Estados Unidos
El País: 100 dias de Biden, uma profunda mudança de rumo nos Estados Unidos
O presidente norte-americano pisou no acelerador em questões relevantes como a vacinação maciça, a volta ao multilateralismo, a modernização do país e o novo rumo nas políticas sociais. Seu grande desafio continua sendo a imigração
ANTONIA LABORDE, YOLANDA MONGE, MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO e LUIS PABLO BEAUREGARD, El País
Apenas 100 dias de Joe Biden na Casa Branca bastaram para comprovar a profunda guinada nos Estados Unidos. O presidente da grande potência quis deixar claro desde o início a diferença abissal em relação ao seu antecessor, Donald Trump. No aspecto econômico; em política externa; nos assuntos sociais e nas políticas migratórias ―embora neste caso tenha tido que recuar de suas ambiciosas promessas. Também, ou talvez acima de tudo, pela forma como encarou a pandemia: os Estados Unidos colocaram a vacinação maciça como a principal meta da sua agenda nos seus 100 dias primeiros como presidente. E cumpriu com sobras.
Uma vacinação maciça
Desde o primeiro dia, tudo precisava estar condicionado a frear a pandemia e suas consequências. Para reativar a economia, em queda livre e com os piores índices desde a Grande Depressão da década de 1930, era preciso a todo custo frear os contágios e mortes. A poucos dias de completar, nesta quinta-feira, uma centena de jornadas no comando de um país que havia fracassado na contenção do vírus e soma atualmente mais de 570.000 mortes, o presidente dos Estados Unidos anunciou que já foram administradas 200 milhões de doses de vacinas contra a covid-19. Neste momento, 27% da população está completamente vacinada, o que se traduz em algo mais de 90 milhões de pessoas (de uma população total próxima de 330 milhões).
Biden superou seus objetivos em relação à vacinação, pois nenhum dos prazos anunciados foi descumprido. Logo que assumiu, o mandatário disse que haveria 100 milhões de pessoas vacinadas em seus primeiros 100 dias na Casa Branca, e esse marco se deu no 58º dia de mandato. “Quando cheguei ao poder, apenas 8% da população estava vacinada”, disse o presidente ao informar na quarta-feira, 21 de abril, que 200 milhões de pessoas já haviam sido inoculadas. Era o 93º dia de sua presidência, e Biden observava que mais de 50% dos moradores adultos dos Estados Unidos tinham recebido pelo menos a primeira dose de alguma das três vacinas disponíveis no país. No começo deste mês, a Casa Branca comunicava que a partir do dia 19 abriria a vacinação a todos os adultos do país, o que, novamente, representava uma antecipação de duas semanas sobre o prazo de 1º de maio anunciado anteriormente por sua Administração. Ainda assim, e, apesar da boa notícia, o mandatário quis apelar à prudência ao declarar que os Estados Unidos continuam “numa carreira de vida ou morte contra o vírus”.
A última medida do mandatário para estimular a população a se vacinar foi um crédito fiscal para cobrir gastos com horas não trabalhadas por causa da vacinação dos funcionários de empresas com até 500 assalariados. “Nenhum trabalhador dos Estados Unidos deveria perder um só dólar do seu salário para ter tempo de se vacinar ou se recuperar da doença”, afirmou Biden. Como o democrata conseguiu essas cifras? Recorrendo, segundo suas palavras, a uma tática de colaboração entre empresas semelhante à que se viveu “na II Guerra Mundial”, comparou Biden. Porém, a ideia de ressuscitar uma lei de períodos bélicos para frear os contágios e mortes por covid-19 não surgiu com Biden. O ex-presidente Donald Trump conseguiu fabricar os primeiros lotes de vacinas com a ajuda da Lei de Defesa da Produção, uma norma que datava da Guerra da Coreia (1950) e que confere ao presidente dos Estados Unidos o poder de obrigar as empresas a aceitarem e priorizarem contratos necessários para preservar a segurança nacional.
A pandemia levou o Governo Trump a invocá-la, tanto para acelerar a produção de máscaras como para poder depois assegurar certos suprimentos para a produção da vacina. A receita do sucesso de Biden foi que o presidente reforçou as ajudas aos Estados, multiplicou os centros de vacinação federais e apostou numa rede de farmácias de proximidade. Essa foi uma das chaves do triunfo: que as vacinas estejam disponíveis em muitos lugares, seja um campo de beisebol ou em grandes descampados onde não é preciso nem descer do carro para receber a injeção. A produção e a distribuição foram decisivas e são as responsáveis, em grande medida, por esses resultados. Algo que o Governo Trump não conseguiu, por ter deixado o plano a cargo de cada Estado. Biden, ao contrário, assumiu as rédeas a partir de Washington para garantir que a vacinação fosse realmente maciça e se centrou na compra de suficientes doses não só para centros de atendimento médico, os primeiros a receberem as vacinas, mas também para que chegassem o quanto antes a toda a população, nos lugares menos esperados e sem parar por causa de feriados. “Se fizermos isto juntos, até 4 de julho é possível que você, sua família e amigos possam se reunir no quintal ou no bairro para organizar um almoço ou um churrasco e comemorar o Dia da Independência.” Esse é o objetivo máximo de Biden.
Ambição para superar a pandemia e modernizar o país
A ambição dos planos de estímulo e reconstrução, sem precedentes desde o New Deal de Franklin Roosevelt, definiu o programa econômico de Joe Biden nos primeiros 100 dias de seu mandato, mas seus objetivos vão além. É o que demonstra sua proposta de reforma fiscal, para exigir uma prestação de contas de multinacionais ―incluídas as grandes tecnológicas―, que durante anos esquivaram o pagamento de impostos federais e para obter financiamento para seus programas. Depois de sua declaração de intenções ―o plano de resgate da pandemia, de 1,9 trilhão de dólares (equivalente ao PIB do Brasil), aprovado pelo Congresso em março―, a Administração democrata se dispõe a modernizar os EUA mediante um colossal plano de infraestruturas, com investimentos de dois trilhões de dólares em oito anos para gerar milhões de empregos. A reforma fiscal será, se aprovada no Congresso, o instrumento para isso. O objetivo maior da sua política é combater pela raiz males como a pobreza infantil e, acima de tudo, uma desigualdade social sistêmica; os dois planos (o resgate e o programa de infraestrutura) incluem numerosas iniciativas a esse respeito. A principal diferença entre ambos está no financiamento: o primeiro fica a cargo do orçamento federal, o que aumentará o endividamento; o segundo depende dos contribuintes.
Mediante a projetada reforma fiscal, que pretende elevar o imposto empresarial de 21% para 28%, o presidente não só aspira a arrecadar 2,5 trilhões de dólares nos próximos 15 anos para financiar seu exaustivo programa de reconstrução; ele quer mudar as regras do jogo. Esse propósito precisará ser visto com o Congresso, e não só os republicanos. “Os [democratas] moderados propõem uma menor elevação do imposto empresarial, para 25%”, aponta Jack Janasiewicz, da administradora de recursos Natixis.
Quando chegou à Casa Branca, ainda não se via a luz ao final do túnel da pandemia. Por isso, como prometeu em campanha, a primeira medida foi o plano de 1,9 trilhão de dólares como injeção econômica direta, a metade em forma de cheques em dinheiro para famílias e negócios afetados pela emergência, e o resto para ampliar a cobertura dos desempregados. O plano incluía uma verba de 400 bilhões (2,19 trilhões de reais) para incentivar a vacinação. A julgar pelos resultados (25% da população está imunizada), o objetivo se cumpriu. Pelo caminho da tramitação parlamentar ficou, entretanto, a promessa eleitoral de aumentar o salário mínimo federal para 15 dólares por hora.
O plano de infraestrutura aspira a reforçar o país frente ao avanço da mudança climática; de fato, a proposta do primeiro orçamento federal da Administração democrata prioriza a luta contra o aquecimento global. “Biden está preparando uma ordem executiva para insistir com as agências federais para que tomem medidas de combate aos riscos financeiros relacionados ao clima, incluindo medidas que poderiam impor uma nova regulação às empresas”, antecipa Janasiewicz. O principal temor é um repique da inflação, que, até agora, graças à intervenção do Federal Reserve (banco central), ficou sob controle. “O déficit subirá para 3,5 trilhões de dólares, uma cifra recorde, e esperamos que o crescimento do PIB possa superar 7% neste ano [6,5%, segundo o Fed]; isto só aconteceu três vezes nos últimos 70 anos. Agora cresceram as probabilidades de um período de inflação acima da meta do banco central”, apontavam recentemente em nota Libby Cantrill e Tiffany Wilding, da firma de investimentos Pimco, ressalvando que “a probabilidade de um processo inflacionário similar ao ocorrido na década de 1970 continua sendo relativamente baixa”.
Reabertura ao mundo, com a China na mira
A reabertura dos EUA ao mundo após quatro anos de isolamento percorreu várias estações nestes 100 primeiros dias do mandato de Joe Biden, com uma clara aposta no multilateralismo. As sanções à Rússia por sua ingerência eleitoral e um ataque cibernético maciço; a retirada definitiva das tropas do Afeganistão e o diálogo para reavivar o pacto nuclear com o Irã, que os EUA abandonaram em 2018, marcaram este período de graça, tanto como o fiasco da primeira reunião bilateral com a China. Além disso, Biden procurou na recente cúpula climática internacional recuperar a liderança para os EUA com um ambicioso plano de redução de emissões. Trata-se de uma guinada importante na política adotada pelo país nos últimos anos e implicará uma profunda transformação econômica desta potência.
Rússia, Afeganistão e Irã monopolizam os holofotes, enquanto a forja de velhas e novas alianças para rebater a pujança chinesa é a parte menos visível do iceberg diplomático. O fato de Yoshihide Suga, primeiro-ministro do Japão, ter protagonizado na semana passada a primeira visita oficial a Biden na Casa Branca indica qual é o objetivo primordial da sua política externa: frear a China e todos os seus desafios, tanto dentro do seu território (a repressão da minoria muçulmana aos uigures em Xinjiang) como no mar do Sul da China ou em seu apoio ao regime nuclear da Coreia do Norte, para não falar de suas ingerências em Hong Kong, Taiwan e Tibete. A primeira viagem oficial dos secretários de Estado e Defesa foi ao Japão, Coreia do Sul ―dois países onde os EUA mantêm tropas― e Índia, outro aliado crucial para domar a voracidade estratégica chinesa.
Apesar de ter devolvido a diplomacia ao cenário internacional, Biden não se privou de dar alguns murros na mesa, como ao anunciar as sanções mais duras contra o Kremlin desde a presidência de Barack Obama, fechando o parênteses de suposta cumplicidade ou negligência por parte de Trump, e a denúncia da implicação do poderoso príncipe herdeiro saudita, Mohamed bin Salman, no assassinato do jornalista crítico Jamal Khashoggi. Este último foi um movimento decepcionante para quem esperava medidas mais duras, inclusive sanções, mas soou como um aviso a um aliado tradicional, vital no equilíbrio regional do Oriente Médio. Apontar o dedo para o herdeiro foi a segunda advertência a Riad depois da retirada do apoio ao regime saudita na guerra do Iêmen, que o presidente democrata qualificou de “catástrofe humanitária e estratégica”.
A sombra da síndrome do Vietnã é alongada, e Biden começou seu mandato pondo limites a guerras sem fim como a do Iêmen, a da Síria ―parte do legado de Barack Obama― e a mais prolongada de todas, a do Afeganistão, quando se aproxima o vigésimo aniversário dos atentados do 11 de Setembro, origem da chamada “guerra ao terrorismo” declarada por George W. Bush. A permanência das tropas norte-americanas no país do Oriente Médio tinha chegado anos atrás a um beco sem saída, que as ações letais do Talibã e a dificuldade de levar adiante o diálogo com Cabul só contribuem para ressaltar. Sair do atoleiro afegão é um alívio para um país que continua recebendo corpos de soldados em sacos plásticos.
Apesar do que prometeu em campanha, Biden não retirará as tropas da Europa, e menos ainda em pleno reaquecimento da tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Biden paralisou a retirada militar da Alemanha anunciada por Trump e vigia qualquer movimento no flanco oriental europeu, que representaria uma ameaça tanto para seus efetivos como para a linha de defesa da OTAN. A nova Guerra Fria com Moscou dominará as relações euro-atlânticas, junto com a declaração de boas intenções à União Europeia, pendente de se concretizar. Em outra mudança na política externa, o democrata reconheceu pela primeira vez neste sábado como “genocídio” a matança de armênios por parte do império turco, uma declaração que eleva a tensão com a Turquia, país que também é sócio da aliança atlântica.
Com exceção do México e do chamado Triângulo Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala), para frear a saída de imigrantes irregulares, Biden não prestou atenção à América Latina.
Reviravolta nas políticas sociais
Antes de completar uma semana na Casa Branca, Joe Biden assinou uma ordem que proíbe a expulsão de qualquer membro do Exército por causa da sua identidade de gênero, levantando o veto imposto pelo ex-presidente Trump às pessoas transgênero. O decreto estabelece também que os departamentos de Defesa e de Segurança Nacional devem revisar os históricos de serviço dos militares que foram demitidos ou que tiveram sua reincorporação vetada por este motivo. O democrata se tornou o primeiro presidente a comemorar o Dia da Visibilidade das Pessoas Transgênero, celebrado desde 2009. O mandatário está pressionando para que o Senado aprove a Lei de Igualdade, que modifica a Lei de Direitos Civis de 1964 para incluir a proteção contra discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, junto com os casos motivados por raça, religião, sexo e origem nacional. Essas proteções se estenderiam a questões de emprego, moradia, educação, solicitação de crédito, entre outras áreas em que o coletivo costuma sofrer discriminações.
Os republicanos se opõem, entre outras razões, por medo de que isso obrigue pessoas religiosas a tomarem decisões que contrariem suas crenças, como a contratação em escolas privadas de pessoas cuja conduta viole seus princípios de fé. Para que o projeto se transforme em lei, deve obter 60 votos no Senado, que está dividido em metades iguais (50/50). Quanto ao direito ao aborto, a Administração de Biden também trabalha para reverter as decisões de seu antecessor. O democrata já revogou a medida que proibia ONGs e prestadores de serviços de saúde no exterior de utilizarem recursos do Governo norte-americano para prestar assessoria sobre aborto. Trump também proibiu que clínicas de planejamento familiar financiadas com recursos federais encaminhem suas pacientes para clínicas de aborto e cortou o orçamento destes centros, que atendem a mulheres de baixa renda. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) elaborou uma proposta para revogar esta última medida, que está em fase de discussão pública.
Em outra frente relevante, a agenda contra o racismo, Biden assinou quatro ordens executivas. Uma delas obriga o Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano a tomar as medidas necessárias para “reparar as políticas federais racialmente discriminatórias que contribuíram para a desigualdade da riqueza durante gerações”. Outro decreto elimina os contratos do Departamento de Justiça com as prisões privadas. Os Estados Unidos são o país com maior população carcerária do mundo, composta desproporcionalmente por negros e latinos. As duas ordens restantes procuram combater a xenofobia contra os norte-americanos de ascendência asiática e aumentar a soberania das tribos nativas americanas.
Embora esteja em fase preliminar, o Governo democrata também quer reformar as normas sobre o assédio sexual em escolas. Biden assinou uma ordem executiva para que o Departamento de Educação revise as regras estabelecidas pelo Governo Trump, redefinindo o assédio sexual como uma gama limitada de ações “severas, generalizadas e objetivamente ofensivas”. O democrata afirmou que o Departamento de Educação deve “considerar suspender, revisar ou rescindir” qualquer política que não proteja os estudantes. Esse órgão prevê ―ainda sem data― convocar uma audiência pública para que estudantes, pais e profissionais da educação deem suas ideias antes que a Administração divulgue sua proposta sobre como colégios e universidades que recebem recursos públicos devem responder às acusações de agressão e assédio sexual.
Biden, além disso, criou o Conselho de Políticas de Gênero da Casa Branca, um organismo que coordenará os esforços do Governo para promover a equidade e igualdade de gênero mediante políticas e programas de combate aos preconceitos e à discriminação, e aumentar a segurança e as oportunidades econômicas. Também proporcionará recomendações legislativas e de política ao mandatário.
Desafio migratório
A imigração é, junto com a crise do coronavírus, um dos principais problemas deste começo de Governo Biden. Os especialistas consultados para esta reportagem concordam que o Governo democrata estabeleceu a direção correta neste tema, mas as mudanças para desmontar o perverso sistema herdado de Donald Trump não chegaram com a velocidade esperada. O modelo migratório da nova era é um assunto pendente e, como muito do legado trumpista, terá sua sorte decidida num Congresso dividido e polarizado. “Esta direção é apenas parte de uma visão que está em construção. A Administração encara opções muito difíceis, e resta ver quais caminhos pode tomar no clima político atual”, afirma Hiroshi Motomura, acadêmico da Escola de Direito de Universidade de Califórnia em Los Angeles (UCLA).
Biden desenhou o perfil de sua reforma imaginada com uma série de ações nas primeiras horas de seu mandato. Prometeu regularizar 11 milhões de imigrantes irregulares, revogou o veto de viagens a alguns países muçulmanos e recriou os programas que garantem proteção a mais de um milhão de pessoas entre os jovens que chegaram aos EUA na infância (os chamados dreamers) e os migrantes provenientes de países afetados pela mudança climática e a pobreza, incluindo cidadãos venezuelanos. Também pôs fim à desumana política de separação de famílias e de expulsão de menores migrantes.
A Câmara de Representantes, de maioria democrata, aprovou o plano de Biden. O Senado o tem em suas mãos, e seu aval é mais complexo. “Necessita 60 votos, e tem 50. Estamos esperando que passe, mas será preciso convencer 10 republicanos, e não será simples”, considera a advogada Alma Rosa Nieto, integrante da Associação de Advogados de Imigração. “Ainda estamos lutando com um partido republicano pró-Trump com muitos legisladores anti-imigrantes”, afirma. O senador Lindsey Graham, muito influente entre os republicanos, disse em março que não apoiará reforma migratória alguma “enquanto a fronteira [com o México] não estiver controlada”. É apenas um exemplo do duro pedágio que aguarda a Administração democrata, à espera também de que a Câmara Alta aprove uma série de nomeações que renovarão a cúpula de Segurança Doméstica e da vigilância de fronteiras com perfis progressistas de ativistas e policiais.
Washington nega que a atual situação configure uma crise. Os agentes da patrulha fronteiriça detiveram em março 172.331 migrantes. É um aumento de mais de 100.000 detenções desde janeiro, e o maior registrado desde março de 2001. Este aumento de entradas causa tensão em várias regiões fronteiriças. Bruno Lozano, prefeito de Del Río (Texas), uma cidade que viveu a chegada da onda, enviou em fevereiro passado um SOS a Biden. “Não temos recursos para acomodar estes migrantes em nossa comunidade”, disse o democrata, conhecido por ser o prefeito mais jovem (e abertamente gay) na história desta localidade de 35.000 habitantes. A mensagem se tornou viral e foi amplamente repercutida pelos setores mais conservadores, interessados em manter a ideia de que a fronteira está fora de controle.
Os analistas põem em perspectiva essas históricas cifras. “É falso dizer que as fronteiras estão abertas”, afirma Aaron Reichlin-Melnick, do Conselho Americano da Imigração. “Nos últimos três meses, quase 70% das pessoas que entraram foram expulsas rapidamente graças a uma norma implementada no ano passado por Trump durante a pandemia e que Biden manteve. Menos famílias estão sendo autorizadas a ficar em 2021 do que em 2019 com a Administração Trump”, acrescenta. Os adultos sozinhos continuam sendo o grupo mais numeroso de migrantes, embora o fenômeno dos menores desacompanhados tenha voltado a crescer até níveis inéditos. Em março foram 18.000, um número que superlotou os albergues do Governo, cuja manutenção custa pelo menos 60 milhões de dólares (328,6 milhões de reais) por semana ao Departamento de Saúde e Serviços Sociais.
Biden também manteve do Governo anterior o teto de 15.000 refugiados anuais autorizados a entrar nos Estados Unidos. A decisão causou alvoroço entre as bases democratas, que consideram rompida uma promessa de campanha de elevar os acolhidos a mais de 60.000. A polêmica forçou o Executivo a recuar. Deve anunciar medidas definitivas em maio, mas muitos concordam que foi uma oportunidade perdida para estabelecer um antes e um depois em relação a Trump, uma era que não acaba de desaparecer por completo.
Patricia Hill Collins: 'Se eu olhasse só o debate nas redes sociais, sairia correndo'
Em 'Interseccionalidade', intelectual americana aponta o diálogo como ferramenta imprescindível para a justiça social
Denise Mota, Folha de S. Paulo
Sair da lógica da destruição do oponente, aprender a ouvir e buscar pontos de encontro possíveis —a reabilitação crítica e atenta do “conversando a gente se entende” (um processo sem dúvida mais lento e menos apetitoso para as redes sociais)— são algumas das ações propostas por Patricia Hill Collins e Sirma Bilge em “Interseccionalidade”, livro que chega ao Brasil, em português.
A partir de suas experiências de vida, ensino e pesquisa —convergentes, mas diferentes— Hill Collins, professora emérita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e Bilge, professora catedrática no departamento de sociologia da Universidade de Montreal, apresentam os frutos intelectuais do exercício-desafio que se impuseram.
“A execução deste livro implicava trabalhar em meio às diferenças. Logo descobrimos que dialogar é um trabalho árduo”, escreve Hill Collins já no prefácio.
As autoras defendem o diálogo como ferramenta imprescindível para a luta por justiça social e fazem dessa escrita conjunta, portanto, um metalivro. Não só trata da necessidade de contemplar a confluência de realidades para a compreensão do mundo contemporâneo, mas também põe em prática o que apresenta na teoria, em um “convite para adentrar as complexidades da interseccionalidade”, como afirmam.
Das redes sociais à gestão Biden, do pensamento feminista negro brasileiro ao surgimento de novas denominações usadas pelas chamadas minorias nos Estados Unidos, Hill Collins —primeira negra a presidir a Associação Americana de Sociologia e uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro em seu país— deu a seguinte entrevista.
'Interseccionalidade' hoje é dos conceitos mais usados para tentar explicar as várias dimensões da experiência humana. Foi banalizado ou sua popularidade é o que lhe dá maior riqueza? Vejo os dois. O crescente uso da interseccionalidade por pessoas envolvidas em projetos de justiça social é positivo. O termo começou a ser usado nos anos 1990, mas suas ideias têm uma história mais longa. É algo poderoso que une múltiplos projetos de justiça social, especialmente –mas não exclusivamente– os de justiça racial, de gênero, econômica, sexual e ambiental.
Cada um desses projetos usa a interseccionalidade para abastecer suas análises e ações. Nosso atual momento de descolonização global e dessegregação ofereceu oportunidades sem precedentes para que esses projetos considerem como estão inter-relacionados. O poder da ideia de interseccionalidade reside no seu potencial de gerar novas questões, conhecimentos e práticas que impulsionam muitas pessoas para a justiça social.
Ironicamente, a crescente visibilidade e a aparente popularidade desse termo fazem com que surjam novas preocupações. Muitos o usam como substituto para outras palavras como diversidade, equidade e justiça social. A tendência a mencionar interseccionalidade na imprensa de massa ou nas redes sociais sem que se saiba muito sobre o tema em si tanto pode banalizar a riqueza das ideias como reduzir o potencial político desse termo.
Às vezes, com uma compreensão escassa, seja da história da interseccionalidade ou de suas ideias e práticas centrais, essa estratégia permite às pessoas usar a palavra como atalho para propagar argumentos pré-concebidos, e a política pode se encher de usos desse tipo. Entre a direita, a interseccionalidade termina varrida no meio de debates acalorados que condenam movimentos sociais. Entre a esquerda, essa concepção-atalho apresenta uma frente unida idealizada, mais imaginária do que real. A interseccionalidade é bem mais complexa do que esses usos que fazem dela.
No livro, a sra. e Sirma Bilge reforçam a ideia de que, mais do que apontar verdades ou certezas, é um convite a ouvir e dialogar. Se pensarmos no debate atual –especialmente o das redes sociais–, recomendar a escuta é quase revolucionário, contracultural. Se eu só olhasse para o que acontece no debate público nas redes sociais, nos meios de comunicação de massa e na cultura popular nos Estados Unidos, sairia correndo.
O espírito de competição que estimula debates de confrontação cria um clima de vencedores e perdedores em que, em sua pior vertente, os vencedores triunfam ao destruir seus rivais. Debates baseados no confronto divertem, e essa é uma das razões para que sejam tão populares, em transmissões esportivas, programas de culinária, torneios de cachorros.
Quando combinadas com o anonimato das redes, as regras de participação nesses debates agravaram a tendência de vencer custe o que custar. Para algumas pessoas, o anonimato é um convite para dizer tudo o que desejam sem que tenham que prestar contas dos efeitos das suas palavras. Debates em que o outro é visto como oponente, baseados no confronto, e conversas não são a mesma coisa.
Muitas pessoas estão tendo conversas importantes nas redes sociais que não podem ter frente a frente, usando esse mesmo anonimato para proteger ideias e identidades sensíveis e ações políticas. Conversas substantivas, o tipo de diálogo que defendemos em “Interseccionalidade”, podem acontecer nos meios de comunicação, mas só se houver responsabilidade pelas ideias e ações das pessoas, e o compromisso de trabalhar sobre as diferenças a partir da escuta e do aprendizado mútuos.
A interseccionalidade é uma metáfora para um lugar de encontro em que projetos diversos podem se ouvir e, por meio do engajamento intelectual e político, fortalecer iniciativas de justiça social. Projetos interseccionais requerem um processo de engajamento dialógico que vai além dos debates de confrontação. O desejo de resolver um problema social muitas vezes une as pessoas, e o engajamento dialógico pode aprofundar a interseccionalidade.
A cobertura da imprensa sobre os ataques a oito pessoas, em março, por parte de um homem em Atlanta, por exemplo, ilustra o engajamento dialógico em ação. No começo, o episódio foi coberto como um crime de ódio racial praticado por um homem branco, um atirador solitário. Nos dias seguintes, a cobertura passou a pôr o foco no aumento dos crimes de ódio contra asiáticos durante a Covid, e depois nas mulheres asiáticas.
Os ataques aconteceram em spas e impulsionaram análises sobre as oportunidades de trabalho limitadas dadas às imigrantes asiáticas nos Estados Unidos e como imagens de controle sexualizadas aplicadas a elas moldaram o trabalho que faziam. Aplicar lentes de raça, gênero, classe e sexualidade a esse ato de violência produziu um retrato mais completo. Mas, assim como ninguém tinha todas as respostas aqui, ninguém tem todas as respostas dentro da própria interseccionalidade.
Nos Estados Unidos, a expressão 'pessoas de cor' vem ganhando um uso mais amplo do que o que tinha nos anos 1980 –está sendo usada não só por negros mas também por pessoas pertencentes às chamadas minorias em geral (latinos, indígenas, asiáticos). Qual a sua opinião sobre isso? Termos criados de baixo para cima, e que muitas pessoas usam para descrever a si mesmas e suas visões de mundo, podem ser úteis na luta política. Muitos desses grupos que optam por se identificar com o termo “pessoas de cor” fazem isso para deixar claro desde o início quais são suas histórias no grupo e a necessidade de um termo assim.
Negros, latinos, indígenas e asiáticos nos Estados Unidos são frequentemente retratados como minorias que competem entre si. Há uma tendência a ignorar as alianças entre os grupos, e o que dizer das realidades dos indivíduos que pertencem a ambos os grupos. A construção dessa solidariedade através do engajamento dialógico leva tempo. No contexto dos Estados Unidos, do “divide e reinarás”, ter um termo como “pessoas de cor” para descrever um novo grupo, por parte de pessoas que estão nele, pode ser útil. Talvez seja o caso também do surgimento, no ano passado, do termo “bipoc” [sigla para negro, indígena e pessoas de cor, em inglês].
Por outro lado, impor o termo “pessoas de cor” de cima para baixo pode implicar significados totalmente diferentes. Para muitos campi nos Estados Unidos, com um número crescente de afro-americanos, latinos, indígenas, asiático-americanos, muçulmanos e grupos minoritários raciais e étnicos similares entre seus alunos, funcionários e corpo docente, o termo “pessoas de cor” oferece uma maneira útil de categorizar essa população heterogênea.
Esforços similares, para consolidar estudos negros, latinos, asiáticos, indígenas e similares sob o título de estudos étnicos, esse empacotamento tem origem na eficiência institucional mais do que nos próprios grupos. Há afinidades entre eles, mas isso não pode ser atribuído por decreto, senão que deve ser cultivado através do esforço conjunto de aprender com as histórias uns dos outros.
Seu conceito de 'imagens de controle' é rico para pensar sobre a hiperssexualização da mulher negra também no contexto brasileiro. Há muitos paralelos entre o Brasil e os Estados Unidos em relação às imagens de controle hiperssexuais das mulheres negras, de como essas imagens sustentam o racismo e os projetos nacionais de cada país. Em “Pensamento Feminista Negro”, examinei como as imagens de controle constituem um elemento central de relações de poder que se cruzam nos Estados Unidos e que têm efeitos a longo prazo nas vidas das mulheres afro.
Mas quero enfatizar as limitações de qualquer análise sobre isso feitas fundamentalmente nos Estados Unidos e aplicadas de forma acrítica ao Brasil. Busquei engajamento dialógico com os trabalhos de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Nubia Regina Moreira, Lúcia Xavier, Djamila Ribeiro e intelectuais negras ativistas semelhantes numerosas demais para citar. O rico trabalho dessas mulheres estabelece alicerces para conversas includentes entre as fronteiras brasileiras e norte-americanas sobre o significado das conexões entre as imagens de controle da sexualidade das mulheres negras, e raça e racismo.
Essa é uma conversa importante e permanente. As mulheres negras nos dois países compartilham histórias de violência de gênero que fabricaram suas imagens de controle hiperssexualizadas. Há uma ligação entre sexualidade e violência que persiste no presente, continua a moldar comportamentos que afetam as mulheres negras, tais como estupro e ataques sexuais, gestações não desejadas, relegação ao trabalho sexual. Assim como as histórias de escravidão, emancipação e movimentos rumo à participação democrática são diferentes nos dois países, também há contornos e usos distintos das imagens sexualizadas das mulheres negras.
Em segundo lugar, ao passo que Brasil e Estados Unidos têm experiências diferentes em relação às ideologias de que “não existe preconceito racial” e de um racismo explícito baseado na cor, essas duas formas de discriminação usaram imagens de controle semelhantes. O racismo de “não ver a cor, apenas as pessoas” é parte da história nacional brasileira da democracia racial. Nos Estados Unidos, pelo contrário, as políticas que levaram a cor em consideração tornaram a negritude hipervisível e isso serviu de desculpa para as mesmas imagens hiperssexualizadas das mulheres negras que persistiram até meados do século 20.
Como a sra. vê a evolução do feminismo e seus desafios na última década? Em "Black Sexual Politics", examino por que é importante ir além de uma agenda política centrada no homem negro e avançar em uma agenda de justiça social para as mulheres negras. Projetos antirracistas que não contemplem mulheres negras estão fadados ao fracasso. Da mesma forma, um feminismo que atenda um pequeno segmento da população também está fadado ao fracasso. O feminismo contemporâneo é multicultural, multiétnico e multinacional.
A palavra “feminismo” é menos o problema do que concepções equivocadas desse termo, usadas para impedir o acesso das mulheres negras a projetos de justiça social. Feminismo é uma palavra de poder –ela não encontraria resistência de forma tão veemente se não fosse percebida assim. O que importa são as ideias que a palavra "feminismo" evoca para quem a reivindica. Qualquer pessoa que acredite em justiça social para mulheres, especialmente igualdade em relação a renda, saúde, família, educação, trabalho, imagens e participação política, deve e pode apoiar o feminismo.
Tenho muitos colegas homens, maravilhosos, amigos e familiares que defendem a igualdade para as mulheres. Por outro lado, muitas mulheres brancas não apoiam o feminismo e usam seu privilégio de classe, racial ou nacional para se opor à igualdade das mulheres. As mulheres negras presas à ideia de que o feminismo é para mulheres brancas devem se perguntar “quem se beneficia se eu acreditar nisso?”.
Cada vez mais, vejo jovens negras colocando alguma versão da agenda feminista negra no centro de suas análises. Para as próximas gerações, a intersecção entre negritude e feminismo não é uma contradição. Mais do que isso, o feminismo negro indica o caminho para novas possibilidades.
Quais são suas esperanças ou precauções em relação à administração Biden-Harris? Estou cautelosamente otimista sobre o futuro próximo e esperançosa sobre as perspectivas de longo prazo para a democracia participativa nos Estados Unidos. Crescer em uma família de classe trabalhadora modelou minha crença de que pessoas comuns são as que impulsionam e geram mudanças sociais profundas.
Estudar as batalhas intergeracionais com que se confrontavam as mulheres negras me ajudou a suportar 2020, um ano sem precedentes. Poderíamos pensar que sobreviver a uma pandemia, navegar as incertezas de uma crise econômica permanente, trabalhar para derrotar candidatos de extrema direita em eleições históricas nos Estados Unidos e apoiar, se não participar, de protestos globais contra a violência aprovada pelo Estado derrubaria as mulheres negras. Mas não, porque elas enfrentaram adversidades antes e muito provavelmente vão continuar a fazer isso no futuro.
É difícil atravessar a tristeza de agora e ver alguma promessa. Mas fico animada de ver os jovens que estão imaginando novos futuros. Eles se expressam contra uso de armas, pobreza, desigualdade social e degradação ambiental, em ações baseadas em ideias de interseccionalidade. Há muito mais dessas pessoas do que o número cada vez menor de guardiões do passado que se aferram a um status quo injusto. Não nos enganemos –este momento é a continuação de uma luta de longa data entre a promessa do “sonho americano” e a desigualdade social consolidada que negou esse sonho a muita gente. Mas tudo o que podemos fazer é continuar a tentar.
INTERSECCIONALIDADE
- Preço R$ 67 (288 págs.)
- Autor Patricia Hill Collins e Sirma Bilge
- Editora Boitempo
- Tradução Rane Souza
RAIO-X
Patricia Hill Collins, 72
Nascida na Filadélfia (EUA) em 1948, filha de uma secretária e de um veterano da 2ª Guerra Mundial, é professora emérita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland. Foi a primeira negra a presidir a Associação Americana de Sociologia
Jamil Chade: Cúpula do Clima revelou que o Brasil encolheu
Bolsonaro descobriu que, sob seu Governo, não foi apenas a floresta que diminuiu. A sociedade encolheu, a expectativa de vida caiu, a economia contraiu, a comida no prato foi reduzida, o emprego desapareceu e as possibilidades de cruzar as fronteiras foram limitadas
Em dezembro de 2005, o mundo se reunia em Hong Kong para uma conferência sobre o comércio. Ali, regras seriam negociadas para permitir a construção de um sistema internacional mais equilibrado e uma base mais favorável para o desenvolvimento das economias em desenvolvimento.
Os olhos do mundo estavam fixados numa aliança improvável de países emergentes, o G-20, que insistia que as placas tectônicas do planeta precisavam começar a se mover.
Nunca contei essa história. Mas descobri que os principais ministros do grupo se reuniriam antes da conferência dar início para costurar uma estratégia. A meta era frear eventuais gestos da Europa e EUA para tentar manter seus indecentes subsídios agrícolas.
Também descobri que a sala reservada para a reunião tinha paredes extremamente finas e pensei que, se ocupasse uma sala ao lado e permanecesse em absoluto silêncio, poderia ouvir o que aquela reunião traria. Funcionou.
Mas o que também me deparei foi com a constatação de que praticamente só um país falava, só um país dava as cartas: o Brasil. A liderança era incontestável.
Não era uma condição exclusiva daquele governo. De fato, a postura de liderança do Brasil em debates internacionais conta com dezenas de episódios, independente da tendência política do Governo ou da situação econômica do país. Nos anos 80, fragilizado, a diplomacia do país marcou posição nas negociações comerciais em Punta del Leste.
No início dos anos 90 e ainda com uma democracia frágil, coube ao Brasil liderar de forma histórica os trabalhos da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena. Coube ao embaixador Gilberto Sabóia coordenar o comitê de redação da Declaração e Programa de Viena, uma primeira chancela internacional ao papel da democracia brasileira no mundo.
O país era protagonista da construção de um novo mundo que permitisse um espaço digno às economias emergentes. Chegou a ser visto como arrogante por parceiros menores e duramente criticado por apertar a mão de ditadores na busca por acordos.
Mas sempre considerado como líder, o Brasil buscava desenhar seu futuro. Nem sempre funcionou e, em certos momentos, a diplomacia nacional tentou exercer um papel que ia além da real dimensão do país no palco internacional. Mas nunca pecou por não se aventurar por esse caminho.
Nesta semana, porém, a Cúpula do Clima organizada para recolocar os EUA no centro do debate internacional, mostrou uma nova realidade: a de um Brasil encolhido, escanteado.
O presidente Jair Bolsonaro foi estrategicamente colocado para falar longe do momento em que os principais líderes davam seu recado. Deixado para o final da fila e com a palavra dada apenas depois que Argentina, Bangladesh, África do Sul ou Ilhas Marshall fizeram seus discursos, Bolsonaro descobriu que não lidera e não influencia parceiros.
Coincidência ou não, Bolsonaro discursou quando Joe Biden já tinha abandonado o evento.
Na cúpula, o brasileiro foi o símbolo de um presidente acuado, pressionado e sem a capacidade de dar as cartas, justamente no momento em que a comunidade internacional desenha o mundo pós-pandemia. Para se defender, mentiu. E o mundo não acreditou.
Ele terá de provar agora seu discurso. E não bastarão ações por parte de sua milícia digital e nem mesmo uma live. A comunidade internacional quer ver resultados concretos e redução real do desmatamento, mês à mês.
Enquanto tentava vender uma imagem de credibilidade para a comunidade internacional, o Planalto descobria que, pela sua gestão da pandemia, certas regiões do Brasil já contam com mais mortes que nascimentos, algo inédito na história do país.
A sociedade encolheu, a expectativa de vida caiu, a economia contraiu, a comida no prato foi reduzida, o emprego desapareceu e as possibilidades de cruzar as fronteiras foram limitadas.
Bolsonaro, na Cúpula do Clima, descobriu que, sob seu Governo, não foi apenas a floresta que diminuiu. O Brasil também encolheu.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Marcus Pestana: O Brasil e as mudanças climáticas
O fato mais importante da semana foi a realização da Cúpula de Líderes sobre o Clima, reunindo quarenta chefes de governos, ato preparatório para a COP-26, a Conferência do Clima da ONU, que terá lugar em Glasgow, na Escócia, em novembro. Marca importante mudança de postura dos EUA, Joe Biden à frente, sobre as questões ambientais e o desenvolvimento sustentável, após o turbulento Governo Trump e sua postura negacionista frente às mudanças climáticas e suas consequências, que culminou com a saída dos EUA do Acordo de Paris firmado em 2015.
Nos últimos trinta anos, a agenda do desenvolvimento sustentável ganhou papel central no planejamento e nas ações de governos, da sociedade e das empresas. A consciência ecológica ganhou corações e mentes a partir do esgotamento de um modelo de crescimento urbano-industrial baseado em energias vindas dos combustíveis fosseis (carvão mineral, petróleo, gás natural, xisto betuminoso) e na intensa poluição do ar, das águas e da terra.
Para o Brasil se abre uma enorme oportunidade, mas há também riscos e ameaças. Tudo dependerá das escolhas que fizermos. Até a pouco, nosso país era protagonista no jogo político e diplomático na arena de discussão sobre o desenvolvimento sustentável. Não foi à toa que a Cúpula Mundial, a RIO-92, se deu em terras brasileiras. Temos uma das matrizes energéticas mais limpas do globo. Temos um dos melhores arcabouços legais na área ambiental. Temos um verdadeiro tesouro ecológico com uma das maiores biodiversidades do mundo e a maior floresta tropical do Planeta.
O atual governo, que chegou a namorar com o negacionismo ambiental de Trump, parece estar processando uma mudança de rota. Apresentou na Cúpula de Líderes a proposta de acabar com o desmatamento ilegal até 2030 e antecipar em dez anos o compromisso de zerar as nossas emissões de gases poluentes. Na carta enviada à Biden, Bolsonaro falou em fortalecer os mecanismos de comando e controle, trabalhar na regularização fundiária, implementar o pagamento por serviços ambientais, trabalhar no zoneamento ecológico-econômico e promover a bioeconomia, transformando nossa fantástica biodiversidade em atividades geradoras de emprego e renda sustentáveis.
As palavras precisam agora encontrar consequências práticas. Não é “passando a boiada” tendo a pandemia como biombo ou nos alinhando com madeireiros e garimpeiros ilegais que chegaremos lá.
A transição para uma nova matriz energética não é nada fácil. Os países ricos dependem em 79% dos combustíveis fósseis. China, EUA, União Europeia, Índia e Rússia são responsáveis por 59% das emissões poluentes, o Brasil por 2,19%. As estratégias globais não podem passar por negar oportunidades aos países pobres e em desenvolvimento e nem pela taxação de importações que gerem barreiras comerciais. A parceria tem que ser pra valer, um jogo de ganha-ganha. E o Brasil pode ser um grande captador de investimentos ambientais se superar a armadilha ideológica do falso dilema entre soberania nacional e cooperação internacional.
Para quem quiser se aprofundar no diagnóstico e na agenda do desenvolvimento sustentável recomendo o artigo do ex-ministro do meio ambiente José Carlos Carvalho e da socióloga Aspásia Camargo, “Meio Ambiente e Sustentabilidade” (disponível em psdb.org.br/wp-content/uploads/2020/12/BRASIL-PÓS-PANDEMIA-FINAL.pdf).
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
El País: 2021 - Ano decisivo na luta climática
Uma pandemia que o relegou a um segundo plano, o retorno dos EUA como ator fundamental e as pressões por uma recuperação verde confluem em um momento histórico para o meio ambiente
Manuel Planelles, El País
Os alarmes não deixaram de soar apesar da pandemia. E António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), está ficando sem palavras duras para advertir para as consequências desta crise climática planetária. Nesta semana falou de um cenário “aterrador” ao referir-se ao último relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Essa agência da ONU publica suas avaliações anuais há 28 anos e a conclusão é cristalina: as evidências e os impactos do aquecimento global estão se acumulando. Por exemplo, 2020 foi um dos três anos mais quentes já registrados, lembrou a OMM. Os outros foram 2016 e 2019.
Se a tendência continuar, 2021 será outro ano mais quente do que o normal. Como lembra Freja Vamborg, cientista do Serviço de Mudança Climática Copernicus, da União Europeia, os últimos seis anos foram os seis mais quentes desde o início dos registros confiáveis. Será quente, mas também deveria ser um ponto de inflexão na luta climática, como pedem as ONGs, a ONU e outras instituições internacionais e governos. “Verdadeiramente”, enfatizou Guterres na segunda-feira, “este é um ano crucial para o futuro da humanidade.” A pandemia fez com que duas importantes cúpulas sobre o meio ambiente fossem adiadas para este ano de 2021: a cúpula do clima que aconteceria em Glasgow (Reino Unido) e a reunião sobre biodiversidade de Kunming (China). Além disso, a pandemia tirou em grande medida a luta contra o aquecimento da agenda internacional. Mas o coronavírus não acabou com o problema. Como lembra a Organização Meteorológica Mundial, “a desaceleração da economia relacionada à pandemia não conseguiu deter os motores da mudança climática nem a aceleração de seus impactos”.https://datawrapper.dwcdn.net/MopwE/3/
Na cúpula do clima de Glasgow, em 2020, os países deveriam ter apresentado planos de redução das emissões de gases de efeito estufa mais rígidos do que os oferecidos até agora no Acordo de Paris. Mas, quando 2020 terminou, apenas 75 dos quase 200 países que assinaram o Acordo de Paris o tinham feito. É por isso que se espera que 2021 seja determinante. Também pela volta à luta contra o aquecimento por parte dos Estados Unidos, cujo presidente organizou uma cúpula do clima que começa hoje, coincidindo com o Dia da Terra, com os 40 principais presidentes e chefes de Estado do mundo para oficializar sua volta. Nessa reunião apresentará suas metas de redução de emissões até 2030, ou seja, para a década que é considerada a mais importante nos esforços que o ser humano deve fazer para reverter o problema que gerou com suas emissões.
Aumento das emissões
Os registros oficiais de temperatura usados pela OMM e por outros organismos científicos remontam a 1850, no início da era industrial, quando começou a queima em larga escala de combustíveis fósseis para alimentar o desenvolvimento econômico. Quando esses combustíveis são queimados, produzem gases de efeito estufa que se acumulam em grande parte na atmosfera e superaquecem o planeta. O principal desses gases é o dióxido de carbono (CO₂) e durante a pandemia essas emissões caíram. Mas, como os especialistas alertaram desde o início, após a queda haverá um aumento porque o declínio aconteceu devido à desaceleração econômica e não a uma mudança estrutural que modificou a forma como o mundo alimenta seus automóveis ou gera sua eletricidade. A Agência Internacional de Energia prevê que as emissões de CO₂ relacionadas à energia crescerão cerca de 5% em 2021, o que seria o segundo maior crescimento registrado até agora. O anterior aconteceu em 2010, depois da grande crise financeira.
Cerca de metade do CO₂ emitido acaba se acumulando na atmosfera —o restante é absorvido pelos oceanos e pela vegetação terrestre. Essa acumulação atmosférica, a maior dos últimos 800.000 anos segundo a OMM, leva ao aumento das temperaturas e da intensidade e quantidade de fenômenos extremos como secas, inundações e fortes tempestades. “Os indicadores mundiais mostram que as temperaturas médias dos últimos cinco anos são as mais altas já registradas: 1,2º grau centígrado acima da média do período 1850-1900”, aponta um relatório que o serviço Copernicus, um programa de monitoramento dos efeitos do aquecimento da UE, apresenta nesta quinta-feira.
Esforços insuficientes
O Acordo de Paris estabeleceu que, para evitar os efeitos mais desastrosos da mudança climática, os países deveriam reduzir suas emissões de tal forma que a partir de 2050 estas teriam de desaparecer. O objetivo geral é que o aumento da temperatura, que já está em 1,2º grau, não ultrapasse os dois graus em relação aos níveis pré-industriais. E, na medida do possível, que não supere 1,5º grau.
O problema é que os planos de redução dos países atuais levarão a um aumento de mais de três graus. É por isso que os Estados devem aumentar suas metas de redução. Alguns já o fizeram, como a União Europeia, que passou de uma diminuição até 2030 de 40% para 55% —algo que será estabelecido numa lei do clima— em relação a 1990, e o Reino Unido, que prometeu reduzir 68% no final desta década. Esses objetivos estariam alinhados com o roteiro traçado pela ONU para cumprir o Acordo de Paris, que determina que os gases de efeito estufa globais sejam reduzidos em 45% em 2030 em relação a 2010. O problema é que a Europa, com ou sem o Reino Unido, tem cada vez menos peso nas emissões mundiais —não chega nem a 10%— embora seja um dos responsáveis históricos pelo aquecimento por ter sido pioneira na revolução industrial.
A volta dos Estados Unidos
O problema neste momento envolve principalmente dois atores: Estados Unidos e China, responsáveis por cerca de 40% das emissões mundiais. A China, o principal emissor global há mais de uma década, resiste há anos a ser equiparada aos países desenvolvidos em relação às obrigações de redução de emissões. Suas metas são muito menos severas do que as da UE: atingir o pico de emissões antes de 2030 e, a partir daí, reduzi-las. Mas, no final do ano passado, comprometeu-se a endurecer um pouco seus planos e prometeu alcançar a neutralidade de carbono (emitir tanto quanto retira da atmosfera) até 2060.
Os Estados Unidos são uma incógnita. Embora seu novo presidente, o democrata Joe Biden, tenha dado sinais claros de querer colocar a luta contra a mudança climática no centro de sua política, a verdade é que os Estados Unidos não têm sido um parceiro confiável nesta batalha internacional se observarmos seu histórico de desistências. Primeiramente, o pais se desvinculou do Protocolo de Kyoto no início do século. E, já com Donald Trump como presidente, ignorou o Acordo de Paris, pacto que foi assinado em 2015 e cujos instrumentos jurídicos tiveram de ser amplamente suavizados para que os EUA o ratificassem. Talvez por isso, quase todas as vezes que a China intervém em um fórum internacional sobre aquecimento insiste que cumpre o que assina e o que se compromete.
Coincidindo com o Dia da Terra, Biden convocou para esta quinta e sexta-feira uma reunião com 40 presidentes e primeiros-ministros de todo o mundo. Ao contrário do que aconteceu nos últimos anos, em que não compareceram dirigentes que não demonstraram compromisso contra a mudança climática, os Estados Unidos decidiram convidar líderes controvertidos como o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.
Nessa cúpula o presidente norte-americano deve apresentar sua meta de redução de emissões para 2030, que rondaria os 50% em relação aos níveis de 2005 —ano em que os EUA atingiram seu pico de emissões—, segundo informação vazada até agora aos grandes veículos de comunicação norte-americanos. Isso significaria dobrar a meta estabelecida por Obama antes de assinar o Acordo de Paris. E envolverá um grande processo de descarbonização (abandono do uso de derivados de petróleo, carvão e gás) da economia norte-americana com atenção especial ao setor elétrico e, principalmente, aos transportes. Jennifer Morgan, diretora executiva do Greenpeace International, esclarece: “Para ser considerado um líder climático, Biden precisa eliminar gradualmente os combustíveis fósseis em seu país e no exterior.” Isso significa acabar com os subsídios ao poderoso setor de combustíveis fósseis. A outra questão em que se espera o retorno dos Estados Unidos é em relação ao financiamento climático: os recursos que os países desenvolvidos aportam para que os menos ricos façam frente aos efeitos do aquecimento. Até a chegada de Trump, os EUA eram o principal doador internacional.
Recuperação ainda pouco verde
A pandemia tirou a mudança climática do foco principal e levou ao adiamento das cúpulas da ONU; no entanto, os planos bilionários de recuperação dos países podem significar uma aceleração da descarbonização da economia mundial, como vários organismos internacionais vêm insistindo há meses.
No momento, o balanço é bastante discreto. A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) monitora as ajudas e estímulos que estão sendo lançados pelos governos dos 43 países membros desse organismo, entre eles EUA, China e União Europeia. A conclusão é que 336 bilhões de dólares (aproximadamente 1,87 trilhão de reais) destes fundos covid-19 têm um claro impacto ambiental positivo. Representam 17% do gasto total na recuperação até agora. O problema é que uma quantia semelhante de recurso foi gasta em atividades que têm um impacto ambiental negativo ou misto, na melhor das hipóteses. Os dois terços restantes do auxílio à recuperação ainda não foram classificados pela OCDE. Do seu desenvolvimento e dos recursos públicos que virão dependerá em grande parte que este 2021 realmente se torne um ano crucial na luta contra a crise climática.
Ana Paula Xongani: "Coded Bias" - O que acontece quando os algoritmos reproduzem o racismo?
Recentemente, alguns criadores de conteúdo na internet colocaram fotos de pessoas brancas em seus perfis e, a partir do resultado de engajamento das postagens, sinalizaram um possível comportamento racista dos algoritmos. Desde então, cresce meu interesse pelo tema. Afinal, além de ser uma mulher negra, sou uma mulher negra que produz conteúdo para a internet.
Não é de hoje que o resultado de qualquer pesquisa nas ferramentas de busca violenta pessoas negras. Mesmo com ações e manifestações de diversas entidades, ainda é recorrente, por exemplo, que você precise adicionar a palavra "negra" para aparecer a imagem de uma família negra quando você busca pela palavra "família". Ora, uma família negra não é uma "família"?
No campo da estética e da moda não é diferente. A busca por referências do que é belo, do que é tendência, certamente nos entregará uma maioria de produções brancas, vindas de países europeus ou dos Estados Unidos. Por que isso acontece? Se a tecnologia é tão "inteligente", por que se comporta desta forma?
Bem, a pergunta que a gente precisa fazer é: quem desenvolve a tecnologia? Quem a programa? Quem desenvolve os algoritmos que respondem quando a gente pergunta algo para as plataformas digitais?
Nos últimos dias, o assunto me impactou novamente, desta vez pelo lançamento do documentário "Coded Bias", da Netflix, e pelo e-mail da minha seguidora Dayana Morais da Cruz, que propôs a pauta desta coluna. Ela é pós-graduanda em Legislativo, Território e Gestão de Cidades e trabalha numa empresa de RH com foco em diversidade e inclusão.
A área em que ela atua é um bom exemplo para ilustrar uma linha de raciocínio. Por exemplo, é conhecido que existem processos enviesados nas práticas de recrutamento e contratação de empresas. Eles já começam quando filtram currículos por universidades específicas, deixando de fora milhares de candidatos talentosíssimos; continuam quando selecionam pela fluência em outras línguas, quando vivemos em um país que apenas 5% da população fala inglês... E por aí vai.
Os "filtros" que, numa perspectiva offline, há tanto tempo organizam o raciocínio corporativo, também estão refletidos nos softwares que crivam perfis de profissionais a serem contratados pelas empresas. Tá, mas o que eu tenho a ver com isso, Xongani? Você deve estar se perguntando.
Posso começar a responder sua pergunta com a mesma palavra: filtros. Você que, assim como eu, usa as redes sociais toda hora, já deve ter aplicado um filtro em alguma foto ou usado aqueles aplicativos que "melhoram a pele", "envelhecem", "rejuvenescem". A partir disso, faço duas perguntas. Primeira: o que significou "melhorar"? Tem a ver com "afinar traços"? Mudar características que são suas para colocá-las dentro de um padrão de beleza? Segunda: para onde vai essa quantidade de imagens que estamos produzindo? Para onde vai a foto do meu rosto?
"Para se cadastrar no aplicativo Meu Gov, do Governo Federal, por exemplo, é preciso cadastrar uma foto para ter o selo de validação facial. Para onde vão tais informações e como elas são usadas, a gente não tem certeza", comenta Dayana.
Ela traz ainda referências de vários profissionais, brasileiros e gringos, que estão apontando todos os problemas das tecnologias, como Tarcízio Silva, pesquisador e mestre em Comunicação e Cultura; Sil Bahia, coordenadora da Pretalab; e Joy Buolamwini, do MIT, cujas pesquisas são a base do documentário da Netflix e também responsáveis por provocar revisões na legislação que regula as práticas de reconhecimento facial.
A questão é a seguinte: os algoritmos trabalham a partir do que aprendem com os seres humanos que os desenvolvem. "É comum que os algoritmos tenham sido treinados com uma massa de dados muito maior de pessoas brancas do que pessoas negras. Isso faz com que os sistemas tenham falhas em reconhecer características relevantes em pessoas negras", escreveu o cientista de dados Lucas Santana.
Com a ausência de profissionais, sobretudo de profissionais negros, que estejam realmente trabalhando para transformar os vieses no aprendizado das "máquinas", elas continuarão sendo criadas a partir de modelos que não correspondem à realidade. E, como explica o Lucas, isso gera um número elevado de erros.
Dayana complementa ainda que há um papel importante desses algoritmos na organização do comportamento das redes, uma vez que afunilam o acesso a partir de interesses e, assim, acentuam as bolhas e polarizações.
São muitas informações e eu sei que o tema é complexo, mas precisamos nos aproximar dele, porque compartilhamos informações pessoais nas redes e passamos horas por lá diariamente. É necessário entender o que está acontecendo para que elas não mais reproduzam ou potencializem desigualdades. Recomendo, como começo de conversa, uma olhada no conteúdo da galera toda que eu mencionei aqui.
Alê Garcia: A presença do cinema negro no Oscar 2021
Vimos, no final de 2020, como o Emmy estabeleceu um recorde ao nomear o maior número de atores negros em 72 anos de história. Foram 35 das 102 atuações indicadas.
Corta pra o Globo de Ouro, em fevereiro de 2021: a despeito da chamada “invasão do cinema afro-americano” teve um número pífio de negros na premiação, com a falta de importantes nomes, tanto em artistas como em produções.
De tempos em tempos, temos a oportunidade de nos tornarmos espectadores de importantes mudanças estruturais. Achávamos que teríamos isto este ano.
Em 2015 e 2016, o Oscar só nomeou atores brancos nas categorias de atuação, mesmo com diversos nomes negros merecedores de estarem na corrida. Que o digam Will Smith por “Um Homem Entre Gigantes”, Idris Elba por “Beasts of no Nation” e Samuel L. Jackson por “Os 8 Odiados”. Naquele momento teve início o movimento #OscarSoWhite, levante extremamente necessário que contou com o apoio de nomes como Spike Lee e Jada Pinkett Smith, que boicotaram a cerimônia.
Desde então foram anunciadas medidas para as próximas premiações, como a entrada de novos membros dos mais diversos países, idades e raças. Além do desligamento de votantes que nem estão mais na ativa na indústria cinematográfica.
No entanto, somos obrigados a assistir, todo ano, a este sobe e desce dos indicados, sempre iludidos sobre um equilíbro entre negros e não-negros no Oscar, normalizando nossa presença na maior premiação da indústria cinematográfica do mundo.
Mas a normalização ainda não chegou.
Pensávamos que este ano teríamos no mínimo sete atores e atrizes negros indicados, o que — então sim — bateria o recorde de 2017, ano em que a Academia se viu pressionada a indicar o máximo possível de negros.
O máximo possível foram seis.
Tivemos Denzel Washington e Viola Davis disputando por “Um Limite entre Nós”, além de Mahershala Ali e a Naomi Harris, por “Moonlight”. Ruth Negga disputou por “Loving” e Octavia Spencer por “Estrelas Além do Tempo”. Entre os seis indicados, só Viola Davis e Mahershala Ali levaram suas estatuetas, como Coadjuvantes.
Mas este ano continuamos com seis indicados. Quando vamos ultrapassar este número? E quando pararemos de contar, já que será algo tão normalizado que nem mais celebraremos o fato?
Enquanto isso não acontece, temos, entre os indicados: como Melhor Ator, Chadwick Boseman, que concorre postumamente por sua sensível interpretação em “A Voz Suprema do Blues”. E, considerando que o ator falecido em 2020 já foi premiado no Globo de Ouro, no Screen Actors Guild e no Critics Choice Awards, temos o favorito para ganhar o Oscar nesta edição. Por seu talento óbvio, mas também porque é praxe a premiação póstuma como última consagração — que o diga Heath Ledger e seu Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em 2009, ano seguinte à sua morte.
Pelo mesmo filme, temos a incrível Viola Davis, concorrendo a Melhor Atriz e entrando para a história do Oscar como a atriz negra mais indicada de todos os tempos, com quatro indicações. É com isso que comemoramos, enquanto Meryl Streep, atriz do mesmo patamar, já conta com vinte e uma indicações!
Andra Day também vem concorrendo como Melhor Atriz por “Estados Unidos VS Billie Holyday”. E foi ela quem levou o prêmio de Melhor Atriz em Drama no Globo de Ouro. Ao ser indicada com Viola Davis, temos a segunda vez na história do Oscar em que duas mulheres negras são indicadas no mesmo ano nesta categoria principal. A última vez em que aconteceu foi em 1973, quando Cicely Tyson foi indicada por “Sounder”, lançado no Brasil como “Lágrima de Esperança” e Diana Ross por “Lady Sings the Blues”, aqui intitulado “O Ocaso de Uma Estrela”.
Outra estreia digna de nota é o fato de Mia Neal e Jamika Wilson serem indicadas por “A Voz Suprema do Blues” como as primeiras mulheres negras na categoria Maquiagem e Penteado.
Já nas categorias de coadjuvante, Leslie Odom Jr concorre por “Uma Noite em Miami”. Ele, também cantor fenomenal, é o intérprete de “Speak Now”, do mesmo filme, que concorre como Melhor Canção Original.
Por “Judas e o Messias Negro”, temos ainda Lakeith Stanfield, conhecido por seu papel na série “Atlanta” e que, surpreendentemente, concorre com seu colega de filme, Daniel Kaluuya — que deveria estar concorrendo como Melhor Ator. Kaluuya, que já levou o prêmio do SAG Awards, Globo de Ouro, Critics Choice Awards e Bafta, tem, neste papel, a melhor performance da sua carreira, como Fred Hampton, o líder da unidade de Illinois dos Panteras Negras. Temos um favorito?
“Judas e o Messias Negro” conta a história real de Bill O’Neal, papel de Lakeith Stanfield, militante negro infiltrado pelo FBI para espionar e sabotar o movimento dos Panteras Negras.
A obra, que concorre a Melhor Filme, tornou-se o primeiro indicado nesta categoria a ter uma equipe totalmente negra de produtores: Shaka King, que também o dirige, além de Ryan Coogler, diretor de “Pantera Negra” e Charles D. King.
O filme recebeu um total de seis indicações, incluindo também Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia e Melhor Canção Original, a música “I Will Fight For You”, interpretada por H.E.R.
Outro filme que poderia estar no páreo, “Uma noite em Miami”, sensível estreia de Regina King na direção, não está entre os indicados a Melhor Filme. Concorre por Melhor Roteiro Adaptado, focando na história dos quatro ícones negros norte-americanos, o pugilista Muhammad Ali, o jogador de futebol americano Jim Brown, o cantor Sam Cooke e o ativista Malcolm X, que se reúnem para uma noite de conversas sobre como as suas condições de figuras de destaque poderiam ajudar a população de negros do país.
O filme foi descrito por sua diretora como “uma carta de amor aos homens negros e as suas experiências” e traz um olhar delicado e generoso sobre estes líderes negros também repletos de insegurança e hesitação.
Indicado nas categorias Melhor Animação, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Som, vem “Soul”, da Disney Pixar, primeira animação desta produtora com um protagonista negro. Um filme sobre morte, jazz, saudade, propósito de vida e limitação. Com abordagens tão profundas que trouxe alguns questionamentos válidos sobre sua adequação infantil.
Concorrendo com “Soul” em Melhor Trilha Sonora Original, temos “Destacamento Blood”, do Spike Lee, sobre quatro ex-veteranos da Guerra do Vietnã que voltam à nação asiática pra recuperar um tesouro escondido e rever os restos mortais do líder de seu esquadrão, Norman Holloway, interpretado por Chadwick Boseman, em um dos seus últimos papéis. E esta é a única indicação deste filme, uma análise profunda de como a Guerra do Vietnã foi uma empreitada do governo dos EUA cujo resultado foi uma tragédia com muitos mortos, feridos e traumas que precisarão de gerações para serem superados.
Domingo estaremos na torcida por todos estes filmes. E numa torcida ainda maior para que a quantidade de indicados negros, um dia, seja tamanha que fiquemos divididos entre quais filmes negros são nossos favoritos.
Alê Garcia – Escritor e criador do podcast “Negro da Semana”. Garcia figura na lista do 20 Creators Negros Mais Inovadores do País pela Forbes.
Monica de Bolle: Sociedades que se movem
O novo na condenação de Derek Chauvin pelo homicídio de George Floyd se apresenta pela imaginação, pelo desejo e, sobretudo, pela forma de realização da justiça
Há sociedades que se movem em direção ao novo, há sociedades que parecem não sair do lugar, e há aquelas que se movem em direção ao passado. Sim, imaginação. A abertura para o novo e para as mudanças que ele pode trazer exigem imaginação. Um dia se imaginou que o homem chegaria à lua. Ao longo da pandemia, o esforço de combatê-la e de pensar no que sobreviria exigiu imaginação. Aqui nos Estados Unidos o trabalho da imaginação esteve presente ao longo da campanha de Joe Biden, em sua vitória, durante o turbulento período de transição, e continua presente quatro meses depois do início de seu governo.
Imaginou-se que o país seria capaz de imunizar rapidamente a população em alguns meses utilizando as vacinas mais sofisticadas do mundo. Estamos a um par de meses de conseguir fazê-lo. Imaginou-se que o debate sobre clima e meio ambiente se tornaria central na reorganização das políticas públicas. O Plano Biden está aí para mostrar que também isso foi possível, a despeito do que venha a ocorrer durante as discussões no Congresso. Imaginou-se que a retomada econômica viria com a criação de empregos e com o apoio aos mais vulneráveis. Novamente, o pacote aprovado no início de 2021 tem como princípio norteador a ajuda aos mais pobres. Imaginou-se que seria possível começar a enfrentar o racismo e a violência policial contra os negros. No dia 20 de abril, o policial que ajoelhou sobre o pescoço de George Floyd a ponto de esmagá-lo e asfixiá-lo foi condenado por seus crimes. Não é mais do que um início, como muitos têm enfatizado. Mas, para quem vive aqui nos Estados Unidos e é testemunha do que se passa a toda hora com a comunidade negra, a esperança é palpável. Para quem viveu os anos Trump, mais ainda.
O novo na condenação de Derek Chauvin pelo homicídio de George Floyd se apresenta pela imaginação, pelo desejo e, sobretudo, pela forma de realização da justiça. Nesse caso em especial, a justiça se realizou como fruto das interações de instituições e sociedade, em particular, da ação social como forma de atualizar o caráter republicano das instituições. Sabemos que o tempo das instituições é demorado e que a questão do racismo nos Estados Unidos é, como no Brasil, estrutural, portanto de longa duração. Mas essa arquitetura estruturante das relações que é o racismo foi desafiada, no caso do homicídio de George Floyd, pelo tempo célere das novas tecnologias comunicacionais, as quais parecem naturalmente incorporadas à vida dos mais jovens. O assassinato foi gravado por uma menina que empunhava um telefone celular e que, durante os nove minutos de agonia, captou cada instante da vida que escapava de Floyd por força do joelho do policial. O policial, em determinado momento, parece sorrir para a câmara enquanto praticava o mortífero ato.
O vídeo de nove minutos que registrou o homicídio rodou o mundo e despertou reações de solidariedade. Essa circulação ampla tornou George Floyd um ícone global da violência policial contra os negros em particular, mas também contra outras raças. A solidariedade que sobreveio de ser testemunha da agonia da vítima, de seu sofrimento intenso, de sua declaração “não consigo respirar” durante uma pandemia em que tantos se viram asfixiados, dos momentos finais em que chamou sua mãe, transcendeu as fronteiras dos Estados Unidos. Testemunhamos ações de protesto em todo o mundo e elas também perduraram nos Estados Unidos. Tudo isso torna possível dar passos além da imaginação rumo ao aperfeiçoamento do caráter republicano das instituições. O júri que condenou Derek Chauvin era composto de seis pessoas brancas. Seis pessoas brancas que não titubearam em declará-lo culpado pelos três crimes que lhe foram imputados.
O novo que vem pela realização da justiça e pela atualização das instituições a partir da ação social movida pela imaginação e pelo sentimento é particularmente interessante.
Ele suscita muitas reflexões sobre como os caminhos para o novo podem ser percorridos no Brasil. O que não falta em nosso país são injustiças e mobilizações para demandar a implementação de direitos. O que parece nos faltar é a imaginação e a crença de que a ação social é, sim, capaz de moldar instituições, ainda que elas se mostrem engessadas e cada vez menos preocupadas com o bem-estar da população.
A movimentação por um país que enxerga na justiça o caminho para o que é novo começa agora. Que entregue bons frutos em 2022.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Eliane Cantanhêde: Rui o tripé ideológico
Bolsonaristas têm um trabalhão para seguir o salto triplo do ‘mito’ em saúde, política externa e ambiente
Depois de rasgar as bandeiras do combate à corrupção e do liberalismo econômico, o governo Jair Bolsonaro está desmoronando o seu tripé ideológico: saúde, política externa e ambiente. Isso, claro, cria um problemão para a sua seita, sobretudo na internet. Eles e elas terão de rever suas crenças e posições para seguir essa “inflexão”, ou salto triplo carpado, do presidente. Vão defender Joe Biden, França, Alemanha e Noruega? Cúpula de Paris, Fundo da Amazônia? Até China e vacina?
Não deve ter sido fácil para os bolsonaristas se alinharem com o PT no ataque ao ex-juiz Sérgio Moro, ícone do combate à corrupção, quando ele caiu acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal. E não está fácil jogar Paulo Guedes ao mar, depois do blablablá de que Bolsonaro podia não ser lá essas coisas, mas o Guedes segurava as pontas.
E lá se vai também o tripé ideológico. O diplomata Ernesto Araújo está de volta à sua insignificância e ao limbo dos seus delírios contra o comunismo. O general da ativa Eduardo Pazuello vaga pelo Exército, olhado de esguelha pelos companheiros de farda depois de humilhado e desautorizado pelo presidente na compra de vacinas e de se sair com o indecente “um manda, outro obedece”. Ambos, Araújo e Pazuello, estão na mira da CPI da Covid.
Com o cerco se fechando contra Ricardo Salles, Bolsonaro repete o script: elogia, leva para lives e confraternizações, dá tapinha nas costas e planta notinhas sobre o quanto gosta do ministro. Quanto mais o torniquete aperta, mais Bolsonaro prestigia seu ministro. Mas... quanto mais prestigia, mais o ministro esfarela.
Então, vejam como é a dura a vida de bolsonarista. Esquece Ernesto Araújo e o que ele fazia e dizia, para enaltecer o sucessor, Carlos França, e fazer juras de amor para China, França, Alemanha, Noruega, até para a Argentina de Alberto Fernández? E Joe Biden, chamado de “gagá”, “sequelado” e “esquerdista”, virou um cara legal.
E, agora, com Pazuello fora e o médico Marcelo Queiroga tentando correr contra o tempo e contra os erros gravíssimos na pandemia? Os e as que papagaiavam Bolsonaro, trocavam ciência por ideologia e comparavam as vacinas à talidomida, que matou e mutilou na década de 1950, correm para oferecer o braço e salvar suas vidas. Não consta que nenhum deles tenha virado jacaré...
Com os “novos” política externa e Ministério da Saúde, quem tem estômago deveria entrar nas redes para ver os bolsominions conclamando todos a se imunizarem e defendendo “aquela vacina chinesa do Doria”, que, na verdade, é praticamente a única maciçamente disponível no Brasil. Vencem a realidade e a racionalidade. Viva a China! O Butantan! A vacina! E viva a vida!
Mesmo antes do “novo Ministério do Meio Ambiente”, vem aí o novo discurso de Bolsonaro sobre sustentabilidade: antecipar a neutralidade das emissões para 2050, acabar com desmatamento ilegal até 2030, dobrar a verba para fiscalização já. Dá-lhe racionalidade! Viva a Amazônia! As leis ambientais! E viva o Biden, líder da causa ambiental no mundo!
Faltam: um pedido de desculpas ao cientista Ricardo Galvão, demitido do Inpe por alertar para desmatamento da Amazônia; resgatar o Ibama e o ICMBio; reativar as multas ambientais; cobrar compromissos com os indígenas. Bolsonaro quer escancarar as reservas para mineração, agricultura, turismo... Mas não tocou nisso na cúpula do clima.
O Brasil não tem só governo, um governo rechaçado no mundo inteiro. Tem cidadania, instituições, entidades, atores das mais variadas frentes, na pandemia, na política externa e no ambiente. Salvar o planeta é aqui e agora! Goste ou não Bolsonaro, ele é obrigado a cair na real. Governos vêm, governos vão, o Brasil fica.
El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil
Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes
Naiara Galarrafa Gortázar, El País
A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.
Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE
A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.
A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.
Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.
Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.
Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.
Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.
Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.
Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.
A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.
As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.
As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.
Folha de S. Paulo: 'Somos parte do legado de Floyd', diz Kamala Harris após veredicto de ex-policial
Para Joe Biden, condenação de Derek Chauvin pode ser 'grande passo adiante' nos EUA
Patricia Pamplona, Folha de S. Paulo
Legado foi a palavra que permeou o discurso da vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e do mandatário americano, Joe Biden, sobre a condenação de Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd, nesta terça (20).
O ex-policial foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio. A duração da pena será anunciada em até oito semanas, e ele pode pegar até 40 anos de prisão.
Primeira mulher negra na Vice-Presidência americana, Kamala falou primeiro e afirmou que o veredito é um passo, mas ainda há trabalho a fazer e insistiu que o Senado aprove a Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, apresentada em agosto do ano passado.
“Precisamos reformar o sistema. Essa lei é parte do legado de George Floyd”, disse a vice, descendente indiana e jamaicana. “Somos todos parte do legado de George Floyd, é nosso dever honrá-lo.”
Kamala sublinhou ainda as difíceis condições de pessoas negras no país. “Americanos negros e homens negros em especial têm sido tratados como se fossem menos que humanos”, afirmou a vice. “Suas vidas precisam ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa nação.
Na sequência, o presidente também insistiu na necessidade de reformas. “[O caso] Abriu os olhos para o racismo sistêmico que é uma mancha na alma da nossa nação”, disse Biden. “Esse pode ser um grande passo adiante.”
O democrata reconheceu a importância do veredito, apesar de criticar que não deveria levar um ano para que o caso fosse concluído, e ressaltou que o resultado é uma raridade nesses tipos de casos.
“Esse veredito não traz George de volta, mas por meio da dor, sua família encontrou propósito. Precisamos fazê-lo por sua memória”, disse Biden. “Vamos fazer com que esse seja seu legado, um legado de paz, não de violência."
O presidente condenou ainda protestos violentos que tentam atrapalhar o caminho para a justiça racial. “Não podemos deixar que tenham sucesso. Não pode haver um porto seguro para o ódio nos EUA.”
No ano passado, durante as manifestações antirracismo que se espalharam pelo país, indivíduos que eram contra os atos investiram contra ativistas com atropelamentos, armas de fogo, motosserra e até arco e flecha.
Em um dos casos, em junho do ano passado, um homem branco usou o carro para entrar no meio de uma manifestação em Seattle, no estado de Washington. Um dos ativistas, um homem negro, tentou impedi-lo e acabou baleado no braço.
Empunhando a arma, o motorista deixou o carro e correu entre a multidão até se entregar à polícia. Segundo autoridades locais, o manifestante baleado foi levado ao hospital em condições estáveis, e ninguém mais ficou ferido.
Na conclusão de sua fala, Biden lembrou as últimas palavras ditas por Floyd: “Eu não consigo respirar”. “Não podemos deixar que elas morram com ele”, disse o presidente. “Temos a chance de começar uma mudança na trajetória desse país. Espero fazer jus ao seu legado. Esse pode ser um momento de mudança significativa.”
Folha de S. Paulo: Ex-policial Derek Chauvin é condenado pela morte de George Floyd
Agente sufocou Floyd com o joelho por quase 9 minutos; caso gerou onda de protestos contra o racismo
Rafael Balago e Lucas Alonso, Folha de S. Paulo
A morte de George Floyd, que gerou forte comoção nos Estados Unidos e deu impulso a uma onda global de combate ao racismo, teve a sua primeira sentença judicial nesta terça (20). O ex-policial Derek Chauvin foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio.
A duração da pena será anunciada em até oito semanas. Chauvin, 45, pode pegar até 40 anos de prisão. Como ele é réu primário, uma condenação do tipo geralmente levaria a 12 anos e meio de detenção, mas os promotores podem pedir a ampliação da condenação, com base em agravantes.
O ex-policial foi preso no ano passado, porém deixou a cadeia após pagar fiança de US$ 1 milhão. A decisão desta terça determinou que ele fosse detido novamente, e Chauvin deixou o tribunal algemado. Ele ainda pode recorrer da decisão.
Pela morte de Floyd, Chauvin foi condenado em três diferentes categorias: homicídio em segundo grau (quando o homicídio não é intencional, mas o réu mata alguém enquanto comete intencionalmente outro crime), homicídio em terceiro grau (quando o réu mata alguém ao tomar uma atitude perigosa sem levar em consideração o risco à vida humana) e homicídio culposo em segundo grau (quando o réu assume o risco de matar alguém ao tomar uma atitude imprudente).
A sentença foi dada por um grupo de 12 jurados, depois de um julgamento que levou três semanas. O grupo estava reunido para elaborar o veredicto desde segunda-feira (19) e permaneceu isolado, debatendo a portas fechadas, sob um rígido esquema de segurança.
Os jurados não foram identificados publicamente, e a Justiça deve proteger suas identidades por tempo indeterminado. O que se sabe a partir dos autos é que o grupo é composto por quatro mulheres brancas, dois homens brancos, três homens negros, uma mulher negra e duas mulheres que se identificam como multirraciais.
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As audiências começaram em 29 de março, e foram ouvidas 45 testemunhas, entre policiais, especialistas médicos e transeuntes que presenciaram a abordagem de George Floyd.https://s.dynad.net/stack/928W5r5IndTfocT3VdUV-AB8UVlc0JbnGWyFZsei5gU.html[ x ]
Ao apresentar seu caso ao longo de mais de duas semanas, os promotores reuniram testemunhas emocionadas, policiais que afirmaram que as ações de Chauvin violaram as políticas do departamento e especialistas médicos que disseram ao tribunal que Floyd, 46, morreu de asfixia.
Chauvin se declarou inocente de todas as acusações e renunciou ao seu direito de testemunhar perante os jurados. O principal advogado de defesa, Eric Nelson, reiterou na segunda que ele havia se comportado como qualquer "policial razoável", argumentando que ele seguiu seu treinamento de 19 anos na força.
Um dos principais pontos levantados pela defesa foi de que Floyd teria usado drogas antes da ação e que isso teria levado à sua morte. Foram encontrados traços de metanfetamina e de fentanil (um tipo de opióide) no corpo de Floyd, e a namorada dele confirmou que o casal era usuário de drogas. Médicos convocados pela acusação, porém, disseram que não há indícios de que Floyd tenha tido uma overdose. Segundo um deles, o homem não seria capaz de falar com os policiais e provavelmente estaria inconsciente se estivesse nessa situação.
Durante os dias de deliberação, os jurados foram mantidos em uma espécie de "fortaleza", uma torre cercada por barricadas e por arame farpado e vigiada o tempo todo por homens da Guarda Nacional.
Nesta terça, ativistas se reuniram perto do tribunal e também no local onde Floyd foi morto. Eles comemoraram a decisão com gritos de "Justiça" e "Vidas Negras Importam".
"Hoje foi um grande dia para o mundo. Para mim, [a decisão] significa que meus amigos e outras pessoas que também perderam entes queridos agora têm uma chance de terem seus casos reabertos", disse Courteney Ross, que era namorada de Floyd, na porta do tribunal, para a CNN.
Em nota divulgada por seu advogado, a família de Floyd disse que a decisão terá efeitos em todo o país e em outras partes do mundo. "Justiça para a América negra é justiça para a América inteira. Esse caso é um ponto de virada na história americana de responsabilização das forças de segurança e envia uma mensagem clara, que esperamos que seja ouvida em todas as cidades."
O presidente Joe Biden telefonou para a família de Floyd e disse estar "muito aliviado" com o resultado, segundo a AFP. Biden acompanhou o anúncio da decisão na Casa Branca e deve se pronunciar sobre o tema ainda nesta noite.https://player.mais.uol.com.br/?mediaId=16917695&onDemand=true
Em março, a família de Floyd fez um acordo com a cidade de Minneapolis para receber US$ 27 milhões como indenização pela morte do ex-segurança.
Entidades que lutam pelos direitos dos negros celebraram a decisão, mas apontam que ainda há muito a se fazer para evitar que mortes como a de Floyd se repitam. "O capítulo sobre Derek Chauvin pode ser fechado, mas a luta por responsabilização da polícia e respeito pelas vidas negras está longe de acabar", disse a Naacp (Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor), em nota.
O governador de Minessota, o democrata Tim Walz, disse que a busca por Justiça para Floyd não termina hoje, e que ela só virá com mudanças reais que previnam casos como o dele.
"Esperamos que o veredicto comece a mostrar que a supremacia branca não vencerá. Mas isso não trará nossos entes amados de volta. Não teremos George Floyd de volta. Sua filha terá de crescer sem ele", disse a Black Lives Matter Global Network Foundation, em comunicado.
A decisão da Justiça foi anunciada menos de 11 meses após a morte de Floyd. Em 25 de maio de 2020, a polícia foi acionada depois que ele usou uma nota falsa de 20 dólares em uma loja de conveniência em Minneapolis —no julgamento, o atendente da loja diria que Floyd parecia não saber que a cédula não era verdadeira.
O vendedor pediu o produto de volta, "mas ele não queria e estava sentado sobre o carro porque estava terrivelmente bêbado e não se controlava", disse o lojista, segundo transcrição do telefonema à polícia.
Os documentos de acusação dizem que os policiais encontraram Floyd em um carro azul estacionado, com dois passageiros. Logo chegaram unidades da polícia, e os policiais tentaram colocar Floyd em uma viatura, mas ele resistiu.
Durante a abordagem policial, ele teve o pescoço prensado no chão por Chauvin, por 8 minutos e 46 segundos, e o vídeo que registrou o momento viralizou nas redes sociais. Chauvin ignorou não só os avisos de Floyd de que não estava conseguindo respirar, como os apelos das testemunhas, que apontavam uso excessivo de força.https://player.mais.uol.com.br/?mediaId=16797063&onDemand=true
Floyd foi socorrido e morreu uma hora depois da abordagem, segundo os dados oficiais.
Os quatro policiais foram demitidos assim que o caso veio à tona. Os outros três policiais envolvidos na abordagem, Thomas Lane, J. Alexander Kueng e Tou Thao, foram indiciados como cúmplices de homicídio e aguardam julgamento.
Segundo a agência de notícias Associated Press, ao longo de 19 anos de carreira, Chauvin foi alvo de quase 20 queixas formais e duas cartas de reprimenda. A maioria foi arquivada.
A morte do ex-segurança gerou uma onda de protestos que se espalhou por dezenas de cidades dos EUA e outras partes do mundo. Floyd foi lembrado em atos na África, na Ásia, na Europa e também no Brasil. O caso virou um símbolo do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).
Durante a primeira semana de manifestações, foram registrados incêndios em carros e prédios, saques e conflitos com policiais de costa a costa nos EUA. O mesmo ocorreu em cidade europeias.
Nos últimos dias, com medo de novos confrontos nas ruas após a divulgação do resultado do julgamento, muitas empresas de Minneapolis suspenderam atividades e usaram tábuas para fechar as janelas, enquanto as escolas optaram por aulas remotas.
Apesar de o julgamento de Chauvin avaliar a culpa de apenas um homem, ele é simbólico para os EUA que têm um histórico de assassinatos de jovens negros por policiais. A condenação pode trazer um certo alívio e uma sensação de acerto de contas após a onda de protestos liderados pelo movimento Black Lives Matter que circularam o mundo todo, nos quais a imagem de Floyd tornou-se símbolo da luta antirracista e contra a violência policial no EUA.
Só neste mês de abril, houve mais duas vítimas. Adam Toledo, 13, foi morto em Chicago, baleado por um policial mesmo após levantar as mãos, e Daunte Wright, 20, foi morto a tiros em Minnesota (a menos de 20 km da cena da morte de Floyd), em uma abordagem de trânsito.
Em março, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou um projeto de lei que proíbe táticas policiais controversas e facilita o caminho para ações judiciais contra agentes que violarem direitos de suspeitos. A medida foi apelidada de "Lei George Floyd de Justiça no Policiamento". Em junho do ano passado, os deputados aprovaram medida semelhante com votação mais expressiva —236 a 181—, mas o texto foi barrado pelo Senado, que tinha maioria republicana.