Estados Unidos

Dorrit Harazim: Cidadão radioativo

A vida pós-presidencial de Donald Trump não será menos desviante das normas e da tradição política do que seus anos no poder. Com apenas 13 meses de intervalo, encerrou-se ontem o segundo processo de impeachment que o alcança na aposentadoria em Mar-a-Lago. Desta vez, a acusação foi por “incitamento à insurreição” de sua horda de militantes armados, que desembocou na selvagem invasão do Capitólio de 6 de janeiro. Atiçado pelos longos meses de retórica incendiária do comandante-em-chefe, o bando tentara impedir a ratificação burocrática, pelo Legislativo, da vitória eleitoral de Joe Biden. Naquele surto de terrorismo messiânico a peito aberto, com torcida na Casa Branca, viu-se a face do horror possível.

Os democratas que impulsionaram esse impeachment nº 2 sabem fazer contas. Sabiam, portanto, da dificuldade de obter junto à geleia desfibrilada de senadores republicanos os votos necessários para a condenação de Trump. Talvez por isso, ao longo de 14 horas, apresentaram seus argumentos de acusação visando a atingir também duas audiências cruciais, ambas fora do plenário: a opinião pública mundial e os anais da história. É essa minuciosa reconstituição dos fatos que passará a constar como registro oficial, indelével, da primeira tentativa de sedição de um presidente dos EUA contra as leis democráticas do país.

Absolvido de impeachment pela segunda vez, o cidadão Trump ainda é capaz de causar grandes estragos à nação, avalia seu sucessor. Biden já sinalizou que quebrará uma norma de cortesia e confiança republicana em vigor desde o século passado: não franqueará ao antecessor aposentado o privilégio de receber o boletim diário ultrassecreto reservado ao chefe da nação. O famoso PDB (sigla para President’s Daily Briefing) é a compilação de informações e análises sobre segurança nacional preparada a cada 24 horas para o presidente. Entre as centenas de relatórios diários produzidos pelas 19 agências de inteligência dos EUA, apenas o PDB é elaborado para um único cliente — o comandante-em-chefe. E não chega a 10 o número de altos funcionários com acesso a seu conteúdo.

Talvez o mais célebre PDB de todos os tempos, tornado público em 2004, tinha por título “Bin Laden determinado a atacar nos Estados Unidos”. Fora dirigido ao republicano George W. Bush, 43º ocupante do cargo, com data de 6 de agosto de 2001. Deveria ter recebido a atenção que merecia. Pouco mais de um mês depois, os ataques de 11 de setembro derrubariam as Torres Gêmeas e colocariam o país de joelhos.

Além do PDB convencional, um analista em carne e osso também aponta ou esclarece algum outro elemento-chave do boletim, na suposição de que o informe já tenha sido lido. Suposição frustrada no caso de Trump. Ao longo de seus quatro anos no poder, ele nunca demonstrou interesse pela papelada. Simplesmente não tinha paciência para ler, além de não distinguir o que vinha assinalado com um “S” (de secreto). Colocava-se acima das picuinhas de segurança nacional para poder impressionar seus pares mundiais, arrostando segredos.

Suas transgressões foram inúmeras. Certa vez, no próprio Salão Oval, compartilhou com o chanceler russo uma peça de inteligência ultrassecreta sobre o Estado Islâmico, produzida por Israel; doutra vez, copiou com celular não criptografado a raríssima imagem obtida por satélite de uma base de lançamento de foguetes do Irã. Sem contar as célebres reuniões com a raposa russa Vladimir Putin, sem a presença de qualquer assessor. Numa delas, Trump chegou a confiscar as anotações dos intérpretes, fazendo com que os EUA não tenham qualquer registro do que ali foi falado.

Biden avaliou tudo isso, além do que chamou de “comportamento errático” do antecessor, para não estender ao cidadão Trump acesso a esses briefings, tradicionalmente disponibilizados a todo ex-ocupante do cargo. Atualmente, tanto Jimmy Carter como Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama têm passe livre aos PDBs. Isso porque a utilidade da cortesia e da confiança interessa às duas partes. Não é incomum a Casa Branca recorrer a presidentes aposentados para missões especiais no exterior, conferindo-lhes uma representatividade oficiosa, sem precisar ser oficial. E, quando a viagem é de caráter privado, todo ex tem interesse em saber se marcou encontro com alguém que anda sabotando a política dos EUA. Também lhe interessa estar atualizado com os bastidores de negociações em curso, para não dizer besteira.

À luz do currículo que deixou na Casa Branca, o cidadão Trump não preenche nenhum requisito dessa confiabilidade. “Todo ex-presidente é, por definição, um alvo e representa um risco. Mas o ex-presidente Donald Trump é particularmente vulnerável a más intenções por parte de maus atores”, alerta Susan M. Gordon, que, na qualidade de vice-diretora de Inteligência Nacional entre 2017 e 2019, participou de incontáveis briefings com o chefe.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente é visto como risco potencial à segurança do país. Sua teia mundial de negócios e dívidas o tornam tão vulnerável a chantagem quanto um espião com esqueletos brabos no armário. Sem falar no risco de ele fazer uso indevido por conta própria, com material tão valioso em mãos.

Melhor não arriscar. O cidadão Trump continua radioativo em seu próprio país. Sua militância radical também.


Raul Jungmann: Biden e a Amazônia

Um dos primeiros atos do Presidente Joe Biden significou uma reviravolta profunda no posicionamento dos Estados Unidos frente à crise climática e, por tabela, na relação com o Brasil e a Amazônia. Me refiro a “Executive Order in Climate Change Policy”, que contém três inovações maiores, dentre outras.

Em primeiro lugar, a alocação do tema “crise climática” à Defesa e Segurança Nacional dos EUA, revelando um senso de urgência e importância estratégica globalmente inequívocas e inéditas. Em segundo, a coordenação de todo o governo – ministérios, fundações, universidades e agências, em articulação com o setor privado, para dar respostas conjuntas ao desafio do clima.

Em terceiro lugar, a citação da Amazônia, a necessidade da sua preservação, com destaque e prioridade sobre as demais regiões. Essa diretiva, partindo de uma nação endereçada a outra nação soberana, tem um claro viés colonialista e é inaceitável.

Não desconhecemos que a Amazônia é um dos 14 hotspots mundiais, com reflexos no clima de todo o planeta. E que, em tempos de globalização e interconexão ambientais, temos que reconhecer a necessidade de alinharmos a soberania e integridade nacional aos requerimentos da crise climática.

Mas, daí a aceitar que intenções e projetos alheios, por melhores que sejam, desconsiderem a tutela indeclinável do Brasil sobre o seu território, vai uma distância insuperável.

Idêntica abordagem encontra-se em outros dois textos recentes, endereçados à administração Biden: o “Amazon Protection Plan”, subscrito por ex-negociadores-chefe dos EUA sobre o clima, e as “Recomendations on Brazil to President Biden and the New Administration”, de lavra de uma centena de acadêmicos, brasileiros e americanos.

Sem dúvida, o “plano”, terá mais peso que as “recomendações”, dado os que os assinam, e também pelo fato que o segundo contém bons insights, mas também erros grosseiros.

Em novembro teremos a COP 26 em Glasgow, Escócia e, antes, o Presidente Biden pretende realizar duas cúpulas para debater a crise climática. Uma com chefes de estado de todos os países e outra com as principais economias. Já a União Europeia/UE, irá exigir, para fechar o acordo com o Mercosul, um compromisso nosso com as cláusulas ambientais do acordo.

Por ora, não estão no radar nem a securitização, nem sanções pela questão ambiental na Amazônia, e a disposição dos EUA e da UE é de colaborar conosco. Mas, não tenhamos dúvidas, o cumprimento dos acordos e resultados concretos serão cobrados.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Dorrit Harazim: Pente finíssimo

Esta foi a semana inaugural da vice-presidente pinçada por Joe Biden para estar a seu lado — ou no seu lugar — no comando do país até 2025. Foi de Kamala Harris o voto de minerva no Senado que permitiu a tramitação do pacote emergencial de estratosféricos US$ 1,9 trilhão (R$ 99,5 trilhões) destinado a reparar a devastação nacional causada pela Covid-19. A votação durou 15 horas, terminou às 5h30m da madrugada de anteontem, e sua tramitação recheada de 40 emendas volta agora para a Câmara dos Representantes. Um marco e tanto.

A partir de terça-feira, quando o segundo pedido de impeachment de Donald Trump aportar no mesmo Senado rachado em 50-50, a inquisitiva ex-senadora Harris fará falta nas arguições — se arguição houver. É mais provável que nem sequer haja condenação, pois, para ser aprovada, são necessários dois terços dos votos. Na improvável hipótese de que seja aceita uma votação extra, por maioria simples, sobre Trump ser proibido de exercer qualquer cargo público futuro, Kamala estará a postos em caso de empate na votação. Ao longo da história, o voto de minerva que compõe as atribuições da Vice-Presidência já foi exercido 268 vezes.

A equipe de Biden que garimpou Kamala Harris trabalhou em duplas por três meses durante a campanha. Da primeira seleta de 23 sabatinadas, e da avaliação das montanhas de documentos por elas fornecidos, haviam sobrado 11. Várias chegaram a classificar o questionário de mais de 120 perguntas como “invasivo” e “extenuante”. Ao final de 120 horas de entrevistas, sobraram Kamala e Susan Rice, a assertiva ex-assessora de Segurança Nacional de Barack Obama, também negra. Biden só foi chamado a tomar sua decisão histórica na reta final. E, sendo quem é, telefonou pessoalmente às 11 descartadas para atenuar o desapontamento e agradecer a dedicação.

A cortesia e civilidade do 46º ocupante da Casa Branca são inerentes a sua índole. Mas o rigor na seleção de quem deve ou não se juntar à equipe, Joe Biden aprendeu com Barack Obama, seu chefe e parceiro inseparável por oito anos. O presidente americano de número 44 entrará para a história com uma marca invejável: permaneceu no cargo por dois mandatos sem um só grande escândalo financeiro, ético ou moral por parte de sua equipe. Obama traçara essa linha vermelha por saber que o grande teste de liderança para qualquer presidente começa na escolha dos que ocuparão cargos críticos no governo. O Brasil e Jair Bolsonaro que o digam.

O método Obama foi impiedoso com os postulantes. Tinha como pedra fundamental um questionário de 63 itens que não deixavam nada insepulto. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um presidente submetia a crivo tão invasivo candidatos aos 15 cargos do primeiro escalão e aos 800 postos executivos que dependem de aprovação pelo Senado. No total, o questionário contemplou todos os cerca de 7 mil postos do governo federal sujeitos à indicação do presidente. Vários postulantes de renome acabaram desistindo no meio do caminho. Outros recorreram a advogados próprios para se aconselhar sobre os riscos de omitir algum pecadilho por e-mail, alguma distração financeira, alguma referência acadêmica imprecisa.

E aquela contratação de doméstica sem registro, dez anos antes? Sim, porque o tal questionário esquadrinhava retroativos a uma década. Qualquer presente de mais de US$ 50 recebido de pessoa fora do círculo familiar ou amical precisava ser listado. O propósito do questionário não era montar um governo reservado a virgens de qualquer pecado. Para Obama, tratava-se de conhecer os riscos da contratação. Não era necessariamente um veto, serviria de norte. E funcionou.

À época, o advogado E. Pendleton , sabatineiro de candidatos na era Ronald Reagan, indignou-se: “Não entendo como alguém com um mínimo de autoestima possa se sujeitar a tudo isso... É apavorante, qualquer candidato que preencha o questionário fica em pânico de ter cometido algum engano”. Os sabatineiros da era Obama trabalhavam seguindo o mantra do “se nós achamos algo, alguém mais também vai acabar achando”.

Biden conhece como poucos as armadilhas do poder, em particular as do Legislativo, onde atuou por mais de 30 anos. Estava atento quando Trump, a poucas horas de partir da Casa Branca, deu uma última carteirada braba: aboliu a quarentena de cinco anos que impedia ex-funcionários federais de exercer a profissão de lobista. Uma das primeiras ordens executivas de Biden ao se sentar no Salão Oval foi restabelecer a proibição por pelo menos dois anos. Também vetou a difundida prática conhecida como “paraquedas dourados”, que permitia aos novos nomeados receber mimos de ex-patrões do setor privado.

Fred Dombo é especialista em legislação de lobby e ética de compliance num grande escritório de advocacia de Washington. Sua avaliação da questão é de veterano. Acha louvável a retificação de curso acenada por Biden, mas conclui que, no final das contas, o decisivo acaba sendo sempre o indivíduo — picareta não se torna honesto por implementação de normas. Nem quem é honesto vira picareta diante de oportunidades.

Em tempo: o link para o Questionário Obama é https://cutt.ly/kkxCcUO

Vale dar uma espiada e imaginar sua aplicação no Brasil. 


Elio Gaspari: Amanda Gorman arrastou as fichas ao encantar o mundo na posse de Biden

E Aras da aval a extravagâncias institucionais

A geração de Greta Thunberg (18 anos) e Malala Yousafzai (23 anos) trouxe Amanda Gorman (22 anos), a poeta que encantou o mundo na festa da posse de Joe Biden. A “menina magra, descendente de escravos, criada por uma mãe solteira (que) pode sonhar em se tornar presidente, apenas para se descobrir recitando para ele.”

Criada em Los Angeles, Amanda chegou à cena como figura conhecida num mundo de poetas jovens e ativistas. Escolhida por Jill Biden, a mulher do presidente, ela estava com o poema entalado até a tarde do dia 6, quando Donald Trump soltou sua milícia contra o Capitólio. Foi o que bastou:

“Uma nação não está quebrada, mas apenas inacabada.”

“Embora olhemos para o futuro, a história está de olho em nós.”

Outros poetas já marcaram as posses de presidentes. Aos 86 anos, Robert Frost, não conseguiu ler o poema que fez para John Kennedy e recitou outro, de memória. Maya Angelou iluminou a posse de Barack Obama, e Amanda homenageou-a com um anel onde havia um pássaro preso numa gaiola.

O poema de Amanda Gorman (“A Colina que Escalamos”) foi dissecado na sua beleza por Dwight Garner, crítico do “The New York Times”. É uma exaltação dos Estados Unidos, com pouco a ver com a colina no alto da qual brilhava a cidade de Ronald Reagan. A inspiração da jovem veio do motim miliciano, da história dos Estados Unidos e também da genialidade de Lin-Manuel Miranda, o criador do musical “Hamilton”. Miranda é um descendente de porto-riquenhos e recebeu a centelha lendo a biografia do pai do capitalismo americano. Alexander Hamilton era um imigrante caribenho, educado por judeus expulsos do Recife. O Thomas Jefferson de Miranda é negro.

Amanda Gorman tornou-se uma celebridade vestindo Prada, mas veio de uma nascente que não produz fama. Malala tomou um tiro, Amanda entrou no mundo dos livros porque tinha uma limitação neurológica que lhe afetava a audição e a fala. (É hipersensível ao som e não conseguia pronunciar os “rr” dobrados.) Formou-se em Harvard e foi premiada pela rede de estímulos que a nação americana oferece à cultura. Era famosa antes de se tornar celebridade. Fundou e dirige uma organização destinada a promover a leitura entre os jovens. É militante de quase todas as causas: igualdade racial, de gênero, ambientalismo, uma vida melhor para todos, enfim.

Seu poema celebrou a alma americana:

“Enquanto sofríamos, crescíamos.

Mesmo sofrendo, esperávamos

Mesmo cansados, tentávamos.”

Amanda quer ser eleita presidente dos Estados em 2036. Boa sorte.

O apocalipse de Aras

Quando o procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que o estado de calamidade é “antessala do Estado de Defesa”, pode-se supor que ele ouviu o galo cantar e sabe onde. Bolsonaro já falou em saques e desordens. O general Eduardo Pazuello, com seus conhecimentos científicos, expôs há poucos dias o que ele julga ser a ameaça de uma “quarta onda” da pandemia.

Nas suas palavras:

“Vocês sabem o que é a quarta onda? Talvez não saibam. É o choque no emocional das pessoas. É a depressão, a automutilação, o suicídio, todos causados pela queda da capacidade de manter a sua própria família e de se manter. Essa é a quarta onda de uma pandemia. Se a economia quebrar, nós vamos estar acelerando a quarta onda.”

Há uma epidemia, já morreram mais de 200 mil pessoas, os doutores fazem parte de um governo que receita cloroquina, condena o distanciamento social e amaldiçoou a vacina “do João Doria”. Sem terem feito o que deviam, ameaçam com o Apocalipse. Aras vai além, pois diz que as lambanças do Executivo são problemas do Legislativo.

Aras foi rebatido por seis subprocuradores. Cristalizou as saudades de Raquel Dodge, sua antecessora, e disputa a fama deixada por Rodrigo Janot, ameaçando o legado de Geraldo Brindeiro, o procurador-geral do tucanato, que ganhou o apelido de engavetador-geral.

Brindeiro engavetava problemas, mas nunca desengavetou extravagâncias institucionais.

O Itamaraty improvisa

Os diplomatas estrangeiros costumavam reconhecer o profissionalismo da chancelaria brasileira repetindo que “o Itamaraty não improvisa”. Foi-se o tempo em que se fazia o dever de casa. O ministro Ernesto Araújo e Bolsonaro produziram uma desastrosa carta de felicitações a Joe Biden. Retardatária, longa e professoral, servirá para nada.

Se o doutor Araújo e o pelotão palaciano fizessem o dever de casa, teriam consultado a carta de felicitações do presidente Ernesto Geisel ao americano Jimmy Carter, em 1977. Durante a campanha eleitoral, Carter havia cuspido mais fogo contra o governo brasileiro do que Biden. Um de seus colaboradores, Brady Tyson, havia sido expulso do Brasil.

A carta de Bolsonaro tem 771 palavras, a de Geisel tinha metade disso, era gentil, porém vaga.

Geisel corrigiu a minuta mandada pelo Itamaraty. Nela, felicitaria Carter por assumir “o alto de honroso cargo”. O general cortou o “honroso”. Adiante, mandou colocar um “peço-lhe” onde haviam posto um “rogo”.

O Itamaraty e o Planalto não improvisavam.

Bolsonaro repetiu a lenda segundo a qual os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil. Falso. Foi a Argentina.

Um artigo do diplomata Rodrigo Wiese Randig, publicado nos Cadernos da Fundação Alexandre de Gusmão, já demonstrou que o governo da Argentina reconheceu o Brasil no dia 25 de junho de 1823, e seu representante entregou as credenciais em agosto. Os Estados Unidos só reconheceram a independência um ano depois, e o ministro brasileiro entregou suas credenciais ao presidente James Monroe no dia 26 de maio de 1824.

Sábio

Do advogado Marcelo Cerqueira ao ouvir o discurso de posse de Joe Biden:

 “Eles importaram o Tancredo Neves”.

Mestre da costura, Tancredo construiu a única conciliação da história nacional que partiu da oposição. Em 1984, ele sepultou a ditadura militar num clima de festa.

Cerqueira foi um dos seus escudeiros.

Placas da memória

Cemitérios também guardam a história dos povos. O de Arlington, em Washington, era a fazenda da família do general Robert Lee, que comandou as tropas da secessão sulista. Inicialmente, dava sepultura aos soldados do Norte.

Alguém poderia colocar umas placas em alguns cemitérios do Amazonas. Elas diriam o seguinte:

“Sendo governador do Estado o senhor Wilson Miranda Lima e ministro da Saúde o general Eduardo Pazuello, aqui foram sepultados cidadãos que morreram asfixiados por falta de oxigênio durante a pandemia de 2020/2021”.

Impeachment

Quem conhece a Câmara faz um raciocínio aritmético:

Quem acha que Arthur Lira vem da mesma cepa que Eduardo Cunha pode estar fazendo a escolha certa, se dá de barato que o Planalto cumprirá tudo o que combina com ele.

Se, por hipótese, essa pessoa acha que pode não cumprir o combinado, deve lembrar o que aconteceu a Dilma Rousseff.


Ruy Castro: Carta de Bolsonaro a Biden foi lida às gargalhadas

Os americanos têm nos arquivos cada trumpice de Bolsonaro, por mais ínfima e secreta

Lisboa, no verão de 1975, devia ser a cidade mais excitante do mundo para um jornalista. Era o auge da Revolução dos Cravos, que, no ano anterior, derrubara uma ditadura de 48 anos. O governo do premiê Vasco Gonçalves, na prática comunista, estava sendo pressionado pela extrema esquerda a radicalizar e, com isso, deu-se um festival de tomada de empresas, ocupação de fábricas e nacionalização dos bancos. Dizia-se que Portugal sairia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), liderada pelos EUA, e se juntaria ao Pacto de Varsóvia, dominado pela URSS.

Morando e trabalhando lá, fui ao Pabe, botequim dos correspondentes estrangeiros, encontrar um bem informado repórter americano. "Os russos não têm interesse em Portugal", ele disse. "Imagine um país comunista na Europa, de porta para o Atlântico! Isso só lhes traria problemas com os EUA. O que eles querem é Angola". Referia-se à ainda colônia portuguesa, às vésperas da independência depois de longa guerra contra a metrópole recém-encerrada pelo governo Vasco. "Assim que Angola ficar formalmente livre, os russos irão em busca de seu petróleo e deixarão Portugal falando sozinho", completou.

No dia 11 de novembro, Portugal e os grupos de guerrilha assinaram a independência de Angola, e o MPLA (Movimento pela Libertação de Angola, pró-URSS) tomou o poder. Duas semanas depois, no dia 25, um golpe liquidou a Revolução dos Cravos. O repórter sabia o que dizia. Claro, seu informante era a CIA.

Se os americanos sabem até o que vai acontecer, imagine como não são seus arquivos. De Jair Bolsonaro, por exemplo, eles têm cada trumpismo, por mais ínfimo. De Ernesto Araújo, ministro do Exterior, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, cada ato público ou secreto, legal ou ilegal —e tudo em assuntos de seu interesse.

Em Washington, a carta de Bolsonaro ao presidente Joe Biden foi lida às gargalhadas.


Hélio Schwartsman: Biden e a necessidade de unir os EUA

Afinal, um dos motos do país é 'E pluribus unum' (de muitos, um)

Em seu discurso de posse, Joe Biden enfatizou a necessidade de unir o país. Depois de quatro anos de cizânia sob Donald Trump, que deixou como saldo até uma canhestra tentativa de golpe, era natural que o novo presidente tentasse esse caminho, que não é estranho ao DNA dos Estados Unidos. Um dos motos do país, afinal, é “E pluribus unum” (de muitos, um).

Uma das mais interessantes questões da sociologia é a de saber o que transforma indivíduos heterogêneos num povo. Em tempos mais remotos, quando todos vivíamos em grupamentos de algumas dezenas de pessoas, quase todas aparentadas, era o próprio DNA que dava a liga. Mas, à medida que passamos a habitar comunidades maiores, o problema da unidade foi se impondo.

Uma resposta que ecoa até hoje é a de autores românticos do século 19, como Johann Gottlieb Fichte. Para eles, é o passado, consubstanciado em categorias como sangue, raça e língua, que forja a nação. É uma narrativa perigosamente essencialista, que, em suas piores manifestações, desaguou na mitologia nazista.

Também no século 19, pela pena de autores como Ernest Renan, surgiram respostas mais democráticas. Nessa visão, é a vontade de construir um futuro comum muito mais do que o passado que conduz à unidade. Na imagem de Renan, a nação é um “plebiscito diário”, ao qual todos respondem sim. Não é coincidência que esse tipo de retórica fosse a predominante nos países do Novo Mundo, como os EUA, cujas populações tinham diferentes origens étnicas.

Minha impressão é que os EUA envelheceram. Vários grupos hoje preferem aglutinar-se em torno de versões idealizadas de um passado que nunca existiu a apostar em um futuro comum. Não sei se Biden vai ter força para mudar isso, mas sei que o atual estado de espírito cai como uma luva na definição de povo do sociólogo Karl Deutsch: “Um grupo de pessoas unido por uma visão distorcida do passado e pelo ódio aos vizinhos”.


Bruno Boghossian: Carta de Bolsonaro a Biden só tem valor com outro chanceler ou outro governo

Lista de princípios elencados pelo brasileiro não casa com as diretrizes da diplomacia bolsonarista

Jair Bolsonaro se esforçou para construir a pior relação possível com o novo presidente dos EUA. Apoiou o candidato errado, alimentou falsas suspeitas de fraude eleitoral e ameaçou entrar em guerra. Foi preciso que Joe Biden pegasse as chaves da Casa Branca para que o governo brasileiro caísse de joelhos.

Depois da teimosia diante da vitória do democrata, Bolsonaro enviou uma carta em que deseja ao americano a “mais alta estima”. O presidente foi obrigado a engolir as próprias palavras –ou talvez tenha assinado o documento sem ler.

No texto, Bolsonaro declara que o país demonstrou “seu compromisso com o Acordo de Paris”. Em 2019, era diferente. O brasileiro copiava as promessas de seu ídolo Donald Trump e afirmava que deixaria a iniciativa global contra as mudanças climáticas. “Se fosse bom, o americano não teria saído”, declarou.

O presidente brasileiro também propõe ao democrata “continuar nossa parceria” na proteção ambiental. Bolsonaro não se preocupava com isso enquanto confiava na vitória de Trump. Quando Biden sugeriu impor sanções pela destruição da Amazônia e ofereceu fundos para conter a devastação, o brasileiro respondeu que não aceitava subornos.

Depois da vitória de Biden, em novembro, Bolsonaro ainda o chamava de “um grande candidato à chefia de Estado” e ameaçava reagir no campo bélico aos planos ambientais do americano. “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, disse.

O governo que afinou o tom depois da posse de Biden é o mesmo que relativizou a invasão do Capitólio para impedir a certificação do resultado eleitoral. O chanceler Ernesto Araújo afirmava que o ato era fruto da insatisfação dos americanos.

A carta enviada agora a Biden contém um catálogo humilhante das migalhas concedidas por Trump ao país e uma lista de princípios que não casam com as diretrizes da diplomacia bolsonarista. Para que o documento tenha algum valor, será preciso trocar o chanceler ou o governo –o que ocorrer primeiro.


Merval Pereira: Isolados no mundo

Já tivemos um governo cujo embaixador em Washington, Juracy Magalhães, dizia que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, o governo Lula em 2008 preferia um presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".

A relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre os ex-presidentes Fernando Henrique e Bill Clinton, uma relação também especial nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique Cardoso, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.

Provavelmente Bush sentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontecia com Lula, cujo temperamento  é mais parecido com o dele.  Embora tenha sido Obama que o chamou de “o cara”, fazendo com que sua imagem internacional se fortalecesse, nunca foram próximos e,  em sua autobiografia “Uma terra prometida”, Obama comentou que soube do envolvimento do ex-presidente brasileiro em falcatruas, o que irritou Lula.

O fato é que até mesmo governos militares como o do General Geisel souberam lidar com a política externa de maneira pragmática, reatando relações diplomáticas com a China e reconhecendo a libertação das colônias portuguesas na África, mesmo com comunistas liderando as guerras de libertação.

Com Bolsonaro, voltamos ao tempo em que tudo vindo dos Estados Unidos conservador e retrógrado de Donald Trump estava bom, embora não tenhamos tido nenhuma vantagem por esse relação de subserviência ideológica. A vitória de Biden foi rejeitada pelo governo Bolsonaro até que Trump desistisse de tentar anular o pleito, e nenhum governo brasileiro torceu tanto por um candidato quanto o de Bolsonaro por Trump.

A consequência é que vamos ficar, como se previa, isolados, párias na comunidade internacional, porque estamos na contra mão do mundo ocidental, onde nos inserimos geopoliticamente. Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, vai retomar as políticas que fizeram dos EUA uma liderança mundial:  o acordo do clima de Paris, o nuclear com o Irã, e vai voltar à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O Brasil está agora sobrando. Não consegue ficar bem nem com os governantes com a mesma tendência. Narendra Modi, o Primeiro-Ministro da Índia, é um politico de direita que poderia ser uma ligação com Bolsonaro, mas entramos em conflito com a Índia por causa de interesses americanos ao não apoiar a reivindicação de quebra de patentes na pandemia que favoreceria as empresas indianas, maiores fabricantes de insumos farmacêuticos.

A resposta veio com o retardamento das doses de vacina contra a COVID-19 para o Brasil. É inacreditável que o país não tenha percebido que o BRICS era um organismo importante geopoliticamente. Desprezou-o até o ponto em que o Secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo elogiou o Brasil por ter deixado de lado os BRICS. Nunca houve tanta clareza de que nem sempre os interesses do Brasil são os dos Estados Unidos.

O Brasil nesses dois anos de bolsonarismo sempre cedeu aos EUA, e entrou em conflitos desnecessários, com a China, com a Índia, com a Argentina. Uma política externa tosca, que acha que pode ter uma relação normal com o novo governo democrata, e pode culpar o embaixador chinês pelos desentendimentos, depois de praticamente vetar a tecnologia 5G chinesa.  

Com Biden vai piorar, porque ele é um outro tipo de político, liberal, e a nossa relação com os EUA vai ficar muito difícil se não houver uma mudança, primeiro do chanceler, que está nos envergonhando no mundo. Estamos com uma perspectiva muito ruim no exterior e o caso das vacinas é uma prova inconteste. Bolsonaro é pragmático, mudou na política do Congresso da água pro vinho, se adaptou ao Centrão. Só que para mudar a política externa, teria que evoluir, mas é quase impossível que venha a ter uma visão ampla da política externa, neutra em relação a interesses ideológicos específicos.

Faz uma política externa mais ideológica do que a do PT. Bolsonaro não entende política externa como de Estado.


Elio Gaspari: 2021 começou bem

Há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde?

Ao meio-dia de hoje, Joe Biden deverá assumir a Presidência dos Estados Unidos, e Donald Trump foi-se embora. No Brasil, começou a ser aplicada a vacina contra a Covid-19. Mudou o jogo. Dois centros irradiadores de ansiedade e morte perderam a iniciativa. O capitão Bolsonaro e o general Pazuello podem dizer o que bem entenderem, mas há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde? Trump continuará dizendo que ganhou a eleição, mas Biden estará no Salão Oval.

Bolsonaro e Pazuello continuarão em guerra contra João Doria, mas foi ele quem acelerou a chegada da vacina. No caso do relacionamento com o governo de Joe Biden, o problema será outro. Noves fora todas as pirraças de uma diplomacia que se sente bem colocando o país na condição de pária, haverá uma nova realidade na Casa Branca. (Na Índia, a vacinação maciça imunizará seus párias, antes que as vacinas do general Pazuello cheguem aos marajás de Pindorama.)

No lugar de um delirante vulgar, estará na Casa Branca um mandarim que passou oito anos na vice-presidência e 36 no Senado. Para o atual governo brasileiro, a chegada de Biden irá além das diferenças entre republicanos e democratas, ambientalistas e agrotrogloditas. Trump levou consigo a capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro, pelo venezuelano Nicolás Maduro e pelo filipino Rodrigo Duterte.

O veterano diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil e ex-subsecretário de Estado no início da administração de Trump, já disse que as relações entre os dois países estavam fora do eixo. Numa linguagem que não faz seu estilo, Shannon comentou o negacionismo eleitoral endossado por Bolsonaro: “É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido”.

Tendo perdido o farol trumpista, se o governo brasileiro continuar na sua órbita de realidade paralela, ficará falando sozinho, prisioneiro de suas fantasias. Os americanos poderão controlar a agenda com um parceiro malcriado.

Lidando com a pandemia, Bolsonaro investiu-se de poderes que não tem. Como o mercado brasileiro é grande, ele supôs que os vendedores de vacinas e de seringas fariam fila à sua porta. Acabou pendurado no imunizante “do João Doria” que demonizou, garantindo que “NÃO SERÁ COMPRADA” (maiúsculas dele).

A ideia de que o Brasil está no centro do mundo é pobre. O pelotão palaciano poderia ir à página 113 do livro “Kissinger e o Brasil”, do professor Matias Spektor. Ele conta um encontro do secretário de Estado Henry Kissinger com o chanceler soviético Andrei Gromyko, ocorrido na manhã de 11 de julho de 1975. O Brasil acabara de assinar um Acordo Nuclear com a Alemanha, e Gromyko estava preocupado com a possibilidade de o Brasil vir a fabricar uma bomba atômica.(O embaixador americano em Brasília também desconfiava disso.) O chanceler soviético queria a ajuda americana para bloquear o projeto: “Vocês estão mais perto do Brasil geográfica e politicamente”.

Poderia ter começado uma discussão sobre as características do acordo, mas Kissinger deu uma resposta curta, de três frases, combinou manter Gromyko informado e arrematou:

—Tudo bem. Vamos almoçar?

O Acordo Nuclear foi sumindo, sumindo, e sumiu.


Afonso Benites: Com posse de Biden, Brasil sofrerá pressão conjunta de EUA e Europa por Amazônia

Diplomatas avaliam que nova Casa Branca se dedicará a vincular política ambiental à comercial. Embaixadores em Brasília dizem que, para não perder dinheiro, Planalto terá que ajustar discurso

Pelos próximos dois anos, a boa relação do Brasil com os Estados Unidos dependerá muito mais do Governo Jair Bolsonaro do que o de Joe Biden, que será empossado na presidência americana nesta quarta-feira. Se o presidente brasileiro insistir na sua política ambiental que pouco protege o meio ambiente e na condução ideológica de seu ministério das Relações Exteriores, corre o risco de fazer o país perder dinheiro e ser cada vez mais um pária na arena internacional. A avaliação foi feita por quatro embaixadores europeus e asiáticos que trabalham em Brasília e foram ouvidos para esta reportagem. Todos falaram sob a condição de não terem seus nomes publicados. E todos entendem que uma sinalização de que a política brasileira estaria além da relação Donald Trump-Bolsonaro seria demitindo os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Ernesto Araújo (Itamaraty).

Conforme esses diplomatas, os chanceleres de países europeus, principalmente, darão suporte a qualquer veto ou restrição que Biden fizer ao Brasil por conta política ambiental. E mais. Já pediram que o presidente americano o faça. “A França já sinalizou que quer deixar de ser dependente da soja brasileira. A tendência é que, sem a proteção ambiental, os países encontrem mais argumentos para impor barreiras ao Brasil e, consecutivamente, protegerem os seus próprios produtores”, disse um diplomata europeu. “Quem não cuidar do que resta das florestas no mundo, acabará duramente punido onde mais dói, no bolso”, afirma outro representante de embaixada estrangeira.

A chegada de Biden encontra o Brasil em uma situação já frágil em termos internacionais. Se, sob sombra de Trump, Bolsonaro tinha uma caixa de ressonância poderosa e relativo pouco custo para a estratégia de isolamento internacional, agora o jogo começa a mudar. As últimas semanas foram de reveses para o Planalto na chamada “diplomacia da vacina”. O país, tenta, sem sucesso, acelerar a chegada de compras de doses prontas da vacina Oxford/AstraZeneca da Índia assim como de insumos para a fabricação de imunizantes vindos da China.

Uma das possibilidades que tem sido aventada no âmbito internacional seria a de Biden apoiar que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estabeleça uma política de restrição a quem infringir determinadas normas ambientais. É algo parecido com o que ocorreu na década de 1990, quando havia severos vetos aos negócios com países em que eram registrados trabalho infantil ou escravo. É um debate que ocorrerá ainda ao longo de 2021.

“Os EUA querem criar uma nova doutrina mundial que prima pelos predicados da economia verde, da proteção da biodiversidade, mas também como componente vital na regulação das relações comerciais”, ressalta o cientista político e pesquisador de Harvard, Hussein Kalout, que foi secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência sob o Governo Michel Temer. A escolha de John Kerry, ex-secretário de Estado de Barack Obama, para ocupar o cargo de “czar ambiental” de Biden é uma dessas sinalizações de endurecimento da política verde do novo presidente.

Outra indicação de que a política de Biden também enfraquecerá Bolsonaro foi a opção dele por Anthony Blinken para o cargo de secretário de Estado. Ele é um defensor do multilateralismo, ao passo que o presidente brasileiro, assim como Trump era, é um crítico das organizações internacionais e defensor de acordos bilaterais.

De início, contudo, Biden terá preocupações urgentes antes de tratar da política externa com o Brasil. Entre elas, estariam o combate à pandemia de coronavírus, estratégias para recuperar a economia americana e como recompor a política interna que ficou extremamente polarizada principalmente no fim do mandato de Trump. Na visão de Kalout, a gestão do democrata será pragmática na seara internacional, e com o Brasil não será diferente. Pontes não seriam queimadas, mas o Brasil seria colocado em espera, por um tempo.

“O alinhamento entre os Governos brasileiro e americano foi para além do que é um alinhamento automático. Tivemos uma subordinação de interesses. Perdemos a autonomia decisória em matéria de política internacional. O Brasil tornou-se incapaz de tomar decisões desprendidas daquilo que o Trump entendia o que era necessário para o Brasil”, ponderou o ex-secretário de Temer.

Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro fez questão de se aproximar de Trump. Mesmo após a confirmação da eleição de Biden, ele insistiu na infundada tese de que as eleições americanas foram fraudadas. E foi um dos últimos a parabenizar o vencedor do pleito.

Sobre a possibilidade de se demitir Salles e/ou Araújo, Kalout diz que essa medida não surtiria efeito de imediato, a menos que a condução da política dessas pastas mudasse. “Não adianta só trocar nomes. Tem de trocar o direcionamento, tem de trocar a maneira de se conduzir. E isso não depende, exclusivamente, do ministro que ocupar o cargo, mas do presidente”, diz o cientista político.

Um tema que deverá sofrer poucas mudanças é o da tecnologia da internet 5G. Trump vetou a presença da empresa chinesa Huawei dos Estados Unidos e tem pressionado para que países aliados o façam. O presidente Bolsonaro vinha sinalizando que seguiria o caminho traçado pelo republicano, mas ainda não havia uma definição final. O leilão da frequência deve ocorrer até meados deste ano. Agora, mesmo com a assunção de Biden a tendência é que alguma limitação à empresa chinesa persista, ainda que de maneira mais moderada.

“Essa guerra é suprapartidária. Se fosse o Trump ou o Biden seria a mesma coisa. Se não vierem vetos, virão barreiras que vão dificultar uma vitória da Huawei”, disse um dos diplomatas. O que está em jogo, não é apenas a questão financeira, mas a guerra geopolítica que EUA e China travam por essa tecnologia. Avaliação parecida é feita pelo cientista político Kalout. “Não tem como o Brasil banir, ele ainda depende da Huawei. Mas os EUA vão exercer pressão para delimitar essa entrada da Huawei no 5G do Brasil, mas também em toda a Europa”, afirmou.


EL País: Joe Biden abre nova era nos EUA

Democrata chega à presidência mais poderosa do mundo em circunstâncias adversas, destinado a ser um líder decisivo

Amanda Mars, El País

Um colega do Senado, Daniel Patrick Moynihan, disse certa vez a Joe Biden: “Não entender que a vida vai te bater e te derrubar é não entender o que há de irlandês na vida”. Àquela altura, o democrata já sabia disso, e não só pelo que tinha lhe contado seu avô Finnegan. Havia passado a infância esquivando os valentões que zombavam da sua gagueira. Perdera a esposa e a filha de um ano em um acidente de carro aos 29 anos. Veria morrer, décadas depois, outro de seus filhos, vitimado por um câncer atroz. “Mas para mim essa não é a história completa sobre o que é ser irlandês”, diz Biden em Promise Me, Dad, o livro que escreveu após do falecimento de Beau, que estava destinado a seguir sua saga política. “Nós, os irlandeses, somos as únicas pessoas no mundo nostálgicas do futuro. Nunca deixei de ser um sonhador. Nunca deixei de acreditar nas possibilidades.”

Quando era pouco mais que adolescente, a mãe de sua então namorada (Neilia, sua primeira esposa) lhe perguntou sobre sua vocação profissional, e o rapaz lhe respondeu que queria ser presidente dos Estados Unidos. Nesta quarta-feira, Joseph Robinette Biden Jr. (Scranton, Pensilvânia, 1942), nostálgico do futuro, crente nas possibilidades, tomará posse nesse cargo rodeado de cercas e soldados, perante um Capitólio invadido dias atrás por uma turba que queria evitar o seu Governo.

Biden assume a presidência que cobiçou durante toda a sua vida nas circunstâncias mais adversas que jamais projetou, e num momento de sua vida em que imaginava já estar de saída. Após duas pré-candidaturas presidenciais fracassadas e uma terceira, a de 2020, em que chegou a ser dado como morto nas primárias, o destino lhe pôs à frente de um país atravessado por três graves crises: a pior pandemia em um século, a recessão mais aguda desde a Grande Depressão, e uma espécie de ruptura de convivência social.

O desafio é maiúsculo, de calibre rooseveltiano, mas a oportunidade política é também colossal, rooseveltiana, para citar Franklin Delano Roosevelt, que tirou os EUA da crise 1929. Biden será o presidente que proclamará o fim da pandemia, que completará o programa de vacinação e o que poderá celebrar a superação da derrota econômica. O destino escreveu que este político de 78 anos e sem excessivo carisma, moderado em um tempo efervescente, ocupe o que no mundo da fotografia se chama de instante decisivo. Fala-se muito que será presidente de um só mandato. Pouco importa. Escreverá igualmente um episódio capital dos Estados Unidos e, com este, de meio mundo.

O choque sobrevindo há menos de um ano atrapalhará ou dará asas às reformas? A derrota de Donald Trump e a recuperação da Casa Branca para os democratas geraram grandes expectativas, e nos últimos dias se espalham as comparações com a chegada de Franklin Delano Roosevelt ao poder em 1933. Este, logo depois de estrear no Governo, recebeu um visitante ―a imprensa da época não o identificou― que lhe disse em relação ao New Deal: “Senhor presidente, se seu programa der certo, o senhor será o melhor presidente da história dos Estados Unidos. Se fracassar, será o pior”. E Roosevelt replicou: “Se fracassar, serei o último [presidente]”.

A história é citada em The Defining Moment, um livro de Jonathan Alter sobre aqueles primeiros 100 dias no poder, um relato, nas palavras do seu autor, sobre como um homem de gênio especial para a política e a comunicação reviveu o espírito de uma nação golpeada.

Num momento em que o país atravessa momentos sombrios, Biden assume com uma capacidade muito especial de adaptação ao meio (foi conservador quando o mundo o exigia e, por exemplo, mais rápido que Barack Obama em abraçar o casamento gay quando a sociedade girou) e o olfato suficiente para saber que essas suas qualidades distintivas ―a empatia, a moderação, a doce normalidade― se tornariam o bálsamo necessário para este vibrante país.

“Tem semelhanças com Lyndon B. Johnson [vice e sucessor de Kennedy], porque ele também é um legislador experiente que serviu a um presidente mais jovem e agora está sendo chamado a realizar reformas progressistas, mais progressistas do que se espera dele”, comenta por email o escritor e jornalista Evan Osnos, ganhador do Pulitzer e autor de Joe Biden. American Dreamer, nova biografia do próximo presidente. Osnos, que acompanha e cobriu Biden durante anos, aborda a ambição do veterano democrata, uma condição que costuma passar despercebida no vice-presidente da era Obama, eclipsada por esse aspecto de homem cordato.

Será o primeiro presidente desde Ronald Reagan a não ter passado por nenhuma das oito universidades da Ivy League ―esse olimpo educativo formado por Harvard, Columbia e Princeton, entre outras―, uma circunstância que hoje, dado o clima de desconfiança contra as elites, representa algo de virtude política. Em uma reportagem recente do The New York Times sobre a preparação de sua primeira onda de decretos, assessores que trabalham com ele contavam que detesta a linguagem excessivamente técnica ou acadêmica, e que com frequência interrompe a conversa dizendo: “Pegue o telefone, ligue para a sua mãe e diga a ela o que você acaba de me dizer. Se ela entender, podemos continuar conversando”.

Sim, se a mãe entender, não o pai ou o irmão. Biden é uma criatura da Geração Silenciosa, esse grupo de norte-americanos que nasceu depois da Grande Geração, que combateu pela democracia na Segunda Guerra Mundial, mas antes dos boomers e sua revolução cultural. Nascido no seio de uma família de classe trabalhadora, filho de um vendedor de carros Chevrolet, será o primeiro presidente católico desde John Fitzgerald Kennedy. Também, o que chega ao número 1.600 da avenida Pensilvânia com maior bagagem política. Tomou posse no seu primeiro cargo em Washington, de senador por Delaware, em janeiro de 1973, aos 30 anos, tornando-se assim um dos mais jovens integrantes da Câmara Alta na história. Agora, assumirá o cargo de presidente como o mais idoso.

Entre um marco e outro, viu a sociedade mudar e contribuiu para isso no Congresso. Negociou com os políticos segregacionistas, votou a guerra do Iraque, dirigiu ―de um modo que hoje envelheceu mal― a primeira grande audiência por uma acusação de assédio sexual (Anita Hill contra Clarence Thomas, que seria confirmado como juiz da Suprema Corte, em 1991). Agora, promete impulsionar a mais ambiciosa reforma ambiental, social e trabalhista da história.

“Nas decisões importantes que precisam ser tomadas rapidamente, aprendi com os anos que um presidente nunca terá mais de 70% da informação de que necessita. Assim, uma vez que você consultou os especialistas, os dados e as estatísticas, tem que estar disposto a confiar na sua intuição”, disse o novo presidente no passado.

Biden prometeu ao mundo que os Estados Unidos “estão de volta” ao tabuleiro global após quatro anos de guinada isolacionista. Ao seu país prometeu curar as feridas. Chega com muitos planos e um objetivo de fundo, recuperar a unidade norte-americana, ou algo próximo a isso. Pretende buscar acordos com os republicanos no Congresso, tirar partido da sua experiência como legislador, e tratar de evitar que o novo impeachment de Trump, ainda a ser julgado no Senado, condicione sua caminhada.

Sofrerá dificuldades, esse lado irlandês da vida. Mais da metade dos eleitores de Trump ―e foram 74 milhões em 2020― acha que o democrata será um presidente ilegítimo, que venceu as eleições de forma fraudulenta, apesar de nem a Justiça nem as autoridades eleitorais terem encontrado qualquer sinal de tais irregularidades. Passado esses primeiros 100 dias de graça, também receberá fogo amigo, pressões dos flancos mais esquerdistas do Partido Democrata, que receberam com certa desilusão um gabinete formado por veteranos da velha-guarda obamista. Mas também governará uma sociedade que passou quatro anos crispada e quer uma mudança.

Nesta terça-feira, quando deixava sua cidade, Wilmington (Delaware), e seguia rumo a Washington para a posse, lembrou-se de seu filho morto em 2015. “Só lamento uma coisa, que Beau não esteja aqui, porque deveria ser ele a tomar posse como presidente.” A nostalgia do futuro não é incompatível com a do passado.


Ruy Castro: Sugestões no vazio

É inútil sugerir ao homem mais poderoso do mundo que se mate; ele nem leva em consideração

No domingo último (10), este colunista sugeriu ao presidente Donald Trump que, por sua incapacidade de aceitar a derrota nas urnas de seu país —de aceitar ser um perdedor—, fizesse como Getulio Vargas, que, ao também se ver diante do fim, matou-se e passou à história como um mártir. Se Trump fizesse o mesmo, muitos americanos que o detestam começariam a vê-lo com simpatia. Até este momento, no entanto, Trump nem considerou minha sugestão.

Realmente, há um quê de patafísico em um colunista brasileiro, escrevendo em código --a língua portuguesa--, oferecer tal conselho ao homem mais poderoso do mundo. Como era natural, Trump me ignorou, e Jeff Rosen, seu ministro da Justiça, poupou-se do ridículo de vir em cima de mim. Os horrores que Rosen escuta sobre seu chefe por todas as mídias dos EUA são mil vezes piores, e mesmo contra esses ele nada pode fazer, porque a Constituição americana garante a liberdade de opinião.

Supõe-se também que, se um presidente da República, de qualquer país, deixar-se afetar por uma sugestão tão descabida é porque deve ser um idiota, impróprio para governar. Se um sujeito se chega a ele dizendo "Mate-se" e ele salta pela janela, imagine se um de seus ministros lhe propuser botar fogo na mata enquanto ninguém está olhando --ele será capaz de topar.

Mas Trump não é um idiota, nem Rosen. Os dois, aliás, estão muito ocupados --Rosen mandando os trumpistas arruaceiros do Capitólio para a cadeia (que jeito?), e Trump deixando de ser o homem mais poderoso do mundo. Os militares já o abandonaram, assim como a Suprema Corte e, cada vez mais, seus colegas Republicanos. Se bobear, logo só lhe restará a família Bolsonaro.

Ah, sim, sem ilusões estendi aquela ingênua sugestão a Jair Bolsonaro. Mas, pela reação que ela provocou dentro do governo, o homem mais poderoso do Brasil só pode estar considerando a ideia.