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O Estado de S. Paulo: Preso há 100 dias, Lula mantém PT imobilizado

Ex-presidente dita rumo da sigla a um mês do prazo final para o registro da candidatura

Por Ricardo Brandt e  Katna Baran, de O Estado de S. Paulo.

Condenado na Operação Lava Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa amanhã 100 dias preso na sede da Polícia Federal, em Curitiba. Mais magro do que estava quando chegou de helicóptero, na noite de 7 de abril, o petista ainda dita as estratégias e os passos do partido e de seus principais aliados na campanha presidencial. E mantém o PT imobilizado na definição de uma alternativa eleitoral.

As vésperas da convenção partidária e a um mês do prazo final para o registro das candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – o prazo é 15 de agosto –, o mais importante preso da Lava Jato transformou sua “cela” em comitê político e eleitoral, numa espécie de campanha via porta-vozes.

Desde que foram autorizadas as visitas especiais de amigos, o ex-presidente já esteve com 16 pessoas em 11 datas distintas. A presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, é quem mais visitou o ex-presidente. É ela a responsável por avisar o partido, governadores e líderes políticos sobre as decisões de Lula – que, segundo a sigla, tem a palavra final.

Anteontem, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad esteve com o ex-presidente pela primeira vez como advogado com procuração para atuar no processo da execução penal. Coordenador do programa de governo do PT e apontado como possível “plano B” do partido, Haddad havia estado com Lula em sua cela duas vezes, desde que foram liberadas pela Justiça visitas de amigos nas quintas-feiras, pelo período de uma hora. Como advogado, o petista pode agora ver o ex-presidente em qualquer dia da semana.

A intenção do grupo diretamente ligado a Lula é arrastar até o momento final a definição da candidatura e tentar reverter a situação em benefício eleitoral para o nome que for escolhido como candidato do partido, já que Lula está potencialmente impedido de concorrer com base na Lei da Ficha Limpa.

O PT avalia que o bom desempenho do ex-presidente nas pesquisas, mesmo depois de preso, é um trunfo eleitoral importante para as composições estaduais. E assim, busca manter Lula candidato durante o máximo de tempo possível e fazer a troca só depois que a Justiça decidir se aceita o registro da candidatura.

Lula acompanha o cenário eleitoral e político do País pelos canais da TV aberta – que assiste boa parte dos dias – e pelos relatos de amigos, familiares e advogados.

Reveses. No inicio de junho, o PT pediu à Justiça o direito de Lula participar de “atos de pré-campanha e, posteriormente, de campanha”, de comparecer ou participar

por vídeo da Convenção Partidária Nacional do PT marcada para o dia 28. Além disso, o partido pleiteava que Lula pudesse participar de debates e sabatinas realizadas pela imprensa.

Na última semana, porém, a juíza federal Carolina Lebbos, responsável pelo processo da execução provisória da pena de Lula, negou o pedido. Para a Justiça, o status do ex-presidente atualmente é de inelegível, em decorrência da condenação em segunda instância – a 8.ª Turma do TRF-4 confirmou sentença de Moro em janeiro e elevou a pena.

A decisão de negar direitos especiais a Lula saiu dois dias depois de o desembargador de plantão do TRF-4, Rogério Favreto – que tem histórico de ligações com o PT – conceder liberdade ao ex-presidente no último dia 8. A ação foi revertida no mesmo dia pelo relator da Lava Jato, desembargador João Pedro Gebran Neto, e pelo presidente da Corte, Carlos Eduardo Thompson Flores.

O ex-presidente foi condenado a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá. O partido e a defesa do ex-presidente sustentam que ele é inocente e vítima de uma perseguição política-judicial.

Nos primeiros 57 dias de prisão Lula leu 21 livros, uma média de 52 páginas por dia: desde os mais densos como Homo Deus, de Yuval Noah Harari; Quem Manda no Mundo , de Noam Chomsky; a clássicos como O Amor nos Tempos do Colera, de Gabriel García Márquez; Ressurreição, de Liev Tosltoi; e a biografia Belchior – Apenas um rapaz latino-americano, do jornalista Jotabê Medeiros.

Nesses 100 dias, Lula passou a receber semanalmente visitas de religiosos, todas as segundas-feiras. Ele já foi visitado, por exemplo, pelos amigos Frei Beto e Leonardo Boff. Um pastor evangélico, um monge e um pai de santo também estiveram com o ex-presidente em sua cela neste período.


Fausto Macedo: CNJ vai apurar condutas de Favreto, Gebran e Moro

Representações contra os magistrados chegaram ao Conselho Nacional de Justiça após decisões conflituosas em torno de pedido de habeas corpus em face do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva 

BRASÍLIA – O ministro corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), João Otávio de Noronha, determinou a abertura de procedimento para apurar as condutas dos desembargadores Rogério Favreto e João Pedro Gebran Neto, ambos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), e também do juiz federal Sérgio Moro, da 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba (PR).

O CNJ recebeu oito representações contra Favreto e duas contra Moro. Elas pedem a apuração sobre possível infração disciplinar dos magistrados no episódio que resultou na liminar em habeas corpus a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado e preso na Operação Lava Jato, e posteriores manifestações que resultaram na manutenção da prisão.

As dez representações serão sobrestadas e apensadas ao procedimento “já que se trata de uma apuração mais ampla dos fatos”, informou a Corregedoria. De acordo com nota do órgão, o pedido de providências será autuado e os trabalhos de apuração iniciados imediatamente pela equipe.

Apesar da decisão do desembargador Favreto, Lula continua preso porque o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, manteve a posição do desembargador João Pedro Gebran Neto, relator da Lava Jato, que vetou a libertação do petista, preso desde abril. Antes disso, o próprio Moro divulgou despacho em que recomendava o não cumprimento da liminar.

Representações. A primeira representação ao CNJ foi protocolada no domingo, 8, pela ex-procuradora do Distrito Federal Beatriz Kicis. A segunda foi apresentada pela promotora de Justiça do Ministério Público do Rio Adriana Miranda Palma Schenkel. Outra representação foi feita pelo deputado federal Carlos Sampaio (PSDB-SP).

Para cerca de cem integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário, a decisão do desembargador Favreto “viola flagrantemente o princípio da colegialidade”. “A quebra da unidade do direito, sem a adequada fundamentação, redunda em ativismo judicial pernicioso e arbitrário, principalmente quando desembargadores e/ou ministros vencidos ou em plantão não aplicam as decisões firmadas por Órgão Colegiado do Tribunal”, citam. Ainda há uma representação do Partido Novo, duas do senador José Medeiros (Podemos-MT) e uma do deputado federal Laerte Bessa (PR-DF).

Quem assina as representações contra Moro são o estudante de Direito de Rolândia (PR) Benedito Silva Junior, que já protocolou habeas corpus a favor de Lula em outras ocasiões, e o advogado mineiro Lucas Carvalho de Freitas.


Plantonista não poderia ter decidido o caso de Lula, diz STJ

Ao negar HC em favor do ex-presidente, Laurita Vaz, presidente da Corte, diz que decisão de Rogério Favreto causa ‘perplexidade e intolerável insegurança jurídica’

Amanda Pupo, do O Estado de S. Paulo.

BRASÍLIA - Em resposta à confusão jurídica de domingo, a presidente do STJ, Laurita Vaz, decidiu que o desembargador Rogério Favreto, plantonista do TRF-4, não é competente para julgar o caso do ex-presidente Lula. Favreto concedeu liberdade ao petista. A decisão foi revogada pelo presidente do TRF-4, Carlos Thompson Flores.

A presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Laurita Vaz, deu ontem uma resposta à confusão jurídica no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) e decidiu que o desembargador Rogério Favreto não é competente para julgar o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado e preso na Lava Jato. No plantão no TRF-4, Favreto concedeu no domingo liberdade ao petista, decisão que, após 10 horas e meia de impasse, foi derrubada pelo presidente do Tribunal, Carlos Eduardo Thompson Flores.

Para Laurita, o despacho do desembargador plantonista causa “perplexidade e intolerável insegurança jurídica” e foi dado por alguém “manifestamente incompetente, em situação precária de plantão Judiciário”. O entendimento foi firmado em decisão na qual a ministra negou um dos vários pedidos de habeas corpus apresentados ao STJ por advogados – que não fazem parte da defesa do petista – contra a determinação de Thompson Flores.

A presidente da Corte classifica como “tumulto processual sem precedentes na história do direito brasileiro” a decisão de Favreto, que foi filiado ao PT por 20 anos e é crítico à atuação da Lava Jato. O desembargador recebeu o pedido de habeas corpus em favor de Lula às 19h32 da sexta-feira passada e concedeu a liminar por volta das 9h do domingo. O desembargador teve a decisão contestada pelo juiz da 1.ª instância Sérgio Moro e pelo relator da Lava Jato no TRF-4, João Pedro Gebran Neto.

Segundo Laurita, a determinação de Favreto “forçou” a reabertura de discussão encerrada em instâncias superiores. O caso já passou pelo TRF-4 e pelas Cortes Superiores. Em março, a Quinta Turma do STJ rejeitou por unanimidade um habeas corpus do petista. No mês seguinte, o plenário do Supremo Tribunal Federal negou, por 6 votos a 5, um pedido preventivo de liberdade de Lula.

A presidente do STJ destacou ainda que o desembargador plantonista “insistiu em manter sua decisão”. “Diante dessa esdrúxula situação processual, coube ao juízo federal de primeira instância, com oportuna precaução, consultar o presidente do seu Tribunal se cumpriria a anterior ordem de prisão ou se acataria a superveniente decisão teratológica de soltura”, diz Laurita no despacho.

Para conceder a liberdade a Lula, Favreto usou como argumento a “notória condição” do petista como pré-candidato à Presidência da República. O pedido foi assinado pelos deputados petistas Wadih Damous (RJ), Paulo Teixeira (SP) e Paulo Pimenta (RS), e não pelos advogados de defesa.

“É óbvio e ululante que o mero anúncio de intenção de réu preso de ser candidato a cargo público não tem o condão de reabrir a discussão acerca da legalidade do encarceramento, mormente quando, como no caso, a questão já foi examinada e decidida em todas as instâncias do Poder Judiciário”, afirmou a presidente do STJ.

Ao observar que o pedido de liberdade feito à Corte foi apresentado por pessoas que não constituem a defesa técnica de Lula, Laurita ainda pede que os advogados do ex-presidente se manifestem, em cinco dias. Até a conclusão desta edição, a ministra não havia analisado o pedido da Procuradoria-Geral da República para que o STJ declare sua competência para decidir sobre os pedidos de liberdade do petista.

A assessoria do TRF-4 informou ontem que Favreto não se manifestou sobre a decisão da presidente do STJ.

Supremo. O conflito de decisões entre os desembargadores do TRF-4 também intensificou a pressão no Supremo para que o plenário julgue definitivamente as ações que tratam da prisão após condenação em segunda instância. O episódio no TRF-4 foi visto como um reflexo da divisão interna da Corte sobre o tema. A revisão da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, como é o caso de Lula, é encarada como uma das saídas para o petista conseguir sua liberdade.

A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, resiste a pautar os processos. Com isso, integrantes da Corte desfavoráveis à prisão após condenação em segunda instância esperam que o ministro Dias Toffoli marque a data de julgamento quando assumir a presidência do STF, em setembro.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo à


Soraya Soubhi Smaili: Universidade pública, patrimônio do povo

Mesmo sob ataque, ela é reconhecida pela população brasileira como essencial ao País

Por mais que sofram cortes, reduzam fortemente sua expansão, sofram ataques à autonomia pedagógica (garantida pela Constituição federal no artigo 207), sejam tidas como onerosas e recebam pressão para que cobrem mensalidades, as universidades públicas brasileiras seguem reconhecidas pela população como fundamentais ao desenvolvimento nacional. Referência na formação de bons profissionais e cidadãos, são – cada vez mais – consideradas democráticas e plurais. A população quer que as universidades públicas continuem crescendo e que o orçamento público seja dirigido à educação pública, e não ao financiamento do setor privado. Esses são alguns resultados da pesquisa de opinião realizada pela Idea Big Data em maio, com 2.168 entrevistados em todo o Brasil.

A pesquisa colabora para derrubar alguns mitos que circulam na mídia, disseminados pelos que as consideram ineficientes e “esquerdistas”. Apesar da grande expansão do ensino superior privado nos últimos anos, com muita publicidade e subsídio (os números do Fies cresceram exponencialmente), as universidades públicas (federais, estaduais e municipais) são vistas por 81% da população como as melhores do País. Reconhecimento comprovado em todos os rankings, nacionais e internacionais. Nas últimas avaliações dos dois principais rankings internacionais, 17 das 20 universidades brasileiras mais bem colocadas são públicas (QS Ranking 2018 e Times High Education 2017). A diferença não é apenas em sala de aula, as universidades públicas são as que produzem pesquisa em maior volume e impacto, fomentam o avanço da ciência brasileira, dialogam com os problemas da população na extensão universitária e prestam serviços públicos de qualidade – em seus hospitais, por exemplo.

Dos entrevistados na pesquisa, 90% consideram que as universidades públicas formam bons profissionais e 83% avaliam que, além disso, formam bons cidadãos. Em perspectiva mais ampla, 90 % entendem que elas são fundamentais para o desenvolvimento do País. Não é apenas uma questão de opinião, as universidades têm sido fundamentais para diversos avanços científicos e a implementação de políticas públicas no Brasil, da vacina contra o zika vírus à bioequivalência, que permitiu a regulamentação dos genéricos, do desenvolvimento dos biocombustíveis à descoberta do pré-sal, do genoma, de formas de controle do desmatamento na Amazônia e de proteção das populações originárias, da criação das incubadoras de novas empresas às tecnologias sociais em áreas vulneráveis, do reconhecimento de nosso patrimônio cultural às interpretações da formação social brasileira, etc.

As universidades públicas também deixaram de ser vistas apenas como espaço das elites: 69% consideram que essas instituições estão promovendo a inclusão social e 65% julgam que a política de cotas nas universidades federais foi bem-sucedida, tendo ampliado o acesso. Essa democratização da universidade é vista positivamente, porquanto 69% consideram que o acesso da população antes excluída não afeta a qualidade do ensino. De fato, não afetou na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde estudos de progresso têm mostrado que os estudantes de cotas têm desempenho semelhante ao de não cotistas.

Todavia 86% consideram que o acesso às universidades públicas é difícil se comparado ao oferecido pelas particulares, por isso 90% defendem a continuidade da expansão de vagas públicas. O Plano Nacional de Educação (PNE) prevê que as vagas públicas deveriam chegar a 40% da oferta no ensino superior. Contraditoriamente, a política desenvolvida tem levado a uma diminuição do número de vagas, que hoje representam 27%, com tendência de queda.

O PNE foi retirado, desde 2017, da Lei de Diretrizes Orçamentárias do governo federal, fato que será agravado pela Emenda Constitucional n.º 95/2016, do teto de gastos. A pesquisa também aborda os cortes determinados pela emenda: 82% acham que isso deve precarizar o sistema público e 71%, que vai beneficiar o setor privado. Os entrevistados entendem que os dois principais adversários das universidades públicas no Brasil são os donos das universidades privadas e o próprio governo federal. É marcante observar ainda que a maioria rejeita a cobrança de mensalidades – 83% são contra – como solução.

A universidade pública tem como premissa a autoavaliação permanente. Por isso é importante verificar alguns dos pontos a serem analisados para uma ressignificação, como o fato de que 62% consideram que elas estão subordinadas a interesses de seus empregados e 57% que atendem a interesses de políticos. Por isso deve ter uma lógica de isenção e de autonomia em relação a partidos e governos. Há uma preocupação de 54% com o impacto das greves na suspensão de aulas, e isso depende mais das políticas implementadas por governos. Por outro lado, é preciso evitar ambientes acadêmicos que, embora produtivos, sejam pouco abertos ao diálogo com a sociedade. Excelência acadêmica deve combinar-se com relevância social. É preciso fortalecer os laços e formas de interlocução com a sociedade, numa universidade que se questiona, avança, evolui.

A pesquisa demonstra a importância, o reconhecimento e apoio que as universidades públicas têm no País. Nem por isso estão acomodadas; ao contrário, o ambiente universitário propicia e estimula o diálogo e a ação. É o que faz a universidade ter perenidade, produzir conhecimento e melhorar a condição humana de gerações e gerações. A universidade pública brasileira está cada vez mais em consonância com o tempo, refletindo os anseios da sociedade, lutando pela contínua expansão e ampliando sua democratização para que o ensino superior seja, de fato, um direito de todo cidadão brasileiro.

* Soraya Soubhi Smaili é professor da Escola Paulista de Medicina, reitora da Unifesp


Davi Tangerino: Lula livre?

O caso triplex pode ser resumido assim: a posse do apartamento é uma vantagem indevida oferecida a Lula pela OAS, conforme, principalmente, delação de Léo Pinheiro. Como esse bem foi ocultado por Lula, haveria, também, lavagem. Condenado por Moro e pelo TRF4, esgotada a segunda instância recentemente, admitido o recurso ao STJ, e inadmitido o recurso ao STF.

Quase todos os elementos desse resumo tiveram desenvolvimentos recentes importantes no STF.

Gleisi Hoffmann foi absolvida em caso construído contra ela com base exclusiva em colaborações premiadas, sem apoio em outros elementos de prova. A ação penal contra o ex-presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo Fernando Capez foi trancada por motivos semelhantes, agravado pelo fato que o próprio colaborador teria sido inconsistente quanto à participação de do deputado estadual paulista nos fatos criminosos.

O ex-ministro José Dirceu, por sua vez, logrou habeas corpus para suspender a execução provisória da pena, pois, disse o ministro Dias Toffoli, os argumentos de defesa mostravam-se plausíveis. Isso significa que havia possibilidade concreta de alteração de sua condenação e do montante de pena a ele aplicável.

Essas decisões pavimentam um caminho para a liberdade processual do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Como apresentei na síntese: a maior fonte segundo a qual o triplex seria de Lula vem de uma colaboração, sem maiores amparos documentais.

Além disso, do ponto de vista dogmático, há ao menos uma tese “plausível” – para usar a expressão de Toffoli – no caso de Lula, que, se acolhida, diminuiria muito sua condenação: a de que não se pode lavar a posse de bens.

A mera posse não representa disponibilidade sobre um bem, de sorte que não há deveres de declaração dessa posse. Como ocultar aquilo cuja declaração não é exigida? Como pode um filho ocultar um carro que lhe foi emprestado pelo pai, por exemplo?

A combinação do precedente Gleisi/Capez, de um lado, com a de Dirceu, de outro, podem representar, sim, a liberdade próxima de Lula.

Há, porém, um detalhe importante: todos esses precedentes ocorreram na Turma; Fachin, no caso do último HC de Lula, resolveu levar o Agravo ao pleno. Lá, todos sabemos, vai haver um placar de 6 a 5; provavelmente contra Lula.

A liberdade de Lula tornou-se mais possível; desde que eventual HC seja julgado na Turma.

*Davi Tangerino, 39, é doutor em Direito Penal e professor da FGV e da UERJ


Humberto Werneck: O córner e o escanteio

Grudado na TV durante os 90 minutos de uma partida. Nem eu me reconheço 

Faltando poucas horas - menos de 6 - para o Brasil e México, lá na Rússia, e sendo eu quem sou, chega a ser uma imprudência me sentar para escrever sobre futebol. Mas também um cronista precisa às vezes cumprir tabela. Confesso a você que o assunto aqui era outro, os 90 anos da publicação do poema No Meio do Caminho, de Drummond, que tanto escândalo provocou. Vai ficar para a próxima, se não me surrupiarem o tema, pois sucede que hoje madruguei mais prosa que poesia.

Imprudência, sim, da parte de quem, de tão ignorante em matéria futebolística, seria incapaz de distinguir um córner de um escanteio. Foi o que confessei certa vez por escrito, e tive o dissabor de constatar que nem mesmo a tentativa de gracejo funcionou, pois mais de uma pessoa se apressou em explicar que córner e escanteio vêm a ser a mesma coisa. Talvez não devesse me meter nessa seara, eu que nunca fui capaz de um bom chute, talvez nem mesmo no sentido figurado da palavra.

Quando menino, na fazenda, num campinho onde meu pai plantou um par de traves, jamais cheguei aos pés, já nem digo dos outros meninos, mas da prima Lolô, eficiente zagueira, e muito menos da prima Sílvia, memorável cabeceadora. Como tantos garotos pernas de pau, acabei condenado a ser goleiro, e nem ali me destaquei - a não ser pelos frangos que papei quando, no Colégio Estadual, alguém teve a temeridade de me confiar o arco da 1.ª série D.

Fracasso nos gramados, decidi meter as mãos pelos pés, isto é, fui tentar a sorte na quadra de basquete, disposto a reprisar ali, com meu metro e 73, as façanhas que meu pai (haja terapia na idade madura!), quase 10 centímetros mais alto, inscreveu na história do Minas Tênis Clube, a maior delas tendo sido uma cesta feita de um garrafão a outro, arrebatando a segundos do final um título que o América já considerava no papo. As tais “werneckadas” de que décadas mais tarde me falaria Fernando Sabino, ex-recordista de natação pelo mesmo clube, que deixou a piscina para mergulhar, com igual sucesso, na literatura. Mesmo sem títulos e medalhas, foi uma transição assim o que busquei fazer aos 17 anos, ao abandonar as quadras no dia em que publiquei o meu primeiro texto, para vir a ser, conforme já admiti, um escritor à minha altura, ou seja, 1,73 metro, medida que o tempo vem se encarregando de encurtar ainda mais.

Mas voltemos ao futebol, departamento sentimental em que a minha escolha, vitalícia, foi selada aos 7 anos, quando meu pai me levou pela primeira vez a um estádio, para ver Cruzeiro e América. “Você torce para o time que quiser”, alertou ele, “mas esse aí faz 7 anos que não ganha um campeonato.” Não importa. Com aquela camisa azul, pensei, que diferença fariam uns troféus a menos? E, que nem Jacó, gramei mais 7 anos até ver campeão o time que me ganhara pela beleza do uniforme.

Nas pegadas do velho Hugo, achei que tinha a obrigação ritual de iniciar meu filho na paixão futebolística. Aquela história: “Quem me levou a um estádio pela primeira vez foi meu falecido pai...”. Decidi fazê-lo em vida, e, numas férias em Belo Horizonte, fui com ele ver um Cruzeiro e Atlético.

O que para meu filho pode ter sido uma chatice, foi para mim uma experiência pedagógica: “Não vai passar de novo?”, perguntou ele quando o Cruzeiro fez um gol. É isto!, descobri então, instantaneamente convertido ao gosto pelos “melhores momentos”, sejam de que natureza forem. Por mim, uma partida de futebol deveria vir desossada, sem cera nem embromação, de modo a que à mesa do torcedor chegasse apenas o filé.

Se disso não duvido, confesso com um pouco de vergonha nunca ter voltado a um estádio desde aquela tarde. Minto: estando em Barcelona em 2002, deixei-me arrastar por amigos para ver um Brasil e Catalunha. Inesquecível noitada no Camp Nou repleto. Só não me pergunte quanto foi o jogo.

Pode ser que o tempo esteja conferindo flexibilidade a quem, um dia, considerou a possibilidade de não torcer pelo Brasil numa Copa do Mundo, a de 1974. Vivendo em Paris, cheguei a participar de uma assembleia de compatriotas em que se discutiu, a sério, horas a fio - e em francês, mon Dieu, pois o debate atraíra gente de outros idiomas - se torcer pela nossa Seleção não seria engrossar o caldo do ditador Geisel. Eu deveria corar retroativamente, mas acho é graça ao me lembrar de que ao cabo de muita conversa prevaleceu a palavra de ordem liberal de deixar a cada um a grave decisão cívico-ludopédica de torcer ou não pelos pupilos do Zagallo. Mais do que nós, sofreu apenas o idioma francês.

De fato, ando mudado. Dias atrás, nos intervalos do VII Fliaraxá, impecavelmente organizado pelo Afonso Borges, assisti a duas partidas - inteiras! - da Copa na Rússia, e olha que nem cerveja rolava. Uma delas, vi ao lado do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos. Viemos ontem de Araxá, e imagino que ele, já de volta a Barcelona, onde vive, estará se preparando para ver o embate de nossas seleções. Quanto a mim, aqui estarei, daqui a pouco, preparado até para o melhor, grudado na televisão, do primeiro ao último minuto. Duvida? Remeto você ao título do novo romance do Juan Pablo: Ninguém Precisa Acreditar em Mim.


Denis Lerrer Rosenfield: A volta dos militares

Novidade histórica: os militares voltarão ao poder, pela via democrática

Eis um cenário altamente provável, que foge totalmente do padrão das últimas eleições. Estamos diante de um fato novo, que não se deixa mais reduzir aos moldes de uma polarização hoje vencida entre PT e PSDB. É forçoso reconhecer que o País mudou.

Essa provável volta contará com o apoio da sociedade e, certamente, das Forças Armadas. Para a opinião pública, os militares representam uma instituição da mais alta confiabilidade, que não foi tomada pela onda da imoralidade pública. Eles se tornaram, para muitos, uma opção, uma alternativa de poder. Seu prestígio só tem aumentado.

É bem verdade que todos os governos após a redemocratização contribuíram amplamente para isso. A segurança pública foi deixada em frangalhos, o crime assola a Nação, e tudo tem sido tratado com leniência e ineficiência, se não com complacência e simpatia ideológica. Crime não seria crime, mas uma forma de resposta social. Se os mortos falassem, eles lhes dariam uma resposta adequada!

As pessoas estão aterrorizadas, nas ruas e em casa, e ainda são obrigadas a ouvir o discurso ensurdecedor do politicamente correto. Mais de 60 mil pessoas são mortas por ano e temos de ouvir as falas insensatas sobre a manutenção do Estatuto do Desarmamento, como se esse fosse o maior problema do País. Os cidadãos de bem tornam-se, graças ao legítimo direito à autodefesa, os responsáveis pela criminalidade!

A candidatura Bolsonaro surge como uma resposta a esse tipo de questão, por mais impreciso que seja ainda o seu discurso político e, sobretudo, econômico. Soube escutar esse anseio da sociedade, ciente de que o Estado não se pode sustentar sem o exercício da autoridade estatal.

O Estado, em negociações “democráticas”, virou refém de corporações de funcionários e empresários que se apoderaram de uma fatia do bolo público e são avessos a qualquer mudança. Se a tão necessária reforma da Previdência não foi realizada, foi por que as corporações de privilegiados se negaram a reduzir seus benefícios dos mais diferentes tipos.

A esquerda, seguindo sua degradação ideológica, ficou do lado das corporações públicas, como se elas representassem os trabalhadores, estes, sim reféns de baixos salários e do desemprego. As corporações do Judiciário e do Ministério Público também se recusaram a aceitar a igualdade básica dos cidadãos enquanto membros do Estado. Este se tornou presa de seus estamentos, perdendo o sentido da moralidade e do bem coletivo.

Tachar o discurso do deputado Jair Bolsonaro de extrema direita é o melhor atalho para refugiar-se na miopia ideológica. Só teria sentido se se considerasse a defesa da vida e do patrimônio das pessoas uma bandeira de extrema direita. Isso significaria, então, que a esquerda valoriza o crime e a violência? Ou não se preocupa com a vida e o patrimônio dos cidadãos?

A greve dos caminhoneiros mostrou com inusitada clareza que os militares se tornaram uma opção para boa parte dos cidadãos. Os pedidos de intervenção militar alastraram-se pelo País e foram muito maiores do que o noticiado. A sociedade clama por moralidade pública e por segurança física e patrimonial. Cansou-se do discurso de uma classe política que não mais a representa. Partidos com forte estruturação ideológica, como PT e PSDB, ficaram literalmente perdidos, tontos.

Evidentemente, tal saída seria uma ruptura institucional, ferindo uma democracia cambaleante. E mais imprópria ainda por ter o atual governo levado a cabo uma agenda reformista que está mudando o País, apesar de seus percalços. Não seria esse o destino desejável.

Nas últimas décadas os militares têm tido um comportamento exemplar, defendendo a democracia e a Constituição. Passaram por momentos muito delicados, sendo objeto de acusações as mais diversas, com a ameaça de revisão da Lei da Anistia pairando sobre eles. Souberam resistir no estrito respeito às normas constitucionais, enquanto seus opositores pretendiam jogá-las pelos ares.

Agora, todo um setor importante da sociedade brasileira clama para que voltem ao poder, por intermédio da candidatura Bolsonaro. Ele não representa apenas a si mesmo, mas responde a um apelo social, podendo contar com o apoio dos militares, embora as Forças Armadas permaneçam, enquanto instituição estatal, neutras e equidistantes em relação ao processo eleitoral.

É visível o empenho de militares da reserva em favorecer essa via democrática de volta ao poder. Generais importantes estão empenhados nesse processo, dando o seu aval a uma candidatura que, vitoriosa, poderá contar com o apoio daqueles que querem restaurar a autoridade estatal.

Acontece que a Nação apresenta uma condição de anomia, cada estamento puxando para o seu interesse particular, como se o Estado pudesse ser esquartejado, perdendo-se até mesmo a própria noção do bem coletivo. A desordem toma conta do espaço público, como amplamente demonstrado na greve dos caminhoneiros, que conseguiu curvar o governo no atendimento de suas demandas.

O caminho está aberto para que outras corporações sigam o mesmo caminho. A greve contou com o apoio da sociedade, que, do ponto de vista público, terminou prejudicada em todo esse episódio. O que contou, porém, foi a expressão de uma insatisfação generalizada, que encontrou aí uma canalização para o seu mal-estar.

E é esse mal-estar que está sendo a condição mesma do apoio social à volta dos militares ao poder. Talvez os que defendam a ideia da bolha da candidatura Bolsonaro, como se ela fosse logo explodir, não tenham compreendido que a sociedade não mais aceita uma classe política que se corrompeu e dela se distanciou.

Se há uma bolha, diria crescente, é a de uma sociedade que deseja mudanças. E ela, sim, pode explodir!

*Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS


Roberto Macedo: O golpe dos cursos sobre o ‘golpe’

É um atentado contra o pluralismo que deve pautar as discussões nas universidades 

Algumas universidades passaram a oferecer cursos que questionam a legitimidade do impeachment, em 2016, da então presidente da República, Dilma Rousseff. O assunto segue no noticiário na forma de matérias e artigos de opinião. Recentemente, chamou-me a atenção uma reportagem no site de O Globo (24/4) intitulada UFRJ oferece curso sobre ‘o golpe de 2016 e o futuro da democracia’. UFRJ é a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A matéria traz um bom histórico do assunto. Em resumo, ele começou em fevereiro, quando a Universidade de Brasília (UnB) anunciou a criação de disciplina sobre “o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”. Na sequência, o Ministério da Educação acionou vários órgãos, entre eles a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal (MPF), para apurar eventual improbidade administrativa dos responsáveis pela disciplina.

Entendo que tal improbidade estaria na criação de um curso cujo título evidencia proselitismo político, numa universidade pública e com seus recursos. A iniciativa da UnB foi replicada noutras universidades, as estaduais de Campinas (SP) e da Paraíba, e as federais da Bahia, do Amazonas, de Goiás e do Ceará. Estes dois últimos casos também passaram a receber atenção do MPF.

Na UFRJ o curso, com título que repete o da UnB, surgiu no seu Instituto de Economia (IE), na forma de 11 seminários sobre o assunto em dias diferentes, todos ministrados por professores do instituto, exceto um. Pela primeira vez vi um instituto de economia tomando iniciativa semelhante à da UnB, o que me despertou interesse ainda maior, e formei minha opinião.

Entendo que o ambiente universitário deve pautar-se pelo pluralismo de opiniões, o que também atua como estímulo à busca do conhecimento. Nada teria contra debates, disciplinas, cursos e programas de seminários sobre o impeachment de Dilma desde que respeitado esse pluralismo. O título de um deles poderia ser, por exemplo, “O impeachment de Dilma foi golpe?”. Esse ponto de interrogação vem sendo omitido, o que é um golpe contra o pluralismo que deve pautar as discussões nas universidades.

“Certezas” desse tipo são comuns em universidades brasileiras, em particular nas públicas e nas ciências humanas. Há professores que ao lecionar pregam suas convicções ideológicas, tratando suas hipóteses como teses. E na pesquisa focam em evidências seletivas que sustentam tais hipóteses, havendo também “evidências” apenas discursivas. Vertente importante dessa pregação é conhecida como marxismo gramsciano. Não tenho espaço para descrevê-la aqui, mas quanto a isso o leitor poderá consultar texto muito esclarecedor de outro articulista desta página, Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em www.ecsbdefesa.com.br/fts/MGPFIREP.PDF.

Diante do tema - e insisto, com ponto de interrogação - minha resposta seria não, fundamentada na análise dos fatos que sustentaram o impeachment e na pertinência do processo jurídico então seguido. Como economista, observei muito as questões de finanças públicas envolvidas no caso. Estão muito bem esclarecidas no parecer do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), documento que sustentou a decisão do Senado que afastou Dilma. Anastasia discutiu argumentos pró e contra no processo de que era o relator e o texto pode ser encontrado no Google digitando “impeachment Dilma parecer do senador Anastasia”. A referência que virá em primeiro lugar remete ao site do Senado, que dá acesso ao documento, de 126 páginas. Sua leitura pode servir como terapia para quem fala em golpe.

Em resumo, o parecer conclui pela demissão de Dilma pelas seguintes e justas causas: “a) ofensa aos art. 85, VI e art. 167, V da Constituição Federal, e aos art. 10, item 4, e art. 11, item 2 da Lei no 1.079, de 1950 (a chamada Lei do Impeachment, acrescento), pela abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional; e b) ofensa aos art. 85, VI e art. 11, item 3 da Lei nº 1.079, de 1950, pela contratação ilegal de operações de crédito com instituição financeira controlada pela União”.

Essas operações de crédito envolveram várias instituições, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, e ficaram conhecidas como pedaladas fiscais. O parecer contém vários gráficos mostrando que no governo Dilma elas cresceram abruptamente nessas instituições. Da mesma forma caíram em dezembro de 2015, quando expressivo valor delas, R$ 56 bilhões (!), foi quitado pelo Tesouro Nacional, mas só depois de o Tribunal de Contas da União apontar que eram ilegais.

Uma decisão do Senado é sempre política, mas o impeachment seria improvável se Dilma não estivesse na situação vulnerável em que ficou por seus próprios atos. Punida por questões de finanças públicas federais, entrou na história pelo golpe com que prostrou o equilíbrio dessas finanças.

Voltando ao IE da UFRJ, ao buscar seu site no Google, ele é informado seguido da missão desse instituto: “O IE-UFRJ desenvolve atividades de ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão na área de Economia. Seu principal compromisso é apresentar e discutir, de forma aprofundada e crítica, as principais vertentes do pensamento econômico, sempre cultivando a pluralidade de visões e abordagens.” Muito bem!

Quem organizou o citado seminário talvez argumentasse, para justificar a ausência dessa pluralidade, que ele trata do pensamento político. Mas, aberto o site (www.ie.ufrj.br), logo no início é dito com destaque: “Singular porque plural” - sem nenhuma restrição.

Ignoro se o Instituto de Economia já organizou ou pretende realizar outros eventos sobre o assunto, em linha com sua missão pluralista. Se não, estaria em dívida com ela.

*ROBERTO MACEDO - ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR


Mario Vitor Rodrigues entrevista Samuel Pessôa

"Uma boa parte da heterodoxia brasileira têm uma relação religiosa com o conhecimento" 

Devo admitir que, em um primeiro momento, logo após acertar essa entrevista, a minha ideia de como seria o economista Samuel Pessôa não fugia do estereótipo. Pelo menos não daquele imaginado por alguém formado em humanas, como eu: cerimonioso, talvez até contido e muito provavelmente excêntrico. Além, é claro, de gênio, como amigos no mercado fizeram questão de frisar assim que souberam da notícia.

 Pois eu estava errado. Acima de tudo, Samuel Pessôa é boa praça. Conversamos em duas ocasiões, primeiro na sua casa e depois em uma charutaria no Jardim Paulista. Quanto aos meus amigos, estavam cobertos de razão.
– Samuel, falávamos sobre a nota do Lauro Jardim e como o país aguardou pela confirmação de um áudio até se sentir, de certa forma, enganado. Como aquele momento bateu em você?

 – Para mim foi super estranho, por que a notícia que foi divulgada, acho que numa quarta-feira, se me lembro bem, era sobre obstrução de Justiça. O presidente tinha obstruído a Justiça. Gravíssimo. Quando eu ouvi o áudio, o que tinha lá era uma possível prevaricação. Não estava totalmente claro.

– Isso, ele de fato ouviu um monte de barbaridades e não fez nada, nem na hora…

 …E nem depois […]. A minha avaliação é de que o Rodrigo Janot foi açodado. E depois isso ficou muito claro que houve açodo, tanto é que ele teve de recuar.

– Açodado ele ou o Lauro Jardim?

– Eu acho que […], bom, depois eu chego na imprensa, tem o Lauro Jardim e tem a Globo, acho que dá para entender tudo, mas primeiro, sobre o Rodrigo Janot, ele foi açodado. Tanto que o processo precisou ser desfeito e a gente descobriu depois aquele imbróglio envolvendo o Miller (procurador Marcello Miller) atuando dos dois lados do balcão. Uma coisa esquisitíssima. Viemos a saber depois que o Joesley não deu todas as informações. Ele enganou a Procuradoria e, dadas todas essas irregularidades, o acordo de delação precisou ser desfeito. Então, claramente foi mal feito. A minha interpretação é de que esse açodo se deveu ao interesse da procuradoria em reduzir o poder do Temer por que ele estava para aprovar a reforma da Previdência. Essa é a minha avaliação, eu não consigo provar isso […]

– Claro…

– […] E por que eu acho isso? Porque, ao contrário do que foi noticiado, a reforma da Previdência produziria uma forte mudança em relação aos servidores públicos. Não era só uma reforma do regime geral da Previdência. Para aquele servidor que ingressou antes de 2003, havia uma expectativa de que, cumprindo alguns anos, ele poderia se aposentar com o benefício da integralidade do vencimento e da paridade dos aumentos futuros em relação ao vencimento do ativo. Esses dois princípios, paridade e integralidade. E a reforma previa que para aqueles ingressantes no serviço público federal antes de 2003 se beneficiassem da paridade e da integralidade, eles teriam de trabalhar até os 65 anos, se fossem homens, e 62, se fossem mulheres. Isso gerava um impacto grande no gasto público. Não só porque seriam pagas menos aposentadorias, mas porque todos esses servidores teriam de trabalhar mais tempo e haveria menos necessidade de trocar servidores. E o impacto dessa medida seria cavalar porque, seis meses depois, se aprovada a reforma, ela também valeria para os regimes estaduais. Agora, eu entendo que uma pessoa que fez um concurso com uma expectativa de se aposentar aos 50, 55 anos, com paridade e integralidade, não queira que mudem as regras no meio do jogo. Ela não está preocupada com o Tesouro Nacional. Ela está preocupada é com a vida dela. Eu entendo isso. Também é um lado da moeda, né? Tem o equilíbrio das contas públicas e tem a expectativa de direitos que as pessoas têm, dadas as regras vigentes dos concursos quando elas passaram. Eu acho que isso tudo explica o açodo da procuradoria.

– Pois é, durante aqueles dias eu cheguei a ouvir que o Janot seria um cara simpático à esquerda, assim como a gente também escuta esse tipo de coisa envolvendo os ministros do Supremo, mas o que você está me dizendo…

 …Eu acho que foi por corporativismo. A gente está vendo, nesses anos do ajuste fiscal, que o corporativismo é fortíssimo. O corporativismo do Judiciário e das carreiras de elite do serviço público brasileiro são muito fortes. Essa é a minha avaliação. Repito, não consigo provar isso, mas tem o outro tema […]. Quer dizer, como que ecoou na imprensa? Eu acho que o Lauro Jardim é desses jornalistas que vive do “furo”, né? Um jornalista respeitado e muito bem informado…Houve um certo descuido, na minha opinião. Eu não acho que a Globo tinha algo contra o Temer. Não acho que ela tinha uma agenda contra o governo. Agora, eu acho que ela carrega um estigma por atos do passado. Uma imagem que eu acho injusta. Eu gosto da Rede Globo. Acho que ela fez e faz programas importantes…Penso na minissérie Grande Sertão Veredas, produzida na década de 80, que é linda. Toda a dramaturgia produzida e que tem um impacto imenso na nossa cultura…Eu acho a Globo uma empresa que produz conteúdo de boa qualidade. E não é melhor do que as outras por ser monopólio ou alguma coisa do tipo, mas por trabalhar bem. Eu vejo gente dizer: “ah, o Jornal Nacional é uma porcaria”…Eu via os jornais lá fora, quando eu morava nos Estados Unidos, e não acho muito diferente…Sei lá, é uma coisa meio padrão, eu imagino que um jornal daquele modelo não vai ser muito diferente do que é, mas, de fato, a esquerda e os intelectuais conseguiram pregar esse selo. Está associado com uma relação que a Globo teve com a ditadura, décadas atrás, e o erro que cometeram na edição do debate entre o Lula e o Collor em 89. Eu não acho que a derrota do Lula se deve àquilo, mas teve um peso. E também de certa avaliação que várias pessoas fizeram, e nesse ponto eu discordo de que a Globo teria pegado pesado com o PT agora, nesse processo do impedimento da presidente. Dizem que tinha muita reportagem, que era todo dia…Eu realmente não achei que a Globo foi especialmente errada no jornalismo dela. Tanto no mensalão quando agora. De todo modo, quando apareceu uma possível notícia importante que pegava o governo, eles foram compelidos…vamos dizer que a decisão jornalística pesou mais do que o cuidado com a apuração da notícia. E aí eu acho que a Globo cometeu um grande erro: na hora que a notícia inteira veio a público e ela viu que tinha errado, deveria ter feito um mea culpa. E não fez.

– Pelo contrário, fez um editorial, depois, pedindo a renúncia do presidente…

– …Eu acho que poderiam ter pedido a renúncia dele por prevaricação, o que é muito grave, mas não foi aquilo o noticiado. Teve até aquela jornalista, a Vera Magalhães…ela fez direitinho, no YouTube…eu já lia o que ela escrevia, mas a partir daquele momento ela virou uma referência pra mim, pela maneira como ela se comportou. Foi exemplar. E chamou a culpa pra ela, não ficou falando dos outros. Achei muito legal a postura da Vera […], então eu acho que é isso. Não tinha uma agenda da Globo, mas teve essa soma de fatores…Agora, eu acho que a culpa disso tudo é do Temer.

– Não tinha nada que se reunir com alguém do naipe do Joesley…

 …com ninguém do naipe do Joesley, às dez da noite, fora da agenda, o cara dando o nome errado para entrar… foi gravado? Dançou. Se houve açodo do Janot, não muda esse fato. Quem gerou o motivo que destruiu a possibilidade da aprovação da Reforma foi o próprio presidente.

– Você acha que, dado todo esse cenário, a equipe econômica atual conseguiu lidar da melhor forma possível?

 Eu acho que houve um erro… quer dizer, não sei se foi da equipe econômica, é muito difícil avaliar isso estando de fora, mas eu acho que houve um erro apontado pelo Marcos (Lisboa) desde o início, com muita clareza e publicamente. Eu até fui menos vocal do que ele, fui leniente no momento, mas que depois se mostrou grave: não rever aqueles aumentos salariais, feitos lá atrás, quando eles assumiram. Tinha aquele escalonamento de aumentos salariais que a Dilma havia negociado com o sindicato dos servidores públicos e o Temer deveria ter revisto, dada a natureza do problema fiscal. Quando o Temer assumiu e descobriu-se que a situação era muito grave, não dava para manter […]. Ficou uma situação anacrônica em que estados não podem emitir dívida e segurando salário dos servidores estaduais, enquanto a União, que pode emitir dívida, dando aumentos reais de salários para os servidores na situação em que o país estava. E esse impacto no orçamento não é pouca coisa. Então esse foi um erro e acho que foi um erro importante. Tirando isso, a equipe é espetacular e fez um trabalho excelente. Diante das circunstâncias, fez o que dava para fazer.

– Uma coisa que eu queria te perguntar, desde quando marcamos essa entrevista, é o seguinte: qual é a sensação de dominar um assunto tão importante para o País e perceber que esse entendimento não consegue superar as campanhas de desinformação? Que o Brasil patina mesmo após um momento tão grave, que deveria servir de aprendizado?

 Então […] O que é esse patinar? Esse patinar é justamente não haver aprendizado. Tem alguma coisa no nosso processo social, na forma como a nossa sociedade funciona, que a gente não aprende com os eventos. Talvez aprenda até, mas seja um aprendizado muito lento. Eu vejo, por exemplo, as declarações do pré-candidato Ciro Gomes, ou leio a entrevista do economista Nelson Marconi, meu colega na Fundação [Getulio Vargas], e me parece que não houve aprendizado com o período que vivemos nesse passado recente. Tem uma dificuldade, que não é só brasileira, é também argentina e venezuelana, ligada à existência de um núcleo na Academia, em economia, que são os heterodoxos. Que têm uma visão diferente do mundo. E eu acho que essa visão é meio amalucada. Por exemplo, eu vejo esse pessoal falando…eles acreditam, no meu modo de entender, numa economia do moto-perpétuo. E o que é a economia do moto-perpétuo? É o seguinte: o Estado aumenta o gasto dele, e, claro, para aumentar o gasto ele tem de aumentar a dívida…mas esse impacto é tão grande sobre o crescimento e na receita de impostos, que, no final do dia, depois de todos esses efeitos, a relação dívida/PIB cai. É um mundo maravilhoso, uma coisa meio pedra filosofal… e tem gente relevante que acredita nisso. Agora, o que eu faço quando uma parte grande dos profissionais de economia tem visões de mundo que no meu entender são totalmente amalucadas? […] Veja, esse grupo de pessoas que pensam de maneira muito diferente existe em todo lugar, na França, nos Estados Unidos, no Chile… agora, nesses lugares acontece alguma coisa que essas pessoas nunca viram o ministro da Fazenda, nunca viram o secretário do Tesouro Nacional ou o presidente da República […]. Estão na Academia, fazendo lá as suas críticas, umas pessoas ouvindo, outras não ouvindo e vida que segue. Não têm relevância na formulação da política econômica do País. Elas podem fazer uma formulação crítica que gere literatura, uma reflexão que resulte em algum eco, mas não vão lá formular a política econômica. No Brasil elas vão. Na Argentina, na época da Cristina, tinha aquele sujeito lá de costeletas [Axel Kicillof, ministro de Cristina Kirshner entre 2013 e 2015], na Venezuela tem outro lá…agora, olha o Chile. Saiu o Piñera, entrou a Bachelet, que todo mundo diz que é de esquerda, e olha lá os ministros dela: é MIT, Stanford, Princeton… não tem gente maluca. É gente mais social-democrata. Aí sai a Bachelet, entra o Piñera e pegam um cara de Chicago, outro de Minnessota, do Arizona…sei lá, um cara mais de centro-direita. Do ponto de vista da economics, da teoria positiva, todos pensam igual. A Bachelet não põe gente que acredita no moto-perpétuo. Aqui, quando a esquerda ganha, fazem isso.

– Deixa eu te fazer uma pergunta que eu fiz para o Marcos: quando o Lula assumiu, todo mundo ficou com medo, mas ele não botou fogo em Roma. Pelo contrário…

– …muito pelo contrário! Ele foi mais conservador […]. Deixa eu te dizer uma coisa: eu votei no Lula em 2002. E o motivo é muito simples. Não tenho nada contra o José Serra, muito pelo contrário, ambos somos palmeirenses, mas eu tenho um pé atrás com o intervencionismo a lá Getulio Vargas nos anos 50, o segundo PND do Geisel… eu acho que isso não funciona. O Brasil cresceu ali por outros motivos e eu sei que o Serra é um cara muito intervencionista. Ele tem saudades lá dos anos 50 e para mim era muito claro que o Lula, por ter vindo do povo, sofreu muito com a inflação. Quem é pobre e viveu os anos 80, 90, sabe que a inflação machuca. Então, era muito claro para mim que o Lula seria conservador na economia pela própria experiência de vida […]. Olha, antes de entrar nisso eu preciso voltar um pouco sobre o porquê do nosso aprendizado ser tão lento. Acho que um dos motivos é que entre os nossos profissionais de economia não existem acordos mínimos.

– Não existem?

– Exato, não existem. Como falei antes, você tem profissionais de economia para quem o gasto público se autofinancia eternamente. Essas pessoas […] Você olha para a Coreia. A Coreia, em 1960, era 1/3 do Brasil em renda per capita, hoje é três vezes mais. Eles construíram um dos melhores sistemas educacionais do mundo. Ou seja, se eram quase analfabetos em 1940, hoje todo mundo estuda no ITA, faz o PISA… as taxas de poupança da Coreia são 35% do PIB. As famílias da Coreia poupam muito e a carga tributária é baixa. O Estado, apesar de tributar pouco, produz com eficiência metrô, estradas e infraestrutura. Então veja, parece que isso explica o crescimento econômico, mas tem um monte de economista que acha que educação, poupança, contas equilibradas, uma política econômica fiscal e macroeconômica em ordem, são desimportantes. Que a Coreia ficou rica por causa do BNDES deles, dos campeões nacionais deles…que os fundamentos são consequência e não a causa. Entende? E essas pessoas são muito atrativas para o populismo.

– …estamos melhores agora do que há 2 anos, há 3 anos, mas a tinta ainda não deveria estar fresca para essas pessoas?

– …eu vou te falar uma coisa: vai lá em Campinas e converse com os economistas da nova geração. Eles vão te dizer que a crise foi culpa do Levy. Do ajuste fiscal do Levy. Nunca fizeram uma conta. São incapazes de fazer um artigo técnico rigoroso, bem estimado, e submetê-lo a uma revista brasileira de economia. Qualquer revista. E o fato de serem incapazes de produzir um paper acadêmico de alto nível, com as melhores técnicas, que sustentem essa visão amalucada deles, não faz com que eles tenham dúvida. E ainda assim eles continuam achando…

– …mas então é uma questão de fé? Não vira fé?

– Vira! Eu acho que essas pessoas têm uma relação religiosa com o conhecimento. Eu acho isso. Acho que uma boa parte da heterodoxia brasileira, de Campinas e da UFRJ, é religiosa. Eles não olham dados, não constroem modelos que possam ser estimados estatisticamente e não testam as hipóteses deles. Eles acreditam. É um ato de fé.

– Escuta, você mencionou o Ciro…

– Isso…

– A pergunta é: você não fica aflito quando ouve o Ciro falar? Não te causa certo receio? Inclusive pelo fato dele ser capaz de distorcer dados e datas, por falar em rever medidas…

– Em primeiro lugar eu devo dizer que compartilho do seu medo. E acho que as chances do Ciro chegar no segundo turno são elevadíssimas. No meu entender, o Ciro Gomes tem o melhor discurso da política brasileira. Ele tem um português muito bonito. Ele fala bonito sem ser pedante. Eu adoro ouvir o Ciro Gomes falar…

– Mas tem de tirar o conteúdo…

– Exatamente. Se você tirar o conteúdo, é o melhor. O estilo dele… é um discurso melhor do que o do Lula, inclusive. Se você notar, nos discursos do Ciro Gomes não tem uma muleta linguística. Não tem “sabe”, “aí”, “né”…é tudo conectado, sujeito, predicado, vocabulário rico… é um anti-Dilma. Só fala barbaridades, mas eu fico pensando […]. No ano passado, ele veio fazer uma palestra na Escola de Sociologia e Política, aqui na Vila Buarque, e eu fui. Inclusive para conhecer um pouco o pensamento dele. E eu fiquei ouvindo ele e pensando, “ora, eu sou um professor de economia, se eu tivesse de debater com ele, como que eu desmontaria as bobagens que ele está falando?”…e não seria fácil, porque eu precisaria me explicar demais. Você tem toda a razão, ele pega um dado e distorce um pouco. Vou dar um exemplo. Nessa palestra […] Ele adora falar mal do FHC. É uma coisa engraçada, o FHC saiu há 15 anos, mas ele tem lá um problema. O FHC não fez ele ministro e ele ficou amargurado. A gente pode até discutir um pouco futebol e amargura, porque eu tenho uma tese sobre isso envolvendo a campanha da seleção na Copa da África do Sul…

– Opa! Vamos, claro!

– …mas, sobre o Ciro, a relação que ele tem com o FHC é amargurada, de dor… Então, lá pelas tantas, ele falou: “ah, a dívida externa com o FHC chegou a x”. Eu não chequei, provavelmente o número estava certo. Tenho certeza que estava certo. E ele continuou: “A gente tinha uma dívida pública tal, em tal data, e era 60% do PIB, o que eles estão reclamando da dívida agora?”, foi alguma coisa assim. Bem, a gente sabe, o país tem uma história complicada, vinha de uma hiperinflação e fez uma estabilização. O PSDB cometeu os seus erros e os seus acertos; uma parte da dívida pública naquela época era denominada em dólares, houve o risco do Lula ganhar e o PT é um partido que ficou vinte anos só falando bobagem. Quando o risco deles ganharem aumentou, o mercado se assustou e o risco-país explodiu, levando junto aquela parte da dívida denominada em dólares. Pois bem, como a gente estava falando, o Lula assumiu de uma maneira muito responsável, pôs um ministro da Fazenda espetacular, meio gênio (Antônio Palocci) e aí o câmbio voltou, fazendo a dívida cair. Obviamente, quando foi discursar, o Ciro pegou o pico da situação. Ele não contextualizou que tinha uma parte dolarizada, apenas pinçou o momento ideal para fazer o seu argumento. Essa desonestidade o Ciro comete a rodo. Hoje mesmo, na Folha, aquela seção em que checam as falas dos políticos, pegaram umas quatro dele. Ele faz isso o tempo todo e, como fala bem, com muita fluência, você acha que os dados estão certos. A forma contamina o conteúdo […]. Por outro lado, o legado dele e do irmão dele, quando estiveram à frente do Estado do Ceará, é positivo. O que é uma ótima notícia para o Brasil. Agora o crime estourou lá, ficou meio chato, mas o saldo é positivo. Também lá ele foi um homem de responsabilidade fiscal. Sempre teve cuidado com as contas públicas. Quando ele foi ministro do Itamar Franco, substituindo o Ricupero, foi um cara super liberal. Brigou com a FIESP para abrir mais a economia. Então ele é um cara paradoxal. O discurso dele hoje é brizolista, intervencionista, nacional-desenvolvimentista dos anos 50, não tem nada a ver com a ação dele. Eu olho e acabo ficando super… em inglês tem aquela palavra, puzzled… eu fico apatetado. Fico me perguntando “por que ele virou brizolista?”. Por que ele quer esse intervencionismo que só deu errado?

– Mudando de assunto, hoje você é colunista em um jornal importante, mas como essa vontade de se comunicar com o público surgiu?

– É engraçado isso, Vitor, mas a economia demora a entrar […]. Para você virar um bom economista acadêmico, que faz pesquisas de alto nível, é super difícil, requer muito trabalho, mas é uma coisa que dá para aprender com uma maior rapidez. Os jovens tendem a ser melhores nisso, por serem mais criativos, mais inventivos…Agora, você ter um conhecimento econômico amplo e conseguir usar isso para falar sobre o mundo, pelo menos para mim, demorou décadas. E como eu sou formado em Física, eu tinha sempre uma certa insegurança de ter vindo de outra área. Tinham umas coisas básicas que eu não havia estudado…depois eu estudei tudo, estudei contas nacionais a fundo, mas eu demorei muitos anos para me sentir proprietário desse conhecimento e desse saber. Com independência intelectual para usar ele, para conversar com você, para falar publicamente, escrever em um jornal… só comecei a fazer essas coisas cinco anos atrás.

– E você consegue pensar em um momento específico?

– […] a minha passagem pelo gabinete do senador Tasso Jereissati foi fundamental para que eu me transformasse no que eu sou hoje. Acho que, para um profissional de economia, trabalhar no gabinete de um senador atuante, ativo no Senado e na Câmara, é uma experiência única. E eu fui muito abençoado, porque trabalhar com um político do nível do Tass foi uma das experiências profissionais mais gratificantes que eu tive. Um privilégio.

– Por falar em Tasso… Você acha que o PSDB foi o adversário ideal para o PT, por não ter sido tão combativo na oposição quanto os petistas foram durante os governos tucanos? É possível fazer essa crítica?

 Eu acho que não. Acho que não dá. Eu acho que a maneira como o PSDB fez oposição é a maneira correta.

– Mesmo?

 Acho. A nossa Constituição é de 1989. Desde então, já foram aprovadas mais de cem emendas constitucionais. Temos um sistema que os cientistas políticos chamam de democracia consensualista, que é um sistema cujas regras são todas desenhadas para obrigar a construção de consensos o tempo todo. Há imensas instâncias de negociação e muitos grupos com poder de veto. A gente pode mudar o sistema, mas ele foi feito assim. O presidente é eleito com 18% do Congresso. Então, ter uma oposição predatória, como o PT foi, é muito disfuncional.

– Eu não estou defendendo o “quanto pior, melhor”…

– …mas eu acho que o erro do PSDB não foi esse, no papel da oposição. O erro foi não ter digerido bem a derrota em 2002 e as qualidades e os defeitos durante os oito anos que eles ficaram na Presidência da República. Não defenderam o próprio legado […]. A transição de poder é normal, mas, se quando você perde, você defende o seu legado e olha a longo prazo, quando a sua vez de voltar chegar você estará pronto. 


Eugênio Bucci: 'Fake news', eleições e democracia

O vírus das notícias fraudulentas prepara o caldo de cultura do autoritarismo

À medida que se aproximam as eleições, as fake news voltam a preocupar os observadores da cena política. Quanto aos políticos, que são os protagonistas da mesma cena, apenas procuram se valer do pretexto das fake news para abrir novas frentes de censura contra a imprensa. Tramitaram ou tramitam por aí projetos abilolados e inacreditáveis. Um desses pretendeu mandar para a cadeia autores de informações “prejudicialmente incompletas”. Trata-se de mais um delírio censório desse pessoal.

Que história é essa de incompletude prejudicial? Por acaso existiria a “completude não prejudicial”? Algum dia, um único dia que seja, alguma edição de jornal terá ido às ruas sem uma incompletude sequer? Não lhe terá faltado uma correção gramatical, um contraponto numa reportagem política ou o endereço de um restaurante? E se uma legislação desse tipo fosse adotada, quem seria incumbido de arbitrar e determinar o grau de prejuízo e o grau de incompletude numa informação “prejudicialmente incompleta”?

Bastam dez segundos de exame de uma ideia dessas para concluir que ela não tem objetivo nenhum de combater as tais fake news; sua meta real é lançar novas intimidações contra os jornalistas que reportam fatos inconvenientes aos políticos. Fiquemos longe disso, por favor. As fake news pra valer, que são elaboradas por grupos clandestinos e mal-intencionados com endereços incertos e não sabidos, que podem ficar nos confins da Macedônia ou nos porões de Moscou, não seriam alcançadas por legislações desse tipo.

Tenhamos bem claras as diferenças. Notícias críticas, mesmo que ocasionalmente incompletas (um jornal diário vai completando suas informações de um dia para o outro, a edição do dia seguinte é sempre um complemento da anterior), não ameaçam em nada a normalidade das eleições. Ao contrário, sem a imprensa vigilante a democracia se enfraquece. Quem é prejudicial à democracia, completamente prejudicial, são as mentalidades censórias. As fake news também são completamente prejudiciais, por certo, mas alguns dos remédios que vêm sendo prescritos a pretexto de combatê-las conseguem ser ainda mais completamente prejudiciais.

Isto posto, vale a pena olhar com menos oportunismo para as relações danosas entre fake news, eleições e cultura democrática. As notícias fraudulentas (na tradução precisa recomendada pelo professor e jornalistas Carlos Eduardo Lins da Silva) são maléficas não somente por mesclarem falsidades e verdades. O problema maior das notícias fraudulentas não está nem na mentira. Está, antes, no lugar de onde elas provêm e no seu modo de produção.

Tratemos primeiro do lugar de origem. As fake news são produzidas em espaços que não guardam relações de pertencimento com o ambiente democrático ou com os valores da democracia. Uma redação minimamente profissional, quando erra, apressa-se a corrigir (se não fizer isso, perderá credibilidade). Já um centro gerador de notícias fraudulentas, que não tem compromisso com os fatos e age com a finalidade de lesar os direitos do público, pode muito bem insistir no erro. Esse tipo de fraude constituiu uma ação proposital para sabotar os processos decisórios das sociedades democráticas e para danificar os circuitos pelos quais a vontade dos cidadãos se conforma e se projeta. Inoculado dolosamente nos organismos de sociedades democráticas (aquelas que dependem das escolhas das maiorias e da garantia dos direitos das minorias para traçar os próprios rumos), o vírus desmoraliza e ridiculariza nada menos que os ritos da democracia. Quanto mais contaminadas, mais essas sociedades ficam vulneráveis a apelos autoritários. Dessa forma, as notícias fraudulentas preparam o caldo de cultura do autoritarismo. Mais do que ajudar um ou outro candidato a vencer uma ou outra eleição, desagregam a cultura democrática e fomentam o encanto dos discursos de prepotência.

Também por isso, os melhores antídotos contra esses novos vírus digitais são aqueles que fortalecem o debate democrático, não os que levam a sociedade a buscar socorro em tutelas estatais. Leis mais ou menos censórias apenas infantilizam os cidadãos (que acabam postos no papel de crianças que precisam de pajem). Ou a democracia inventa mecanismos livres para desmontar as fraudes que pipocam nas redes sociais (por meio da checagem promovida pelas redações profissionais em rede com associações colaborativas) ou as notícias fraudulentas terão vencido a queda de braço.

Tratemos, por fim, do modo de produção dessas fraudes. Todos sabem (e não se cansam de repetir) que a mentira sempre existiu na política. A questão, agora, é que a mentira política – que antes se viabilizava como um esforço cuja compensação se limitava à eventual conquista do poder – se tornou, também, um negócio economicamente lucrativo. Esse negócio – atenção para isso – independe dos interesses partidários de seus agentes. A lógica da indústria do entretenimento instalada na internet, que remunera os criadores de “conteúdo” pelo número de “seguidores”, paga bem pelas fraudes que arrebatam as multidões.

A mesma lógica, por sua vez, está relacionada a um mercado monopolizado em escala global por megacorporações como Facebook, Twitter e Google. Não por acaso, os monopólios globais, bem como esse modo de produção de “conteúdos” mentirosos (o “modelo de negócio” das notícias fraudulentas) são incompatíveis com a ordem democrática.

Num tempo em que os valores da democracia andam em baixa, em que a popularidade de populistas segue em ascensão, os ventos parecem favorecer os forjadores de fraudes noticiosas, assim como vêm favorecendo os profetas das mágicas autoritárias. Nesta hora, só os valores da cultura democrática e o exercício da liberdade podem proteger a democracia. O resto é mentira.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

 


José Serra: O petróleo volta a ser nosso

 

Se mantivermos o passo firme, a estimativa é de alcançarmos 5,5 milhões de barris/dia até 2030

Na semana passada a União assinou os contratos de outorga aos consórcios vencedores dos leilões petróleo do pré-sal realizados em outubro, já sob as regras da Lei 13.365, de minha autoria, sancionada no final de 2016. Essa lei desobrigou a Petrobrás de participar da exploração de todos os campos ofertados e, mais ainda, cobrindo, no mínimo, 30% dos investimentos.

O dinamismo que hoje caracteriza o nosso setor de petróleo e gás contrasta com a letargia que marcou os anos da gestão petista, sob a tutela da lei aprovada em 2010, por iniciativa da então candidata presidencial Dilma Rousseff.

Em 1997, o governo Fernando Henrique Cardoso promoveu a quebra do monopólio da Petrobrás – que fechava o setor para os investimentos privados – e instituiu o regime de concessão, em que são pagos os bônus de assinatura (à vista) e são previstos royalties e participações especiais aos entes da Federação, tudo sob a supervisão da Agência Nacional do Petróleo. Esse modelo – ao contrário do que previam os críticos – ampliou rapidamente a produção de petróleo no País, dobrando-a em dez anos, quando chegou a 1,8 milhão de barris por dia.

A contraproducente mudança do marco legal em 2010 – mais como bandeira ideológica do que por fundamentos econômicos sólidos – criou o regime de partilha e determinou que a participação compulsória da Petrobrás em todos os leilões de novos campos fosse de, no mínimo, 30%. Tratou-se de medida acima de tudo desnecessária, pois o regime de concessão já previa as participações especiais, instrumento capaz de ampliar a renda estatal do petróleo em caso de subida dos preços.

A mudança de 2010 criou um imbróglio que parou os leilões por três anos. Somente viria a ser realizado um novo certame em 2013, o do Campo de Libra, com resultados decepcionantes tanto pelo baixo número de competidores quanto pelo pequeno porcentual de óleo-lucro oferecido à União pelo único consórcio participante: 41%. Para se ter uma ideia, nos últimos leilões, já sob a legislação pós-Dilma, o porcentual médio de óleo oferecido à União foi de 60%. Trocando em graúdos, a União receberá 20 pontos porcentuais a mais da produção de óleo nos campos recentemente leiloados, em comparação com o que ganhará em Libra. O petróleo está voltando a ser nosso.

Não é demais lembrar a conjunção de populismo e patrimonialismo que ameaçou levar a Petrobrás à lona. Congelaram-se os preços da gasolina e do diesel na tentativa de debelar a inflação. Os investimentos feitos foram de baixo retorno, em parte por erros técnicos, em parte porque eram um canal para obtenção de vantagens não bem ajustadas ao interesse público.

O fato é que a Petrobrás não conseguiu cobrir os compromissos da lei Dilma e, como resultado, leilões foram sendo postergados. Isso encolheu os investimentos privados no aumento da produção.

Ao final dos governos petistas a deterioração das finanças da Petrobrás atingiu níveis perigosos. Os juros implícitos dos títulos de sua dívida internacional com vencimento em 2024 chegaram a 9,6% – em dólar! Hoje esses juros são de 5%. O pessimismo com a empresa foi tão grande que suas ações caíram a R$ 5 no início de 2016. Agora, em trajetória de recuperação, atingiram R$ 20.

Acelerar a produção do pré-sal é imperativo para aproveitarmos este período em que o petróleo ainda tem valor, apesar de já estar em trajetória de obsolescência. As novas fontes de energia (especialmente solar e eólica), as restrições ao uso de combustíveis fósseis e os ganhos de eficiência energética – vejam a arrancada fulminante do carro elétrico – tendem a reduzir o consumo per capita de petróleo. De 2011 a 2014 o preço médio do barril foi superior a US$ 100. Hoje, mesmo na presença de uma inédita concertação entre os maiores exportadores, o barril está a menos de US$ 70 e muitos especialistas acreditam que nem esse nível será sustentável. Se continuássemos atrasando o aumento da produção no pré-sal, suas imensas reservas ficariam enterradas para sempre.

Não há tempo a perder.

Como bem lembrou o ministro Fernando Bezerra durante a cerimônia de assinatura dos contratos de partilha, o Brasil até hoje perfurou 30 mil poços de petróleo, metade do realizado pela Argentina e igual ao número de poços que se abrem anualmente nos Estados Unidos. Se mantivermos o passo firme que adotamos a partir de 2016, a estimativa é de que alcancemos 5,5 milhões de barris/dia até 2030, dobrando nossa participação na produção mundial de 2,5% para 5%.

Isso demandará a instalação de mais 40 plataformas de exploração, com um investimento de R$ 850 bilhões, o que elevará a receita com petróleo da União, dos Estados e municípios a R$ 100 bilhões por ano.

Dado o aumento do porcentual de óleo-lucro induzido pela maior competição, somente os leilões de outubro passado propiciarão aos entes da Federação uma receita total de R$ 600 bilhões até 2030. Apenas em bônus de assinatura, que são o pagamento à vista feito pelas vencedoras dos leilões, a União arrecadou R$ 6,2 bilhões.

Outras medidas importantes são a reconfiguração do regime fiscal (Repetro) e das regras de conteúdo local. Com o aumento esperado na produção, a demanda por equipamentos impulsionará a indústria nacional, sem os exageros que acabavam por atrasar a entrada em operação dos projetos.

Um subproduto importante do ambiente competitivo reinstalado na produção de óleo e gás é que a indústria nacional terá acesso à demanda por equipamentos das grandes petrolíferas em todo o mundo. Provavelmente essa abertura induzirá maior competitividade no setor, um fator crucial para revertermos a nossa preocupante tendência à desindustrialização.

O novo marco do regime de partilha demonstra como boas políticas podem rapidamente reverter o pessimismo, criar oportunidades e efetivamente gerar emprego e riqueza. O petróleo está ajudando o Brasil a se levantar.

*José Serra é senador (PSDB-SP)

 


José Serra: Uma regra que vale ouro

O ajuste fiscal não pode continuar a entravar investimentos para elevar gastos correntes

A introdução da “regra de ouro” na Constituição de 1988 foi feita pela comissão que tratou de finanças públicas, da qual fui relator. O autor da emenda, por mim acolhida, foi o deputado Cesar Maia. A ideia é simples: não se deve gerar dívida para financiar despesas correntes. Há alguma analogia com o orçamento familiar. Não convém tomar emprestado para pagar contas de água, luz e telefone, pois nos meses seguintes as três contas se repetirão, porém acrescidas da dívida e dos juros.

É diferente quando a dívida é usada para investimentos. Estradas, energia, portos ou saneamento geram empregos, produção e arrecadação no futuro. Aumentar gastos correntes não garante crescimento econômico, que depende de aumento de capacidade produtiva, tecnologia, mão de obra qualificada, exportações de maior valor adicionado e outros fatores.

O espírito da regra de ouro é este: estimular os governos a poupar e investir. Ela foi estabelecida no artigo 167 da Constituição, que veda “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.

Em síntese, “operação de crédito” quer dizer aumento da dívida pública, decorrente de juros ou déficit primários, menos as receitas financeiras do governo. Já “despesa de capital” são os investimentos e amortizações da dívida.

Assim, a expansão da dívida pública não pode superar os investimentos. Por hipótese, se o governo investir R$ 50 bilhões em dado ano e as operações de crédito totalizarem R$ 60 bilhões, a regra de ouro terá sido rompida.

Vejamos os números da última década. Em 2007, o pagamento de juros reais sobre a dívida do governo federal ficou em torno de R$ 100 bilhões, os investimentos somaram R$ 22 bilhões e o superávit nas contas primárias foi de R$ 58 bilhões. As receitas financeiras oriundas da remuneração da conta única e do pagamento dos juros da dívida dos Estados e municípios à União totalizaram R$ 45 bilhões. Como se vê, a regra de ouro foi cumprida, pois o pagamento de juros somado ao resultado primário do governo, subtraídas as receitas financeiras, totalizou saldo negativo de R$ 3 bilhões, resultado inferior aos R$ 22 bilhões investidos naquele ano.

Essa foi a dinâmica dos anos subsequentes, graças a superávits primários elevados e às transferências de resultados positivos do Banco Central para o governo.

Entre especialistas, o sinal de alerta acendeu entre 2015 e 2016, quando se percebeu que déficits primários crescentes poriam em xeque a regra de ouro. De fato, se a devolução de R$ 100 bilhões do BNDES não tivesse sido feita em 2016, o descumprimento da regra de ouro teria quase ocorrido. Os investimentos federais foram de R$ 65 bilhões e o líquido das operações de crédito, de R$ 61 bilhões. Com a devolução feita pelo BNDES (recursos que aumentaram a dívida no passado para que o banco concedesse empréstimos), as receitas financeiras aumentaram em R$ 100 bilhões e, assim, o total de operações de crédito caiu para R$ 39 bilhões negativos.

Em 2017, a devolução de R$ 50 bilhões do BNDES auxiliou novamente o governo no cumprimento da regra. Alguns dados ainda não são oficiais, mas é possível estimar que os investimentos tenham ficado em torno de R$ 55 bilhões e as operações de crédito, próximas de R$ 38 bilhões, uma diferença de R$ 17 bilhões. Sem os R$ 50 bilhões do BNDES, a regra teria sido rompida em R$ 33 bilhões. Um efeito colateral dessa transferência foi a perda de capacidade de financiamento do banco, a juros decentes, para investimentos produtivos.

Uma análise dos números e projeções mostra que a regra de ouro tende a ser descumprida neste e nos próximos anos. Trata-se de um sintoma de problemas mais sérios, como o desmonte do modelo de crescimento, com forte impacto sobre as receitas fiscais.

Alterar a Constituição para mudar a regra de ouro, no entanto, não seria conveniente. O bom funcionamento da economia requer credibilidade. Se as perspectivas sobre o futuro são abaladas, o presente é afetado: exigem-se mais juros para financiar a dívida, produtores reduzem investimentos, consumidores guardam dinheiro e o crédito se reduz. Mudar a Constituição poderia causar esse efeito negativo sobre as expectativas. Por essa razão, o melhor a fazer, no curto prazo, é valer-se do dispositivo já presente na Carta Magna que permite o descumprimento temporário da regra com autorização do Legislativo. É o caminho natural: usar os instrumentos já previstos na própria Constituição.

Mas não podemos parar por aí. O descumprimento da regra de ouro é apenas a face mais visível da crise de financiamento do Estado. A intenção dos constituintes, com a regra de ouro – posso afirmar com clareza –, era motivar o investimento em infraestrutura, fundamental para o crescimento, proibindo criação de dívida para custear despesas do dia a dia.

Mas o investimento público, incluindo Estados, municípios e União, nunca esteve tão baixo – R$ 127 bilhões no período de 12 meses encerrado em junho de 2017 –, como mostrou recente estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI).

O excesso de vinculações e a rigidez da despesa engessam a ação dos governantes e impedem a escolha democrática sobre como alocar os recursos dos impostos. Este é o nó a ser desatado já. Mais de 90% do Orçamento está predeterminado na Constituição ou em alguma legislação. Não há espaço para escolha de prioridades.

A correção de rumos no plano fiscal deve prosseguir, mas o ajuste não pode continuar a prejudicar investimentos para elevar gastos correntes. É hora de recuperarmos a capacidade de planejamento e ação do poder público, fixando uma estratégia nacional voltada para a expansão das taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB) e para o controle do gasto público, combatendo desperdícios e privilégios encravados no setor público brasileiro.

*José Serra é senador (PSDB-SP)