Estados Unidos
O Globo: Governo Bolsonaro prepara decreto que proíbe redes sociais de apagarem publicações
Dimitrius Dantas, O Globo
BRASÍLIA — O governo Bolsonaro prepara um decreto para limitar a atuação de redes sociais no Brasil e proibir que sites e redes sociais apaguem publicações ou suspendam usuários de suas plataformas. O texto foi elaborado nas últimas semanas pela Secretaria de Cultura e recebeu parecer favorável da Advocacia-Geral da União. O decreto é uma resposta do governo à atuação das principais plataformas e, caso seja editado, pode permitir que a propagação de informações falsas e o discurso de ódio cresça ainda mais. Nos últimos meses, publicações e vídeos do presidente Bolsonaro foram retirados do ar pelo Facebook e pelo Google sob a alegação de que propagavam informações falsas ou sem comprovação e receberam críticas do presidente. Influenciadores bolsonaristas e o presidente Donald Trump também já tiveram suas contas suspensas pelas plataformas.
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Segundo o decreto, os provedores de serviço só poderão agir por determinação da Justiça ou para suspender perfis falsos, automatizados ou inadimplentes. O bloqueio de conteúdos sem decisão judicial também só poderá ocorrer em casos específicos, como nudez, apologia ao crime, apoio a organizações criminosas ou terroristas, violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente e incitação de atos de ameaça ou violência. O decreto foi encaminhado ao Palácio do Planalto e a outros ministérios na última semana.
O controle sobre as plataformas é uma das bandeiras defendidas pela ala mais radical do governo, que vê na política atual das redes sociais uma forma de censura. Recentemente, expoentes do bolsonarismo tiveram suas contas bloqueadas ou limitadas. Além disso, publicações propagando o uso de tratamentos contra a Covid-19 sem comprovação científica foram tirados do ar. Na CPI da Covid no Senado, um dos temas investigados pelos parlamentares é exatamente a forma como o presidente, seus auxiliares e até mesmo órgãos do governo usaram as redes sociais para divulgar o uso de medicamentos contra a covid-19, como a cloroquina.
De acordo com a minuta do decreto, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais ficaria responsável por fiscalizar e apurar casos em que sites e redes sociais retirassem publicações do ar.
O órgão atualmente é comandado pelo advogado Felipe Carmona Cantera, ex-assessor parlamentar do deputado estadual de São Paulo Gil Diniz, conhecido como “Carteiro Reaça”. Diniz foi acusado na Assembleia Legislativa de São Paulo de criar e propagar fake news contra adversários. Além disso, foi citado no inquérito do Supremo Tribunal Federal que apura atos contrários à democracia.
Pelo documento, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais poderia até mesmo proibir o uso de determinadas plataformas que cometessem as infrações previstas no decreto. A medida afeta não apenas grandes sites, mas também os de menor porte, como páginas de vaquinha virtual, por exemplo.
Especialista: ‘Mudança radical’
O projeto quer regulamentar um ponto do Marco Civil da Internet que trata da responsabilização por conteúdos publicados nas internet. Segundo a lei, provedores de serviço na internet não podem ser responsabilizados pelo conteúdo publicado nas redes. De acordo com Francisco Brito Cruz, advogado e diretor do InternetLab, centro de pesquisa especializado em direito e tecnologia, entretanto, o teor do projeto vai contra o que determina a legislação.
— O projeto subverte o Marco Civil. Se o decreto fosse publicado, mudaria radicalmente como as redes sociais funcionam no Brasil. Além disso, instituiria um órgão público que vai dizer como as plataformas vão aplicar medidas de moderação na internet — afirma Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab.
Para o especialista em Direito Digital, Omar Kaminski, o decreto entende que a remoção de conteúdos pelas redes sociais por infração aos termos de uso interno do site pode ser considerado “censura privada”.
— Mas, ao que parece, em diversos casos a intenção extrapola este objetivo e peca pelo excesso, pedindo, por sua amplitude e subjetividade, não mais um simples decreto presidencial mas a propositura de um projeto de lei a ser debatido por parlamentares na Câmara e Senado — disse.
No documento, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais justifica que o decreto é necessário para regulamentar o Marco Civil em relação aos direitos e garantias dos usuários. O governo argumenta que, como não podem ser responsabilizados, também não poderiam retirar qualquer conteúdo por suposta infração às suas regras.
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Para Brito Cruz, entretanto, a justificativa apresentada pelo governo é contrária ao próprio Marco Civil. O artigo 18 da lei indica que o provedor não será responsabilizado por conteúdos gerados pelos usuários. Entretanto, o artigo 19 indica que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, a responsabilização ao provedor ocorrerá se não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo.
— O que está na lei é que os provedores de aplicação, como o Google ou Facebook não podem ser responsabilizados pelo conteúdo gerado por terceiros em um caso específico: se não receberem uma ordem judicial para retirar. O que o projeto diz é que qualquer retirada de conteúdo que não seja por ordem judicial é proibida, exceto em alguns casos. Isso não é o que a lei diz — afirma Brito Cruz.
A discussão sobre o poder concedido às redes sociais ocorre em todo o mundo e ganhou importância após as maiores empresas do setor suspenderem o ex-presidente Donald Trump definitivamente de suas plataformas no início do ano. Em julho do ano passado, por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, as contas de influenciadores simpáticos ao presidente Bolsonaro investigados no inquérito das Fake News também foram bloqueadas.
Em abril deste ano, o Facebook classificou uma publicação do presidente Jair Bolsonaro como “informação falsa”. No mesmo mês, o YouTube removeu um vídeo de Bolsonaro em que o presidente defendia tratamento sem eficácia contra a Covid-19.
Omar Kaminski lembra que o debate sobre a moderação na internet é antigo e vem desde as primeiras salas de bate-papo. A própria estrutura da internet foi construída para dificultar restrições que inviabilizassem sua utilização ou tornasse os ambientes excessivamente cerceados e limitados. Atualmente, algoritmos já realizam boa parte do “trabalho sujo”, destaca o especialista.
— Em resumo, a minuta pretende defender a subjetividade das fake news, proteger os meios de pagamento financiadores e possibilitar a remoção de violações autorais. No campo do ciberativismo, e em tempos de LGPD, de um lado o decreto parece defender a liberdade de expressão, mas de outro torna os caminhos do seu exercício na Internet ainda mais tortuosos — afirma.
Atualmente, o Congresso Nacional já discute a questão da moderação das redes sociais. Uma das propostas exigiria que as empresas apresentassem relatórios de transparência indicando que tipo de conteúdo retiraram do ar.
Embora temas polêmicos, como a defesa do uso da cloroquina ou a propagação de notícias falsas ganhem destaque, a moderação de conteúdo por parte dessas plataformas é um dos pilares da internet atualmente. As redes sociais, por exemplo, possuem sistemas automáticos que tentam evitar a propagação de conteúdo criminoso, como fraudes ou golpes.
— A minuta produzida no governo passa longe da discussão mais sofisticada de moderação de conteúdo. Os conteúdos da internet não precisam de algum tipo de moderação. Inclusive a sociedade pede isso, mostrando que tem muito discurso de ódio, tem muito bullying, tem desinformação. Claro que a gente não tem que pedir que elas ajam sem prestação de contas e transparência. A questão foi mal colocada no projeto — afirma Brito Cruz.
Fonte:
O Globo
Folha de S. Paulo: Um ano após Floyd, Minneapolis busca reforma policial ampla e preservar luto
Marina Dias, Folha de S. Paulo
Em um posto de gasolina desativado em Minneapolis, Eliza Wesley improvisou uma cabine de vigilância para tentar proteger o luto e a dor. Do outro lado da rua, ela vê o cruzamento onde George Floyd foi assassinado, há um ano, e intervém aos berros quando entende que alguém não está respeitando as homenagens ao homem que gerou a maior onda de protestos antirracismo nos EUA desde Martin Luther King.
“Este é um lugar sagrado”, explica Eliza, que se voluntariou para fazer a guarda diária do local cheio de velas, flores e cartazes coloridos. “As pessoas vêm aqui e querem fazer vídeos, fotos. Tudo bem, mas não é só disso que se trata. É sobre comunidade, sobre o que significa a gente continuar aqui, refletindo sobre o que aconteceu com um homem negro.”
De óculos escuros modelo aviador, jaqueta amarela florescente e boné, a americana de 52 anos se intitula encarregada da praça criada e mantida por moradores em memória do que aconteceu em 25 de maio do ano passado.
Ali, misturam-se certo alívio pela recente condenação do ex-policial branco Derek Chauvin —que sufocou Floyd com o joelho por quase dez minutos— e a espera exaustiva pela reforma no sistema policial, que parece longe de acontecer.
Enquanto Minneapolis abraça a volta à normalidade após os protestos e o fim das restrições da pandemia, o memorial sob os olhos de Eliza não quer normalizar nada. Logo na entrada de um dos quatro quarteirões interditados, a placa anuncia que aquele é um “estado livre”, espécie de santuário resguardado por pessoas negras que se revezam dia e noite, inclusive no rigorosíssimo inverno da cidade, que pode chegar a temperaturas de -15 ºC.
Um dos avisos é direcionado aos visitantes brancos: “Não faça ser sobre você. Venha escutar, aprender, lamentar e testemunhar. Lembre-se que você está aqui para apoiar, e não para ser apoiado.”PUBLICIDADE
Não há ódio, diz Eliza, mas pedido de respeito, como se aquele espaço fosse a forma de lembrar a todos que a luta continua. “Não dá para respirar, porque ainda não acabou.”
Durante os 22 dias do julgamento que condenou Chauvin em três categorias de homicídio, ao menos 64 pessoas foram mortas por policiais nos EUA. Duas delas eram o jovem negro Daunte Wright, baleado em uma abordagem de trânsito a poucos quilômetros de Minneapolis, e Ma’Khia Bryant, adolescente negra morta a tiros em Ohio, uma hora antes do anúncio do veredito.
Um ano depois do assassinato de Floyd, as mudanças estruturais na polícia avançaram pouco não só na cidade onde o crime aconteceu —e onde as promessas políticas eram mais ousadas—, mas também em termos de legislações federais.
Em março, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou a chamada Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, que proíbe táticas policiais controversas, como o estrangulamento, e facilita o caminho para ações judiciais contra agentes que violarem direitos de suspeitos. Mas a medida parou no Senado, onde precisa de 60 dos 100 votos da Casa para ser efetivada.
Os senadores estão divididos hoje entre 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos —com desempate nas mãos da vice-presidente Kamala Harris—, e analistas são céticos quanto ao apoio de ao menos dez republicanos a um projeto como este.
Em Minneapolis, a Câmara Municipal chegou a prometer no ano passado desmantelar o Departamento de Polícia e reconstruir o sistema de segurança com a ajuda da comunidade, mas a proposta acabou naufragando.
O prefeito Jacob Frey, do Partido Democrata, é contrário à ideia, e vereadores, que antes defendiam a ideia, recuaram diante da pressão de moradores.
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Pesquisa realizada em agosto pelo jornal local Star Tribune mostra que diminuir o tamanho do Departamento de Polícia não conta com apoio maciço da população. Cerca de 40% dos moradores de Minneapolis eram favoráveis à ideia, e, entre residentes negros, o índice era de 35%.
Até agora, a cidade aprovou um projeto de lei que proíbe estrangulamentos e coloca em prática novos requisitos para diminuir a violência nas abordagens da polícia, mas ativistas e especialistas querem mais.
Vice-presidente da Fundação Minneapolis, Chanda Smith Baker diz que o caso de Floyd foi um marco histórico, mas ainda não é possível dizer que as manifestações produziram resultados significativos e permanentes na estrutura policial.
“É claro que, pela quantidade de atenção e o quão perturbado o mundo estava com a morte de Floyd, algo diferente aconteceu. Mas isso só vai importar se continuarmos a pressionar por mudanças em todos os níveis”, afirma. “Só porque houve vitória em um lugar não significa que transformamos o sistema.
A polícia americana mata cerca de mil pessoas por ano, sendo que os negros têm probabilidade quase três vezes maior de serem as vítimas em comparação aos brancos. Segundo levantamento da Universidade Estadual de Bowling Green, 104 policiais não federais foram presos por acusações de homicídio do início de 2005 a junho de 2019. Destes, apenas 35 foram condenados.
Chanda diz que o racismo sistêmico, a falta de compreensão dos americanos sobre o problema e a pouca vontade política em impulsionar mudanças explicam parte desse cenário difícil de ser revertido.
“As comunidades não são ingênuas. Ter um oficial [Chauvin] responsabilizado não indica que outros também serão. Há um reconhecimento de que não podemos permitir que o julgamento e seu veredito sejam o fim da história.”
Morador de Minneapolis, Damien Markham afirma que a condenação de Chauvin veio “apenas para a gente não colocar fogo na cidade de novo”.
Aos 33 anos, ele ajuda na manutenção da praça em homenagem a Floyd e diz que a solução para acabar com “o ciclo sem fim” de assassinatos de pessoas negras por policiais é inclusão econômica. “Eles não matam pessoas negras com dinheiro, matam pessoas negras pobres. Se tivermos dinheiro, eles vão nos deixar em paz.”
O memorial de Floyd virou ponto turístico e foco de disputa entre ativistas e a prefeitura de Minneapolis, que quer reabrir a rota para carros e ônibus no cruzamento entre as movimentadas rua 38 e avenida Chicago, onde o crime aconteceu. Moradores dizem que, desde que a praça foi montada, com uma escultura de punho fechado no meio —símbolo de solidariedade e resistência—, o policiamento na região diminuiu.
Na terça (11), Cory S. estava mostrando o local para a mãe, que vive no Texas. “Tem menos policiamento agora, mas também mais consciência sobre racismo e desigualdade social.”
Especializada em trabalhos com populações marginalizadas, Chanda afirma que “sempre vai haver necessidade de algum nível de policiamento”, mas é possível chegar a um meio termo entre o que existe hoje e o desmantelamento total da corporação. “Violações de trânsito, problemas de saúde mental ou de abuso de substâncias químicas, por exemplo, não devem ser atendidas com estratégias de policiamento.”
Parlamentares de Minnesota, onde fica Minneapolis, estudam proposta que permitiria a equipes de saúde mental responderem, em alguns casos, a chamados de emergência. Mas o Senado do estado, controlado por republicanos, não parece disposto a aprovar a medida.
As divergências políticas sobre o tema se espalham por todo o país. Legisladores nos 50 estados americanos apresentaram mais de 2.000 projetos de lei relacionados ao policiamento no ano passado, e só cerca de 12 deles conseguiram chancelar medidas mais abrangentes.
O presidente Joe Biden tem pressionado os parlamentares a aprovarem a reforma no sistema policial, e o Departamento de Justiça decidiu investigar se a polícia de Minneapolis tem “padrão ou prática” de discriminação ou uso de força excessiva nas abordagens, o que foi considerado um progresso.
Diante de um sistema historicamente racista, Biden precisa fazer da questão racial prioridade se quiser avançar com mudanças que nem mesmo Barack Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, conseguiu implementar.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Vinicius Torres Freire: O que os EUA sem máscara dizem sobre vacina e epidemia no Brasil
Pessoas que tomaram as duas doses de vacina contra a Covid podem tirar as máscaras e esquecer o distanciamento social em praticamente todas as situações da vida, anunciou a direção dos Centros de Controle e Prevenção da Doença dos EUA (CDC), autoridade em assuntos científicos de saúde.
Isso quer dizer que, para os CDC, as vacinas da Pfizer-BioNTech e da Moderna mais do que protegem de doença e morte. Novidade maior: parece implícito nos dados mais recentes que, mesmo infectada, uma pessoa não transmite a doença (ou o faz em níveis irrelevantes), o que permite vislumbrar o fim da epidemia por lá, caso não apareça variante preocupante do vírus.
As pesquisas que basearam o anúncio dos CDC não fazem observação diretamente orientada ou arranjada para detectar a transmissão, mas os cientistas chegaram a tal conclusão com base no progresso observado no estudo de profissionais de saúde. Em 2 de abril, um estudo dizia que as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna eram efetivas a ponto de evitar a doença em 90% dos casos de pessoas que tomaram as duas doses; no estudo divulgado pelos CDC em 14 de maio, o sucesso foi para 94%.
Das doses injetadas no Brasil até agora, cerca de 70% são de Coronavac. Pouco se sabe cientificamente de sua efetividade, seu efeito no mundo real. No Chile, uma pesquisa divulgada em abril mostrou que a vacina evita doença sintomática em 67% dos casos, internações, em 85%, e mortes, em 80%. Na Indonésia, estudo com pessoal de saúde, divulgado com pouquíssimos detalhes, indica que a vacina evitaria mortes em 98% dos casos, doenças, em 94%, e internações, em 96%. Um trabalho bem preliminar com vacinados no Hospital das Clínicas da USP indica que a Coronavac tem capacidade de prevenção de doença de 74%.
Em São Paulo, o número de mortes diminuiu proporcionalmente muito mais entre pessoas de grupos de idade mais vacinados (ou subiu menos, a depender da data de comparação). Em São Paulo, pessoas idosas começaram a ser vacinadas na semana encerrada no dia 12 fevereiro (no caso, as de 90 anos ou mais). O número de mortes de pessoas com 70 anos ou mais na semana passada cresceu 22% em relação àquela semana de fevereiro. Entre pessoas de 60 a 69 anos (vacinadas mais recentemente), aumentou 158%. Entre pessoas de 20 a 69, 214%.
Pouca gente recebeu duas doses no Brasil, 9% da população total, ante 36% nos EUA. Hoje, há doses disponíveis, já entregues, para vacinar totalmente 20% da população total e 27% daqueles com 18 anos ou mais. Na previsão esperançosa realista, até o final de junho haveria doses disponíveis para vacinar totalmente 48% da população total e 36% dos adultos.
O cronograma “esperançoso realista” deve se confirmar em maio. Para junho, há grande risco de apagão. O Butantan ora não tem perspectiva de receber matéria-prima da China. A Fiocruz tem material para entregar doses até a primeira semana de junho. É a Fiocruz que deve garantir o grosso das entregas de maio e junho (62% do total).
Como não temos governo, o que resta do Congresso tem de perguntar os motivos e riscos de atraso na entrega de matéria-prima da China, para que se tome alguma providência (Jair Bolsonaro continua a sabotar o processo).
Na melhor das hipóteses, apenas daqui a três meses chegaremos à taxa de vacinação dos EUA. Não há estudos precisos sobre efetividade, transmissão ou capacidade dos imunizantes de conter cepas novas e, dada a ainda enorme circulação do vírus, podemos criar ou disseminar bichos ruins. Ainda não há perspectiva de nos desmascararmos.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Carlos Américo Pacheco: Uma revolução a caminho
Quem acompanha as políticas de ciência, tecnologia e inovação está atento ao que acontece nos EUA. Uma revolução está a caminho. O governo Biden, com apoio do Congresso, prepara uma reforma abrangente da institucionalidade que há décadas financia a pesquisa, e o faz também com uma elevação sem precedente dos orçamentos destinados a essa tarefa.
Há momentos da História em que os acontecimentos se aceleram. Foi o que aconteceu na 2.ª Grande Guerra, com o Office of Scientific Research and Development, que coordenou o esforço tecnológico americano, com inúmeras consequências, a exemplo do Projeto Manhattan. Os EUA emergiram da guerra como nação absolutamente hegemônica e a ciência também saiu triunfante.
Mas a ossatura da institucionalidade de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico criada no pós-guerra se fragmentou, em razão de falta de acordo no Congresso sobre que modelo criar e sobre o papel da National Science Foudation (NSF). Os Departamentos de Defesa, Energia, Saúde e Agricultura criaram, cada um, sua própria agência, sob a frágil coordenação de um escritório na Casa Branca, o US Office of Science and Technology Policy (OSTP).
A História se acelerou novamente com o susto causado pelos russos ao lançarem o Sputnik 1, em outubro de 1957, e um mês depois, o Sputnik 2. O efeito dos satélites soviéticos foi similar ao do ataque a Pearl Harbor. No ano seguinte os EUA criariam a Nasa e a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa), hoje uma espécie de sonho de consumo de muita gente, como canadenses e ingleses. A missão à Lua e todas as suas implicações vieram no rastro disso.
O terceiro momento dessa história veio com a competição criada pela Alemanha e, em especial, pelo Japão, nos anos 1970. O triunfo japonês na indústria de semicondutores fez soar novamente o alarme. Quem cataloga as inúmeras leis americanas sobre esses temas, aprovadas depois de 1980, fica assustado ao ver sua profusão. O Bayh-Dole Act é a mais famosa. Mas elas foram numerosas, fortalecendo o sistema de propriedade intelectual, incentivando a comercialização de tecnologia, relativizando as regras antitruste, etc. Em suma, facilitando a interação de atores desse sistema de inovação e incentivando a comercialização dos resultados da pesquisa.
A resposta ao desafio chinês vem agora com Joe Biden. Num ato mais simbólico que efetivo, elevou o OSTP ao status de ministério. Encomendou também, como fez Roosevelt ao fim da 2.ª Guerra, um relatório de propostas do que fazer, nos moldes do famoso Science the Endless Frontier, coordenado à época por Vannevar Bush. Em paralelo anuncia a criação de duas novas agência nos modelos da Darpa, como já ocorrera anos antes na área de energia com a Arpa-E: a Arpa-Clima e a Arpa-Saúde. Em iniciativas paralelas iniciadas na Câmara dos Deputados, no Senado e no próprio Executivo, prepara-se uma reforma da NSF, criando uma diretoria de tecnologia e inovação e ampliando muito seu orçamento.
A proposta do Senado, sintomaticamente chamada de The Endless Frontier Act, iniciativa bipartidária, é abrangente e vai impactar toda a nova geração de política de ciência e inovação do mundo. Amplia o escopo de ação da NSF, reforça a coordenação entre as agências, sinaliza ações de redução das desigualdades de gênero e raça na ciência, muda a governança do sistema e reforça seu orçamento, com US$ 100 bilhões para os próximos cinco anos. Faz isso definindo dez tecnologias prioritárias para os investimentos e estendendo o leque de apoio da NSF para além da pesquisa, buscando endereçar o gap que existe entre a pesquisa e a comercialização – o chamado vale da morte.
Similar ao que a Europa fez e faz no âmbito de seus megaprogramas – o Horizon 2020, vigente entre 2014 e 2020, com orçamento de € 80 bilhões, e o novo Horizon Europe, para operar entre 2021 e 2027, com orçamento de € 95.5 bilhões – voltados progressivamente para a pesquisa orientada por problemas e missões, os EUA mudam de patamar, elegem seus focos e redesenham seus instrumentos.
Um forte impacto no mundo e entre nós será inevitável. Não apenas pelos muitos desafios competitivos que criam, ampliando nosso atraso. Mas também porque nosso sistema foi sempre inspirado na cópia e adaptação das políticas americanas, como exemplifica o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), criado em 1949 com foco inicial na área nuclear, antes mesmo do CNPq, em resposta ao tsunami do Projeto Manhattan.
Talvez seja oportuno que esta chacoalhada nos tire do marasmo destes anos, em que faltam recursos e inspiração. Talvez organize o debate sobre o que fazer. Todos sabemos que a inovação é crucial para o desempenho econômico. Hoje acordamos também para reconhecer o papel da ciência na vida das pessoas, com as vacinas e os tratamentos para a covid-19. Mas continuamos a nos distanciar do mundo. Às vezes porque o mundo anda mais rápido, às vezes porque contribuímos andando para trás. Vamos esperar que Biden nos ajude a acordar também neste campo das iniciativas públicas.
PRESIDENTE EXECUTIVO DA FAPESP, PROFESSOR DA UNICAMP, FOI REITOR DO ITA E SECRETÁRIO EXECUTIVO DO MCTI
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,uma-revolucao-a-caminho,70003715576
Monica de Bolle: Biden brasileiro?
Nas últimas semanas tenho escrito sobre o que ocorre nos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden. Para quem vive aqui, vê e sente as mudanças, inclusive no cotidiano, a transformação é extraordinária. Em poucos meses, os Estados Unidos deixaram de ser o país com a pandemia mais descontrolada no mundo para estar entre aqueles que, em breve, deixarão para trás os piores temores em relação à saúde pública e à economia. Alguns estados já atingiram a marca de mais de 70% de vacinados com ao menos uma dose dos imunizantes em uso; outros logo alcançarão esse patamar. Em Washington D.C., há uma sensação palpável de alívio: escolas estão reabrindo, as restrições mais duras estão sendo gradualmente removidas, as pessoas sentem que podem voltar a viver. É claro que há hesitação vacinal, um dos motivos que explica a falácia de se pensar em imunidade de rebanho. Mas, apesar desse grupo, em poucos meses o país estará em condições de deixar para trás o pior da pandemia.
Além de ter conseguido entregar esse resultado no tempo prometido, o governo Biden também montou uma agenda notável de reconstrução da economia e do investimento no país. Como expliquei em artigos anteriores, a agenda Biden não rompe com o passado dos EUA, com a tradição do envolvimento do Estado no desenvolvimento de longo prazo do país. Ao contrário, os planos anunciados e parcialmente aprovados resgatam essa tradição, com a novidade de orientá-la para as pessoas, sobretudo as mais pobres e vulneráveis. Como também já escrevi por aqui, não tem sentido afirmar que, por isso, Biden se tornou um radical de esquerda. Na coluna publicada na edição passada apresentei uma reflexão sobre como Biden está reposicionando as disputas políticas em uma democracia madura e fazendo algo que poucos no Brasil conseguem compreender: removendo o protagonismo da economia como definidora do que é ou não democrático e entregando esse papel novamente à política. Enquanto Biden articula sua agenda reconhecendo os conflitos como centrais para o bom funcionamento de qualquer democracia, o partido Republicano se aproxima rapidamente de uma fratura possivelmente irreversível. A expulsão da deputada Liz Cheney — ferrenha opositora de Trump e filha do ex-presidente Dick Cheney — da posição de liderança e prestígio que teve no partido revela aquilo que já se sabia: Trump foi um golpe de misericórdia para os Republicanos.
Em 2022, haverá eleições legislativas. Com o Partido Republicano rachado e a agenda de Biden a pleno vapor, para não falar do sucesso no controle da pandemia e de todas as suas repercussões — notavelmente, a recuperação econômica —, o campo parece aberto aos democratas. Ainda que existam desavenças intrapartidárias sobre várias questões, elas em nada se comparam à crise existencial dos republicanos. E aí está a razão de ser de Biden ter se tornado o 46º presidente americano: as fraturas, o desarranjo, os desmandos de quatro anos de Trump. Mas Trump não é comparável a Bolsonaro, a não ser de forma extremamente superficial. O dano que causou ao Partido Republicano não tem equivalente no sistema político brasileiro. As origens das disputas entre republicanos de diferentes linhagens e democratas não tem paralelos no Brasil.
Não há um “Biden brasileiro”. Insistir nesse raciocínio, com a apresentação de nomes supostamente mais centristas à direita, à esquerda e mesmo ao que, no Brasil, entende-se por centro é uma perda de tempo tremenda.
Esse tempo deveria estar sendo empregado para buscar soluções imediatas, de médio e de longo prazo para um país destroçado.
De acordo com as pesquisas de opinião, Bolsonaro se mantém com cerca de 40% de aprovação. Nas disputas simuladas com outros candidatos presumidos, Bolsonaro mantém a liderança. A exceção? A exceção é aquilo que parte do Brasil se recusa a reconhecer: Lula. Lula, goste-se ou não, não é Bolsonaro. Podem ser polos opostos, porque Lula não é Bolsonaro, e por isso mesmo não se equivalem: insistir em sua equivalência é uma fantasia besta, outra perda de tempo. Por outro lado, se foi o antilulismo que pariu o bolsonarismo, não deixa de ser interessante que a única via que se apresenta como viável hoje seja o caminho contrário.
Antes que cause terror e espanto entre os leitores, explico: o que escrevi é mera constatação daquilo que vejo com o benefício da distância. Não é apoio ou rejeição. É tão somente uma tentativa de eliminar as fantasias que impedem que se veja com clareza em que o Brasil se transformou. Biden brasileiro? Balela.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Fonte:
Época
https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/biden-brasileiro-1-25016297
Alberto Aggio: A teoria pura da revolução
“O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Essa máxima tautológica, atribuída a Ernesto Che Guevara, tornou-se a senha para diversas gerações de militantes políticos que fizeram parte do que muitos chamam de “revolucionarismo” latino-americano. Nas palavras do historiador chileno Alfredo Riquelme, uma manifestação da “imaginação revolucionária” que incendiou as inúmeras correntes e grupos que emergiram nos “longos anos sessenta”[1], que se iniciam com a Revolução Cubana de 1959 e se prolongam até a derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973.
Che Guevara e Fidel Castro
Também identificado como “ultraesquerda”, o revolucionarismo se antagonizou dura e permanentemente com todas as correntes de esquerda ou de centro-esquerda (ainda que tal terminologia não existisse na época) que buscavam patrocinar ou apoiar reformas que modernizassem ou tornassem menos desiguais as sociedades latino-americanas. Tais grupos assumiram a luta armada como ação política ou como perspectiva estratégica de seus programas revolucionários. Instalaram no seio da esquerda latino-americana uma “muralha chinesa” entre reforma e revolução, caracterizando os partidos políticos que não seguissem suas orientações como “tradicionais” ou simplesmente “reformistas”, mesmo que as reformas fossem projetadas dentro de uma perspectiva de “revolução processual” voltadas para o socialismo. Esse vigor antagonista era expressão de uma atitude reativa à esquerda latino-americana, especialmente aquela que se pautava pelo marxismo originário da Revolução bolchevique, ou seja, os Partidos Comunistas orientados por Moscou e que buscavam se atualizar em função das variações táticas de lá emanadas e “traduzidas” para seus países.
Apesar dessa busca incessante de apartação da esquerda prévia a ele, o revolucionarismo não conseguiu se desvencilhar dos pressupostos de orientação geral que marcaram historicamente o comunismo no século XX. Como anotou José Rodriguez Elisondo[2], era nítido o apelo à fórmula da “classe contra classe”, que se acoplava a outras noções, tais como, (1) o caráter do Estado burguês como simples aparelho de dominação de classe; (2) a validade da “ditadura do proletariado” e a fusão entre partido e Estado; (3) o caráter de “destacamento avançado” do partido revolucionário, composto por revolucionários profissionais; e, por fim, (4) a militância como “forma de vida” e a “vigilância revolucionária” como conduta permanente. Evidentemente, são pressupostos seletivamente assumidos. Não à toa deixa de aqui comparecer o Lenin crítico ao vanguardismo e à pequena-burguesia radicalizada.
Mas há no revolucionarismo uma espécie de sincretismo de ênfases e orientações que formam um mosaico, assumido caso a caso, no qual se prega a luta contra o “cerco capitalista” e a denúncia do “reformismo burguês” como “ala moderada do fascismo”; recusa-se o etapismo, afirmando o caráter internacional da revolução socialista; defende-se a tese de Mao Tse-Tung de que o centro da revolução mundial havia se deslocado para Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se critica o “aburguesamento” da então União Soviética e sua política de “coexistência pacífica”; por fim, last but not least, sob a influência da chamada “nova esquerda” da década de 1960 (H. Marcuse e Wright Mills) adota-se o ódio à “sociedade de consumo” e se sugere que os intelectuais passem a compor uma “nova formação revolucionária” que tivesse como base a aliança entre intelectuais, estudantes e setores marginalizados, em geral.
É mais do que evidente que o revolucionarismo latino-americano se expandiu a partir de uma leitura mitológica da Revolução Cubana. Dela emerge um “modelo” de revolução concebido como único para o continente. Nele estão algumas fórmulas que se tornaram verdades insofismáveis, a começar pela visão geral de que a revolução foi impulsionada por “um punhado de homens decididos e audaciosos” que abriram passagem para o “povo” se constituir na força motriz da revolução. Esse “punhado de homens” se constituiu na direção política da revolução, substituindo o partido operário-socialista, e, acima deles, emerge a figura carismática do líder revolucionário. Contestando fortemente os pilares do comunismo soviético, a pedra de toque dessa leitura se fixava na ênfase de que a base guerrilheira e logística da revolução é camponesa e não uma organização partidária operária e popular. Soldando essas formulações, cria-se o axioma de que a revolução cubana nasce do “atraso”, mas assume seu caráter anti-imperialista e se coloca a tarefa da construção do socialismo. É, portanto, uma revolução que realiza o chamado “salto” do capitalismo, superando a tese da necessidade de uma etapa “democrático-burguesa”. Por tudo isso, o socialismo cubano seria uma “criação heroica”, única e desafiadora para o mundo intelectual vinculado ao marxismo anterior a ela.
As derivações da leitura mitológica da revolução cubana para as teses gerais que fundamentaram o revolucionarismo latino-americano podem ser sintetizadas, de acordo com José Rodriguez Elizondo, em seis pontos: 1. a revolução latino-americana é continental; 2. seu caráter é socialista pois o desenvolvimento capitalista no continente é obstaculizado pela dependência que cancela a possibilidade de a burguesia nacional liderar uma revolução democrático-burguesa; 3. a forma e o método é o da luta armada, concebida como “uma forma superior de luta”; 4. em função da defasagem do proletariado latino-americano em relação aos países mais avançados, a pequena-burguesia assume o papel dirigente da revolução; 5. a revolução pede alianças entre frentes e polos revolucionários – e não alianças entre classes – para confrontar tanto o inimigo estratégico, o imperialismo, quanto o inimigo tático, a burguesia local; 6. os partidos comunistas latino-americanos não são instrumentos revolucionários válidos porque se burocratizaram, são etapistas, privilegiam as diferenças entre os países latino-americanos ao invés da sua homogeneidade, negam o caráter socialista da revolução, adotam condutas pacifistas e se submetem a frentes políticas amplas[3].
A partir desta visão formou-se no continente o que se pode chamar de uma “militância da revolução cubana” que teve muita influência por toda a década de 1960. Entretanto, depois de um primeiro momento de acumulação de forças, o “partido da revolução cubana” se enfraqueceu, golpeado pelo impacto da morte de Che Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, a derrota da revolta de maio de 1968, em Paris, e, por fim, a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto do mesmo ano. Estes acontecimentos exacerbaram os sentimentos anticomunistas da ultra-esquerda latino-americana. No tocante ao Che, pela suposta “traição” do PC boliviano. Em relação ao maio parisiense, pela generalização da avaliação de que “os comunistas têm medo da revolução”. E, quanto a Checoslováquia, passou a pesar a qualificação da URSS como uma potência imperialista, que encobria este caráter com a retórica revolucionária.
Quando Fidel Castro visitou Salvador Allende no Chile, no final de 1971, permanecendo no país por 24 dias[4], o cenário mundial era bastante diferente daquele no qual a revolução trinfou em Cuba. A revolução era, por certo, uma retórica compartilhada, mas a obsessão do revolucionarismo havia se deslocado para o tema do socialismo. Por esse entendimento, é explicável que Fidel tenha admitido, em parte e apenas publicamente, a “insólita” existência de uma via chilena ao socialismo como uma “via política ao socialismo” (Allende), embora discordasse inteiramente dela. Aliás, naquele momento, Cuba já havia alterado sua orientação, aliando-se incondicionalmente a URSS e julgava que o fundamental era manter o poder conquistado, arrefecendo a ênfase anterior de promover outras revoluções a todo custo. De fato, anos mais tarde, numa entrevista a Newsweek, em 09 de janeiro de1984, Fidel esclareceria que a estratégia guerrilheira na América Latina era uma das muitas variáveis de defesa do regime revolucionário cubano, ao contrário do que se havia afirmado na década de 1960 de que a revolução na América Latina “caia de madura”. Nas palavras de Fidel: “Nem ao menos oculto o fato de que, quando um grupo de países latino-americanos, sob a direção e inspiração de Washington, não apenas buscou isolar Cuba politicamente, mas a bloqueou e patrocinou ações contrarrevolucionárias (…) nós respondemos, num ato de legítima defesa, ajudando a todos aqueles que queriam combater contra esses governos”[5].
Os pressupostos da teoria pura da revolução acabaram se cristalizando e diversas gerações os assumiram e os vivenciaram sem espírito crítico. Mesmo admitindo que, com o tempo eles sofreram ajustes, alterações ou mesmo supressões, é importante estabelecer uma avaliação rigorosa a respeito das orientações que sustentavam o chamado “processo revolucionário latino-americano” que aquela “teoria” supunha. Isso é ainda mais importante porque ela ainda influencia significativas parcelas da esquerda latino-americana além de inúmeros intelectuais que trabalham em diversos campos do conhecimento na área de Humanidades.
Expressando claramente o caldo de cultura de abstracionismo existente na época, o mito da revolução vitoriosa acabou por sustentar a construção de um modelo que, ao ser tomado como “universal”, se voltou contra a História. Cultuou-se um modelo alternativista que via a política a como jogo de soma zero, evitando funcionar dentro de um sistema político que obrigava os atores a partilharem um consenso mínimo; produziu-se um modelo de antipolítica, essencialmente. Essas posições tinham correspondência com uma postura confrontacionista no plano internacional, que compreendia a América Latina como vanguarda do Terceiro Mundo e tratava como inevitável o confronto com os EUA. Che Guevara qualificava os EUA como a “mais bárbara nação do mundo”, o “grande inimigo do gênero humano”. Isso contrastava, por exemplo, com a postura do Vietnam que preferiu atuar dentro dos EUA, explorando as suas divisões internas. No plano nacional, como não poderia ser diferente, o modelo supôs a existência de dicotomias excludentes: o Estado é o aparelho de coerção que precisa ser tomado; o Exército é a versão concentrada do Estado como expressão da violência contra as classes dominadas; o Direito sublima as relações de força e institucionaliza a exploração das maiorias; as classes sociais são a representação de explorados e exploradores; os partidos políticos fazem apenas o jogo das classes dominantes e estão destinados a desaparecer.
Não há como eludir o resultado de que toda essa formulação só poderia redundar numa nova ditadura de classe, flagrantemente autoritária. A democracia e a liberdade se tornam, aqui, categorias subjetivamente instrumentais: a democracia dos exploradores não é, em nenhum aspecto, a dos explorados e as liberdades de alguns são derivadas das carências de outros, sem uma área intermediária. Em síntese, democracia e liberdade devem ser revolucionárias e isto significa que devem servir para garantir a implantação de uma nova ditadura. É inexplicável como poderá nascer daí uma sociedade nova, um “homem novo”.
Assim, mais que interpretar ou revolucionar o mundo, a teoria pura da revolução serve para afastar da reflexão a complexidade da realidade. Ela é simplesmente “falsa consciência”, pura ideologia. Sua imaginação funciona para eludir um jogo intelectual de tipo circular, exercitado nos seguintes termos: a impaciência revolucionária se justifica pelo “atraso histórico”, levando à busca de um atalho revolucionário que permita, por sua vez, recuperar o tempo perdido … que justifica, uma vez mais, a impaciência revolucionária.
Mirando historicamente, o resultado não é outro senão o fracasso: não se implantou uma “nova sociedade”, nem em termos revolucionários, nem em termos reformadores. Nesse sentido, perdeu tanto a reforma como a revolução. Nenhum dos teatros de operação da região serviu como suporte para levantar e sustentar uma “segunda Cuba”. Tampouco para consolidar aquelas transformações estruturais que alguns governos reformadores vinham colocando em prática.
Ao contrário da imagem europeia que qualifica a década de sessenta como uma “década prodigiosa”, na América Latina ela foi, antes de tudo, “uma década perdida”, especialmente para aquela esquerda que aderiu à teoria pura da revolução. Foi preciso atravessarmos o século e o milênio para vermos emergir, em traços ainda bastante rudimentares, uma esquerda ainda sem nome próprio, que ainda coqueteia como aqueles paradigmas e claudica em se conformar como um ator distinto do que foi no passado e do que é na atualidade.
[1] RIQUELME S. Alfredo, “La vía chilena al socialismo y las paradojas de la imaginación revolucionaria”. In Araucaria. Revista ibero-americana de Filosofia, Política y Humanidades, año 17, n. 34, segundo semestre de 2015, p. 203-230.
[2] RODRIGUEZ ELIZONDO, J. Crisis y renovación de las izquierdas – de la revolución cubana a Chiapas, pasando por “el caso chileno”. Santiago: Andres Bello, 1995, pp.131-167. A expressão que dá título e que inspira diversas passagens desse artigo é de José Rodriguez Elizondo.
[3] RODRIGUEZ ELIZONDO, J., 1995.
[4] AGGIO, A. “Uma insólita viagem: Fidel Castro no Chile de Allende” In AGGIO, A. “Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana. Brasília: Fundacão Astrojildo Pereira, 2ª. Edição, 2019, p. 121-136.
[5] RODRÍGUEZ ELIZONDO, J. “El invierno del Messías”. La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001. p. 9 (Cuaderno Reportajes intitulado El invitado que saboteo a Allende).
Fonte:
Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-teoria-pura-da-revolucao/
(Artigo publicado simultaneamente em Estado da Arte, 08 de maio de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/teoria-pura-revolucao-aggio-hd/)
Vera Magalhães: O Brasil involuiu 20 anos
O isolamento brasileiro diante da histórica decisão do governo dos Estados Unidos de apoiar a suspensão temporária de patentes de vacinas para Covid-19 é especialmente emblemático porque nos permite fazer um retrato de hoje e de exatos 20 anos atrás, quando vivemos uma epopeia oposta da diplomacia brasileira e cravamos uma das nossas principais vitórias em organismos multilaterais, justamente no tema de patentes para remédios.
Foi em novembro de 2001, ainda sob os escombros do 11 de Setembro, que a mesma OMC, palco da guinada de Joe Biden, aprovou, em sua 4ª Conferência Ministerial realizada em Doha, no Qatar, uma resolução proposta inicialmente pelo Brasil prevendo que, em casos de epidemias, os países-membros da organização poderiam flexibilizar as regras de patentes previstas no Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio e Saúde Pública (conhecido como Trips).
A resolução foi o marco final do que ficou conhecido como “guerra das patentes”, uma ofensiva do governo FHC em várias frentes (diplomática, econômica e de comunicação) para pressionar a indústria farmacêutica a baixar preços dos medicamentos que compunham o coquetel anti-Aids, fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, ameaçando com a quebra das patentes.
Corta para 2021, quando um desarvorado Itamaraty foi pego totalmente de surpresa pela mudança de posição dos Estados Unidos, que passaram a apoiar a proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul no fim de 2020, e apoiada por mais de 100 países, para a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19 enquanto durar a pandemia.
Isso ajudaria a aumentar a produção de vacinas e a equalizar sua aplicação no mundo. Dados mostram que mais de 80% das doses aplicadas até hoje se concentram em países ricos.
O Brasil, que nem é rico nem está bem na fila da vacina, achou por bem fincar pé na posição anterior e ver a caravana global passar diante dos seus olhos, com grande possibilidade de até a União Europeia evoluir para acompanhar a posição americana.
Uma coisa era a discussão posta até o anúncio da posição dos Estados Unidos, em que o Congresso brasileiro discutia a quebra das patentes em território nacional: essa medida, isoladamente, teria pouco efeito prático, pois nossa capacidade de produção própria de vacinas, como temos visto, é pequena, ainda mais sem transferência de tecnologia. Além disso, havia setores fortes da diplomacia defendendo que isso poderia nos criar embaraço com os grandes fabricantes, atrasando ainda mais a chegada de imunizantes ao país.
Mas o cenário muda drasticamente com o apoio da Casa Branca à suspensão temporária das vacinas, ainda mais porque ele levará a uma pressão dos demais países também sobre os Estados Unidos e demais países ricos para a disponibilização imediata do excedente de vacinas que compraram, para a transferência de tecnologia a países pobres e para o fim de medidas protecionistas para a exportação de insumos destinados à produção desses imunizantes.
É desesperador que o Brasil opte por ficar falando sozinho diante de uma resolução com tamanho impacto histórico, geopolítico e econômico.
A desorientação demonstrada pela diplomacia brasileira nesse episódio é fruto e sinal do desmonte da política externa promovida pela nuvem de gafanhotos bolsonarista. É da mesma cepa dos sucessivos surtos que fazem o presidente insistir em brigar com a China neste momento grave em que dependemos dos chineses para a chegada de insumos para nossas poucas vacinas.
Vinte anos depois de brilharmos nos palcos internacionais com políticas de saúde pública e de diplomacia internacional arrojadas e inovadoras, estamos no cantinho da vergonha.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-brasil-involuiu-20-anos.html
Alon Feuerwerker: O atraente bidenismo
A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital do mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais, para distribuir a quem tem menos.
A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.
Claro que a análise objetiva exige levar em conta as circunstâncias. Cada um de nós é ele mesmo e suas circunstâncias. Uma foi o governo Temer ter entrado em modo de sobrevivência por razões da área policial, e depois a pandemia da Covid-19 pegou pela proa a administração Bolsonaro. Mas aí enveredamos pelo terreno das explicações e justificativas. E na política, a exemplo de outras esferas da vida, quem começa a se explicar e justificar já está perdendo.
Os ventos bidenistas e a crônica pasmaceira econômica acenderam no Brasil o desejo de uma guinada. Mas qual a viabilidade dela? Que candidato com chances vai pegar a estrada em 2022 dizendo que irá fazer dívida pública pesada para ampliar o investimento estatal e prometendo tomar o dinheiro dos “ricos” (que no Brasil, na prática, incluem uma gorda fatia da classe média) para redistribuir renda pela mão do Estado?
Políticas econômicas precisam ter, antes de tudo, viabilidade política. Há sim teóricos respeitáveis que garantem: fazer dívida em moeda nacional não produz inflação. Mas qual presidente vai arriscar, no sempre instável cenário institucional brasileiro, colocar todas as fichas numa teoria contraintuitiva? Se der errado, seus autores no máximo farão autocrítica. Já o político provavelmente terá ido para o cadafalso, talvez metafórico.
Há uma diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos. Eles podem legalmente imprimir dólares sem lastro e nós podemos imprimir reais sem lastro, mas não parece que as consequências venham a ser as mesmas. Isso e outros fatores devem impelir os candidatos competitivos a buscar soluções mais convencionais. Uma em especial: a atração maciça de capitais externos para fazer subir a taxa de investimento privado.
Eis por que no próximo governo, pois entramos na etapa conclusiva deste, talvez um ministério de importância renovada será o das Relações Exteriores. E quem sabe não deveríamos voltar nossos olhos também para o Oriente, em vez de apenas para o Norte? É pouco razoável imaginar que a economia brasileira vai se erguer puxando os próprios cabelos para cima. Ou colocando todas as fichas de política exterior numa única casa.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.737
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/o-atraente-bidenismo.html
Veja
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/o-atraente-bidenismo/
Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi
Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.
No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.
No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html
Monica de Bolle: A reconstrução dos EUA com Joe Biden é um nó na cabeça dos “liberais à brasileira”
Muito se tem falado e escrito no Brasil, com lentes brasileiras, sobre o Governo Biden e seus planos. Contudo, e isso não é novidade, tais lentes distorcem e deturpam ao fazerem ver um país que não existe e jamais existiu. Conta-se, por exemplo, uma história no Brasil de que o desenvolvimento dos Estados Unidos se deu pelo papel preponderante da iniciativa privada. Não há ideia mais errada do que essa para quem conhece a história deste país em que vivo há mais tempo do que no Brasil e no qual finquei as bases da minha carreira como economista, a qual passa hoje por uma espécie de transição. Os EUA sempre viram no Estado o papel de indutor do desenvolvimento de longo prazo. Não se trata da visão nacional-desenvolvimentista da América Latina, tampouco pode ser compreendida com lentes sulistas. O desenvolvimento norte-americano e a atuação do Estado têm contextos, texturas, estruturas e história próprios.
Pode ser uma história pouco contada no Brasil aquela segundo a qual os EUA se industrializaram por meio de políticas de substituição de importações e muitas práticas protecionistas inspiradas na obra de 1791 do primeiro secretário do Tesouro norte-americano, Alexander Hamilton. Em seu Report on the subject of manufactures, Hamilton delineou os conceitos de indústria nascente e apoio estatal, que, mais tarde, influenciariam não apenas a industrialização de seu país, mas a da Alemanha, a do Japão, a da França, chegando à América Latina nos anos 1930, quarenta e cinquenta. A obra de Raúl Prebisch e o que ficou conhecido como pensamento Cepalino cita Hamilton recorrentemente, e não é por acaso.
O Estado indutor norte-americano seria revisto e reinventado ao longo de toda a história, passando pela corrida espacial da Guerra Fria, o surgimento da Internet, o desenvolvimento do setor de tecnologia, sobretudo o de bioteconologia, que tanta relevância tem tido na atual pandemia. Para que as vacinas gênicas, as mais sofisticadas contra covid-19, saíssem dos laboratórios para os nossos braços, o Governo de Donald Trump fez a enorme Operação Warp Speed. Logo, no mundo real se deu o contrário do que sustenta o ministro da Economia brasileiro, e não haveria Moderna ou Pfizer sem a atuação vultosa do Estado.
Então entra em cena o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Muitos no Brasil têm interpretado os planos de Biden como uma ruptura em relação ao passado, seja o passado recente, seja o longínquo. Também entendo que há ruptura; mas penso não ser a que imaginam. A ruptura que se deu nas eleições de 2020 foi a passagem de um país liderado por uma pessoa despreparada para o cargo e com instintos nitidamente autoritários para outra com largo, orgulhosamente reclamado histórico político e um democrata, não somente pelo nome do partido ao qual pertence. Quanto ao resto, não há rompimento: os planos de Biden, vulgarmente apelidados de “Bidenomics”, são profundamente marcados pela tradição norte-americana do Estado indutor. Há, sim, diferenças marcantes, que reanimam essa tradição.
Os planos de Biden, literalmente trilionários, compreendem o American Rescue Plan, o American Jobs Plan e o American Families Plan. Todos eles aparecem em destaque no site da Casa Branca, em que são apresentados de forma clara e resumida, com acesso à integra do documento e convite a compartilhar como a política econômica lhe pode ajudar. Para entender melhor essa política, tomemos o American Families Plan, o seu segundo. Trata-se, como disse a Casa Branca, de um plano de “infraestrutura humana”, isto é, de uma agenda que parte do foco nas pessoas, em particular, das famílias, para dar forma a um Estado de Bem-Estar Social. Lembro aqui que, entre as economias maduras, os EUA são o único país que não têm as redes de proteção social robustas, como seus pares europeus. O nome do plano toma as famílias como elo de articulação das políticas de redistribuição de renda. A escolha reflete a percepção compartilhada de que a família é a unidade de cuidado por definição na sociedade norte-americana, como também é, por sinal, no Brasil.
O que saltar a olhos de “liberais à brasileira” como excessivo é o entendimento de que, quando as desigualdades são demasiadas, políticas incrementais de proteção social não resolvem os problemas econômicos, sociais, e políticos. Primeiro, para equacioná-los pode ser importante ter um horizonte de igualdade, a qual é inalcançável, mas nem por isso precisa deixar de ser buscada. Sua busca pode criar condições que tornam a liberdade possível. Segundo, políticas incrementais dificilmente têm o condão de reconstituir um senso de união nacional, de identidade comum, em sociedades extremamente fragmentadas e polarizadas. Quando Biden falava em unificação durante a campanha, a necessidade da ousadia estava explícita. Não viu quem não quis, ou quem não soube interpretar por desconhecimento. É realmente muito difícil entender os Estados Unidos e suas contradições quando não se vive no país: a máxima de Tom Jobim sobre os principiantes e seus olhares não vale apenas para o Brasil.
Tenho visto gente no Brasil dizer com grande confiança que a agenda de Biden está fadada ao fracasso no Congresso. A afirmação se baseia no fato de que os democratas têm uma maioria muito estreita no Congresso, sobretudo no Senado. Mas, novamente, essa é uma visão equivocada sobre as transformações que acometeram os partidos políticos daqui, especialmente o partido Republicano. Sob Trump, o partido Republicano deixou de ser aquele que defendia a “responsabilidade fiscal” na representação de déficits e dívida baixos. As reduções tributárias de Trump e os aumentos de despesas em 2017 levaram os EUA ao maior déficit em décadas, e esse cenário se produziu com o aval dos Republicanos no geral e, em particular, dos Republicanos mais tradicionais, como os Senadores Mitch McConnell e Lindsey Graham. Tivesse Trump sido um político mais dedicado, teria conseguido emplacar seu próprio plano de infraestrutura, no valor de 1,5 trilhão de dólares, alardeado por Steve Bannon durante a campanha de 2016 e tantas vezes mencionado nos anos trumpistas. É curioso que algumas pessoas tenham escolhido apagar isso de suas memórias.
O partido Republicano, hoje, tem dificuldades de enfrentar agendas que preveem grandes despesas, sobretudo se essas despesas forem facilmente sentidas e compreendidas pelas pessoas, pelas famílias. A aprovação de Trump subiu no início da pandemia quando seu pacote de assistência passou no Congresso, assim como a de Biden aumentou desde o início de seu Governo, mesmo o país estando muito dividido. Aqui nos Estados Unidos há eleições a cada dois anos: no ano que vem haverá eleições legislativas. O custo para os Republicanos poderá ser alto caso eles rejeitem por completo a agenda de Biden ―e o partido sabe disso. É claro que os Republicanos haverão de se opor aos aumentos de tributação sobre corporações, os mais ricos, os ganhos de capitais, que devem financiar parcialmente os ambiciosos planos. Porém, apostar no fracasso da agenda Biden é nada entender do que aconteceu com os Republicanos e com os Democratas nos últimos quatro anos. Enquanto Republicanos buscam novos caminhos e narrativas políticas, Democratas se reinventaram a partir de algumas noções básicas de justiça social. Sim, básicas, pois os democratas mais à esquerda estão muito longe daquilo que brasileiros consideram ser “de esquerda”.
Com Biden, os Estados Unidos estão fazendo aquilo que sempre fizeram de melhor: se reimaginando e reiventando. Por certo, há lições aí para o Brasil. Mas elas estão longe de ser o que tantos regurgitam nos jornais ou na TV.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.
Fonte:
El País
Folha de S. Paulo: Em 100 dias, Biden toma medidas ousadas em busca de marcas permanentes
Presidente dos EUA precisa enfrentar crise migratória, seu principal foco de críticas
Marina Dias, Folha de S. Paulo
Joe Biden já tem um elogio favorito nos corredores da Casa Branca. Assessores próximos dizem que o presidente dos Estados Unidos comemora, mesmo que discretamente, quando ouve que sua largada tem sido mais ambiciosa que a de Barack Obama, de quem foi vice de 2009 a 2017.
Nos primeiros cem dias de seu governo, que serão completados nesta quinta-feira (29), Biden sinalizou o desejo de ser um dos presidentes mais transformadores da história americana. Mas, para isso, precisa fazer com que suas propostas ousadas se tornem marcas permanentes, reformulando o país em termos de desigualdade, direito ao voto e papel do Estado no crescimento econômico.
A marca dos cem dias é recheada de simbolismo, geralmente sem grandes efeitos práticos. Neste ano, porém, com o adiamento causado pelas restrições da pandemia, a data vai praticamente coincidir com o primeiro discurso de Biden na sessão conjunta do Congresso, sua oportunidade de celebrar vitórias e elencar prioridades que podem desenhar o legado de sua Presidência.
Nesta quarta-feira (28), o democrata deve enumerar avanços de seu plano contra a Covid-19, que contou com a distribuição de mais de 200 milhões de vacinas em cem dias e freou o recorde de casos e mortes causadas pela doença no país. Com a urgência ecoada do Salão Oval, Biden alçou os EUA de desastre sanitário ao posto de um dos maiores sucessos de vacinação em massa do mundo e conseguiu apontar para uma recuperação econômica mais rápida com a aprovação de um pacote de alívio econômico no valor de US$ 1,9 trilhão, com auxílio específico aos mais vulneráveis.
Diante dos parlamentares, o presidente quer chamar atenção para os próximos desafios e deve anunciar o aumento de impostos sobre os mais ricos, em parte para financiar sua proposta trilionária de reforma na infraestrutura. Ele sabe que os próximos cem dias serão mais difíceis —e arriscados—, pois precisa avançar com essa agenda, que mistura criação de empregos e economia verde, sem deixar de lado a crise imigratória, a maior de seu governo e seu principal arcabouço de críticas até agora.
O pacote de socorro econômico foi a grande vitória de Biden no Congresso até aqui, e 1 das 11 leis que o presidente assinou desde que tomou posse, em 20 de janeiro. O número é pequeno se comparado a seus antecessores mais recentes —Donald Trump chancelou 28 leis nos cem primeiros dias e Obama, 14—, mas o dado define a arriscada forma de governar do democrata.
Em termos de ordens executivas, mecanismo que não precisa do aval do Congresso para entrar em vigor, mas pode ser revertido mais facilmente, o presidente é o recordista desde Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), que governou o país em meio à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial.
Biden assinou 42 delas, muitas para cancelar políticas de Trump, como a saída dos EUA do Acordo Climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde, o veto à entrada de pessoas de alguns países de maioria muçulmana em território americano e a liberação de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México.
Político tradicional e senador por quase quatro décadas, Biden entende que ordens executivas são efêmeras e, para que suas políticas não sejam revertidas por um eventual próximo presidente, é preciso que o Congresso as torne leis.
O presidente tem pressa porque a frágil maioria de seu partido no Senado —são 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos, com desempate nas mãos da vice-presidente, Kamala Harris— pode terminar nas eleições legislativas de 2022.
Projetos que não envolvem orçamento precisam de mais do que apenas maioria simples para serem aprovados, como medidas que estão no pacote de infraestrutura ou sobre controle de armas e para frear as restrições de direito ao voto, temas que Biden tem abordado publicamente.
Enaltecido durante a posse, o discurso pelo bipartidarismo, entretanto, tem ficado para trás. A fórmula de Biden é convencer o Congresso a aprovar suas medidas impulsionado pelo apoio popular —e é por isso que ele tem apresentado as propostas de reforma na infraestrutura e investimento em economia verde atreladas à criação de milhões de empregos e aumento da competitividade no país.
Segundo o site FiveThirtyEight, a média de aprovação do presidente é de 54,4% —mais popular do que Trump durante todo o seu mandato, mas menos do que Obama, que tinha 60% no mesmo período.
Um dos poucos temas que tem unido Biden aos republicanos é a tensa relação com a China e a Rússia.Até agora, o democrata manteve ou até reforçou as políticas assertivas de Trump contra Pequim e aplicou sanções ao regime de Vladimir Putin por interferência nas eleições americanas e ataques virtuais.
Segundo um integrante do Departamento de Estado, os governos passados tiveram o luxo de escolher as ameaças de segurança nacional contra as quais iriam atacar primeiro, mas Biden não teve essa opção. Nas palavras do diplomata, China, Rússia, Covid-19 e mudanças climáticas se impuseram à Casa Branca.
Na semana passada, Biden liderou a Cúpula de Líderes sobre o Clima, para tentar reposicionar os EUA na liderança da geopolítica mundial, ditada pelo meio ambiente, considerado mais um trunfo do democrata.
A falta de comprometimento claro de países como China e Índia com a redução nas emissões de poluentes na próxima década, porém, podem atrapalhar os planos do americano.
Mas sua maior dor de cabeça hoje é a crise nas fronteiras, com o maior fluxo de imigrantes nos EUA em 20 anos. Durante a campanha, Biden prometeu dar tratamento mais humanitário aos estrangeiros que tentam entrar nos EUA sem documento e facilitar o acesso à cidadania americana a 11 milhões de imigrantes, mas o descontrole nas fronteiras eclipsou medidas já colocadas em prática, como a que pretende reunir as famílias de separadas na divisa no governo Trump.
Biden tem sido duramente atacado, inclusive por aliados, por ter restringido o acesso à imprensa para acompanhar o trabalho das patrulhas na divisa com o México e pelo alto volume de crianças desacompanhadas que ficam em centros de detenção mais do que as 72 horas permitidas por lei.
Ele ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva sobre a crise, mas, nesta terça-feira (27), nomeou para o comando da ICE (Agência de Imigração e Alfândega, na sigla em inglês) uma autoridade do Texas conhecida por ser crítica das políticas imigratórias de Trump.
Sob enxurradas de críticas na mesma área, a imigração, Obama carrega a pecha de que podia ter sido mais audacioso durante seu governo, mas, ainda assim, o primeiro presidente negro da história americana deixou duas marcas na história: Obamacare e a reforma financeira para sair da crise de 2008.
O senso de urgência mostra que Biden sabe que o tempo é curto para fazer mudanças estruturais em um país tão polarizado, mas os entraves podem ser grandes, e a possibilidade de concorrer à reeleição —que antes não era cogitada— já apareceu em um pronunciamento do democrata.
El País: 100 dias de Biden, uma profunda mudança de rumo nos Estados Unidos
O presidente norte-americano pisou no acelerador em questões relevantes como a vacinação maciça, a volta ao multilateralismo, a modernização do país e o novo rumo nas políticas sociais. Seu grande desafio continua sendo a imigração
ANTONIA LABORDE, YOLANDA MONGE, MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO e LUIS PABLO BEAUREGARD, El País
Apenas 100 dias de Joe Biden na Casa Branca bastaram para comprovar a profunda guinada nos Estados Unidos. O presidente da grande potência quis deixar claro desde o início a diferença abissal em relação ao seu antecessor, Donald Trump. No aspecto econômico; em política externa; nos assuntos sociais e nas políticas migratórias ―embora neste caso tenha tido que recuar de suas ambiciosas promessas. Também, ou talvez acima de tudo, pela forma como encarou a pandemia: os Estados Unidos colocaram a vacinação maciça como a principal meta da sua agenda nos seus 100 dias primeiros como presidente. E cumpriu com sobras.
Uma vacinação maciça
Desde o primeiro dia, tudo precisava estar condicionado a frear a pandemia e suas consequências. Para reativar a economia, em queda livre e com os piores índices desde a Grande Depressão da década de 1930, era preciso a todo custo frear os contágios e mortes. A poucos dias de completar, nesta quinta-feira, uma centena de jornadas no comando de um país que havia fracassado na contenção do vírus e soma atualmente mais de 570.000 mortes, o presidente dos Estados Unidos anunciou que já foram administradas 200 milhões de doses de vacinas contra a covid-19. Neste momento, 27% da população está completamente vacinada, o que se traduz em algo mais de 90 milhões de pessoas (de uma população total próxima de 330 milhões).
Biden superou seus objetivos em relação à vacinação, pois nenhum dos prazos anunciados foi descumprido. Logo que assumiu, o mandatário disse que haveria 100 milhões de pessoas vacinadas em seus primeiros 100 dias na Casa Branca, e esse marco se deu no 58º dia de mandato. “Quando cheguei ao poder, apenas 8% da população estava vacinada”, disse o presidente ao informar na quarta-feira, 21 de abril, que 200 milhões de pessoas já haviam sido inoculadas. Era o 93º dia de sua presidência, e Biden observava que mais de 50% dos moradores adultos dos Estados Unidos tinham recebido pelo menos a primeira dose de alguma das três vacinas disponíveis no país. No começo deste mês, a Casa Branca comunicava que a partir do dia 19 abriria a vacinação a todos os adultos do país, o que, novamente, representava uma antecipação de duas semanas sobre o prazo de 1º de maio anunciado anteriormente por sua Administração. Ainda assim, e, apesar da boa notícia, o mandatário quis apelar à prudência ao declarar que os Estados Unidos continuam “numa carreira de vida ou morte contra o vírus”.
A última medida do mandatário para estimular a população a se vacinar foi um crédito fiscal para cobrir gastos com horas não trabalhadas por causa da vacinação dos funcionários de empresas com até 500 assalariados. “Nenhum trabalhador dos Estados Unidos deveria perder um só dólar do seu salário para ter tempo de se vacinar ou se recuperar da doença”, afirmou Biden. Como o democrata conseguiu essas cifras? Recorrendo, segundo suas palavras, a uma tática de colaboração entre empresas semelhante à que se viveu “na II Guerra Mundial”, comparou Biden. Porém, a ideia de ressuscitar uma lei de períodos bélicos para frear os contágios e mortes por covid-19 não surgiu com Biden. O ex-presidente Donald Trump conseguiu fabricar os primeiros lotes de vacinas com a ajuda da Lei de Defesa da Produção, uma norma que datava da Guerra da Coreia (1950) e que confere ao presidente dos Estados Unidos o poder de obrigar as empresas a aceitarem e priorizarem contratos necessários para preservar a segurança nacional.
A pandemia levou o Governo Trump a invocá-la, tanto para acelerar a produção de máscaras como para poder depois assegurar certos suprimentos para a produção da vacina. A receita do sucesso de Biden foi que o presidente reforçou as ajudas aos Estados, multiplicou os centros de vacinação federais e apostou numa rede de farmácias de proximidade. Essa foi uma das chaves do triunfo: que as vacinas estejam disponíveis em muitos lugares, seja um campo de beisebol ou em grandes descampados onde não é preciso nem descer do carro para receber a injeção. A produção e a distribuição foram decisivas e são as responsáveis, em grande medida, por esses resultados. Algo que o Governo Trump não conseguiu, por ter deixado o plano a cargo de cada Estado. Biden, ao contrário, assumiu as rédeas a partir de Washington para garantir que a vacinação fosse realmente maciça e se centrou na compra de suficientes doses não só para centros de atendimento médico, os primeiros a receberem as vacinas, mas também para que chegassem o quanto antes a toda a população, nos lugares menos esperados e sem parar por causa de feriados. “Se fizermos isto juntos, até 4 de julho é possível que você, sua família e amigos possam se reunir no quintal ou no bairro para organizar um almoço ou um churrasco e comemorar o Dia da Independência.” Esse é o objetivo máximo de Biden.
Ambição para superar a pandemia e modernizar o país
A ambição dos planos de estímulo e reconstrução, sem precedentes desde o New Deal de Franklin Roosevelt, definiu o programa econômico de Joe Biden nos primeiros 100 dias de seu mandato, mas seus objetivos vão além. É o que demonstra sua proposta de reforma fiscal, para exigir uma prestação de contas de multinacionais ―incluídas as grandes tecnológicas―, que durante anos esquivaram o pagamento de impostos federais e para obter financiamento para seus programas. Depois de sua declaração de intenções ―o plano de resgate da pandemia, de 1,9 trilhão de dólares (equivalente ao PIB do Brasil), aprovado pelo Congresso em março―, a Administração democrata se dispõe a modernizar os EUA mediante um colossal plano de infraestruturas, com investimentos de dois trilhões de dólares em oito anos para gerar milhões de empregos. A reforma fiscal será, se aprovada no Congresso, o instrumento para isso. O objetivo maior da sua política é combater pela raiz males como a pobreza infantil e, acima de tudo, uma desigualdade social sistêmica; os dois planos (o resgate e o programa de infraestrutura) incluem numerosas iniciativas a esse respeito. A principal diferença entre ambos está no financiamento: o primeiro fica a cargo do orçamento federal, o que aumentará o endividamento; o segundo depende dos contribuintes.
Mediante a projetada reforma fiscal, que pretende elevar o imposto empresarial de 21% para 28%, o presidente não só aspira a arrecadar 2,5 trilhões de dólares nos próximos 15 anos para financiar seu exaustivo programa de reconstrução; ele quer mudar as regras do jogo. Esse propósito precisará ser visto com o Congresso, e não só os republicanos. “Os [democratas] moderados propõem uma menor elevação do imposto empresarial, para 25%”, aponta Jack Janasiewicz, da administradora de recursos Natixis.
Quando chegou à Casa Branca, ainda não se via a luz ao final do túnel da pandemia. Por isso, como prometeu em campanha, a primeira medida foi o plano de 1,9 trilhão de dólares como injeção econômica direta, a metade em forma de cheques em dinheiro para famílias e negócios afetados pela emergência, e o resto para ampliar a cobertura dos desempregados. O plano incluía uma verba de 400 bilhões (2,19 trilhões de reais) para incentivar a vacinação. A julgar pelos resultados (25% da população está imunizada), o objetivo se cumpriu. Pelo caminho da tramitação parlamentar ficou, entretanto, a promessa eleitoral de aumentar o salário mínimo federal para 15 dólares por hora.
O plano de infraestrutura aspira a reforçar o país frente ao avanço da mudança climática; de fato, a proposta do primeiro orçamento federal da Administração democrata prioriza a luta contra o aquecimento global. “Biden está preparando uma ordem executiva para insistir com as agências federais para que tomem medidas de combate aos riscos financeiros relacionados ao clima, incluindo medidas que poderiam impor uma nova regulação às empresas”, antecipa Janasiewicz. O principal temor é um repique da inflação, que, até agora, graças à intervenção do Federal Reserve (banco central), ficou sob controle. “O déficit subirá para 3,5 trilhões de dólares, uma cifra recorde, e esperamos que o crescimento do PIB possa superar 7% neste ano [6,5%, segundo o Fed]; isto só aconteceu três vezes nos últimos 70 anos. Agora cresceram as probabilidades de um período de inflação acima da meta do banco central”, apontavam recentemente em nota Libby Cantrill e Tiffany Wilding, da firma de investimentos Pimco, ressalvando que “a probabilidade de um processo inflacionário similar ao ocorrido na década de 1970 continua sendo relativamente baixa”.
Reabertura ao mundo, com a China na mira
A reabertura dos EUA ao mundo após quatro anos de isolamento percorreu várias estações nestes 100 primeiros dias do mandato de Joe Biden, com uma clara aposta no multilateralismo. As sanções à Rússia por sua ingerência eleitoral e um ataque cibernético maciço; a retirada definitiva das tropas do Afeganistão e o diálogo para reavivar o pacto nuclear com o Irã, que os EUA abandonaram em 2018, marcaram este período de graça, tanto como o fiasco da primeira reunião bilateral com a China. Além disso, Biden procurou na recente cúpula climática internacional recuperar a liderança para os EUA com um ambicioso plano de redução de emissões. Trata-se de uma guinada importante na política adotada pelo país nos últimos anos e implicará uma profunda transformação econômica desta potência.
Rússia, Afeganistão e Irã monopolizam os holofotes, enquanto a forja de velhas e novas alianças para rebater a pujança chinesa é a parte menos visível do iceberg diplomático. O fato de Yoshihide Suga, primeiro-ministro do Japão, ter protagonizado na semana passada a primeira visita oficial a Biden na Casa Branca indica qual é o objetivo primordial da sua política externa: frear a China e todos os seus desafios, tanto dentro do seu território (a repressão da minoria muçulmana aos uigures em Xinjiang) como no mar do Sul da China ou em seu apoio ao regime nuclear da Coreia do Norte, para não falar de suas ingerências em Hong Kong, Taiwan e Tibete. A primeira viagem oficial dos secretários de Estado e Defesa foi ao Japão, Coreia do Sul ―dois países onde os EUA mantêm tropas― e Índia, outro aliado crucial para domar a voracidade estratégica chinesa.
Apesar de ter devolvido a diplomacia ao cenário internacional, Biden não se privou de dar alguns murros na mesa, como ao anunciar as sanções mais duras contra o Kremlin desde a presidência de Barack Obama, fechando o parênteses de suposta cumplicidade ou negligência por parte de Trump, e a denúncia da implicação do poderoso príncipe herdeiro saudita, Mohamed bin Salman, no assassinato do jornalista crítico Jamal Khashoggi. Este último foi um movimento decepcionante para quem esperava medidas mais duras, inclusive sanções, mas soou como um aviso a um aliado tradicional, vital no equilíbrio regional do Oriente Médio. Apontar o dedo para o herdeiro foi a segunda advertência a Riad depois da retirada do apoio ao regime saudita na guerra do Iêmen, que o presidente democrata qualificou de “catástrofe humanitária e estratégica”.
A sombra da síndrome do Vietnã é alongada, e Biden começou seu mandato pondo limites a guerras sem fim como a do Iêmen, a da Síria ―parte do legado de Barack Obama― e a mais prolongada de todas, a do Afeganistão, quando se aproxima o vigésimo aniversário dos atentados do 11 de Setembro, origem da chamada “guerra ao terrorismo” declarada por George W. Bush. A permanência das tropas norte-americanas no país do Oriente Médio tinha chegado anos atrás a um beco sem saída, que as ações letais do Talibã e a dificuldade de levar adiante o diálogo com Cabul só contribuem para ressaltar. Sair do atoleiro afegão é um alívio para um país que continua recebendo corpos de soldados em sacos plásticos.
Apesar do que prometeu em campanha, Biden não retirará as tropas da Europa, e menos ainda em pleno reaquecimento da tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Biden paralisou a retirada militar da Alemanha anunciada por Trump e vigia qualquer movimento no flanco oriental europeu, que representaria uma ameaça tanto para seus efetivos como para a linha de defesa da OTAN. A nova Guerra Fria com Moscou dominará as relações euro-atlânticas, junto com a declaração de boas intenções à União Europeia, pendente de se concretizar. Em outra mudança na política externa, o democrata reconheceu pela primeira vez neste sábado como “genocídio” a matança de armênios por parte do império turco, uma declaração que eleva a tensão com a Turquia, país que também é sócio da aliança atlântica.
Com exceção do México e do chamado Triângulo Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala), para frear a saída de imigrantes irregulares, Biden não prestou atenção à América Latina.
Reviravolta nas políticas sociais
Antes de completar uma semana na Casa Branca, Joe Biden assinou uma ordem que proíbe a expulsão de qualquer membro do Exército por causa da sua identidade de gênero, levantando o veto imposto pelo ex-presidente Trump às pessoas transgênero. O decreto estabelece também que os departamentos de Defesa e de Segurança Nacional devem revisar os históricos de serviço dos militares que foram demitidos ou que tiveram sua reincorporação vetada por este motivo. O democrata se tornou o primeiro presidente a comemorar o Dia da Visibilidade das Pessoas Transgênero, celebrado desde 2009. O mandatário está pressionando para que o Senado aprove a Lei de Igualdade, que modifica a Lei de Direitos Civis de 1964 para incluir a proteção contra discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, junto com os casos motivados por raça, religião, sexo e origem nacional. Essas proteções se estenderiam a questões de emprego, moradia, educação, solicitação de crédito, entre outras áreas em que o coletivo costuma sofrer discriminações.
Os republicanos se opõem, entre outras razões, por medo de que isso obrigue pessoas religiosas a tomarem decisões que contrariem suas crenças, como a contratação em escolas privadas de pessoas cuja conduta viole seus princípios de fé. Para que o projeto se transforme em lei, deve obter 60 votos no Senado, que está dividido em metades iguais (50/50). Quanto ao direito ao aborto, a Administração de Biden também trabalha para reverter as decisões de seu antecessor. O democrata já revogou a medida que proibia ONGs e prestadores de serviços de saúde no exterior de utilizarem recursos do Governo norte-americano para prestar assessoria sobre aborto. Trump também proibiu que clínicas de planejamento familiar financiadas com recursos federais encaminhem suas pacientes para clínicas de aborto e cortou o orçamento destes centros, que atendem a mulheres de baixa renda. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) elaborou uma proposta para revogar esta última medida, que está em fase de discussão pública.
Em outra frente relevante, a agenda contra o racismo, Biden assinou quatro ordens executivas. Uma delas obriga o Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano a tomar as medidas necessárias para “reparar as políticas federais racialmente discriminatórias que contribuíram para a desigualdade da riqueza durante gerações”. Outro decreto elimina os contratos do Departamento de Justiça com as prisões privadas. Os Estados Unidos são o país com maior população carcerária do mundo, composta desproporcionalmente por negros e latinos. As duas ordens restantes procuram combater a xenofobia contra os norte-americanos de ascendência asiática e aumentar a soberania das tribos nativas americanas.
Embora esteja em fase preliminar, o Governo democrata também quer reformar as normas sobre o assédio sexual em escolas. Biden assinou uma ordem executiva para que o Departamento de Educação revise as regras estabelecidas pelo Governo Trump, redefinindo o assédio sexual como uma gama limitada de ações “severas, generalizadas e objetivamente ofensivas”. O democrata afirmou que o Departamento de Educação deve “considerar suspender, revisar ou rescindir” qualquer política que não proteja os estudantes. Esse órgão prevê ―ainda sem data― convocar uma audiência pública para que estudantes, pais e profissionais da educação deem suas ideias antes que a Administração divulgue sua proposta sobre como colégios e universidades que recebem recursos públicos devem responder às acusações de agressão e assédio sexual.
Biden, além disso, criou o Conselho de Políticas de Gênero da Casa Branca, um organismo que coordenará os esforços do Governo para promover a equidade e igualdade de gênero mediante políticas e programas de combate aos preconceitos e à discriminação, e aumentar a segurança e as oportunidades econômicas. Também proporcionará recomendações legislativas e de política ao mandatário.
Desafio migratório
A imigração é, junto com a crise do coronavírus, um dos principais problemas deste começo de Governo Biden. Os especialistas consultados para esta reportagem concordam que o Governo democrata estabeleceu a direção correta neste tema, mas as mudanças para desmontar o perverso sistema herdado de Donald Trump não chegaram com a velocidade esperada. O modelo migratório da nova era é um assunto pendente e, como muito do legado trumpista, terá sua sorte decidida num Congresso dividido e polarizado. “Esta direção é apenas parte de uma visão que está em construção. A Administração encara opções muito difíceis, e resta ver quais caminhos pode tomar no clima político atual”, afirma Hiroshi Motomura, acadêmico da Escola de Direito de Universidade de Califórnia em Los Angeles (UCLA).
Biden desenhou o perfil de sua reforma imaginada com uma série de ações nas primeiras horas de seu mandato. Prometeu regularizar 11 milhões de imigrantes irregulares, revogou o veto de viagens a alguns países muçulmanos e recriou os programas que garantem proteção a mais de um milhão de pessoas entre os jovens que chegaram aos EUA na infância (os chamados dreamers) e os migrantes provenientes de países afetados pela mudança climática e a pobreza, incluindo cidadãos venezuelanos. Também pôs fim à desumana política de separação de famílias e de expulsão de menores migrantes.
A Câmara de Representantes, de maioria democrata, aprovou o plano de Biden. O Senado o tem em suas mãos, e seu aval é mais complexo. “Necessita 60 votos, e tem 50. Estamos esperando que passe, mas será preciso convencer 10 republicanos, e não será simples”, considera a advogada Alma Rosa Nieto, integrante da Associação de Advogados de Imigração. “Ainda estamos lutando com um partido republicano pró-Trump com muitos legisladores anti-imigrantes”, afirma. O senador Lindsey Graham, muito influente entre os republicanos, disse em março que não apoiará reforma migratória alguma “enquanto a fronteira [com o México] não estiver controlada”. É apenas um exemplo do duro pedágio que aguarda a Administração democrata, à espera também de que a Câmara Alta aprove uma série de nomeações que renovarão a cúpula de Segurança Doméstica e da vigilância de fronteiras com perfis progressistas de ativistas e policiais.
Washington nega que a atual situação configure uma crise. Os agentes da patrulha fronteiriça detiveram em março 172.331 migrantes. É um aumento de mais de 100.000 detenções desde janeiro, e o maior registrado desde março de 2001. Este aumento de entradas causa tensão em várias regiões fronteiriças. Bruno Lozano, prefeito de Del Río (Texas), uma cidade que viveu a chegada da onda, enviou em fevereiro passado um SOS a Biden. “Não temos recursos para acomodar estes migrantes em nossa comunidade”, disse o democrata, conhecido por ser o prefeito mais jovem (e abertamente gay) na história desta localidade de 35.000 habitantes. A mensagem se tornou viral e foi amplamente repercutida pelos setores mais conservadores, interessados em manter a ideia de que a fronteira está fora de controle.
Os analistas põem em perspectiva essas históricas cifras. “É falso dizer que as fronteiras estão abertas”, afirma Aaron Reichlin-Melnick, do Conselho Americano da Imigração. “Nos últimos três meses, quase 70% das pessoas que entraram foram expulsas rapidamente graças a uma norma implementada no ano passado por Trump durante a pandemia e que Biden manteve. Menos famílias estão sendo autorizadas a ficar em 2021 do que em 2019 com a Administração Trump”, acrescenta. Os adultos sozinhos continuam sendo o grupo mais numeroso de migrantes, embora o fenômeno dos menores desacompanhados tenha voltado a crescer até níveis inéditos. Em março foram 18.000, um número que superlotou os albergues do Governo, cuja manutenção custa pelo menos 60 milhões de dólares (328,6 milhões de reais) por semana ao Departamento de Saúde e Serviços Sociais.
Biden também manteve do Governo anterior o teto de 15.000 refugiados anuais autorizados a entrar nos Estados Unidos. A decisão causou alvoroço entre as bases democratas, que consideram rompida uma promessa de campanha de elevar os acolhidos a mais de 60.000. A polêmica forçou o Executivo a recuar. Deve anunciar medidas definitivas em maio, mas muitos concordam que foi uma oportunidade perdida para estabelecer um antes e um depois em relação a Trump, uma era que não acaba de desaparecer por completo.