Estados Unidos
Estados Unidos dizem confiar plenamente na democracia brasileira
DW Brasil
O governo dos Estados Unidos afirmou nesta quinta-feira (02/12) ter plena confiança de que as eleições de 2022 no Brasil serão "livres e justas". A declaração foi feita por Juan González, encarregado de assuntos da América Latina do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca.
Ele respondia a uma pergunta sobre o risco de o Brasil ter no ano que vem o seu próprio "6 de janeiro", em referência à invasão do Congresso americano por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, que tentavam evitar a certificação da vitória de Joe Biden.
O presidente Jair Bolsonaro, apelidado por alguns analistas como "Trump dos trópicos", afirmou diversas vezes, sem apresentar provas, que o sistema eletrônico de votação no Brasil sofre fraudes e disse que não admitiria uma derrota eleitoral. "Só Deus me tira daqui", disse ele em maio, após defender a adoção do voto impresso.
González fez em abril sua primeira viagem oficial à América Latina, que incluiu Colômbia, Argentina e Uruguai. O Brasil ficou de fora.
Cúpula pela Democracia
Na próxima semana, o governo Joe Biden realizará aCúpula pela Democracia, para a qual o Brasil foi convidado e terá Bolsonaro como participante.
A cúpula virtual reunirá líderes de governos, de organizações da sociedade civil e de empresas, e será realizada na próxima quinta e sexta.
Questionado sobre a pertinência de ter Bolsonaro na cúpula, tendo em vista seus constantes ataques ao sistema democrático, González disse que o Brasil "definitivamente precisava ter um assento na mesa". "Se olharmos a trajetória da democracia brasileira, creio que as instituições brasileiras têm muito a ensinar ao mundo sobre a democracia."
O assessor do governo Biden ressaltou que a cúpula não terá somente a participação de governantes. "Acho importante que os líderes escutem os jornalistas e a sociedade civil e os ajudem a assumir seus próprios compromissos sobre como os governos podem realmente responder a algumas das demandas que recebem da população", disse.
Bolsonaro também aceita convite de Putin
A Cúpula pela Democracia organizada por Biden convidou chefes de governo e de Estado de cerca de 110 nações, e deixou de fora a Rússia, China, Turquia, Hungria, Venezuela e Bolívia, entre outros países.
Uma das nações que ficou irritada com a iniciativa americana foi a Rússia. Em novembro, o Kremlin acusou os Estados Unidos de tentarem criar divisão entre os países com a cúpula.
"Certamente temos uma atitude negativa em relação a esse evento. Não é nada mais do que uma tentativa de traçar novas linhas divisórias", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov. Ele acusou os Estados Unidos de tentarem "privatizar a palavra 'democracia'", acrescentando que, para Washington, democracia é apenas o que se encaixa em seu entendimento.
Nesta quinta-feira, Bolsonaro informou que aceitou um convite do presidente russo, Vladimir Putin, para viajar ao seu país em 2022. Segundo a agência de notícias estatal russa, Putin disse que o Brasil era um dos "mais importantes parceiros estratégicos" da Rússia.
Bolsonaro disse que havia aceitado o convite e está "feliz" e "honrado", pois a inciativa "abre uma janela de oportunidade" para o Brasil. "É um grande mercado consumidor. Vamos aprofundar esse relacionamento com a Rússia. (...) Vamos nos preparar para fazer dessa visita uma oportunidade de alavancarmos a nossa economia", afirmou.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/eua-dizem-confiar-plenamente-na-democracia-brasileira/a-60010425
Sem Brasil, Estados Unidos anunciam pacto contra desmatamento da Amazônia
Maior país amazônico, Brasil ficou de fora da viagem do secretário de Estado americano pela América do Sul
DW Brasil
Numa tentativa de combater um fator-chave das mudanças climáticas, os Estados Unidos vão lançar um pacto regional na Amazônia para reduzir o desmatamento e proteger terras indígenas na região, anunciou o secretário de Estado americano, Antony Blinken, nesta quinta-feira (22/10).
Em visita à Colômbia, Blinken afirmou que os EUA vão finalizar nos próximos dias uma "nova parceria regional focada especificamente no enfrentamento do desmatamento impulsionado por commodities”.
Segundo o secretário, a iniciativa fornecerá informações a empresas para ajudá-las a reduzir sua dependência da destruição florestal.
"Podemos dar grandes passos para lidar com a crise climática", disse Blinken ao anunciar o pacto, a poucos dias da próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP26.
Na Colômbia, Blinken visitou projetos apoiados pelo governo americano para promover o turismo, o cultivo de cacau e outras alternativas econômicas à extração madeireira.
Blinken afirmou que o pacto também incluirá assistência financeira para ajudar a administrar áreas indígenas protegidas e apoiar a subsistência de agricultores.
Brasil sob pressão
Florestas tropicais são cruciais para o clima porque servem como um grande sumidouro de carbono, mas as emissões de gases do efeito estufa resultantes de queimadas e da agricultura industrial na Amazônia superam as emissões anuais de países como Itália ou Espanha.
O Brasil é de longe o país que abriga a maior parte da Floresta Amazônica. Outrora considerado uma potência ambiental, o país sofre com desmonte de suas políticas de conservação e desmatamento em alta desde a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência.
Antony Blinken na Colômbia: "Podemos dar grandes passos para lidar com a crise climática"
Antes da COP26, o governo Biden fez tentativas de aproximação do Brasil com o objetivo de alcançar algum compromisso ambiental.
Apesar da tímida tentativa de aproximação, o Brasil ficou de fora da primeira viagem de Blinken à América do Sul. E, durante sua visita à Colômbia, o secretário de Estado se recusou a responder uma pergunta sobre críticas ambientais a Bolsonaro.
Em maio deste ano, o enviado especial para o clima do governo dos EUA, John Kerry, afirmou que o Brasil, como uma das maiores economias globais, deveria assumir a vanguarda do enfrentamento da crise climática. "O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e líder regional, o país tem a responsabilidade de liderar", disse.
Elogios à Colômbia
A Colômbia, por sua vez, um aliado próximo dos EUA, tem metas climáticas que estão entre as mais ambiciosas da América Latina. O presidente Ivan Duque estabeleceu o objetivo de zerar o desmatamento até 2030.
Ao encontrar Blinken, o ministro do Meio Ambiente colombiano, Carlos Eduardo Correa, observou que cerca de um terço do país está na Amazônia e afirmou que as mudanças climáticas estão obrigando o país a "construir um novo modelo econômico, social e ambiental".
Em Glasgow, "o planeta inteiro está esperando por anúncio importantes, ações", disse Correa, em referência à COP26, que será realizada na cidade escocesa a partir de 31 de outubro.
Blinken afirmou que Duque mostrou "liderança notável" na questão climática e que o "time Colômbia está muito presente" antes da COP26.
Assim como Duque, Bolsonaro também prometeu zerar o desmatamento ilegal até 2030. Mas, em maio deste ano, tomou um alfinetada do governo americano devido à promessa.
"O presidente Bolsonaro se comprometeu a zerar o desmatamento ilegal no Brasil até 2030 e alcançar a neutralidade climática até 2050. Para atingir qualquer uma dessas metas, o Brasil precisará tomar medidas imediatas para reduzir significativamente o desmatamento em 2021", disse Kerry.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/eua-anunciam-pacto-contra-desmatamento-da-amaz%C3%B4nia/a-59586034
RPD || Guilherme Casarões: Lições do Afeganistão pós-americano
Retorno violento do Talibã ao controle do país é claro sinal de que a fórmula hegemônica da democracia liberal se tornou disfuncional e contraproducente
A dramática saída norte-americana do Afeganistão marca o fim de uma era. Nos vinte anos de ocupação militar do país, o mundo testemunhou o declínio do poder dos Estados Unidos e a reorganização da ordem mundial em torno de uma superpotência em ascensão, a China. Cabul era a fronteira final de um modelo hegemônico há tempos insustentável. Sua queda para os militantes radicais do Talibã é mais uma evidência, talvez a derradeira, de um mundo diferente em formação.
E que mundo é esse? Trata-se de uma nova-velha ordem mundial, com elementos inéditos, mas diversas características conhecidas de outros tempos. Duas novidades merecem destaque: a primeira é o deslocamento do centro de poder para a Ásia, após cinco séculos de absoluto domínio cultural, militar e político do Ocidente.
A segunda novidade diz respeito às dinâmicas de poder. Vivemos a era do mercado geopolítico, em que Washington e Beijing – e, em menor grau, o eixo Berlim-Bruxelas – mobilizam modalidades variadas de recursos econômicos, políticos ou militares para criar esferas de influência globais, ao passo que países consumidores usufruem de certa liberdade para escolher a qual potência se associar, numa espécie de hegemonia à la carte.
Nesse novo arranjo, estabilidade e prosperidade valem mais que pluralismo e democracia. Se os americanos não se mostram capazes ou interessados em garantir o desenvolvimento local, com certa autonomia, os países buscarão a via chinesa, materializada no ambicioso projeto da Nova Rota da Seda. O pacto é simples: comércio e investimentos em troca de recursos naturais e lealdade política – sem julgamentos morais, receituários prontos ou imposição de valores.
O retorno da velha geopolítica trouxe consigo velhos sentimentos nacionalistas. Despida das amarras ideológicas da Guerra Fria, a disputa hegemônica sino-americana abriu espaço para emergência de movimentos soberanistas que contestam os efeitos da globalização, de fluxos migratórios à exportação de empregos, do multiculturalismo identitário à democracia liberal.
Nacionalistas contemporâneos em geral propõem uma visão de futuro olhando para o retrovisor, baseada no conceito de nacionalismo religioso. Expressam uma tendência, iniciada em regiões periféricas do globo e cada vez mais saliente nas democracias ocidentais, de condicionar o pertencimento nacional a um critério de fé, numa fusão pré-moderna entre identidades política e religiosa.
Sob a ótica do nacionalismo religioso, defendida por líderes mundiais tão distintos quanto Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Narendra Modi, a religião é o elemento que permite superar tanto um choque intra-civilizações quanto um choque entre civilizações, para remeter à clássica (e controversa) tese de Samuel Huntington. As crises sociais internas seriam superadas pelo cimento social religioso, capaz de fornecer uma bússola moral e assegurar a unidade nacional. Ao mesmo tempo, essas mesmas religiões informariam os novos padrões de alinhamento globais. O resultado seria um mundo fundamentalmente distinto daquele que conhecemos.
Após a retirada norte-americana, o Afeganistão rapidamente passou a incorporar todos os elementos dessa nova-velha ordem. O abrupto colapso das instituições políticas afegãs, cedendo passagem ao violento retorno do Talibã, é mais um claro sinal de que a fórmula hegemônica da democracia liberal se tornou disfuncional e contraproducente.
Na sequência, o imediato reconhecimento russo e chinês do novo governo afegão é revelador da dinâmica da geopolítica concorrencial, ou à la carte. Ao contrário de algumas previsões apressadas, os problemas que a China tem com sua própria população muçulmana não a impediram de encontrar um modus vivendi com fundamentalistas islâmicos além-fronteiras.
Por fim, a gradativa normalização do nacionalismo religioso afegão ao redor do mundo, mesmo à custa de valores democráticos, direitos humanos ou liberdades individuais, sugere que ainda veremos, ao longo desta década que se inicia, outras tentativas de solucionar crises internas pela supremacia da fé.
Bem ou mal, não se poderá contar com o ímpeto das potências ocidentais, enfraquecidas e dedicadas a resolver suas próprias divisões internas, para salvaguardar a democracia liberal em nível global. Se mais movimentos como o Talibã nos aguardam no futuro, caberá a cada sociedade garantir que essa fusão nacionalista religiosa e esse ambiente geopolítico cada vez mais perigoso não coloquem em risco as conquistas políticas das últimas décadas.
Guilherme Casarões é doutor e mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (Programa SAN Tiago Dantas). Leciona Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP)e na FGV-SP. Pela Contexto é autor do livro Novos olhares sobre a política externa brasileira.
EUA: Lei pode barrar US$ 500 milhões em exportações do Brasil por desmatamento
Itens como soja, cacau, gado, borracha, óleo de palma, madeira e seus derivados de países com índices altos de desmatamento florestal podem ser barrados
Mariana Sanches / BBC News Brasil
O projeto legislativo, batizado de Forest Act 2021, ou Lei Florestal 2021, foi apresentado na última quarta (6/10), e é o mais abrangente marco legal no tema proposto nos EUA nos últimos anos. Na justificativa do projeto, ao qual a BBC News Brasil teve acesso em primeira mão, o senador democrata Brian Schatz e o congressista democrata Earl Blumenauer, autores da peça, citam o Brasil - e seus produtos de origem bovina - como exemplo do problema.
"Em 2020, os EUA importaram carnes e couros bovinos processados avaliados em mais de US$ 500 milhões do Brasil. Ali, a pecuária é o maior impulsionador do desmatamento na Floresta Amazônica e outros biomas, e 95% de todo o desmatamento feriam a lei", escrevem os autores no projeto de lei apresentado simultaneamente à Câmara e ao Senado. Além do Brasil, apenas a Indonésia é citada nominalmente no texto.
Embora digam que a regra não tem como alvo países, e sim o aquecimento global e a devastação ambiental, os legisladores americanos reconhecem que o Brasil deve ser afetado caso a lei passe, o que eles esperam que ocorra até novembro de 2022.
Em 2021, o Brasil deverá se consolidar como o quarto maior exportador de carne bovina congelada aos EUA e atualmente já é o maior fornecedor de material bruto para fabricação de assentos de couro de automóveis. Esses seriam os mercados em maior risco. A BBC News Brasil entrou em contato com a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (ABIEC), mas a entidade afirmou que não se manifestaria.
"A aprovação da lei vai ser uma oportunidade para o Brasil (mudar), já que até agora o país está tratando com deboche seus compromissos ambientais. O atual governo tem agido de forma descuidada em relação ao desmatamento, não tem sido particularmente sensível aos direitos dos povos indígenas. Isso fere os interesses do Brasil", afirmou Blumenauer à BBC News Brasil.
Biden e o aquecimento global
A proposta da Lei Florestal é a primeira grande ameaça de punição dos EUA ao Brasil em relação ao comportamento do país em um tema prioritário para a Casa Branca: o aquecimento global. Segundo Rick Jacobsen, chefe de políticas para o Brasil na ONG Environmental Investigation Agency (EIA), sediada em Washington, "não há dúvida de que a destruição da floresta amazônica é uma grande motivação dos legisladores americanos" para propor a nova lei.
Em agosto de 2021, o presidente Bolsonaro admitiu o desafio que o assunto representava na relação bilateral com os EUA. "Da minha parte, o Brasil está de portas abertas e pronto para continuar a conversa com o governo americano. Obviamente, o governo Biden é um governo mais de esquerda e um governo que tem quase uma obsessão pela questão ambiental, então isso atrapalha um pouquinho a gente", afirmou o mandatário brasileiro.
O democrata Joe Biden se elegeu à presidência prometendo retornar ao Acordo de Paris e retomar o protagonismo americano no combate às mudanças climáticas. Ele chegou a citar o desmatamento da Amazônia em um debate presidencial, ainda em 2020, como exemplo de situações nas quais ele acreditava poder liderar o mundo em busca de soluções.
Por isso mesmo, o projeto de lei se encaixa com precisão à pauta de Biden. De acordo com Schatz e Blumenauer, se o desmatamento global fosse considerado um país, ele seria o terceiro maior emissor de gases do efeito estufa do mundo, atrás apenas da China e dos EUA. Especialistas afirmam que a devastação da cobertura vegetal do planeta responde por cerca de 10% das emissões globais. Diante do problema, a solução estaria em mirar o motor para a derrubada das matas.
"Já temos uma lei federal que tenta garantir que não importemos madeira originária de desmatamento ilegal, mas o fato é que muito do desmatamento está sendo impulsionado pelas commodities que são cultivadas nas áreas após o corte da floresta tropical. E então nosso problema é garantir que nenhum dos produtos que chegam aos nossos portos são resultado de desmatamento ilegal", afirmou Schatz à BBC News Brasil. Além de barrar os produtos, a lei também prevê a possibilidade de que a importação irregular desses itens seja incluída no hall de crimes financeiros no país.
Embora não esconda as divergências em relação ao governo brasileiro, Biden tem optado por um tratamento discreto e diplomático em relação ao Brasil. O mandatário americano convidou Bolsonaro para a Cúpula de Líderes que tratou de clima em abril (embora tenha deixado a sala virtual do encontro no momento em que o presidente brasileiro falou) e, até maio, a equipe de seu Enviado Climático, John Kerry, mantinha contatos semanais com o Itamaraty e o Ministério do Meio Ambiente sob Ricardo Salles.
Mas a percepção de que o governo brasileiro apenas pedia por recursos financeiros, sem entregar resultados concretos, e o fato de o próprio Salles ter passado a ser investigado em processos por suposto envolvimento com desmatamento ilegal - o que ele nega - azedaram o clima com os americanos.
A retomada do diálogo entre as partes aconteceu um pouco antes da última Assembleia Geral da ONU, em setembro, na qual Bolsonaro tentou mostrar que cumpria as promessas que fez na Cúpula de Biden. Ele citou em seu discurso o aumento do orçamento de órgãos de fiscalização, como o Ibama, e a redução nos índices de desmatamento medidos em agosto, além de ter elogiado o Código Florestal brasileiro, o mesmo que seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, tentou afrouxar via projeto de lei ainda em 2019. Reservadamente, integrantes do primeiro escalão do governo brasileiro disseram à BBC News Brasil que o discurso foi elogiado tanto por Kerry como pelo secretário de Estado dos EUA Antony Blinken.
Perguntado pela BBC News Brasil, porém, sobre se acreditava nas palavras de Bolsonaro na ONU, o congressista Blumenauer deu uma gargalhada. "Estamos vendo índices históricos de desmatamento. É risível. Até agora não vimos evidências de mudança. Ele diz que vai mudar e terá ocasião de provar isso, mas até agora, não. E não conseguiremos colocar as coisas nos eixos na América Latina, especialmente em relação às ameaças climáticas, sem o Brasil", disse Blumenauer.
Embora o governo brasileiro comemore em setembro o segundo mês consecutivo de queda de desmatamento na Amazônia, os índices seguem em patamares elevados e o acumulado do ano de 2021 até setembro é quase o dobro do registrado no mesmo período de 2018, antes da chegada de Bolsonaro ao poder.
A Casa Branca ainda não se manifestou publicamente sobre a Lei Florestal mas está ciente do projeto, segundo os dois parlamentares. "Vai ser uma ferramenta para a administração Biden promover seus interesses. O presidente é bastante diplomático e normalmente preferiria a cooperação. Mas ele não teve que apresentar isso, nós apresentamos, e eu acho que ele vai nos apoiar. E é algo que o ajuda a administrar a relação com o Brasil", afirma Blumenauer, para quem é importante ter também "instrumentos de punição" em uma "política diplomática de incentivos e punições".
A própria proposta de lei contempla os dois aspectos. Por um lado, deixa aberta a possibilidade de que países com desmatamento persistente sofram ações diretas da presidência - o que poderia incluir sanções. Por outro, preveem a criação de um fundo pelos EUA para financiar a conservação dos biomas em territórios alheios.
"O fundo vai exigir bilhões de dólares, e, obviamente, isso ainda precisa ser negociado. Mas sabemos que os países desenvolvidos precisam ajudar aqueles que ainda têm economias em desenvolvimento a fazer uma série de escolhas certas para o planeta, e essa ajuda não pode vir só na forma de conselhos ou pedidos. Muitos desses países precisarão de ajuda financeira. E estamos preparados para ajudar desde que haja seriedade no tratamento do problema", afirma Schatz.
Protecionismo
O Itamaraty reconhece que o Brasil tem um problema de imagem internacional na questão ambiental e tem havido por parte do órgão um esforço para mudar a posição desfavorável do país no debate.
Consultada pela BBC News Brasil, a Embaixada Brasileira em Washington D.C. afirmou em nota que "monitora todos os projetos que tramitam no Congresso americano com consequências potenciais para as relações entre o Brasil e os EUA" e que "mantém interlocução permanente com parlamentares americanos dos dois partidos". "O compromisso do governo e do setor agropecuário brasileiros com a sustentabilidade é tópico prioritário nesses contatos", conclui a nota.
Os diplomatas brasileiros e os setores produtivos nacionais, no entanto, sempre relembram que, a despeito da propalada preocupação ambiental, apertar as restrições aos produtos brasileiros também serve aos interesses de agricultores dos Estados Unidos e da Europa, competidores diretos do Brasil em uma série de mercados internacionais.
"Essa proposta legislativa dos EUA confirma a tendência de implementação no mundo de medidas com um duplo fundamento. O primeiro é ambiental e climático. Já o segundo é eminentemente econômico, de concorrência. E por isso é necessária uma atenção do Brasil ao tema, para tentar se resguardar dessas medidas. O Brasil precisa trabalhar para preservar o meio ambiente e preservar também o seu comércio internacional", afirma Abrão Arabe Neto, vice-presidente executivo da Amcham Brasil, a Câmara de Comércio Americana no país, e ex-secretário de comércio exterior.
Neto aponta que uma proposta muito semelhante - e tendo como alvos de restrições potencialmente o mesmo conjunto de produtos e de países, como Brasil e Indonésia - está em fase de finalização pela União Europeia.
E embora essas medidas possam levar meses ou anos até a completa implementação, seu impacto pode ser significativo para a economia desses países, analisa Rick Jacobsen.
"Com o desenvolvimento de regulamentações sobre desmatamento nos EUA e na Europa, os dois maiores mercados do mundo, junto com o Reino Unido, há uma sinalização desse bloco de países de que não querem participar da destruição da floresta amazônica e do Pantanal. Este deve ser mais um alerta para o governo brasileiro de que suas exportações agrícolas se tornarão uma marca cada vez mais tóxica nos mercados globais se o desmatamento não for controlado", diz Jacobsen.
Neto lembra, no entanto, que, depois de aprovadas, as regras ainda poderão ser contestadas nos âmbitos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, caso os países afetados as considerem protecionistas ou abusivas. Isso porque, mesmo produtores que já satisfaçam as condições de produção podem ter um aumento de custo de produção por ter que comprovar o rastreio das cadeias produtivas e emitir a documentação necessária, o que poderia, por exemplo, impactar na competitividade da mercadoria brasileira.
Questionado sobre se o seu projeto de lei tem um caráter protecionista e pretende, portanto, beneficiar os agricultores americanos, o senador Schatz afirmou à BBC News Brasil que "a razão pela qual trabalhei nessa legislação é porque ela é importante para o planeta. E nem uma única empresa americana veio até mim e pediu por isso".
Seu colega Blumenauer, no entanto, afirma que "produtores que desmatam são pessoas que têm uma vantagem comercial injusta, que trapaceiam e estão ameaçando o planeta, por isso têm que ser punidas". O congressista afirmou ainda que questionar a norma a partir desse ponto de vista "enfraquece o Brasil no cenário econômico global. Tomar medidas ambientais trapaceiras e imprudentes não vão garantir desenvolvimento econômico. E não são uma saída sustentável".
Blumenauer e Schatz esperam que o arcabouço ambiental legal recém apresentado por eles no legislativo americano possa ser exposto na COP-26, a Conferência da ONU para o Clima, que acontece em Glasgow, no Reino Unido, em novembro, e que outros países considerem seguir a mesma ideia.
Domesticamente, a Lei Florestal ainda precisa cair nas graças dos Republicanos - na Câmara, apenas um dentre os 212 congressistas do partido expressou publicamente interesse em bancar a lei. No Senado, ainda não há adesões oficiais da oposição. Mas, como os republicanos possuem uma base eleitoral composta por produtores rurais que teriam interesse na aprovação da norma, não é improvável que o projeto conquiste apoio bipartidário.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58826789
EUA liberam documentos sigilosos sobre o 11 de setembro
Famílias e associações de vítimas pressionaram governo por documentos
Aakriti Bhalla e Mark Hosenball / Reuters / Agência Brasil
O Bureau Federal de Inteligência dos Estados Unidos (FBI, na sigla em inglês) divulgou no sábado (11) o primeiro documento relacionado à investigação dos ataques de 11 de setembro de 2001 e às alegações de apoio do governo saudita aos sequestradores, após uma ordem executiva do presidente norte-americano, Joe Biden.
Parentes das vítimas haviam pedido a Biden que não comparecesse aos eventos memoriais para marcar o 20º aniversário no sábado caso ele não divulgasse os documentos que eles afirmam que mostram que autoridades da Arábia Saudita apoiaram os atentados.
O documento de 16 páginas parcialmente editado e divulgado pelo FBI expôs contatos entre os sequestradores e associados sauditas, mas nenhuma evidência de que o governo em Riade foi cúmplice dos ataques, que mataram quase três mil pessoas.
A Arábia Saudita afirma que não teve nenhum papel nos ataques. A embaixada saudita em Washington não respondeu imediatamente a um pedido de comentários feito pela agência de notícias Reuters, enviado na noite de sábado.
Em um comunicado divulgado em 8 de setembro, a embaixada disse que a Arábia Saudita sempre defendeu a transparência em torno dos eventos de 11 de setembro de 2001 e saúda a divulgação pelos EUA de documentos confidenciais relacionados aos ataques.
Quinze dos 19 sequestradores eram da Arábia Saudita. Uma comissão do governo dos EUA não encontrou evidências de que a Arábia Saudita financiou diretamente a Al Qaeda. Ficou em aberto se as autoridades sauditas poderiam ter feito isso individualmente.
As famílias de cerca de 2,5 mil dos mortos e mais de 20 mil pessoas feridas, empresas e várias seguradoras processaram a Arábia Saudita em busca de bilhões de dólares.
Em comunicado em nome da organização 9/11 Families United, Terry Strada, cujo marido Tom foi morto em 11 de setembro, disse que o documento divulgado pelo FBI no sábado eliminou quaisquer dúvidas sobre a cumplicidade saudita nos ataques.
"Agora os segredos dos sauditas foram expostos e já passou da hora de o Reino assumir o papel de seus agentes no assassinato de milhares em solo americano", disse o comunicado.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-09/estados-unidos-liberam-documentos-sigilosos-sobre-o-11-de-setembro
Passados 20 anos, consequências do 11 de setembro ainda geram debate
Uso da força nas relações internacionais ressurge após atentado
Léo Rodrigues /Agência Brasil
Lá se vão 20 anos de um dos dias mais fotografados, filmados e comentados da história da humanidade. Quando uma das duas torres do World Trade Center foi atingida por um avião com 92 pessoas a bordo, toda a imprensa mundial interrompeu o que estava fazendo e voltou suas atenções para Nova York. No horário de Brasília, adiantado uma hora em relação ao epicentro dos acontecimentos, os relógios marcavam 9h46. Menos de 20 minutos depois, a outra torre se tornou alvo de um segundo avião, com 65 passageiros a bordo.
Muitas pessoas que nasceram nas décadas de 1960, 1970 e 1980 ou mesmo no início da década de 1990 costumam se lembrar com exatidão do que estavam fazendo naquele 11 de setembro de 2001 quando tomaram conhecimento do que se passava. Em todo o mundo, onde houvesse uma televisão ligada, havia uma reunião de pessoas intrigadas com as cenas: cada uma das duas torres em chamas demoraria cerca de uma hora para ir ao chão depois de atingida. Com a queda dos edifícios, que funcionavam como um complexo comercial, quase 3 mil pessoas perderam suas vidas. Uma nuvem de poeira se formou por quilômetros.
O atentado se tornou um dos maiores eventos da história.
"Faço uma associação curiosa porque eu cresci escutando meus pais e meus avós falando onde estavam quando o homem pisou na Lua. E eu lembro exatamente do 11 de setembro de 2001. Estava fazendo estágio em uma empresa, entrou na sala uma pessoa falando que havia tido um acidente com um avião em Nova York. Ainda não se tinha ideia de que era um ataque. Nós corremos para a televisão e vimos ao vivo o segundo avião se chocando com o edifício", diz Jorge Lasmar, especialista em relações internacionais e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Ao todo, quatro aviões comerciais foram sequestrados por terroristas. Além dos dois direcionados ao World Trade Center, um foi jogado contra o Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos localizado na capital Washington. O último acabou caindo na zona rural de Shanksville, no estado da Pensilvânia. Especula-se que o alvo poderia ser o Capitólio, sede do Congresso, ou a Casa Branca, residência oficial do presidente do país.
Os desdobramentos são bastante conhecidos: a Al Qaeda assumiu a autoria do atentado e, no mês seguinte, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, onde a organização terrorista estaria abrigada. O país era comandado na época pelo Talibã, um grupo fundamentalista que aplica sua interpretação da Sharia, a lei islâmica. Após duas décadas, o governo norte-americano decidiu encerrar a ocupação e, no mês passado, o Talibã retomou o controle do Afeganistão, quando as tropas dos Estados Unidos estavam organizando sua retirada. O então presidente afegão Ashraf Ghani, eleito em 2014 e reeleito em 2019, não ofereceu resistência ao Talibã e fugiu do país.
Apesar da cronologia dos acontecimentos ser de domínio público, muitos aspectos ainda são debatidos por especialistas. São questões que vão além da superficialidade dos fatos e envolvem os seus efeitos.
“Não há dúvida de que o mundo que a gente vive hoje foi consequência do que aconteceu", afirma Jorge Lasmar.
"No final da década de 1990, caminhávamos para a consolidação de uma atmosfera mais liberal no sentido capitalista, com os Estados abrindo suas fronteiras e seus mercados e com relações mais pacíficas entre os países. De repente, isso mudou. Começou a haver contestações à visão americana, sobretudo pela Rússia e pela China. As fronteiras ficaram mais fechadas. A questão do uso da força voltou a ser um componente nas relações internacionais. E tivemos um avanço do terrorismo. Mesmo com a redução dos ataques e das mortes nos últimos anos, os números hoje ainda são muito mais altos do que eram antes de 2001", completa.
Ele pondera, no entanto, que o mundo não deve ser analisado somente pela ótica de um evento. “Muita coisa aconteceu de lá pra cá. Há efeitos, mas estamos hoje numa situação mais complexa e delicada”, avalia.
Políticas de segurança
Como desdobramento do atentado, uma série de leis aprovadas em torno da palavra de ordem “guerra ao terror” reduziu a liberdade e a privacidade de cidadãos nos Estados Unidos, especialmente de estrangeiros. A Europa também seguiu essa tendência. Foram definidos, em todo o mundo, novos mecanismos e protocolos de controle nos aeroportos: revista mais minuciosa das bagagens, uso de detector de metal, restrição a líquidos na mala de mão. A tecnologia foi aprimorada para aprofundar o monitoramento, com scanners corporais, detectores de explosivos e outros equipamentos.
“Assim como o final da Guerra Fria inaugurou uma nova era nas relações internacionais, o atentado de 11 de setembro também simbolizou uma ruptura na forma como se analisava a segurança internacional. A ideia de inimigo transnacional, desterritorializado e que pode causar um caos e muitas mortes sem ter o domínio de armas bélicas sofisticadas trouxe novos parâmetros para o planejamento de segurança dos Estados, reforçando a importância da cooperação internacional”, observa a cientista política Ariane Roder, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo Thiago Rodrigues, pesquisador em relações internacionais e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), o desenvolvimento da tecnologia de segurança colocado em marcha após o 11 de setembro gerou e continua gerando mecanismos de controle das populações, como a biometria e os variados dispositivos para monitoramento do espaço urbano.
"Quem começou a viajar nos últimos 20 anos, principalmente as pessoas mais jovens, não sabe como era antes. Hoje temos diversas camadas de controle, que vão desde a emissão de vistos até as revistas rigorosas nos aeroportos. Mas com exceção dos grupos capturados na iminência de um atentado, não dá pra saber exatamente quantos ataques foram inibidos por essas medidas de segurança. Então os efeitos realmente mensuráveis não são os efeitos sobre os terroristas, mas sobre nós. Mesmo que o terrorismo sumisse hoje, essas tecnologias criadas em nome do combate ao terrorismo não seriam abandonadas", avalia.
Jorge Lasmar considera que o terrorismo exige que o mundo se mantenha vigilante. “A gente continua tendo atentados e algumas dessas regras conseguem impedir novos ataques.”
No entanto, ele também vê efeitos colaterais que decorrem desse ambiente de controle, como a construção de muros entre os países. “As fronteiras do mundo estão mais fechadas. Temos mais fronteiras físicas entre os Estados do que tínhamos depois da Segunda Guerra Mundial. Há a questão dos refugiados e as dificuldades para o reconhecimento de asilo. A exigência de vistos diante do fluxo de pessoas."
Em meio a toda essa vigília das populações, os pesquisadores veem um fortalecimento dos estereótipos contra imigrantes provenientes de países considerados uma ameaça aos valores ocidentais, como a democracia e a liberdade individual.
"Isso tem gerado um outro tipo de extremismo, que tem motivação étnica. Está ligado aos movimentos de supremacia branca, que se alimentam dessa retórica estereotipada contra as pessoas do Oriente Médio. É algo que cresceu muito nos últimos anos no mundo ocidental. E ainda se fala pouco disso. Ainda há um pudor em reconhecer esses grupos como grupos. Mas fechar os olhos para essa questão é um problema, porque esse movimentos vão ganhando força", observa Lasmar.
Impactos militares
O atentado também revelou sofisticações nos modos de operar de grupos terroristas. Um aspecto que chama a atenção foi a dificuldade encontrada para localizar Osama bin Laden, líder da Al Qaeda e apontado como o idealizador dos ataques. Mesmo empregando a mais avançada tecnologia, foram necessários quase dez anos para que as forças norte-americanas o localizassem. Sua morte foi anunciada em maio de 2011.
A guerra ao terror se desdobrou em outras ações militares como a ocupação do Iraque em 2003, país que era comandado por Saddam Hussein desde o final da década de 1970. Na época, Estados Unidos e Inglaterra diziam deter provas de que o país guardava um grande arsenal de armas de destruição em massa que representava um perigo à população mundial. Saddam foi enforcado em 2006, mas as armas nunca foram encontradas. Os dois governos que lideraram a ocupação afirmaram, posteriormente, que confiaram em informações que se mostraram falsas.
As incursões militares no Oriente Médio não eliminaram os grupos terroristas. Nos últimos anos, o Estado Islâmico tem se tornando uma peça-chave nos conflitos que se desdobram na região, sobretudo na Síria, no Iraque e no Afeganistão.
A retomada do poder do Talibã no Afeganistão, na visão de Ariane Roder, retrata a ineficácia do uso de instrumentos clássicos de guerra para lidar com a situação. Segundo ela, as soluções requerem muito mais do que o uso da força.
Ela também observa que há uma dimensão de resistência cultural que alimenta os grupos terroristas. "A utilização realizada por alguns grupos terroristas da religião extremista como instrumento de aliciamento e construção do poder causou um distanciamento ainda maior entre culturas do Ocidente e Oriente, com desconfianças, preconceitos e desrespeitos", acrescenta.
Para Jorge Lasmar, os Estados Unidos apostaram equivocadamente em um investimento maciço de propaganda sobre sua própria sociedade.
"Buscaram disseminar os valores americanos. Mostraram como a democracia ocidental é legal, como a vida no país é legal, como a liberdade não comporta o terrorismo. Mas muito disso não foi bem recebido não só no mundo muçulmano, mas em todo o mundo oriental. Era uma cultura exógena. E há outros caminhos. Diversos líderes muçulmanos são capazes de mostrar que não há nada na religião islâmica que legitime o terrorismo."
Lei nacional
No Brasil, na véspera dos Jogos Olímpicos sediados pelo Rio de Janeiro em 2016, foi aprovada uma Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016). Havia um temor de que se repetissem cenas ocorridas dois anos antes, na Copa das Confederações de 2014, quando uma forte onda de manifestações resultou em cenas de violência e assustou turistas. Foi definida como terrorismo qualquer ação motivada por razões de xenofobia, racismo, etnia e religião, que tenha por objetivo causar terror social a partir do uso, transporte ou armazenamento de explosivos; gases tóxicos; conteúdos químicos, biológicos e nucleares; ou outros meios que possam promover a destruição em massa.
Essas ações podem envolver sabotagem ou ameaça em meios de transporte, portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares e instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias.
Segundo Thiago Rodrigues, a lei incorpora uma perspectiva de terrorismo disseminada de forma global. "Em parte, é resultado de uma pressão que tem a ver com o 11 de setembro. É uma pressão que vem do Comitê Olímpico Internacional, de alguns países específicos como os Estados Unidos e também do capital privado que investe e patrocina os eventos esportivos. Houve uma cobrança por medidas afinadas com as expectativas de países mais envolvidos na guerra contra o terrorismo".
Ao mesmo tempo, ele observa a presença de outros componentes que não têm relação com o 11 de setembro. “Há outra parte que tem mais a ver com o nosso ambiente político. Há muitos anos de pressão de segmentos da sociedade e de uma ala do Congresso para se ter um maior controle de movimentos sociais consolidados no país. E a lei é ambígua o suficiente para deixar brechas. Dependendo da interpretação, pode ser usada para tentar criminalizar movimentos sociais."
Jorge Lasmar vê pontos positivos e lacunas no texto da Lei Antiterrorista. "Caminhou numa direção certa de não de designar terroristas e, sim, atos terroristas. Há um excludente explícito dizendo que movimentos sociais não podem ser caracterizados com grupos terroristas. Pode-se até discutir se isso seria redundante, mas as legislações antiterroristas possuem um alto custo social, que pode ensejar maior militarização da polícia e aumento de força do Poder Executivo, o que faz com que esse tipo de resguardo seja positivo. Mal não faz. Movimento social não tem nada a ver com terrorismo", explica.
"Mas o conceito de ato terrorista no Artigo 2º o vincula a uma motivação de discriminação racial, étnica, religiosa. Isso pode ser problemático porque existe um terrorismo político onde não há essa instância de discriminação", completa o especialista.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-09/passados-20-anos-efeitos-do-11-de-setembro-ainda-geram-debate
11 de Setembro: a "Guerra ao Terror" e as consequências para o mundo
Há 20 anos, terroristas desafiaram a maior potência mundial, os EUA. A nação ferida reagiu declarando "guerra ao terror", provocando consequências inesperadas que ainda afetam o mundo
DW Brasil
Vinte anos se passaram desde os ataques de 11 de Setembro. A grande torre de um novo World Trade Center foi erguida no Marco Zero, onde ficavam as Torres Gêmeas, com um memorial às quase 3.000 vítimas dos ataques que atingiram os Estados Unidos e o mundo.
Nova York se recuperou do choque dos atentados. Hoje ela tem mais habitantes do que em 2001 e, até a pandemia de covid-19, a economia estava crescendo.
Mas nada é como antes, como poderia ser? Não só nos EUA, onde eventos e homenagens marcam esse dia que nunca será esquecido. Mas também em grande parte do Oriente Médio e no Afeganistão. A bandeira do Talibã está hasteada novamente, exatamente como há 20 anos.
Mas, quando um ataque terrorista matou recentemente cerca de 170 afegãos e mais de uma dúzia de soldados americanos durante a operação de evacuação no aeroporto de Cabul, o braço local do "Estado Islâmico" (EI) assumiu a autoria do crime.
Essa organização nem existia há 20 anos, quando começou a "guerra ao terror". No entanto, suas origens estão intimamente relacionadas a esta guerra - e a como ela foi travada.
"Sabemos muito bem que a ascensão do EI foi resultado direto da queda de Saddam Hussein em 2003", afirma Bernd Greiner.
Em entrevista à DW, o historiador de Hamburgo explica que grande parte da primeira geração de combatentes do EI veio do antigo exército de Saddam Hussein.
"O exército foi dissolvido pelos Estados Unidos. Centenas de milhares de jovens estavam nas ruas, sem nenhuma perspectiva de emprego. Isso é um terreno fértil para a radicalização", afirma.
Estiletes que começaram uma guerra
Em 2001, terroristas da Al-Qaeda derrubaram o World Trade Center, um símbolo de poder econômico, e atacaram o Pentágono, o centro do poder militar. Com o assassinato em massa, eles desencadearam um trauma nacional. E tudo usando apenas estiletes, com os quais transformaram aviões de passageiros em armas, guiados por um árabe saudita chamado Osama bin Ladende uma caverna no Afeganistão.
Uma humilhação sem precedentes para um país que, na época, talvez estivesse no auge de seu poder, que se sentia quase invulnerável, doze anos após sua vitória na "Guerra Fria" e o colapso da União Soviética.
Os EUA reagiram com perplexidade e luto - e tiveram a solidariedade de todo o mundo. Os americanos reagiram com raiva e buscaram vingança - e receberam apoio.
Uma ação policial ou uma operação com forças especiais, como ocorreria dez anos depois na eliminação do líder da Al Qaeda, Osama bin Laden, no Paquistão, estava fora de questão para o governo dos Estados Unidos.
Pela primeira vez na história da OTAN, foi declarado Casus foederis. Em uma ação militar legitimada pelo Conselho de Segurança da ONU como um ato de autodefesa, o Talibã no Afeganistão foi derrubado em poucos meses.
Quando George W. Bush atacou o Iraque em 2003, já não havia mais tal legitimidade. Houve apenas falsas alegações sobre as ligações de Saddam Hussein com os terroristas de 11 de setembro, bem como mentiras sobre o o ditador iraquiano estar produzindo armas de destruição em massa.
A "Nação Indispensável" demonstra seu poder
Muitos políticos americanos viram a oportunidade, após o 11 de Setembro, de demonstrar ao mundo que os Estados Unidos eram a "nação indispensável", afirma o historiador americano Stephen Wertheim em entrevista à DW.
"E eles demonstraram essa 'indispensabilidade' tentando redesenhar um país e uma região.
Bernd Greiner vê outro motivo. "Em sua impotência e incapacidade diante desse tipo de ataque assimétrico, os EUA queriam demonstrar ao mundo, e especialmente ao mundo árabe: qualquer um que mexer conosco no futuro, perderá seu direito de existir".
Para o historiador, esse foi "basicamente um ato simbólico, tanto no Afeganistão quanto no Iraque".
Corroborando a hipótese de Greiner, apenas algumas semanas após o 11 de Setembro, a Casa Branca encarregou o Pentágono de desenvolver cenários para uma guerra contra o Iraque. E em seu livro, Bush at War, Bob Woodward relatou que o então secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, estava preocupado por não ter alvos suficientes para armas de alta tecnologia dos EUA no Afeganistão.
"Não queremos parecer que estamos martelando na areia", disse Rumsfeld. "Precisamos de algo para atacar. Mas não há tanta Al Qaeda para atacar".
Essa atitude era generalizada em outras partes do establishment político. Quando, por exemplo, o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger foi questionado por Michael Gerson, redator de discursos de George W. Bush, por que apoiava a guerra do Iraque, a resposta recebida foi: "Porque o Afeganistão não foi o suficiente".
Os opositores radicais dos EUA no mundo muçulmano queriam humilhar os Estados Unidos, "portanto, devemos humilhá-los".
Para o historiador Stephen Wertheim, o Iraque representou mais um palco para demonstrar força do que uma reação a uma ameaça.
Quase 1 milhão de vítimas da guerra
A "guerra ao terror" proclamada pelo presidente George W. Bush tornou-se uma guerra sem fronteiras. Uma guerra "que não é definida com precisão, nem temporal nem geograficamente. É travada globalmente", como explica Johannes Thimm, da Fundação de Ciência e Política de Berlim (SWP, na sigla em alemão).
O projeto Cost of War, da Brown University, apontou recentemente que os Estados Unidos aplicam iniciativas antiterrorismo em 85 países.
A equipe, que consiste em mais de 50 pesquisadores, juristas e ativistas de direitos humanos, levantou vários números assustadores. Na "guerra ao terror", quase 930.000 pessoas foram mortas diretamente em combate - quase 400.000 delas eram civis.
Os números lançam uma luz diferente sobre as palavras do general americano Stanley A. McCrystal em seu discurso de posse como comandante da Força Internacional de Apoio à Segurança (ISAF, na sigla em inglês) no Afeganistão, em 2009.
"Eu acredito que a percepção pública de civis mortos é um dos inimigos mais perigosos que enfrentamos", disse na época.
Como consequência disso, a face mais sinistra da guerra foi amplamente escondida.
O público mundial reagiu com choque quando a plataforma Wikileaks revelou, em 2010, a verdadeira face das guerras no Iraque e no Afeganistão, com a divulgação do vídeo "Assassinato Colateral", evidências muito drásticas do assassinato de civis em Bagdá.
Perda de reputação
A reputação dos EUA já estava abalada. Não era a primeira vez que os líderes do país rasgavam a lei em sua guerra. Em uma entrevista à DW, o especialista do SWP Johannes Thimm lembra da reintrodução oficial da tortura.
"Porque a tortura era, na verdade, uma violação completa da lei. Há também uma razão pela qual não é chamada de tortura, mas sim de ‘técnicas aprimoradas de interrogatório'. Porque a tortura é simplesmente inequivocamente proibida pelo direito internacional”.
Houve, ainda, a detenção de suspeitos por décadas em áreas completamente à margem da lei, como a base naval dos EUA em Guantánamo. E, acima de tudo, a morte de suspeitos de terrorismo em ataques de drones: o Bureau Of Investigative Journalism contabilizou pelo menos 14.000 ataques com drones. Estima-se que entre 9.000 e 17.000 pessoas morreram, incluindo 2.000 civis e centenas de crianças.
"Mesmo que isso não possa ser provado empiricamente, minha impressão é que os assassinatos dirigidos por drones provavelmente produziram mais jihadistas no Afeganistão do que mataram", avalia Johannes Thimm.
Não apenas no Afeganistão. O cientista político Julian Junk, da Fundação Hessian para Pesquisa em Paz e Conflitos (HSFK, na sigla em alemão), afirmou à DW que "podemos afirmar que os métodos extrajudiciais da 'guerra ao terror' tiveram um efeito mobilizador sobre os grupos salafistas e jihadistas”.
Um erro de oito trilhões de dólares?
De acordo com o Cost of War, os 20 anos da "guerra ao terror" custaram apenas aos Estados Unidos a soma inimaginável de oito trilhões de dólares. Com esse valor, é possível facilmente pagar pelo programa de infraestrutura de Joe Biden várias vezes.
É por isso que o especialista norte-americano Bernd Greiner chega à conclusão de que, mesmo desconsiderando as consequências para o resto do mundo: "Os EUA causaram imensos danos para si com essas despesas insanas nas guerras no Iraque e no Afeganistão".
"Portanto, há tantos outros esforços dignos para os quais os Estados Unidos poderiam ter direcionado seus vastos recursos", lamenta o historiador americano Stephen Wertheim, "em vez de reagir destrutivamente aos ataques de 11 de Setembro”.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/11-de-setembro-a-guerra-ao-terror-e-as-consequ%C3%AAncias-para-o-mundo/a-59137716
EUA: Militares não participariam de golpe, mas democracia no país preocupa
No governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, percepção é de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha de Trump
Mariana Sanches / BBC News Brasil em Washington
Quando o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, e o Assessor Especial do presidente americano Joe Biden, Juan González, entraram no gabinete de Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, no último dia 5, não esperavam uma conversa de melhores amigos. Mas o que encontraram foi descrito à BBC News Brasil como "nonsense" e "tenso" por oficiais americanos.
Do encontro sobraram não só uma foto de um aperto de mão de Sullivan, de máscara, e Bolsonaro, sem máscara e oficialmente não vacinado, mas também uma preocupação dos americanos com a saúde da democracia brasileira, diante das alegações sem provas do presidente brasileiro de fraude eleitoral nas urnas eletrônicas.
Originalmente, a agenda dos enviados de Biden ao Brasil não teria a democracia brasileira como destaque principal.
A pauta deles incluía oferecer ao país o status de parceiro global da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), condição que dará acesso ao Brasil à compra de equipamentos de guerra de última linha, além de sessões de treinamento militares com os americanos em bases nos EUA.
Por outro lado, a missão americana pretendia pressionar o Brasil a estabelecer — e cumprir — metas de redução de desmatamento ambiciosas e dissuadir o Brasil de usar equipamentos da gigante chinesa de telecomunicações Huawei em sua rede 5G — um dos argumentos dos americanos foi, inclusive, o de que a empresa poderia não entregar os materiais contratados pelo governo Bolsonaro por crise de matérias-primas.
A conversa, no entanto, saiu do script normal com insinuações de Bolsonaro de que o pleito americano de 2020 havia sido roubado — o que faria de Joe Biden um presidente ilegítimo.
A administração Biden sempre esteve ciente de que Bolsonaro defendia publicamente as falsas alegações de Trump sobre as eleições. O republicano fazia múltiplas acusações ao sistema eleitoral dos EUA, questionando tanto aos votos de papel quanto àqueles depositados em urna eletrônica, mesmo antes do dia da votação. Bolsonaro foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória de Biden.
O que os americanos não esperavam é que Bolsonaro dissesse tais coisas diante de Sullivan e Gonzalez, ambos altos representantes do governo a serviços dos democratas há anos.
Segundo autoridades com conhecimento dos fatos, ambos ouviram o suficiente para deixar o encontro preocupados com a democracia no Brasil. Sullivan foi às redes sociais enunciar que a "gestão Biden defende um hemisfério seguro e democrático".
Já Juan Gonzalez fez uma coletiva de imprensa sobre a viagem para Brasil e Argentina na qual falou, na maior parte do tempo, da democracia brasileira. "Fomos muito diretos em expressar nossa confiança na capacidade de as instituições brasileiras conduzirem uma eleição livre e limpa e enfatizamos a importância de não ser minada a confiança no processo de eleições, especialmente porque não há indício de fraude nas eleições passadas", disse Gonzalez, sobre o teor da conversa com Bolsonaro.
A Cartilha Trump
Dentro do governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, tem ganhado força a percepção de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha que Trump adotou ao tentar se perpetuar no poder: denunciar fraudes sem prova, antes mesmo do pleito ocorrer, e criar descrença em parte do eleitorado sobre o processo eleitoral, a ponto de levar a cenas como a invasão do Capitólio por apoiadores, em 6 de janeiro.
A diplomacia de Biden não deixou de notar, por exemplo, o interesse do ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, nas eleições de 2022, no Brasil.
O próprio Gonzalez foi explícito sobre o assunto. "Fomos sinceros sobre nossa posição, especialmente em vista dos paralelos em relação à tentativa de invalidar as eleições antes do tempo, algo que, é óbvio, tem um paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos."
Em Washington, a percepção é de que a imagem de Bolsonaro sofreu um abalo significativo como um possível interlocutor após a visita.
"Acho que o governo Biden, especialmente depois dessa reunião em Brasília, vê Bolsonaro como uma figura errática, ou pelo menos como alguém que age de uma forma muito excêntrica e difícil de prever. Ele diz coisas que parecem ir contra seu próprio interesse nacional. Por que ele iria querer brigar com o novo governo dos EUA dizendo que a eleição (americana) foi fraudada? Dá pra entender o porquê Trump faz isso, já que ele quer disputar a presidência de novo e fazer disso um tema, mas para um líder estrangeiro dizer esse tipo de coisa é, no mínimo, estranho", afirma Melvyn Levitsky, ex-secretário executivo do Departamento de Estado e embaixador no Brasil entre 1994-1998.
Militares longe do golpe
Levitsky, que hoje é professor de políticas internacionais da Universidade de Michigan, afirma que nessa situação, os americanos vão jogar (quase) parados, sem qualquer ação que possa soar como interferência nas eleições brasileiras.
E isso também porque a diplomacia americana não vê como provável a possibilidade de que as Forças Armadas embarquem em uma eventual aventura golpista de Bolsonaro. Reservadamente, autoridades dos EUA citaram as ações recentes do ex-comandante do Exército, o general Edson Pujol, e de seu atual líder, o general Paulo Sérgio de Oliveira, como sinais de anteparos ao presidente no uso político das forças armadas. Em discurso no dia do soldado, Oliveira afirmou que o Exército quer ser respeitado "nacional e internacionalmente" e tem "compromisso com os valores mais nobres da Pátria e com a sociedade brasileira em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento".
"Eu conhecia muito bem os militares brasileiros. E embora faça algum tempo que não fale com eles, meu senso é de que os militares estavam muito subordinados ao governo civil e eu não acho que isso mudou. Não acho que os militares queiram entrar de vez na política. Seria devastador para eles fazer isso. E se isso acontecesse, seria devastador para as relações entre Brasil e Estados Unidos também", afirma Levitsky.
É essa percepção que explica, em parte, porque os americanos não viram problemas em oferecer ao Brasil uma posição como parceiro global na Otan que fortalece diretamente o Exército brasileiro. Se avaliasse haver tendência golpista nas forças, esse não teria sido um caminho para Biden, asseguram os diplomatas. Além disso, nem todos os parceiros globais da Otan são países de democracia perfeita — a Turquia, por exemplo, é tido como um deles.
Por fim, para os militares brasileiros a possibilidade de acessar contratos de vendas de armamento de ponta e participar em treinamentos com os americanos é algo de que eles provavelmente não estariam dispostos a abrir mão em troca da tentativa de um golpe ao lado de Bolsonaro. É o que argumenta Ryan Berg, cientista-político especialista em regimes autoritários na América Latina do Centro de Estratégias e Estudos Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).
"A visão do governo dos EUA é que, embora os movimentos de Bolsonaro sejam muito preocupantes, com desfile de tanques pelas ruas de Brasília e atos para desacreditar as eleições, ainda assim o Congresso rejeitou o voto impresso e isso, para o governo dos Estados Unidos, indica que as instituições do Brasil são mais fortes do que algumas pessoas gostam de dizer. O governo dos EUA tem muita confiança que os militares brasileiros não ficariam do lado do Bolsonaro se ele tentasse cometer algum tipo de autogolpe, como vimos com Trump, na invasão do Capitólio em 6 de janeiro", afirma Ryan Berg.
O futuro das relações EUA-Brasil
É consenso entre diplomatas e especialistas internacionais americanos que os EUA não podem e nem querem virar as costas para o Brasil. Primeiro porque o país, com suas florestas tropicais, é visto como chave para avançar no combate ao aquecimento global, pauta prioritária do governo Biden.
Segundo, porque a China tenta ganhar espaço na América Latina a passos largos, e os americanos não estão dispostos a ceder, ao principal rival, espaço de influência na segunda maior democracia do continente — ainda mais com a disputa do 5G a pleno vapor.
E terceiro, porque, em que pesem as ações de Bolsonaro sobre a democracia brasileira ou sobre o meio ambiente, seu governo promoveu um alinhamento ideológico com os Estados Unidos no continente, adotando tom duro contra Venezuela e Cuba, algo bastante valorizado no Departamento de Estado.
No entanto, dada a percepção de que "Bolsonaro não é um líder plenamente confiável", como afirma Levitsky, os próximos movimentos na relação dependerão de seu governo. E a diplomacia americana diz que não vai se furtar da possibilidade de se engajar com outros atores políticos, em diferentes níveis de poder e sem a intermediação do Executivo federal, para fazer avançar sua agenda.
Foi exatamente o que fez, há um mês, o Enviado Climático de Biden, John Kerry. Diante de promessas não cumpridas e do mal-estar que representava a presença do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que os americanos veem como envolvido em um possível esquema de tráfico ilegal de madeira amazônica para os EUA, Kerry driblou Brasília e se reuniu por uma hora e meia com os governadores do Fórum de Governadores, que inclui quase todos os Estados.
Na semana seguinte, Jake Sullivan não esteve apenas no Palácio do Planalto, mas fez também uma reunião com governadores do Consórcio da Amazônia Legal.
"Há uma percepção dos EUA de que o governo federal infelizmente não vai avançar muito na questão do desmatamento. Então falar com os governadores não chega a ser uma exclusão do governo federal, mas uma forma de jogar nas duas vias", afirmou à BBC News Brasil o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), que esteve no encontro com Kerry.
Depois de três meses sem encontros com a equipe de Kerry, na última semana, técnicos do Ministério do Meio Ambiente e representantes do Itamaraty retomaram conversas com os americanos. Isso acontece a menos de três meses da Conferência do Clima, em Glasgow, na Escócia, encarada pelos americanos como a última grande oportunidade para que o governo Bolsonaro mostre algum avanço na agenda ambiental.
Consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou, por meio de um porta-voz, que "esperamos ver progressos adicionais à medida que o Brasil avança para combater o desmatamento ilegal e reduzir suas emissões de gases do efeito estufa, em linha com os compromissos assumidos pelo presidente Bolsonaro na Cúpula dos Líderes sobre o Clima realizada em abril".
O Itamaraty defende que as metas de redução de desmatamento (que deve ser zerado até 2030) e de emissões (zero até 2050) são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento. Reservadamente, no entanto, diplomatas envolvidos nas negociações com os americanos reconhecem "dificuldades internas do governo" para entregar reduções expressivas no desmatamento ainda em 2021. Dados do INPE mostram que o acumulado de desmatamento entre janeiro e julho deste ano é o maior desde 2016.
Para o embaixador Levitsky, até a eleição do próximo ano, EUA e Brasil devem levar uma relação "em banho-maria". De um lado, os americanos não demonstram grandes expectativas de novos compromissos de Bolsonaro, a quem veem majoritariamente voltado à agenda eleitoral doméstica.
Por outro, preferem ver quem assumirá o país pelos quatro anos seguintes para tentar implementar qualquer ação fora das relações rotineiras. E já avisaram a Bolsonaro que reconhecerão como presidente quem quer que a Justiça Eleitoral aponte como vencedor do pleito em outubro de 2022.
Fonte: BBC Brasil
Bolívar Lamounier: Dois degraus a mais na escala do horror
A sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar
Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo
Não consigo conceber a humanidade convivendo com um país que submete as mulheres a rigorosa escravidão, impondo-lhes um tratamento atrocíssimo do nascimento à morte. Mas de agora em diante, com o Afeganistão dominado pelo Taleban e disputado pelo Estado Islâmico (EI), a realidade será essa.
O erro político do governo norte-americano foi deveras impressionante, pois não só deixou ao deus-dará um aliado que dele dependeu durante 20 anos, como saiu do país atabalhoadamente, entregando de mão beijada ao radicalismo islâmico grande quantidade de armas. É lógico que o Afeganistão, com sua população de apenas 39 milhões e sua enorme pobreza, não tem, sozinho, condições de se abalançar a uma aventura bélica. Mas aí, paradoxalmente, é que reside o perigo: uma teocracia totalitária, de inspiração claramente fundamentalista, poderá superestimar suas forças, agindo como uma faísca, tentando atiçar conflitos entre outros países, ou se engajando em alguma alucinação terrorista como a empreendida por Bin Laden 20 anos atrás. Nesse quadro, o Irã também precisa ser levado em conta, não obstante ser o seu poder também limitado.
Entendam-me: estou expondo uma hipótese e nem de longe pretendo generalizá-la para todo o universo islâmico. O islamismo não é um conjunto homogêneo. Compreende cerca de 60 países e a maioria não se encaixa no modelo de regimes totalitários. A vertente fundamentalista a que pertencem o Taleban e o EI, essa, sim, é capaz de perpetrar todo tipo de crueldade contra a sociedade e claramente propensa à expansão geográfica. O Estado Islâmico consegue ser muito pior que o Taleban. Destroçado na Síria, transferiu-se para o Afeganistão. A guerra entre ambos é um cenário altamente provável. Com a sobriedade que o caracterizava, o grande historiador Otto Hintze definiu movimentos como o EI como aqueles cujo objetivo último é se tornarem “impérios universais”. Em linguagem caseira, são culturas ou religiões que trazem em seu DNA um afã de ocupar e dominar militarmente outros países, a começar pela unificação de todo o mundo islâmico sob um só governo. Seguindo essa linha de raciocínio, não descabe afirmar que o horizonte do Taleban seja estender seu modelo de teocracia totalitária até o limite do possível.
O Ocidente demorou a perceber o risco da ascensão de Hitler na Alemanha, mas cumpriu, ao fim e ao cabo, junto com a URSS, seu dever de destruir a máquina de guerra responsável por todo tipo de atrocidades, culminando no frio extermínio de judeus, exemplificado por Auschwitz. Mas as lições da História nem sempre são assimiladas na devida proporção. Finda a 2.ª Guerra Mundial, o mundo acomodou-se à precária paz a que a vitória militar deu ensejo, aceitando-a como relativamente “normal”. Aceitando-a sem atentar para o fato de que ela continuava a se basear numa gigantesca desumanidade – com menos conflitos armados, é certo –, paz que não mantém sequer uma pálida semelhança com a paz perpétua cogitada por toda uma linhagem de filósofos utópicos. No mundo atual, essa desumanidade está corporificada em quase 8 bilhões de seres humanos, a maioria em estado famélico. O desafio de construir uma paz segura, assentada em fatores de realidade é, pois, simplesmente hercúleo. Mas a humanidade não tem como abrir mão sequer desse precário ideal. Os países democráticos e todos os outros que preferem a ordem à desordem e a civilização à barbárie têm o dever de colaborar na construção de uma paz manejável e duradoura, que assegure a cada nação a conservação de sua identidade e a possibilidade de prosperar e se beneficiar comercialmente de suas complementaridades com o resto do mundo.
Como sonhar com tal objetivo, mesmo na escala modesta a que me refiro, num mundo onde bilhões de seres humanos mal e parcamente conseguem resistir a seu miserável cotidiano, mundo no qual o terrorismo e o crime organizado mudaram de escala, mercê do avanço tecnológico, internacionalizando-se e beneficiando-se do efeito surpresa em escala antes impensável?
Empreitada hercúlea, sem dúvida. Muito maior que a visualizada pelos governos ignorantes e corruptos que não cessam de se reproduzir em nossa triste América Latina.
As explosões da última quinta-feira (26/8) no aeroporto de Cabul, provavelmente organizadas pelo Estado Islâmico, que causaram mais de 180 mortes, dão bem a medida do horror a que me refiro. Após o malfadado episódio da tomada da capital pelo Taleban, salta aos olhos que o curso dos acontecimentos será decisivamente determinado pelas grandes potências. Entre estas se inclui a China, cujo regime interno é declaradamente totalitário, mas precisa comerciar com o mundo inteiro, em nada lhe interessando, portanto, um sistema internacional conturbado. Com a Rússia, que nunca se desvestiu sinceramente de seu passado autocrático, a situação é mais ou menos a mesma.
Em resumo, a sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,dois-degraus-a-mais-na-escala-do-horror,70003823602
A memória histórica da escravidão é motivo de guerra nas escolas dos Estados Unidos
Estados republicanos impõem leis para proibir o que consideram um ensino que culpa os brancos. “Tentam fazer retroceder o ensino da parte mais incômoda de nossa história”
Amanda Mars, El País
Um homem negro de meia-idade se aproxima do terraço de uma cafeteria em Ausburn, Virgínia, uma pequena cidade a 40 minutos de Washington. “Com licença, o senhor é Scott Mineo?”, ele pergunta. Mineo: “Isso é bom ou ruim?” “Bem, eu o tenho escutado na televisão”, responde o outro. E então eles se envolvem em uma longa troca de “Eu não disse isso”, “na verdade, estamos dizendo a mesma coisa” ... “Teremos que dizer às crianças que George Washington tinha escravos”, alfineta o homem, que não se identifica. “Tudo bem, mas também mais coisas”, responde Mineo, “você acha que sou racista?”.
Tudo termina com o homem negro ajudando o branco a pegar o lixo e levá-lo para dentro do local —começou a chover—e com um aperto de mão. Estamos no condado de Loudoun, o mais rico dos Estados Unidos, um subúrbio próximo à capital do poder que, nos últimos anos, foi migrando de feudo republicano para moderado e democrata. Mineo, um analista de segurança branco, de 49 anos, começou uma cruzada de pais contra o que ele considera ser uma doutrinação racial nas escolas e ressentimento contra crianças brancas. Lançou um site chamado Pais contra a Teoria Crítica e criou um registro anônimo para que os alunos possam postar gravações do que os professores dizem em sala de aula. “Vamos expor todos os que fazem isso”, diz Mineo.
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- Barry Jenkins: “A história dos EUA foi contada de um único ponto de vista durante muito tempo”
Loudon exemplifica a tensão que ferve nos Estados Unidos sobre como abordar o racismo nas escolas, e uma vertente fundamental, como demonstra a conversa com o estranho, é o ensino de história. A escravidão é um acidente, uma mancha em uma história de grandeza, ou na verdade, um elemento fundacional dos Estados Unidos? Os pais fundadores do país eram “boas pessoas”, com alguma contradição, ou sujeitos infestados delas?
Como resultado das mobilizações contra o racismo depois da morte de George Floyd, em 2020, muitas escolas têm reforçado suas palestras e programas educacionais contra a discriminação e o racismo sistêmico e, com isso, irrompeu também a reação conservadora, com cruzadas como a de Scott Mineo e um monte de leis. Uma série de Estados republicanos —Texas, Idaho, Oklahoma e Tennessee, entre outros— introduziu ou aprovou legislação para restringir o modo como a história é contada.
A Assembleia do Tennessee, por exemplo, aprovou um projeto de lei em maio que proíbe as escolas de ensinarem que um indivíduo deveria sentir “responsabilidade” por ações passadas de membros de sua cor ou raça; ou que alguém, por causa de sua raça, “é inerentemente privilegiado” ou que promova o “ressentimento”. Ohio usa linguagem idêntica em várias partes de seu projeto de lei e veta que os professores ensinem que a escravidão foi qualquer coisa diferente de “uma traição ou fracasso dos verdadeiros princípios fundadores dos Estados Unidos, que incluem a liberdade e a igualdade”.
O ponto controverso dos conceitos proibidos —em que momento um professor que fala sobre racismo está dizendo que ser branco implica privilégios ou está gerando ressentimento contra os brancos?— disparou alarmes sobre a liberdade de expressão.
O historiador David Blight, branco, professor de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Yale, alerta que todos os países têm um passado que incomoda seus cidadãos. “O movimento conservador vem tentando há meio século, de forma intermitente, fazer retroceder o ensino da parte mais incômoda de nossa história, porque acredita que nosso dever é formar patriotas, mas nós não educamos os jovens para serem só patriotas, nós os educamos para que entendam melhor a sociedade em que vivem e isso pode torná-los melhores patriotas”, diz Blight por telefone. As leis em vigor, opina, “são horríveis, anti-intelectuais, antidemocráticas, um mau uso da história para produzir um certo tipo de cidadão”.
O debate subjacente se alicerça em tratar a escravidão —abolida em 1865, quase 100 anos após a fundação do país— como mais um capítulo da história do país ou um elemento básico dela. A seu ver, “eles não querem encarar que [a escravidão] foi central para a identidade da nação americana, seu desenvolvimento e crescimento, na Guerra Civil”.
Um dos elementos centrais dessa disputa é a chamada Teoria Crítica Racial, cujo significado foi distorcido, como acontece em toda boa controvérsia intelectual e política que se preze. Hoje, pode-se vê-la sendo usada, especialmente pela direita, para identificar qualquer análise que aborde o racismo como um problema sistêmico nos Estados Unidos e, no âmbito escolar, qualquer atividade ou oficina que enfoque a discriminação por causa da raça.
A Teoria Crítica Racial é um marco teórico procedente do mundo do direito que começa a ser forjado na década de 1970 por acadêmicos como Kimberlé Crenshaw, que estudam os movimentos dos direitos civis. Argumentam, grosso modo, que raça é uma construção social e racismo é algo que vai além dos preconceitos pessoais, que o ordenamento jurídico está configurado de uma forma que sustenta e estimula a supremacia dos brancos sobre os negros. Por isso, concluem, as conquistas da época não conseguiram erradicar a injustiça social.
Pode ser considerado um movimento intelectual oficial desde 1989, quando seus promotores organizaram a primeira sessão de trabalho com esse título, mas agora se tornou uma expressão fetichista dos conservadores na batalha da educação. Em março passado, Christopher Rufo, pesquisador do laboratório de ideais Instituto Manhattan, entidade conservadora, disse abertamente em sua conta no Twitter: “Conseguimos deixar cravada sua marca —'teoria crítica racial’— no debate público e não param de serem acrescidas percepções negativas. Em algum momento a converteremos em algo tóxico e colocaremos todos esses delírios culturais nessa categoria”.
Outro dos protagonistas dessa briga é o Projeto 1619, uma análise histórica de como a escravidão moldou as instituições norte-americanas nos campos político, social e econômico. Publicado no The New York Times em agosto de 2019, e idealizado pela repórter Nikole Hannah-Jones, o nome faz referência à data em que os primeiros africanos chegaram a solo americano, questiona se essa é a data que deve ser considerada a da fundação dos Estados Unidos e reivindica as contribuições dos negros norte-americanos para a formação do país.
Aplaudido em geral pelo enfoque, tem recebido críticas de historiadores de diferentes países por algumas considerações, como a do nascimento do país, ou o quadro pessimista do progresso obtido, entre outras. Um ano após sua publicação, em meio à onda de protestos pela morte de George Floyd, foi redobrada a atenção sobre o projeto e o então presidente Donald Trump o tomou como exemplo da “propaganda tóxica” que dividia o país e anunciou a criação da Comissão de 1776 para promover uma “educação patriótica”.
Marvin Lynn, professor de Educação da Universidade de Portland, aplicou a crítica feita pela Teoria Crítica Racial ao campo do sistema educacional como forma de abordar as desigualdades nesse sistema, mas rejeita que essa teoria esteja sendo ensinada em sala de aula. Lynn, um homem negro de 50 anos, lamenta a forma como o passado lhe foi contado. “Me ensinaram que os Estados Unidos são uma grande nação e que os pais fundadores foram homens honestos e de grande integridade. Só fiquei sabendo sobre Sally Hemmings, que era escrava de Thomas Jefferson e tinha filhos de Jefferson, sendo escrava, quando me tornei adulto”, explica. Lynn é pai de três garotos, de 19, 15 e 13 anos. Eles, conta, foram na maior parte do tempo para escolas públicas e “não aprenderam nada de sua história como pessoas negras, nada do passado na África”. Em sua opinião, “esse movimento quer restringir ainda mais o currículo, é realmente um movimento racista”.
No condado de Loudoun, a briga vai muito além da história. Um grupo de pais, incluindo Mineo, processou o Conselho Escolar do Condado alegando que os professores incorporaram “teorias políticas radicais e polêmicas” na programação e estão pedindo às crianças que os apoiem sob pena de retaliação, além de sistemas de denúncias de discriminação que fazem delas “policiais contra a liberdade de expressão”. Os últimos encontros com os pais viraram rixas, que são o filé das redes sociais, e as ameaças chegaram ao Facebook. Num grupo denominado Pais Antirracistas de Loudoun, de 600 membros, os que se opunham aos programas foram citados com nomes e sobrenomes e falou-se em expô-los, as imagens chegaram à mídia e grupos conservadores, que as divulgaram como prova de assédio. Vários membros do grupo “antirracista” receberam ameaças.
Os país contra o programa do racismo exigem a retirada de seis conselheiros. Seu chefe de comunicação, Wayne Byard, explica que as ligações e e-mails de pais sobre a Teoria Crítica Racial, que não é ensinada nas escolas, “chegam às centenas”.
Scott Mineo, que comenta em duas ocasiões que sua filha tem um namorado de origem hispânica e, no passado, outro negro, afirma que não é contra ensinar sobre a escravidão nas escolas, mas “a história toda, não apenas partes selecionadas”. Por exemplo, ele sente falta de que falem das “figuras negras muito proeminentes que tinham escravos, porque não apenas os brancos tinham escravos”. Ele não cita quantos negros tinham escravos nos Estados Unidos ou quão importantes eram, mas admite: “Havia mais proprietários de escravos brancos do que proprietários negros”. E acrescenta: “Hoje há muito mais escravos do que há séculos e ninguém fala deles, escravos sexuais, tráfico de seres humanos, escravos médicos, usados para pesquisa”.
Martin Luther King dizia que o arco do universo moral é amplo, mas se inclina para a justiça. O mundo precisa pensar sobre isso. O professor Blight destaca que os Estados Unidos têm uma história de “tragédia e conflito, como qualquer outro país”, mas os norte-americanos sempre tiveram a ideia de que a história deve ser um progresso. “Queremos pensar que sempre caminhamos para melhor, que sempre resolvemos os nossos problemas, e às vezes fizemos isso, até ajudamos o mundo, como na Segunda Guerra Mundial, mas há outros que não resolvemos e temos que encarar isso”, acrescenta.
A maior onda de protestos em Cuba nos últimos 30 anos
O governo de Cuba enfrenta os maiores protestos populares em 30 anos. O presidente Miguel Díaz-Canel alega que a crise é consequência do embargo econômico promovido pelos Estados Unidos. A falta de vacinas contra a Covid e a escassez de comida e remédios tornam a situação ainda mais complicada na Ilha caribenha.
Para analisar a situação do país e as conquistas históricas da revolução cubana, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira conversa com Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do blog Democracia Política e novo Reformismo. Nascido em 5 de dezembro de 1935, em Limoeiro, Pernambuco, Gilvan foi dirigente estudantil na década de 1950 e estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais, em Moscou. Com o golpe militar de 1964, esteve preso, em Recife, e ficou exilado por anos no Chile e em Cuba.
Ouça o podcast!
As conquistas da revolução – principalmente nas áreas de educação e saúde – e o papel dos partidos e movimentos mais à esquerda do mundo em relação à Cuba estão entre temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, da TV Globo, canção Patria y Vida, DW Español e do canal Band Jornalismo, no Youtube.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
Maria Cristina Fernandes: Pesquisa desmonta tese de que governos autoritários responderam melhor à pandemia
Se China, Vietnã e Hong Kong propagandearam a eficiência do autoritarismo no combate à pandemia, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Noruega contrapuseram a importância da transparência e da prestação de contas da democracia contra o vírus. A uma França que centralizou a resposta ao vírus, se opuseram Estados Unidos e Brasil, onde o federalismo mostrou-se resiliente no contraponto à inoperância de governos centrais de veleidades autoritárias.
Qual desenho institucional, finalmente, responde melhor à pandemia? Guiados por esta pergunta, um grupo de 67 pesquisadores, coordenados por Scott Greer e Elizabeth King (Universidade de Michigan), Elize Massard da Fonseca (FGV-SP) e André Peralta-Santos (Escola Nacional de Saúde Pública de Lisboa), acaba de lançar um compêndio de 663 páginas “Coronavirus politics”, (“A política do coronavírus”, ainda sem edição em português mas com livre acesso em www.fulcrum.org/concern/monographs/jq085n03q).
Os pesquisadores, que começaram a trabalhar junto com o vírus, em março de 2020, cobriram a primeira fase da pandemia, até setembro de 2020, quando as políticas públicas se resumiam a intervenções não farmacêuticas (campanhas de higiene, equipamentos de proteção individual, respiradores, isolamento social, testes, rastreamento e auxílios monetários). Ao contrário do atual momento, de segunda onda em alguns países e terceira em outros, quando a busca pela vacina é decorrente de um esforço majoritariamente dos governos centrais, a primeira etapa da doença foi marcada, fortemente, por embates entre instâncias locais e nacionais.
Um dos achados mais importantes do livro é o de que os governos locais, historicamente achatados pelas políticas de contenção fiscal no mundo inteiro, atuaram como contraponto ou, como prefere nominar Luísa Arantes, uma das autoras do capítulo sobre o Brasil, como um “back-up” a governos centrais inoperantes. É bem verdade que não de maneira uniforme. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos.
Num extremo esteve o Maranhão, estrito em suas políticas de isolamento e ativo na compra de equipamentos de proteção e de respiradores, e no outro, Santa Catarina, que, ao abandonar precocemente o isolamento social, viu o número de casos mais do que duplicar em menos de uma semana. O federalismo se mostrou vivo com ou sem viés partidário. Se o Maranhão do governador Flávio Dino (PCdoB) deu uma das piores votações ao presidente da República, Santa Catarina sufragou, junto com o governador Carlos Moisés (PSL), um dos melhores desempenhos de Jair Bolsonaro. Dino, porém, esteve do mesmo lado, no cabo de guerra da pandemia, de governadores aliados de Bolsonaro, como o de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).
Nos Estados Unidos, se a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, enfrentou a Casa Branca com sua política estrita de isolamento, a governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem, nada fez para impedir que cerca de meio milhão de motociclistas se reunisse em uma festa no condado de Sturgis, em agosto de 2020, numa das maiores aglomerações mundiais da primeira fase da pandemia. Mais do que o viés democrata de Whitmer ou republicano de Noem, foi decisiva a determinação em atender a população, como foi o caso do governador republicano Mike DeWine, de Ohio, que fechou escolas por três semanas e proibiu aglomerações.
Os governos locais também ganharam fôlego com a pressão crescente por uma descentralização da gestão da saúde. Na Itália, país que alarmou o mundo para a devastação da pandemia, 100 mil médicos promoveram um abaixo-assinado por uma descentralização territorial da prestação de serviços públicos de saúde. Em Milão, os profissionais promoveram um protesto contra a deterioração de suas condições de trabalho dirigido a um governo local que, inicialmente, resistiu ao isolamento social.
Os governantes locais que ganharam condições de se contrapor às instâncias nacionais de poder na adoção de medidas de isolamento o fizeram porque, em grande parte, dispuseram de políticas de complementação de renda, regionais e nacionais, além de repasses federais que lhes permitiram restringir atividades econômicas que geram receita para a manutenção dos serviços públicos.
Estados Unidos, Índia e Brasil, diz Elize Massard, são exemplos claros de que subvenção social só funciona se houver uma política de saúde e esta vai muito além de uma infraestrutura hospitalar. Estados Unidos e o Brasil tinham, respectivamente, de acordo com o índice de segurança global de saúde (GHSI), da Universidade Johns Hopkins, o mais bem preparado sistema de saúde do mundo e da América Latina para responder a pandemias. E ambos fracassaram porque tiveram, no comando político nacional, presidentes negacionistas. Os Estados Unidos somavam 23% dos mortos em todo o mundo em agosto de 2020, apesar de ter apenas 4% da população mundial. O Brasil, apesar de abrigar 2,7% dos habitantes do planeta, tinha 33% das vítimas da covid-19 em março de 2021.
Apesar de subfinanciado, o NHS, sistema público de saúde britânico inspirador do SUS brasileiro, fez com que o Reino Unido pontuasse em segundo lugar mundial na gestão de sistemas de saúde responsivos a pandemias, segundo o GHSI. Isso até o coronavírus, quando o Reino Unido teve uma das piores taxas de mortalidade, depois da Espanha. Só foi salvo pela vacina. Nem os testes massificados, que só perderam para a China, foram capazes de neutralizar o atraso das medidas de isolamento social que marcaram a primeira fase do combate à pandemia no governo Boris Johnson. As mortes poderiam ter sido reduzidas pela metade se o lockdown de março de 2020 tivesse acontecido uma semana antes.
As falhas também atravessaram o Canal da Mancha. A França cometeu dois erros capitais no início da pandemia. O de apostar na cloroquina, durante dois meses, até maio de 2020, e de ter demorado na aquisição de equipamentos de proteção individual. O cochilo se deveu à decisão tomada durante a epidemia de H1N1, em 2009, quando o governo, alarmado, comprou € 1 bilhão em EPIs para enfrentar uma doença que “só” matou 342 pessoas no país.
Superados esses erros, o governo centralizou a resposta à pandemia e contou com um sistema de saúde que passou por duas décadas de reforma. Ainda assim, só deu conta porque gastou muito para manter o isolamento social, levando a população de rua para residências temporárias e abrindo os hospitais públicos para imigrantes ilegais. Calcula-se que a França tenha destinado 31% do seu Produto Interno Bruto em medidas de compensação social e econômica e gastos na saúde. Os EUA, cujo primeiro pacote aprovado pelo Congresso foi o maior da história, gastaram 18% do PIB.
O fôlego fiscal em todo o continente só foi possível porque a União Europeia ativou a cláusula geral de escape, em abril de 2020, para não cumprir a meta de déficit fiscal. Reproduziu o que os autores chamam de “momento hamiltoniano”, quando o governo americano, por inspiração do então secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, assumiu as dívidas de guerra dos Estados depois da guerra da independência. A desigualdade na resposta à pandemia no continente foi decorrente das gestões locais. Portugal, a exemplo da França, saiu-se melhor que a Espanha e a Itália porque centralizou a reação. Já Áustria e Suíça coordenaram melhor seus Estados federados do que a Alemanha, cuja governança federativa foi conturbada pela disputa interna em torno da sucessão de Angela Merkel.
Se na Europa a negligência com migrantes foi relativizada em função da segurança sanitária, o mesmo não aconteceu na China. Neste país, as políticas compensatórias não os englobaram. Estima-se que na China haja 290 milhões de migrantes que não usufruem do sistema previdenciário estatal porque trabalham fora de seus locais de registro. Houve uma política deliberada de manter os migrantes ilegais longe dos centros urbanos.
Nas semanas que antecedem a virada do ano lunar, que em 2020 caiu no dia 25 de janeiro, os chineses deixam suas casas e visitam seus familiares. Mesmo já alertadas de que o vírus estava disseminado na província de Hubei, as autoridades permitiram que as pessoas viajassem a partir do dia 7 de janeiro. No dia 23 foi decretada uma quarentena draconiana. Ao impedir que os chineses voltassem para suas casas nos grandes centros urbanos, tentou-se evitar que as estruturas hospitalares ficassem sobrecarregadas. Isso não impediu que hospitais de Hubei rejeitassem pacientes. A província tem 4% da população do país e 1% dos leitos.
O pouco que se sabe do combate inicial à covid-19 na China se deve à diplomacia da Organização Mundial de Saúde, que, sob o preço da acusação de sinofilia, manteve canal aberto com autoridades chinesas. Foi isso que permitiu à OMS monitorar minimamente o desenvolvimento inicial da doença na China.
O comportamento das autoridades chinesas não foi uma regra na Ásia. No Vietnã, por exemplo, o país pobre e populoso de melhor resposta contra o vírus, a transparência era uma das únicas armas possíveis. O Vietnã busca pontuação em rankings mundiais de governança para colher benefícios diplomáticos e atrair investimentos estrangeiros. As outras armas, num país sem um sistema de saúde robusto, foi o fechamento de fronteira, quarentena para visitantes em instalações militares, multa para quem a desrespeita e rastreamento. O país deixou de ter transmissão comunitária em julho de 2020.
Se até aqui o estudo das instituições foi marcado por seus reflexos na estabilidade democrática e econômica, a pandemia indica uma inflexão em busca de desenhos institucionais que demonstrem eficiência na reação a emergências sanitárias. O desempenho do Brasil e dos Estados Unidos na primeira fase da pandemia demonstra que muitas dessas instituições são vulneráveis ao poder de maus líderes. A próxima parada do grupo de pesquisadores é a resposta global à vacina, quando o desempenho desses dois países se bifurca e isola o Brasil.
Fonte:
Valor Econômico