do ano.
O Governo Bolsonaro está perfeitamente ciente de que a política ambiental é crítica em suas relações exteriores, tanto com a União Europeia como com os Estados Unidos quando Joe Biden assumir a presidência em janeiro. A ecologia tem um peso enorme no processo de ratificação do acordo comercial UE-Mercosul.
O deslocamento de milhares de militares brasileiros para as áreas mais sensíveis e a criação do Conselho da Amazônia para coordenar todos os órgãos envolvidas no cuidado com o meio ambiente e o combate aos incêndios não reverteram o aumento do desmatamento que começou antes de Bolsonaro chegar ao poder e se acelerou nestes dois anos.
A destruição da Amazônia em 2004 ultrapassou 27.000 quilômetros quadrados (quase o triplo de agora). Foi o primeiro ano de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. A partir de então, a derrubada anual de árvores diminuiu até chegar a 4.570 quilômetros quadrados em 2012 (o mínimo desde que há medições). E a partir daí, com Dilma Rousseff no poder, a alta recomeçou até atingir a cifra atual.
A WWF, uma organização não-governamental, destaca em um comunicado que o desmatamento registrado desde que Bolsonaro está no poder indica a desconexão do Governo dos desafios e oportunidades (também econômicas) que a Amazônia representa.
O INPE possui um outro sistema, que registra alertas todos os meses e serve para mobilizar os fiscais ambientais ou a polícia, que já havia sinalizado que o desmatamento continuava a aumentar. Em uma crítica, o Greenpeace afirma que, apesar disso, “a resposta do Governo federal ao aumento do desmatamento tem sido mascarar a realidade, militarizar cada vez mais a proteção ambiental e trabalhar para frear as ações da sociedade civil, prejudicando a nossa democracia”, segundo uma porta-voz.
Raul Jungmann: 5G - Politização e interesse nacional
Esta semana, mais uma vez, tivemos um conflito diplomático entre o Brasil e China, motivado por um tuite desrespeitoso e irresponsável do Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara seguida de resposta do embaixador da China.
Os países mais avançados na introdução de tecnologia 5G são a Alemanha, China, Coreia do Sul, EUA e Japão. Existem atualmente 40 operações comerciais de 5G em 16 países, conduzidas por duas dezenas de operadoras.
O Brasil é um player de peso no comércio global das tecnologias de informação e comunicações e nas principais instâncias da governança cibernética. Somos, depois da China, Índia e EUA, o quarto maior usuário global da Internet. Entre 2000 e 2017, o percentual da população brasileira com acesso à Internet evoluiu de 3% para 67,5%.
A companhia chinesa Huawei é hoje a principal ofertante de serviços 5G, com preços de mercado mais vantajosos do que as outras duas concorrentes, Nokia e Ericsson. O governo dos EUA pressiona seus parceiros econômicos a não adquirir os produtos e serviços de 5G da Huawei, sob a argumentação de que eles trariam graves riscos securitários.
Países influentes nas agendas econômica e securitária globais, como Alemanha, Coreia do Sul, França, Índia e Reino Unido têm indicado, entretanto, intenção de não desconsiderar a priori quaisquer das ofertas de 5G, inclusive da Huawei, desde que atendidos os objetivos nacionais de desenvolvimento tecnológico e critérios de segurança.
Contrariando essa tendência, o Reino Unido e a Suécia reviram sua decisão recentemente e colocaram impedimentos para a participação da Huawei em projetos de 5G.
Em junho de 2019 o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações divulgou a Estratégia Brasileira de Redes de Quinta Geração. Em 31/10/2019, foi instaurado Grupo de Estudo sobre a tecnologia 5G.
O principal objetivo do grupo é subsidiar o Governo federal para a adoção de um ecossistema 5G que atenda aos requisitos de maior cobertura nacional possível, prestação eficiente de serviços, fomento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico e segurança das infraestruturas críticas e cadeias de produção.
A Anatel e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) têm defendido o princípio de neutralidade tecnológica. Em fevereiro de 2020, a Anatel aprovou proposta de edital de leilão 5G.
O leilão deverá movimentar R$ 20 bilhões em arrecadação e investimentos. Após sucessivos adiamentos, a estimativa do Presidente da Anatel é a de que o leilão ocorra no primeiro semestre de 2021.
Ideologizar e/ou politizar essa decisão estratégica e seguir um dos lados em disputa, EUA ou China, e não o interesse nacional é desservir ao Brasil.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Reinaldo Azevedo: Bolsonaro cumpre promessa e desconstrói o Brasil
Em reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo
O governo de Jair Bolsonaro acaba de comprar mais um conflito estúpido com a China; ainda não reconheceu a eleição de Joe Biden nos EUA; acusou recentemente países europeus de comprar madeira ilegal do Brasil —o que os tornaria, quando menos, corresponsáveis pelo desmatamento— e é hostil à Argentina, um dos principais clientes, ainda que em declínio, da combalida indústria brasileira.
O festejado acordo UE-Mercosul é agora só miragem, e o ingresso do país na OCDE vai ficando mais distante. Bolsonaro é hoje um dos líderes mais isolados no planeta. Em seu rosto, percebem-se laivos de nanico orgulhoso, que não se dobra à grande conspiração contra os homens justos. Não é sem razão que suas honras viris mereceram o reconhecimento de Vladimir Putin.
Em nota oficial, a embaixada da China reagiu, em termos apropriadamente duros, à acusação feita por Eduardo Bolsonaro —filho de Jair e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara— de que os chineses pretendem usar a tecnologia 5G para praticar espionagem. O texto lembra que o país governado por Xi Jinping, a quem o “capitão” claramente se opôs na reunião virtual do Brics, responde por 33,5% das exportações brasileiras.
Se não cabia ao Itamaraty pedir desculpas —afinal, não se tratou de manifestação de governo—, menos apropriado seria reagir com críticas adicionais à China, como se a nota dura da embaixada representasse uma ofensa ao próprio governo. Mas foi precisamente o que aconteceu. O Ministério das Relações Exteriores tomou as dores do filho do presidente.
Assim, a família Bolsonaro e o grupo de lunáticos que o cerca —incluindo Ernesto Araújo, o chanceler— confundem a própria pantomima com a história e os interesses do país. Os malucos têm uma certeza: a China precisa da soja brasileira, da carne brasileira, do ferro brasileiro. Logo, não pode advir desse confronto mal nenhum ao país, e a ameaça de retaliação seria pura bravata.
Não ocorre a esses gênios da raça que os chineses não precisam abrir mão das commodities brasileiras. Causariam um estrago considerável ao agronegócio, e ao nosso país, se comprassem menos soja, menos carne e menos ferro do Brasil. Até em briga de rua, no meu tempo de ser moleque, a gente avaliava antes as consequências de um confronto. A noção de honra, às vezes, a tanto nos obrigava. Mas nenhum de nós podia fazer mal nenhum a não ser à própria cara. Esses celerados estão empenhando o futuro do país. Alguma surpresa?
Não. O Brasil tem uma elite econômica temerária —é claro que há notáveis exceções—, capaz de flertar com o caos sob o pretexto de salvar o país do demônio. O “mal”, no caso, segundo essa gente, acaba se confundindo com a cara média do povo brasileiro, que é meio preta e pode morrer de susto, bala, vício ou asfixia num hipermercado. Já em 2018 eu me perguntava, e a questão permanece, por que setores do empresariado e do mercado financeiro imaginavam que Bolsonaro poderia ser a solução para as suas angústias.
Em parte, sei a resposta. O ódio à política, liderado pela Lava Jato, levou pesos pesados do PIB brasileiro a acreditar numa espécie de purificação mística. Se os “espertos”, na narrativa escatológica então inventada, haviam criado o país da corrupção e da impunidade, talvez nos faltassem brutalidade e crueza em estado puro.
E existia a personagem que encarnava todos esses baixos instintos —tudo aquilo que a civilização, na verdade, deve reprimir pelo caminho da educação e do decoro para que a vida em sociedade seja possível. E Bolsonaro chegou lá, com seu séquito de neófitos arrogantes e truculentos, vocalizando os preconceitos mais sórdidos sob o pretexto de conjurar, então, as forças do mal que teriam se entranhado no país.
Em março do ano passado, numa reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.”
Homem de palavra. Ele está desconstruindo o Brasil.