Estados Unidos
Fernando Schüler: As big techs assumiram a curadoria. Civilização ou distopia?
Ideia da liberdade de expressão nasceu do ceticismo moderno; quem detém a verdade e quem são seus juízes?
Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa ágora digital. Ainda do projeto Gwan, que conheci nos anos 1990, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro Gótico. A ideia era forjar música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000.A ideia era ótima. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial". Era isso que embalava a turma nas madrugadas frias de Barcelona, naquele sótão empoeirado e forrado de computadores.Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal.
As redes funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e as regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí diálogo e aproximação dos divergentes.
O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.
Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinalizam os desligamentos recentes. Eles envolvem um claro juízo político e vão muito além da punição que precisa ser feita, dentro da lei, para quem promove violência, morte, suicídio, ódio racial ou religioso e afins, seja de que lado político for.
As redes agiram assim porque podem. São empresas privadas, suas regras, vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e "bom senso" e que cortar estas e não aquelas contas seria sempre o melhor para a civilização e para democracia.
Não sei por que (talvez seja a idade), tornei-me cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a "verdade" e a infalibilidade de seus juízes.
É o sentido da frase desconfiada da chanceler Angela Merkel, dizendo "problemático" o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um "bem fundamental", a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas.
É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. A longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo.
Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século 17. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, "os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo".
Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.
A ideia das ágoras universais vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.
A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no zigue-zague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas nem o seu direito de pensar com a própria cabeça.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Sergio Lamucci: Problemas à vista na relação com os EUA
Governo brasileiro não fez nenhum gesto para se aproximar de Biden
A menos de dez dias da posse de Joe Biden como presidente dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro segue distante da nova administração americana. Não construiu pontes com o novo líder americano, fazendo questão de reafirmar os seus laços com Donald Trump, que se recusa a reconhecer a derrota nas eleições e termina o governo apostando ainda mais na divisão do país, ao ter incitado a invasão do Congresso.
Essas atitudes de Bolsonaro vão dificultar a relação do Brasil com os EUA, por mais que Biden seja visto como um político pragmático. O Brasil ficará ainda mais isolado no cenário externo, enfrentando problemas especialmente por causa da atitude do governo Bolsonaro em relação ao ambiente, que será uma das prioridades do novo presidente americano.
Na semana passada, Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral dos EUA, afirmando que a causa da crise americana é “basicamente a falta de confiança no voto”. Segundo ele, “lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.” A apoiadores, o presidente disse ainda o Brasil terá “um problema maior que os EUA” em 2022, caso não haja uma mudança no sistema eleitoral por aqui, com o voto impresso.
Bolsonaro usa o exemplo do pleito americano para mais uma vez colocar em xeque a credibilidade das eleições brasileiras, indicando que poderá repetir a estratégia de Trump no ano que vem, se o resultado for desfavorável a ele. O presidente já disse várias vezes que houve fraudes nas eleições de 2018, em que venceu Fernando Haddad (PT) com grande folga. Com essa estratégia, Bolsonaro subordina os interesses do país aos seus interesses pessoais.
Por mais que seja próximo de Trump, já passou da hora de Bolsonaro buscar uma aproximação com Biden. O brasileiro só foi cumprimentar o presidente eleito americano 38 dias após as eleições, sendo o último líder dos países que integram o G-20 a reconhecer a vitória do candidato democrata.
Em entrevista ao Valor em outubro, Thomas Shannon, ex-embaixador americano no Brasil entre 2010 e 2013, destacava que “a agenda do Partido Democrata não é favorável ao presidente Bolsonaro”, citando temas ambientais, por exemplo, embora tenha afirmado que Biden entende o valor estratégico do Brasil para os EUA.
Ex-subscretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Shannon conhece profundamente a política do Partido Democrata para a América Latina. Já em artigo para a revista “Crusoé”, publicado em 1º de janeiro, Shannon deixou claro o impacto que podem ter para as relações entre Brasil e EUA as declarações de Bolsonaro sobre o resultado das eleições americanas - e isso antes de o brasileiro repetir, na semana passada, as insinuações de fraude no pleito americano.
Shannon escreve que Biden “conhece a importância do Brasil e tem um conhecimento bem desenvolvido da trajetória histórica de nossa cooperação”, sendo ainda um político que “verá a relação com o Brasil não em termos pessoais, mas em termos dos interesses e valores que ligam nossas duas nações”.
Depois de apontar essas características de Biden, Shannon afirma que, “dito isso, o governo Bolsonaro tem feito quase todo o possível para complicar a transição na relação bilateral”, lembrando que o presidente e membros de sua administração expressaram preferência por Trump. Ele destaca ainda que Bolsonaro criticou Biden após comentários do então candidato democrata durante um debate, pedindo uma ação mais orquestrada do Brasil sobre o desmatamento”. Na ocasião, o americano disse que pretendia reunir outros países para garantir US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia - caso contrário, o Brasil enfrentaria “consequências econômicas significativas”.
Segundo Shannon, “essa gafe, no entanto, perde relevância quando é comparada com a disposição do presidente Bolsonaro de repetir as alegações infundadas de fraude” feitas por Trump sobre as eleições dos EUA. “A preferência partidária baseada na amizade pessoal é perdoável, assim como a defesa da soberania nacional. No entanto, atacar a integridade e a credibilidade do processo eleitoral americano é um ataque à legitimidade da democracia americana e à Presidência de Joe Biden. É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido.”
Nesse cenário, “o tom da parceria única entre Brasil e Estados Unidos agora depende em grande parte do Brasil”. Pelo que se vê até o momento, porém, o governo Bolsonaro não está disposto a fazer gestos de boa vontade para a nova administração americana. Não foi apenas o presidente brasileiro que questionou as eleições americanas. No Twitter, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse na semana passada que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O líder da diplomacia brasileira também levanta dúvidas sobre o pleito que levou à vitória do novo presidente americano.
Nessa toada, o Brasil não deverá ter vida fácil com o governo de Biden. Na semana passada, o novo presidente indicou Juan Gonzalez para o cargo de diretor-sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional. Em outubro, Gonzalez afirmou que “qualquer um, no Brasil ou em outro lugar, que pensa que pode avançar numa relação ambiciosa com os EUA enquanto ignora assuntos importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos claramente não está ouvindo Joe Biden em sua campanha”.
O foco do americano em políticas ambientais, atuando possivelmente em conjunto com a União Europeia (UE), colocará mais pressão sobre o Brasil nesse campo. Isso poderá afetar as exportações brasileiras, assim como atrapalhar o fluxo de investimentos estrangeiros para o país. O governo Bolsonaro, porém, não parece preocupado em ter bom um relacionamento com Biden, como já não tem com boa parte dos países da UE e com a China. Sem aliados importantes no cenário internacional, o Brasil caminha em 2021 para ficar ainda mais isolado.
Dorrit Harazim: Fim ou começo
A mera abertura de impeachment de Trump seria registrada de forma indelével e educativa
Karen Attiah é editora de Opinião Global do “Washington Post”. Publicou uma coluna insólita depois que bandos radicalizados em quatro anos de governo Trump tomaram de assalto o Congresso dos EUA. Seu texto simula a forma como a mídia ocidental noticia violência política em países conturbados. De cara, a jornalista descreve Donald Trump não como “presidente”, mas como “líder”. Aponta para a esculhambação geral, informando que os invasores haviam anunciado seus planos on-line ostentando camisetas com os dizeres “Guerra Civil”. Faz referência à peculiaridade dessa “ex-colônia britânica”, onde “há séculos a violência política e racial desempenha papel preeminente”. E noticia a reação inicial do presidente recém-eleito Joe Biden ao ato de sedição no Capitólio — “não representam a América real, não representam quem somos”. Recorrendo a um personagem fictício finamente criado para a ocasião, Attiah reserva sua estocada para o final do seu artigo:
—A frase “isso não é quem somos” tornou-se um refrão comum em inglês falado nos Estados Unidos, diz o liberiano Alphus Huxly, professor de Literatura e Estudos Americanos. Trata-se de uma resposta automática, usada sempre que há volumosa evidência de violência dos brancos e de ataques à democracia.
A partir da lealdade de 74 milhões de eleitores a um presidente demagogo que anunciara previamente sua sedição, o mantra “não é isso quem somos” não basta mais. O próprio conciliador-em-chefe Biden, que tomará posse no dia 20 sob medidas de proteção marciais, já endureceu o tom. E mais não faz para, seguindo sua índole, não dilacerar ainda mais a nação que herdará.
Outros, então, tomaram a dianteira para tentar interromper de imediato, e com urgência, o poder do presidente mais desequilibrado, demagogo, insurreto (e talvez insano) que o país já teve. O editorial do conservador “Wall Street Journal” que pediu sua renúncia conclui que “é melhor para todos, inclusive para ele, afastar-se discretamente”. O que é uma contradição em si —nada, em Trump, consegue ser discreto ou sem confronto aberto.
Um Donald Trump entrincheirado na Casa Branca às soltas com seus fantasmas, por mais 10 dias, acende um botão de pânico mundial. Daí o telefonema da presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, ao chefe do Estado-Maior Conjunto, Mark Milley, para se assegurar de que haverá precauções redobradas em caso de alguma ordem incongruente recebida da Casa Branca.
Em tese, a remoção forçada mais expedita poderia ocorrer por meio da Emenda Constitucional 25. Mas o instrumento exigiria o assentimento e ação do vice equilibrista Mike Pence. Pouco provável, portanto, pois a única causa de Pence nestes quatro anos foi servir docilmente ao chefe, na ilusão de emergir em 2024 como trumpista imaculado e, assim, disputar a Casa Branca. Deu tudo errado. Mas encaminhar a remoção legal de Trump em nome da democracia não faz parte do DNA de Pence. Resta, então, o pedido de impeachment acelerado, já proposto pela liderança democrata no Senado e na Câmara.
Seria um revertério colossal se, uma vez encaminhado pela Câmara, o impeachment viesse a ser aprovado pela maioria republicana que ainda domina o Senado. Também seria curtíssimo o tempo para a elaboração do processo. Ainda assim, a mera abertura do procedimento ficaria registrada de forma indelével e educativa para futuros aventureiros do poder no país. De um mesmo presidente com dois pedidos de impeachment na folha corrida, a história nunca esquece.
Também convém não esquecer que foram 147 legisladores republicanos, portanto representantes do povo, que deram lustro formal à teoria conspiratória de fraude na eleição de Biden. Alinharam-se por oportunismo eleitoral à narrativa da vitimização do eleitorado branco (leia-se, racista) e deslizaram para a covardia cívica. Foram os primeiros a emudecer diante do crescimento e do arrojo de um embrião de nação — uma nação de fanáticos devotos a um só homem.
Na tentativa de fraudar o resultado da eleição e intimidar servidores públicos, Trump fracassou não apenas porque estes se mantiveram leais à Constituição. Fracassou também porque conseguiu cercar-se de um bando de causídicos desclassificados ainda mais exóticos do que Frederick Wassef, ex-advogado da família Bolsonaro. Felizmente, também a tentativa de insurreição desta semana foi planejada e insuflada por celerados sem roteiro. O desfecho poderia ter sido ainda pior — e melhor para um líder que aposta na convulsão. “Coisa de amador”, dirão Vladimir Putin e Xi Jinping, com desprezo.
Sabidamente, grandes ocasiões não geram heróis ou covardes, apenas os revelam à luz do dia, já ensinou um sábio lá atrás. Ou, como sabia o grande escritor e dramaturgo maldito Jean Genet , “quem nunca provou o prazer da traição não sabe o que é prazer”. Está, portanto, aberta, a temporada de covardias de assessores e políticos que querem salvar a pele afastando-se na 25ª hora de Trump. Porteira também aberta para uma inevitável torrente de traições de quem acumulou humilhações do chefe e agora vai desatar a falar — ou a votar por sua remoção.
Resta no ar a frase mais inquietante da semana. Em mensagem gravada à nação para anunciar (60 dias após ser derrotado por Biden) que o país terá novo presidente a partir do dia 20, Donald Trump se despede por ora assim: “Embora isso represente o fim do maior primeiro mandato da história presidencial, isto é apenas o começo da nossa luta...”. Melhor que seja o fim.
Alon Feuerwerker: Para a defesa de interesses, manobras complexas
Governos que se mantêm apesar das crises induzem a celebrar e elogiar a institucionalidade; já governos que fracassam e caem têm sempre a tentação das teorias conspiratórias. Mas a realidade, em última instância, é uma só: cabe a qualquer governo cuidar de suas bases de sustentação, sem elas está fadado à ruína. Seja qual for a "institucionalidade".
E quando a ruína vem, abre-se a possibilidade de uma ofensiva do inimigo, que costuma ser implacável e brutal. E que só freia quando se estabelece uma nova correlação de forças, mais equilibrada. Ainda não chegamos a esse ponto nos Estados Unidos. A coalizão política, social e cultural organizada pelo Partido Democrata contra Donald Trump só começou seu avanço.
E com a ordem de não fazer prisioneiros.
E a ofensiva ali se espalhará por todos os fronts. A guerra cultural será particularmente cruenta, na tentativa de ajustar as contas com as raízes mesmo da formação nacional norte-americana e daí buscar uma legitimidade de tipo completamente novo. Até chegar o dia em que tudo isso vai cansar e os robespierres de hoje forem encaminhados à guilhotina.
Claro que em pleno século 21 essa é apenas uma figura de linguagem. Mas os precedentes históricos são vários.
E o que temos a ver com isso, tirando o óbvio interesse pelo espetáculo? O que os americanos vão fazer com o país deles é assunto deles, mas o problema é se tratar de uma superpotência, a maior, e com armamento capaz de destruir a civilização algumas vezes. E qual será o melhor meio para os novos detentores do governo ali buscarem mais apoio num país fraturado?
Além de fazer a revolução interna, tentar restabelecer a liderança planetária que vai escorrendo pelo ralo do fantasma da decadência econômica.
A política de Donald Trump para fazer a América grande de novo sustentava-se no resgate das raízes nacionais e, principalmente, no buy american and hire american. Os americanos comprarem produtos americanos e produzirem em casa. Joe Biden repete o buy american, mas a ambição dele é maior: remontar a hegemonia planetária.
Aí cada país, dos maiores aos menores, precisará entrar num jogo de manobras complexas, buscando no todo e em cada situação defender seus próprios interesses, e ao mesmo tempo adaptar-se aos interesses de quem tem a vantagem da força. Porque, novamente, nunca é prudente subestimar a correlação de forças.
E qual o desafio maior do Brasil na nova conjuntura? Talvez saber qual é exatamente o interesse nacional neste momento da nossa história. Dificuldade que aliás começa pela dúvida, espalhada sistematicamente na periferia do sistema global: faz sentido falar em “interesse nacional” já passadas duas décadas deste novo século?
Fazendo um certo reducionismo caricatural, o Brasil parece estar dividido entre quem preferia engatar incondicionalmente nosso vagão na locomotiva trumpista e quem agora está pronto a bater continência à nova ordem, também de modo incondicional, desde que receba de fora o apoio suficiente para fazer aqui dentro seu próprio ajuste de contas.
Não chega a ser animador.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Marcus Pestana: Os EUA entre a loucura e o fascismo
A democracia é valor universal inegociável para aqueles que acreditam na liberdade como ambiente desejável para a construção do futuro da sociedade. A democracia moderna tem raízes na Inglaterra da Revolução Puritana, no século XVII, liderada por Cromwell, primeiro levante contra o absolutismo; na França, que em 1789, com sua revolução, derrubou a monarquia absolutista; e na consolidação da democracia norte-americana a partir da Guerra da Independência, da Revolução de 1776 e da Guerra de Secessão.
Em 1835, o maior intérprete da democracia americana, o jurista francês Alexis de Tocqueville, publicou o clássico “A Democracia na América”. A escravidão se concentrava no sul do país. E a valorização do indivíduo e da livre iniciativa empreendedora tomava conta do norte e do centro-oeste.
Tocqueville afirmou então: “Eu confesso que na América, eu vi mais do que a América; eu vi a imagem da democracia mesmo, com suas inclinações, seu caráter, seus preceitos, e suas paixões, o suficiente para aprender o que devemos temer ou o que devemos esperar de seu progresso”.
Chamou sua atenção a adoção do voto universal, a construção das instituições, a burocracia mais leve, a valorização dos direitos individuais, a descentralização federativa. Embora a democracia americana excluísse as populações negras e indígenas e as mulheres só tenham conquistado o direito a voto em 1920, Tocqueville enxergava na sociedade de “homens quase iguais” o freio contra radicalismos e violências. Estaria antevendo precocemente a ascensão e queda de Donald Trump?
Dentro da vasta literatura sobre a crise da democracia representativa e o crescimento do nacional-populismo autoritário, vemos em Manuel Castels em seu livro “Ruptura – a crise da democracia liberal” (2017), o mesmo presságio: “Como foi possível? Como pode ter sido eleito para a Presidência mais poderosa do mundo um bilionário tosco e vulgar, especulador imobiliário envolvido em negócios sujos, ignorante da política internacional, depreciativo da conservação do planeta, nacionalista radical, abertamente sexista, homofóbico e racista?". E responde: pela soma da ira dos excluídos do mundo globalizado, da América profunda do interior, da população branca conservadora que não se via representada pelos múltiplos movimentos identitários, e de uma campanha radicalizada, repleta de fakenews e manipuladora das redes sociais.
Também Steven Levistky e Daniel Ziblatt, em “Como as democracias morrem” (2018), processam análise perturbadora sobre o colapso das democracias tradicionais associando a eleição de Trump com rupturas democráticas emblemáticas como nos casos de Orban na Hungria, de Erdogan na Turquia, de Hugo Chávez na Venezuela, de Fujimori no Peru, e até mesmo de Mussolini na Itália e Hitler na Alemanha. Democracias corroídas por dentro, com a crescente quebra das regras constitucionais, o enfraquecimento das instituições e a mobilização de parcela importante da população em apoio à ruptura. Os autores chamam atenção para as regras não escritas da política norte-americana: a contenção no uso do poder e o reconhecimento da legitimidade dos adversários. Princípios jogados na lata do lixo por Donald Trump.
Ainda estamos perplexos e assombrados com os últimos acontecimentos nos EUA. Loucura ou fascismo? Na próxima semana, voltarei ao assunto.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
BBC Brasil: 'Tribalismo masculino' - a seita violenta ligada ao 'viking' em invasão ao Congresso dos EUA
Um homem branco, musculoso e tatuado com o torso nu, a cabeça envolta por chifres e pelos de bisão, o rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido leve e da cor da pele se tornou o ícone da invasão à sede do Congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira (06/01). Ele não era o único vestido assim
Ricardo Senra, BBC Brasil em Londres
Mas o que pareceu para muitos uma estratégia isolada para chamar atenção de fotógrafos também pode guardar as ideias de um movimento com objetivos contraditórios, radicais e violentos — da ode ao confronto físico e à guerra ao ódio contra mulheres, gays e suas conquistas por direitos iguais na sociedade.
Quem explica é a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, que pesquisa a masculinidade e dedicou parte de suas leituras recentes ao chamado "tribalismo masculino", ou "masculinismo".
"O princípio dos grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução", diz.
Para os adeptos, a vestimenta "tribal" funcionaria como uma espécie de elogio aos primórdios da humanidade, antes de consensos globais em torno de paz, igualdade, direitos humanos e conquistas de mulheres e grupos LGBTQs.
As primeiras referências acadêmicas ao grupo surgiram há décadas, mas se tornaram mais frequentes nos anos 2000, graças a debates em fóruns anônimos e na deep web.
Desde 2016, ano de eleição de Donald Trump, essas ideias vêm ganhando força em meio a uma complexa teia de novos grupos impulsionados por negacionistas da ciência e teorias de conspiração, como a chamada alt-right, ou "direita alternativa", e, mais recentemente, o QAnon (veja mais abaixo).
Caça e guerra
Além do exemplo que ficou famoso, outros manifestantes trumpistas desfilaram visuais "tribalistas".
Um deles foi fotografado vestindo algo semelhante a uma pele de urso sob um retrato de Charles Sumner, importante senador que defendeu a abolição da escravidão no século 19. Na mão esquerda, o militante segurava um cajado. Na direita, um escudo policial.
"Os masculinistas não acham que a mulher tenha um papel na sociedade, eles são mais extremos. Os cristãos nos EUA veem um papel nas mulheres de cuidar da família. Os masculinistas as odeiam."
Como acontece em outros grupos sociais, o termo engloba um universo heterogêneo de adeptos. Em comum a todos os grupos, conta a professora, há "um elogio ao tipo de homem viril que se acredita ter sido perdido nas últimas décadas".
"Eles reivindicam uma virilidade da caça, da guerra. Alguns são mais religiosos, outros não são. Há grupos que se identificam com romanos, com espartanos. Outros, por exemplo, reivindicam uma estética viking, ou se identificam com grupos indígenas norte-americanos, como no caso do sujeito de Washington, que estava com uma roupa de bisão norte-americano", explica Pinheiro-Machado.
"Roupas de couro, corpo tatuado, isso perpassa a todos", diz.
"É um universo que remete à conquista, à invasão, a capturar mulheres para estuprar, botar em cativeiro para reprodução, em um cenário totalmente distópico em que os homens precisam estar entre homens para resgatar sua virilidade perdida."
Perigo
Entre os principais riscos associados ao grupo, a professora destaca como "mais evidente, preocupante e imediato a violência contra as mulheres".
"O feminicídio é inspirado na ideia de posse de mulheres, que é um fenômeno que sempre existiu, mas que é estimulado por um contexto político", diz.
"Outra consequência imediata é a perseguição de pessoas que estudam gênero e sexualidade, como a professora Lola (Aronovich, da Universidade Federal de Fortaleza) e a Debora Diniz (das universidades de Brasilia e Brown, nos EUA)."
Ambas são vítimas de constantes ataques e ameaças online vindas de grupos radicais identificados com masculinistas brasileiros, alguns investigados pela polícia.
Muitos vídeos associados a tribalistas circulam há anos também em português — algo que se tornou mais frequente, segundo a professora, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
Em um dos filmes, um homem vestido de gladiador surge sobre um cavalo dizendo que o Brasil precisa se livrar de "ameaças comunistas e feministas".
Em outro, um paulista com roupas que imitam gregos de Esparta pede que homens lutem por sua virilidade.
Em fóruns abertos, grupos de brasileiros vão além e chegam a defender abertamente estupros e assassinatos de mulheres.
QAnon
Após ter fotos estampadas em jornais no mundo inteiro, o homem que viralizou após a invasão de ao congresso dos EUA em meio aos debates para a certificação da eleição de Joe Biden foi identificado em redes sociais.
Conhecido como "Q Shaman", Jake Angeli, de 32 anos, vive no Arizona e é um conhecido influencer (influenciador, em inglês) da extrema-direita americana.
Vestindo sempre referências a povos tradicionais indígenas dos EUA ou a vikings, ele já foi fotografado militando em protestos a favor de Donald Trump — ou fazendo oposição em atos organizados por grupos como o Black Lives Matter.
Nas redes, ele se tornou um dos porta-vozes do movimento QAnon, uma teoria conspiratória ampla e completamente infundada que diz que o presidente Trump estaria travando uma guerra secreta contra pedófilos e adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa.
Seus apoiadores vaticinam que esta luta levará a um dia de ajuste de contas, em que pessoas proeminentes, como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton, serão presas e executadas.
Adeptos do movimento impulsionam hashtags e coordenam ataques aos que consideram inimigos — políticos, celebridades e jornalistas que eles acreditam, sem qualquer prova, estar encobrindo pedófilos.
Não são apenas mensagens ameaçadoras online: vários apoiadores do movimento foram presos após fazerem ameaças ou tomarem medidas concretas na "vida real".
Em um caso notável em 2018, um homem fortemente armado bloqueou uma ponte sobre a Represa Hoover. Mais tarde, Matthew Wright se declarou culpado de uma acusação de terrorismo.
Anti-gays que fazem sexo com homens
O principal ícone dos tribalistas masculinos ou masculinistas é o americano Jack Donovan, autor de livros e vídeos reproduzidos milhões de vezes online.
Segundo Pinheiro-Machado, Donovan e seus seguidores ilustram o eixo mais extremo dos masculinistas.
"Não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas", diz.
"Há uma devoção e um amor à estética masculina", continua a professora. "Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBTQ."
Em seu livro Androfilia (2006), Donovan faz ataques à cultura gay e a associa a "inimigos da masculinidade". Ao mesmo tempo, ele classifica seu desejo por homens como uma "defesa a um ideal masculino".
As teses do autor são descritas por críticos como preconceituosas e ameaçadoras, especialmente para homens gays que não têm perfis hipermasculinos — ou são descritos como "afeminados".
Segundo Matthew Lyons, um dos autores do livro Key Thinkers of the Radical Right (Pensadores-chave da Direita Radical, em tradução livre), publicado em 2019 pela editora da Universidade de Oxford, o tribalismo masculino de Donovan também parte do princípio de que gênero seria algo "natural e imutável" — em oposição direta à existência de pessoas transexuais.
Bolívar Lamounier: Estados Unidos e Brasil num mesmo espelho
Temos na Presidência figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Donald Trump
A invasão do Congresso americano, na última quarta-feira, por baderneiros a mando de Donald Trump foi a pior agressão às instituições americanas desde o macarthismo (de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin) nos anos 1950.
Muito pior, porque o macarthismo era “apenas” um anticomunismo histérico, ao passo que o intento de Trump foi (quiçá ainda seja) se manter no poder por meio de um golpe de Estado, em claro desrespeito aos procedimentos institucionais do país. Brechas para tanto, em meu modesto entendimento, existem. A combinação norte-americana de voto direto e indireto (este no colégio eleitoral) é uma aberração, um arcaísmo concebido no século 18, que já devia ter sido extirpado há muito tempo. Vendo-se e reconhecido pelo mundo como um modelo político exemplar, os Estados Unidos nunca cogitaram de uma reforma política séria, o que até se pode entender, dada a riqueza e a virtual invulnerabilidade internacional do país durante mais de dois séculos. Fato é, não obstante, que a ascensão à presidência de um indivíduo despreparado e atrabiliário trouxe para a luz do dia os defeitos do sistema.
Em 1967 o cientista político Anthony Downs propôs deixar de lado a visão histórica autocondescendente dos americanos, substituindo-a por um lastro teórico mais sólido. Seu argumento, na verdade, era bem simples. Diferentemente dos países influenciados pela Europa, a política americana nunca foi permeada por enfrentamentos ideológicos. Seu sistema partidário sempre foi balizado por duas grandes organizações: democratas e republicanos. O sistema de governo presidencial completa o quadro. Um candidato que pretenda ser realmente competitivo tem de adotar uma plataforma convergente, moderada, sob pena de se isolar numa ponta minoritária. Tal argumento refletia fielmente o ocorrido em 1964, quando o senador sulista Barry Goldwater pretendeu encarnar uma posição direitista veemente e foi massacrado pelo moderado Lyndon Johnson.
Acontece que Goldwater, com todos os defeitos que se lhe possam atribuir, não ia além do conservadorismo sulista; não se apresentava como portador de uma ideologia sem pés nem cabeça, como a “supremacia branca” de Donald Trump. E era, digamos assim, um político normal, não um bilionário de Nova York. Por essas e outras razões, penso que as feridas abertas por Trump não cicatrizarão tão cedo.
O caso brasileiro é muito mais grave que o americano. No que toca ao curto prazo, não há muito a dizer. Temos na Presidência da República uma figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Trump. O Congresso tem se saído algo melhor que o esperado, mas o custo fiscal é elevado, como sempre foi. E o Judiciário (entenda-se o Supremo Tribunal Federal) parece cada vez mais empenhado em combater o combate à corrupção.
Numa perspectiva mais dilatada, o problema é que o sistema político brasileiro é incapaz de impulsionar o crescimento da economia e o aumento do bem-estar. Claro exemplo disso é o sistema de ensino. O atual governo já está em seu quarto ministro da Educação, e todos eles, como diriam os teatrólogos, passam pela cena sem dizer palavra.
O acoplamento do sistema presidencial a essa grande ameba partidária é, com certeza, a pior invenção política de que temos notícia nos tempos modernos. No sistema presidencial, o Executivo não dispõe de meios legítimos para forçar um Legislativo recalcitrante a aprovar reformas sabidamente necessárias; e o Legislativo, por sua vez, não tem como destituir um chefe de governo que careça da estatura exigida pelo cargo, a não ser pelo procedimento do impeachment, sabidamente complexo, demorado e perigoso. O impeachment não é sequer remotamente comparável, sob esse ponto de vista, ao voto de não confiança, próprio do sistema parlamentarista.
Tivéssemos cabeça, nós nos abalançaríamos a uma reforma política séria, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista de governo. Escusado frisar que o debate sobre sistemas de governo, sistemas eleitorais e demais peças político-institucionais não é monopólio de Brasília. Sendo, como são, reformas estruturantes, com impacto generalizado e duradouro sobre a sociedade, devem contar com toda contribuição relevante que o País possa mobilizar de fora para dentro, muito além da classe política.
Outra precaução importante é não repetirmos o erro de 1993, quando submetemos tais matérias a uma consulta popular plebiscitária. Cabe aqui o ensinamento do liberal gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil (presidencialista, por sinal). Destacando a superioridade da busca da racionalidade no sistema representativo “em sua elaboração completa” e a falta dela no “simples plebiscito”, ele esclarece que o sistema representativo combina a pressão popular com a possibilidade “da discussão metódica, necessária para o completo esclarecimento dos assuntos, para a possível modificação do próprio modo de propor o objeto a resolver, e até para acentuar a responsabilidade das opiniões e dos seus portadores”.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Alon Feuerwerker: Free speech e controle
O Facebook e o Twitter cortaram temporariamente a possibilidade de o presidente Donald Trump postar nas redes sociais dos dois conglomerados. É um dos mais nítidos sinais de já haver, na prática, um novo governo em Washington.
Ao longo do mandato de Trump, as redes conviveram bem com a utilização desses canais pelo presidente, inclusive quando ele propagava informações não comprovadas, ou não comprováveis. As sobre a pandemia são um exemplo. A preocupação com o combate às fake news só apareceu depois que ele perdeu a reeleição.
Seria ingenuidade imaginar que mesmo os maiores conglomerados econômicos não precisem, em algum momento, bater continência para o poder. Mais confortável é quando podem fazer isso alegando a "defesa da democracia e das liberdades". É o best-case scenario de agora.
Do episódio, fica pelo menos uma preocupação. Quem define o que pode ou não ser postado nas redes? Dar esse poder aos governos parece excessivo? E dar esse poder às próprias empresas, é aceitável? E como o direito ao free speech sobreviverá a tudo isso?
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Hélio Schwartsman: O golpe de Trump
Em apenas quatro anos, ele transformou os EUA numa república de bananas
Em apenas quatro anos, Donald Trump transformou os EUA do que muitos descreviam (exageradamente) como farol da democracia numa república de bananas. As cenas de barbárie a que assistimos na quarta-feira deixarão marcas profundas na política e na autoimagem dos americanos.
A tentativa de golpe incitada pelo ainda presidente Trump também se destaca pela incompetência. O exército de Brancaleone que ele mobilizou para invadir o Capitólio nunca teve condições objetivas de tomar o poder e nem mesmo de impedir a certificação de Joe Biden como próximo mandatário.
Se Trump planejava apenas galvanizar sua base de apoiadores e posicionar-se para uma eventual volta em 2024, então ele errou escandalosamente na dose do discurso sedicioso. Ao cruzar a linha vermelha inscrita na cabeça da maioria dos americanos, o magnata virou contra si um número não desprezível de apoiadores e lideranças do Partido Republicano. Já há quem fale em impeachment ou em acionar a 25ª emenda para retirá-lo do poder. Existe a chance de que seja processado ao término do mandato e acabe preso.
Incompetência, porém, não é a única explicação plausível para o destrambelhamento de Trump. Eu não descartaria a hipótese de ele viver um episódio psicótico que o leva a acreditar que realmente venceu a eleição e está sendo roubado. Em qualquer caso, não tem condições de governar. Como uma destituição-relâmpago não é algo trivial, talvez tenhamos de nos conformar em torcer para que nada de mais grave aconteça nas próximas duas semanas.
O assalto ao Capitólio traz, porém, lições que podem ser úteis. Ao revelar que Washington não é tão diferente das capitais de países do Terceiro Mundo, ele tende a moderar um pouco o excepcionalismo americano. Há mensagens válidas até para nós no Brasil: se o sistema não extirpa "ab origene" as tendências golpistas de líderes populistas, o pior pode acontecer.
El País: Congresso dos EUA confirma vitória de Biden após revolta instigada por Trump
Ao final de um dia caótico, que deixou quatro mortos, presidente republicano se compromete com uma transição “ordenada”
Amanda Mars, El País
As urnas e as instituições deram o tiro de misericórdia na era Trump, na madrugada desta quinta-feira, após uma jornada lamentável para a história dos Estados Unidos. O Congresso confirmou a vitória do democrata Joe Biden horas depois de ser invadido por uma turba de seguidores do presidente republicano, agitados por suas acusações infundadas de fraude eleitoral. Os graves distúrbios, que deixaram quatro mortos, obrigaram à suspensão da sessão e à mobilização da Guarda Nacional, mas os parlamentares voltaram a se reunir ainda na noite de quarta-feira, numa sólida exibição de firmeza, e cumpriram a Constituição. Às 3h40 horas (5h40 em Brasília), o vice-presidente Mike Pence ―que pela Constituição é também o presidente do Senado― declarou a vitória do candidato democrata, após dias de pressões do seu chefe, que lhe pedia para se rebelar. Imediatamente depois, Trump emitiu um comunicado em que continuava protestando pelo resultado mas, pela primeira vez, se comprometia a uma transição de poderes “ordenada” em 20 de janeiro.
Nesse dia Biden tomará posse e iniciará um mandato que terá ampla margem de manobra, pois os democratas controlarão a Casa Branca, a Câmara de Representantes (deputados) e também o Senado, após a eleição de dois democratas ―Raphael Warnock e Jon Ossoff― no Estado da Geórgia. Começará então o duro trabalho de curar feridas, estender pontes e reparar reputações. Líderes de todo o mundo condenaram o ocorrido nos EUA (uma das poucas exceções foi o brasileiro Jair Bolsonaro), país visto como referência de democracia e solidez institucional, e que há 200 anos não vivia algo assim.
“Vamos terminar exatamente o que começamos e certificaremos o vencedor das eleições presidenciais de 2020. O comportamento criminal nunca dominará ao Congresso dos Estados Unidos”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell. Ele qualificou a revolta como “insurreição fracassada” e proclamou com orgulho: “Os Estados Unidos e este Congresso já confrontaram ameaças muito maiores que a turba perturbada de hoje. Não nos dissuadiram antes e não nos dissuadirão agora. Tentaram romper nossa democracia e fracassaram”. O vice-presidente Mike Pence havia reaberto a sessão, pouco antes, dizendo que “vocês não ganharam, a violência nunca ganha, a liberdade ganha.” Os discursos tinham algo de terapia de grupo.
Após quatro anos acolhendo a retórica incendiária de Donald Trump, os republicanos se depararam neste nublado dia de janeiro de 2021 com um monstro de aspecto muito feio, uma multidão que quebrava vidraças do seu grande templo democrático, escalava suas paredes, irrompia nos plenários e se sentava na poltrona da presidência do Senado. A democracia se impôs, mas o sistema ficou abalado.
O pavio havia sido aceso pela manhã por Trump num comício em frente à Casa Branca, justamente por ocasião da sessão parlamentar que certificaria a vitória democrata nas eleições presidenciais. “Depois disto, vamos caminhar até o Capitólio e vamos incentivar nossos valentes senadores e congressistas”, disse a uma multidão formada por milhares de pessoas vindas de todo os EUA. “A alguns não vamos incentivar muito, porque vocês nunca irão recuperar o país de vocês com fraqueza, têm que mostrar força”, acrescentou. Ao final, os trumpistas partiram para o Capitólio e, depois de romper o cordão policial, desencadeou-se a violência.
Os legisladores correram para se refugiar, e Mike Pence foi retirado, enquanto os manifestantes zanzavam pelo interior do edifício, alguns com bandeiras confederadas e outros fantasiados, deixando uma nota tragicômica na jornada. Um deles se sentou na poltrona do presidente do Senado; outro, no gabinete da presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, a quem, segundo a Associated Press, deixou uma mensagem que dizia: “Não recuaremos”. Quatro pessoas morreram, segundo a polícia: uma mulher atingida por um tiro, e outras três por emergências médicas. A cifra de detidos chegava a 52, o que parecia muito pouco para o espetáculo vivido, e a polícia encontrou duas bombas caseiras e uma geladeira com coquetéis molotov nas imediações. O escasso preparativo do dispositivo de segurança diante de uma manifestação que já se previa monumental e a lentidão da resposta fizeram as perguntas se multiplicarem, sobretudo depois da ostensiva presença das forças da ordem durante os protestos contra o racismo em meados deste ano.
“O que aconteceu aqui é uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”, denunciou o senador republicano Mitt Romney, de Utah. “Assim é como se discutem as eleições em uma república bananeira, não em nossa república democrática”, afirmou em nota o ex-presidente republicano George W. Bush. Mas é nessa rica república onde esta tempestade foi se formando dia a dia desde a derrota eleitoral de Trump em 3 de novembro, com a conivência de uma parte dos políticos conservadores.
Um grupo de senadores e deputados republicanos planejava torpedear a sessão de confirmação de Joe Biden com o argumento das supostas irregularidades nas urnas, embora inúmeros tribunais tenham concluído que não havia base para essas suspeitas, e de exaustivas recontagens não terem levado a resultados diferentes. O Congresso deveria contar os votos certificados pelos Estados em dezembro passado, numa sessão conjunta da Câmara de Deputados e do Senado, um último trâmite exigido pela Constituição antes da posse do novo presidente, em duas semanas. Os legisladores insubmissos tinham preparado uma bateria de objeções aos escrutínios dos Estados que foram decisivos para a derrota de Trump, embora elas não tivessem perspectiva de prosperar, já que seria necessário o aval da Câmara de Representantes, de maioria democrata, e do Senado, onde apenas uma dúzia de republicanos apoiava a manobra. O objetivo, portanto, era fazer barulho, mas o estrondo afinal veio do lado de fora.
O cômputo das cédulas era feito em voz alta, território por território, por ordem alfabética, e o primeiro protesto chegou cedo, na vez do Arizona, um Estado que, ao se inclinar por Biden em 3 de novembro, escolheu um presidente democrata pela primeira vez desde 1996. Quando o debate sobre essa objeção começou, a confusão se instalou às portas do Capitólio e a sessão teve que ser suspensa. Mike Pence foi retirado, os legisladores se refugiaram sob suas mesas, e foram observadas cenas de grande violência no Capitólio. Depois do ocorrido, pelo menos quatro dos políticos que pretendiam lançar as objeções mudaram de opinião, como a senadora georgiana Kelly Loeffer – que acaba de perder a reeleição –, alegando problemas de “consciência”. A objeção foi derrubada e o cômputo em voz alta continuou, com outra longa interrupção ao chegar à Pensilvânia.
De Trump não se ouvia nada a essas horas. A rede social Twitter tinha decidido bloquear sua conta durante 12 horas, e o Facebook, durante 24, depois de apagar as mensagens em que desculpava a violência de seus seguidores e insistia nas teorias conspiratórias da fraude eleitoral. “Estas são as coisas e acontecimentos que ocorrem quando se tira uma vitória sagrada e esmagadora de grandes patriotas, que foram tratados de forma má e injusta durante muito tempo. Vão para casa em paz e amor. Recordem este dia para sempre”, tinha publicado em sua conta. Em uma declaração em vídeo, chegou a dizer aos participantes dos distúrbios: “Vão para casa, amamos vocês, vocês são muito especiais, mas precisam ir para casa”. Por causa dos incidentes, quatro funcionários graduados da Casa Branca se demitiram, segundo a Bloomberg, entre eles o subassessor de Segurança Nacional, Matt Pottinger, e Stephanie Grisham, chefa de gabinete da primeira-dama.
Ao todo, o drama se prolongou por quase 15 horas. O ataque da quarta-feira não foi o primeiro sofrido pelo Capitólio, pois em 1954 um grupo de nacionalistas porto-riquenhos disparou na Câmara de Representantes e feriu vários deputados, e em 1998 um homem matou dois policiais. Mas a última vez que o prédio havia sido sitiado por uma turba foi durante o ataque britânico liderado pelo general Robert Ross, em 1814, depois da batalha de Bladensburg.
Apesar do tumulto, intuía-se que a invasão não configurava um golpe de Estado, já que a Bolsa de Nova York subiu 1,4%, mais atenta aos estímulos econômicos prometidos pelo novo Senado do que aos tumultos que os investidores viam pela televisão. Mas morreu gente, passou-se medo, e Washington debruçou-se sobre o abismo. E agora, até 20 de janeiro, restam duas semanas com um Trump na Casa Branca que ninguém no seu círculo parece capaz de frear.
Pedro Doria: O simbolismo múltiplo da eleição do primeiro senador negro na Geórgia
É simbólico que, no tempo do Vidas Negras Importam, o estado da Geórgia tenha elegido seu primeiro senador negro na história. Foi um resultado apertadíssimo: com 98% das urnas apuradas, o reverendo Raphael Warnock, do Partido Democrata, vencia a senadora republicana Kelly Loeffler por 50,6% a 49,4%.
Mas a simbologia está por toda parte.
A Geórgia foi um dos mais seguros estados da Confederação que rompeu com os EUA para impedir a abolição, disparando a Guerra Civil. E a Batalha de Columbus, que encerrou a guerra, ocorreu no estado.
Warnock venceu no condado de Clayton, onde ficava a fictícia fazenda Tara, do romance "...E o Vento Levou" — um dos principais ícones daqueles que celebram a memória escravagista. Venceu, aliás, também no condado de Muscogee, onde a Guerra Civil terminou.
Ele é o pastor da Igreja Batista Ebenezer, de Atlanta — o seu é o mesmo púlpito no qual pregava Martin Luther King quando disparou, ainda nos anos 1950, o movimento dos Direitos Civis que marcou a década de 60.
Há vinte anos a Geórgia não elegia um senador democrata — elegeu um, e negro, no momento em que o presidente que deixa a Casa Branca passou quatro anos incitando movimentos supremacistas brancos.
Além disto, Warnock chegará a um Senado presidido, também pela primeira vez, por uma pessoa que não é branca. Este cargo cabe ao vice-presidente da República. À vice-presidente Kamala Harris.
A corrida eleitoral não terminou. O também democrata Jon Ossoff está por alguns milhares de votos à frente do senador republicano David Perdue e, se sua vitória for confirmada, Joe Biden presidirá nos dois primeiros anos de seu mandato com maioria no Congresso. Mas um símbolo importante foi posto.
Demétrio Magnoli: Que vontade de nascer americano
Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da ‘guerra cultural’ que consome os EUA
‘Disseram que eu voltei americanizada, que não suporto mais o breque do pandeiro e fico arrepiada ouvindo uma cuíca’. A Carmen Miranda “americanizada” de 1940, baiana caricatural da Broadway, não é nada perto do Brasil de 2020. Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da “guerra cultural” que consome os EUA.
O culto bolsonarista é uma religião de contrabando. Nos EUA, a ala reacionária do Partido Republicano definiu-se pela tríade “God, guns, gays”. Por aqui, uma extrema-direita sem tradição macaqueia a missa americana, organizando-se ao redor de bispos de negócios, difundindo a homofobia e erguendo a bandeira do “armamento do povo”. No rastro do plágio, o Partido Militar — isto é, os generais do Planalto, rendidos a um capitão arruaceiro — rasga as cartilhas antigas que ensinavam as lições da ordem, do planejamento, da hierarquia e da autoridade.
A direita voltou americanizada: não suporta mais a geometria do progresso de Benjamin Constant ou o sonho integrador de Cândido Rondon. Seus arautos marcham à sombra das bandeiras entrelaçadas dos EUA e de Israel, recitam os versos do America First e, hipnotizados por um guru místico, anunciam a batalha final contra os demônios gêmeos do “globalismo” e do “comunismo”. Eles inscreveram na pedra o ideal de um Brasil isolado, o “pária orgulhoso” de Ernesto Araújo, um missionário da Internacional Cristã, essa relíquia achada entre os destroços da Santa Aliança.
“Drill, baby, drill!” Sob a égide do negacionismo climático, a direita brasileira traduz o lema dos fanáticos perfuradores de poços americanos tocando fogo nas florestas da Amazônia e no Pantanal. O bolsonarismo fala uma língua estranha que pensa ser inglês.
“Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco” (William Blake). A esquerda engajou-se no contrabando antes ainda da direita. Das universidades americanas, em contêineres lacrados, trouxe as políticas identitárias, a teoria racial crítica, a crença fundamental de que nosso gênero e a cor de nossa pele determinam implacavelmente nossas existências, ideias, conceitos e preconceitos.
Queima o que adoraste, adora o que queimaste. A esquerda reinventada, falsa baiana, renunciou às oposições tradicionais e instaurou novos contrapontos, que são essenciais e, portanto, imutáveis. No lugar de povo/elite ou proletariado/burguesia, entronizou as dicotomias mulher versus homem, homo versus hetero, preto versus branco. Daí, desistiu do horizonte da igualdade, substituindo-o pela reiteração perene da diferença. Escola pública de qualidade? Não: cotas raciais. Reforma das polícias? Não: reservas de gênero e raça no Congresso.
A esquerda brasileira já foi anarquista, modernista, cosmopolita, comunista, tropicalista e sindicalista — mas, em cada uma de suas encarnações, conservou-se fiel à convicção de que existe uma nação única, cozida no forno do passado. Não mais. #MeToo, #BlackLivesMatter: nossa esquerda vive a história dos outros e já nem sabe mais falar português.
É um duplo divórcio da realidade brasileira. A extrema-direita enxerga, em meio a brumas, uma nação sem leis ou instituições, habitada por colonos armados e pregadores puritanos agarrados a cruzes: os EUA imaginários do faroeste. A esquerda, por sua vez, confunde seu país com um outro: os EUA das Leis Jim Crow, da segregação legalizada, do censo que classifica as pessoas em categorias raciais estanques.
Nas franjas, a imitação rompe os últimos diques. Surge, pela primeira vez, um movimento antivacinal no Brasil. Mais realistas que o rei — e em contraste com o próprio Trump, herói maior —, seus militantes copiam o individualismo anárquico dos libertários da extrema-direita americana. Simetricamente, pela esquerda, o “colorismo” ultrarracialista exige a troca de “negros” por “pretos”, e os mensageiros radicais das políticas identitárias adicionam letrinhas misteriosas à sigla LGBT para instituir “lugares de fala” cada vez mais exclusivistas.
Viva Carmen Miranda. Feliz 2021.