estado de s. paulo

William Waack: Jair, o que a gente vai dizer?

Não falta muito para o Brasil ser chamado a assumir lado numa briga de cachorros muito grandes

O grande espetáculo geopolítico do século ganhou mais ritmo. O Departamento de Comércio do governo americano acaba de divulgar uma lista de novas tecnologias que terão exportação restringida. Elas incluem inteligência artificial, computação quântica e robotics. A lista de restrições às exportações dessas tecnologias é claramente desenhada para preservar o avanço americano em relação à China.

A divulgação da lista ocorreu poucas horas depois de um áspero duelo de discursos no encontro da cúpula econômica dos países da Ásia e do Pacífico entre o presidente da China (ao qual a imprensa internacional já se refere como imperador) e o vice-presidente americano Mike Pence (Trump esnobou o encontro). A guerra de palavras entre Beijing e Washington tornou mais difícil acreditar numa solução breve para a declarada guerra comercial entre os dois gigantes da economia mundial.

Mais ainda: na guerra de discursos, China e Estados Unidos descreveram-se mutuamente como potências coloniais na Ásia. Pence pediu aos países da região (e outros fora dela) que não aceitem “dívida externa” (uma referência à grande iniciativa estratégica chinesa de projetos de infraestrutura em vários países) que possa “comprometer sua soberania”. E Xi Jinping acusou os EUA (embora não tivesse mencionado o nome) de solapar o sistema de regras internacionais “por motivos egoísticos”.

Se alguém ainda tinha alguma dúvida, a ascensão da China resulta num confronto geopolítico de proporções inéditas, e tanto o desafiante (a China) como o desafiado (os Estados Unidos) comportam-se totalmente de acordo ao que previam algumas teorias sobre Relações Internacionais: a superpotência americana não pode tolerar o surgimento de uma outra superpotência capaz de dominar sozinha uma parte do mundo. E, inicialmente, dedica-se a uma clássica política de “containment” (comparável à da Guerra Fria com a União Soviética). A China já denuncia esse tipo de “cerco”.

As mesmas teorias supõem que inicialmente a China crescerá de forma harmônica e pacífica, até sentir que sua própria segurança (e crescimento) estão em risco – o ponto já parece ultrapassado. É esse tipo de tensão geopolítica que tem trazido medo nos últimos meses aos mercados internacionais – mais até do que as disputas comerciais travadas em termos de “guerras”. Aqui entra o papel de indivíduos. Xi Jinping, o novo imperador chinês, não deixa de maneira alguma a impressão de ser um dirigente propenso a ceder a pressões externas. Ao contrário: ele parece convencido de que o único objetivo dos Estados Unidos é o de conter a China.

Xi vai se encontrar dentro de alguns dias na cúpula do G20 com Donald Trump, o homem que acredita que conflitos geopolíticos dessa magnitude colossal se resolvem com “amigos” conversando ao redor de um campo de golfe (como ele fez com Xi Jinping na Florida). De fato, a cúpula chinesa aparentemente diferencia entre as instâncias tradicionais de formulação de condutas externas americanas (departamentos de Defesa e Estado), que se engajaram no “containment” como estratégia frente à China, e a figura de Trump.

O problema, porém, ficou claro para as outras potências que lidaram com chineses e americanos nos últimos tempos. Cada vez mais Washington e Beijing pedem aos líderes de outros países que assumam um lado nessa disputa monumental. Mesmo com tantos oceanos nos separando dos EUA e da China, não vamos escapar de ouvir a mesma pergunta: qual o lado?

E aí, Jair, o que a gente vai responder?


Luiz Sérgio Henriques: Política e valores

Com o bloco vitorioso em 28 de outubro, difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente

Buscar clareza e coerência em planos, projetos e ações pode ser algo muito difícil ou impossível em meio a este mal-estar generalizado contra o “sistema”, quando mapas de voo não existem ou são trocados e retocados ao sabor das circunstâncias, como vimos com os programas na última campanha presidencial. Personagens antes evidentemente postos à margem passam a protagonistas, figuras da tradição soletram apressadamente o novo vocabulário “antiestablishment”, tendências e visões de mundo se misturam sem muita lógica e fazem nascer um mundo mais imprevisível do que o habitual.

Examinemos algumas referências notórias do bloco vitorioso em 28 de outubro. O intelectual ultraliberal, ele próprio um emblema da reforma que se quer imprimir à economia, promete-nos uma “sociedade aberta”, que não se sabe como conciliar com a retórica repressiva do líder político que avaliza perante os “mercados”. Esse mesmo líder, de formação corporativa e, à sua maneira, laica, escora-se em apoiadores religiosos que não raro parecem querer guiar-se por uma noção arcaica de “poder direto”, ou quase isso, na pretensão de moldar e controlar, por via legislativa, costumes e comportamentos que países livres delegam ao arbítrio dos indivíduos. E não por acaso uma anti-ideologia de gênero, tão confusa e mal explicada quanto sua antípoda, ameaça trazer prejuízos generalizados para os direitos civis.

Mas não é só. Um anticomunismo extravagante pretende servir de cimento ao novo bloco: uma dessas ideias flagrantemente fora de lugar, incapazes de criar um sistema de orientação para a sociedade e o próprio Estado, uma vez que temos os pés e a cabeça projetados muito além da guerra fria e da contraposição entre ordens antagônicas que ela supunha. Não se pode imaginar, por exemplo, que uma anacrônica Cuba nos ameace de algum modo, como modelo de transformação ou de organização social, ou que a verdadeira revolução comunista do século 20 tenha ocorrido em 1949, e não em 1917, de tal forma que devêssemos agora desafiar o dragão chinês, quando antes tínhamos de nos alinhar automaticamente contra o bolchevismo russo.

Esse emaranhado de ideias e situações, hoje envolto numa pesada capa de chumbo ideológica, tem dado corpo a debates infindáveis e muito pouco produtivos no plano da chamada guerra de culturas ou de valores. Em geral, o palco é o fornecido pelas redes, o esquematismo é a regra, os contrastes se extremam até o ponto da caricatura e da demonização. E quando entramos com ingenuidade nesse conflito tal como ele nos é dado, terminamos por nos vestir com apetrechos de outrora, como se “fascistas” e “comunistas” estivessem fadados a se engalfinhar indefinidamente nas ruas virtuais e – pior ainda – não virtuais, fazendo confluir potencialmente a violência simbólica e a física.

Há, obviamente, quem ganhe e quem perca com a atmosfera de conflito “mortal” entre valores. Ganham sobretudo os que apostam na degradação da vida democrática tal como se configurou nas instituições e nos procedimentos estabelecidos a partir da Reforma, do Iluminismo e das revoluções liberais do século 18, em cuja sequência cabe inserir a ideia moderna de esquerda e o próprio marxismo. Este último – não nos esqueçamos –, ao surgir como expressão dos setores subalternos do mundo industrial, pode ser entendido como uma potente heresia do liberalismo ou, em outras palavras, como a ala “esquerda”, mais extrema, dos processos de secularização e laicização, de modo que não é possível extirpá-lo da cena pública como indesejável elemento de perturbação.

Intrinsecamente plural, aliás, tal próprio processo de secularização não pode ser pensado como cancelamento da “ilusão religiosa” ou simples afirmação do ateísmo. As religiões, de fato, não são expressão da infância da humanidade ou dos períodos menos iluminados pelas ciências e pelas correntes radicais do humanismo. Se um valor estratégico como a tolerância, em todos os seus múltiplos sentidos, nasce historicamente como solução para as guerras de religião, confinando esta última à esfera privada e desligando-a dos poderes temporais, o vigoroso retorno da dimensão religiosa a que temos assistido assinala uma inflexão interessantíssima, a ser pensada e vivida como possibilidade de aprofundamento da nossa humanidade comum.

Na verdade, o moderno laicismo nada tem de “ateu”, ainda que, sem dúvida, incorpore plenamente os que não creem. Nutre-se do pleno reconhecimento do papel público das religiões, aceitando alguns de seus princípios como fontes constitutivas do “partido da liberdade do espírito”, para usar uma expressão do socialismo democrático contemporâneo de vocação nitidamente ocidental. E por isso aquele tipo de laicismo perde com as instrumentalizações ideológicas rasteiras do fenômeno religioso, que suprimem ou dificultam o diálogo e a compreensão mútua. Perde, em resumo, com a tal guerra de valores, bem como com os anátemas e as exclusões que ela incessantemente repõe em circulação.

Difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente. Alternativas políticas ou econômicas propriamente ditas, que, mesmo operacionalmente imprecisas, ambicionam mudar a face do capitalismo brasileiro, têm convivido no espaço público com delicados temas éticos, agitados muitas vezes de forma superficial, quando não leviana, à maneira de memes de internet ou bravatas politicamente incorretas. Tais aspectos eticamente relevantes também deixam marca em políticas públicas que darão um sentido regressivo ou inovador às nossas relações sociais cotidianas, ao modo como nos comportamos uns com os outros. Os democratas devem não só avaliar os resultados práticos da reforma que se pretende, como também impedir que se enxovalhe a ideia da História como criação acidentada, mas permanente, de valores já irrenunciáveis, como, entre outros, o da tolerância.


Monica De Bolle: O que os perdedores revelam

Os eleitores estão dispostos a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata

Como parte de um ambicioso projeto de pesquisa com colegas do Peterson Institute for International Economics, tenho lido os programas de governo dos principais partidos políticos dos países que compõem o G-20 antes e depois da crise de 2008. Nosso interesse é identificar nas propostas partidárias indícios de políticas e diretrizes com maior conteúdo nacionalista no âmbito da economia, sobretudo no período pós-crise. A análise dessas plataformas acabou revelando mais do que pretendíamos em alguns casos.

As duas maiores economias latino-americanas, Brasil e México, já tiveram ou estão tendo eleições gerais este ano, assim como no período que antecedeu a crise de 2008: esses mesmos países elegeram novos presidentes, congressistas e governadores em 2006. Curioso é que, em 2006, dois candidatos que concorreram à presidência no Brasil e no México também concorreram em 2018. São eles Geraldo Alckmin do PSDB e Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) no México. Como sabemos, AMLO obteve expressiva vitória nas urnas, derrotando o candidato do PRI, partido de centro-direita ao qual pertence o atual presidente. Em 2006, AMLO foi derrotado por Felipe Calderón do também centro-direitista PAN por margem estreitíssima, de manos de 1% dos votos totais.

As plataformas de AMLO em 2006 pelo PRD – partido de centro-esquerda do qual saiu em 2012 para lançar seu atual partido, o MORENA – e de AMLO em 2018 não foram muito distintas: o componente nacionalista está presente nas propostas de uma política industrial com forte presença do Estado, nas políticas comerciais que priorizam a promoção das exportações e a proteção de setores considerados importantes para a criação de empregos, e uma forte crítica às políticas neoliberais que “buscaram a estabilidade dos preços” em detrimento do crescimento e do desenvolvimento.

Nos dois períodos, 2006 e 2018, PAN e PRI pregaram a cartilha do liberalismo econômico sensato, aquele que defende uma política industrial horizontal, beneficiando todos os setores de igual maneira, a abertura comercial respeitando as regras internacionais, a prudência na condução da política macroeconômica sem deixar de lado políticas para a inclusão social. Em 2006, o liberalismo econômico com pitadas social-democratas chegou perto de ser derrotado. Em 2018, foi definitivamente derrotado com o auxílio de uma grande movimentação dos eleitores mexicanos contra a corrupção e em prol da renovação política. A partir de dezembro, o México terá novo governo marcado por claras diretrizes nacional-desenvolvimentistas e com maioria no Congresso.

Interessante é constatar que o PSDB sofreu destino semelhante ao do PRI e do PAN. Contrastando os programas do PSDB e do PT em 2006, tinha o do PT algum conteúdo nacionalista nas propostas de política industrial, embora não fossem muito distintos do programa do PSDB: ambos falavam em “priorizar setores que criam empregos melhores e mais bem remunerados, como a indústria de transformação”. Na área macroeconômica, ambos citavam como prioridade manter a estabilidade dos preços e a sustentabilidade fiscal. Na área comercial, o programa do PT era levemente mais protecionista do que o programa do PSDB. Portanto, é razoável afirmar que no quesito nacionalismo econômico, PT e PSDB tinham pitadas aqui e acolá.

Já em 2018, a diferença é brutal. O programa do PSDB apresentava medidas exatamente no ponto de neutralidade, isto é, a plataforma era uma proposta bem elaborada do consenso liberal ma non troppo que caracterizou as políticas econômicas nos países avançados até a eleição de Trump em 2016. Já o programa do PT foi para os extremos do nacionalismo econômico na política industrial, nas propostas para o comércio, nas diretrizes macroeconômicas. Como escrevi na semana passada, o programa do PSL de Bolsonaro é difícil de avaliar nessas dimensões, visto que não há diretrizes ou propostas, apenas frases vazias.

A conclusão a que chego é que nesse fim de década, os eleitores – quando se preocupam com propostas – estão mais inclinados a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata do pós-guerra, seja lá o que isso for. O México foi para o campo nacionalista. O Brasil está prestes a entregar cheque em branco, ainda que o nacionalismo econômico não tenha sido, de forma alguma, banido do imaginário nacional. Aos vencedores, as batatas quentes.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: O dilema do prisioneiro

Vença Haddad ou Bolsonaro, o mais provável é que o Brasil fique ingovernável, dada a profunda rejeição a ambos

Apesar do título, esse artigo não é sobre o prisioneiro mais famoso do País, aquele que está enclausurado em Curitiba. Quem conhece um pouquinho de teoria dos jogos, ou quem assistiu ao filme sobre a vida do matemático John Nash (“Uma Mente Brilhante”), talvez se lembre do também famoso dilema dos prisioneiros.

Imaginem a situação: dois suspeitos de um crime são presos e colocados em celas separadas. A cada um é dada a seguinte opção: caso um confesse e o outro não, aquele que escolher cooperar com a polícia receberá pena de apenas 1 ano de prisão, enquanto o companheiro silencioso cumprirá 5 anos de cadeia. Portanto, se ambos confessarem, ficarão presos por 1 ano. Se ambos escolherem manter o silêncio, os dois podem ser soltos. Contudo, como não podem se falar, não há como coordenarem o silêncio. Cada um tem de tomar a decisão sobre cooperar com a polícia ou não de forma independente. O silêncio é, portanto, a mais arriscada das opções, pois se o parceiro decidir confessar, são 5 anos de cana. A estratégia dominante – o chamado equilíbrio de Nash desse jogo – é cada preso confessar o crime, ambos recebendo, portanto, pena de 1 ano na cadeia.

O dilema dos prisioneiros mostra que na ausência da possibilidade de cooperação, as escolhas individuais acabam determinando resultado pior do que o alcançado fosse a colaboração dos presos possível: em vez de serem soltos, ambos são encarcerados por um ano. O que isso tem a ver com as escolhas que se apresentam para os eleitores brasileiros? Consideremos os votos anti-Bolsonaro e anti-Haddad.

Para os anti-Bolsonaro, o pior dos mundos é Bolsonaro ganhar, de modo que estão dispostos a votar em Haddad – ainda que somente em última instância, ainda que não declarem esse voto abertamente. Com o perdão pela ligeira digressão, creio que já estamos em território onde as pesquisas de opinião não captam os votos ocultos em Haddad, enquanto o voto pró-Bolsonaro entre moderados – isto é, entre aqueles para quem Bolsonaro não é a primeira opção de voto – parece sair do armário em números cada vez maiores.

Voltando ao raciocínio: o mesmo ocorre com os votos anti-Haddad/anti-PT. Para esses, o pior dos mundos é Haddad vencer, portanto estão dispostos a dar seu voto ao capitão. Essas estratégias, lembram, portanto, o resultado do dilema dos prisioneiros: cada um votando individualmente para evitar o seu pior cenário acaba por levar a um resultado pior do que se pudessem coordenar. Evitar esse quadro perverso necessitaria que as pessoas escolhessem de forma coordenada uma terceira via, outro candidato ou candidata com chances de tirar do páreo um ou outro dos candidatos de repúdio. Tal coordenação seria facilitada se os candidatos de centro se unissem em torno de um único nome.

Como Bolsonaro parece ter se consolidado no primeiro lugar, o voto que cumpriria tal papel seria a escolha do candidato melhor posicionado para tirar o PT da disputa. Caso tal candidato conseguisse vencer no primeiro turno, estaria esvaziado o voto anti-PT que hoje arregimenta tanta gente, possivelmente evitando a vitória de Bolsonaro e, portanto, o pior dos mundos para os anti-Bolsonaro.

Contudo, a política funciona como o dilema dos prisioneiros, sem mecanismos de coordenação. Que fique claro: com o voto de repúdio, eleja-se Haddad ou Bolsonaro, o mais provável é que o Brasil fique ingovernável, dada a profunda rejeição a ambos. Dificilmente sairiam do papel reformas para controlar o déficit público e nossa dívida galopante. Provavelmente teremos, mais brevemente do que muitos gostariam de imaginar, intensas turbulências financeiras, fuga de investidores, e resultados econômicos desastrosos em situação na qual a economia já está bastante debilitada. A inflação deve subir, com ela o desemprego – a chance de que aumente o mal-estar da população brasileira no ano que vem sobe com cada nova pesquisa de opinião.

Caminhamos, tontos e confusos, de olhos fechados e narizes tapados, para o cadafalso. Trata-se disso que estamos a escolher. Desse modo, tornamo-nos prisioneiros de nós mesmos por termos nos rendido com tanta facilidade aos extremismos, aos argumentos rasteiros, e à histeria coletiva. É com esse dilema que teremos de conviver, ganhe quem ganhar – Haddad ou Bolsonaro, pouco importa.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economicse professora da Sais/Johnshopkins University


William Waack: A ‘voz rouca’ das ruas

Candidaturas se articulam por ‘onda’ de voto útil bem antes das famosas 36 horas finais

A consagrada expressão “voz rouca” das ruas deve vir do fato de que uma voz rouca mal se distingue, às vezes nem se entende, sugere algum problema afetando as cordas vocais e o som se parece a alguma coisa gutural, vinda de um fundo indefinido.

Pois mesmo assim a rouca voz das ruas no Brasil está dando um recado inconfundível na reta final para o primeiro turno das eleições. Ela já diminuiu pela metade o tamanho do grande ponto de interrogação que perdurava até poucos dias atrás, e parece ter colocado Jair Bolsonaro confortavelmente no segundo turno.

Bolsonaro atende exatamente a essa “demanda” rouca das ruas e espalhada (a julgar pelo mais recente Ibope) por segmentos dos mais diversos em termos de idade, condição socioeconômica, gênero, raça e escolaridade – ao mesmo tempo em que esse candidato enfrenta renhida rejeição nos mesmos segmentos mencionados. Haja rouquidão!

Na metade que sobrou do grande ponto de interrogação – quem vai para o segundo turno contra Bolsonaro – desponta como um candidato bastante competitivo no empate quádruplo o nome de Ciro Gomes. Não importa o que Bolsonaro ou Ciro tentem transmitir sobre qualquer assunto, ambos se destacam fortemente pela contundência.

É aquilo que os analistas de pesquisas chamam de “autenticidade”, um fator que boa parte do eleitorado parece prezar hoje acima do que candidatos estão dizendo. Não deveria causar espanto quando se considera que segurança pública e corrupção são componentes essenciais hoje ao se tentar entender preferências eleitorais.

Em outras palavras, não há um “tema”, um “assunto”, um “eixo” em torno do qual se possa e definir o debate nesta fase derradeira do primeiro turno. O que existe é um enorme conteúdo emotivo – no qual o atentado contra Bolsonaro o beneficiou numa fase crítica para a candidatura dele, mudando a eleição – difuso e incapaz de diferenciar entre “propostas concretas”.

Note-se que até agora nenhuma candidatura conseguiu impor um mote à disputa, apesar de algumas tentativas como Marina versus Bolsonaro na questão envolvendo mulheres, por exemplo. O principal “evento” da campanha, capaz de alterar boa parte do ritmo, foi um atentado que, evidentemente, escapava ao controle de qualquer dos participantes.

Essa mesma rouquidão não parece favorecer Marina, cuja imagem sugere uma certa fragilidade, e muito menos Geraldo Alckmin, cuja candidatura não consegue se desvencilhar, nesta fase da corrida, do carimbo de ser mais do mesmo, além dos recentes golpes desferidos pela Lava Jato contra figuras do PSDB.

Resta considerar o que ainda consegue a voz mais rouca de todas, a de Lula, que fez uma arriscadíssima jogada contra o tempo ao insistir numa candidatura que se sabia impossível, apostando que conseguiria em último momento transferir quantidade suficiente de votos para colocar o poste Fernando Haddad no segundo turno. Há grande divergência entre analistas, todos apoiados em diversas pesquisas, sobre essa capacidade. Neste momento, dou mais chances a Ciro de disputar contra Bolsonaro.

Mesmo que essa hipótese não se confirme (não tenho bola de cristal e a eleição continua indefinida), é curioso notar como as várias candidaturas se articulam para tentar gerar uma “onda” de voto útil já bem antes das famosas 36 horas finais (quando essas “ondas” são decisivas). Elas já se apresentam como único remédio capaz de bloquear o “perigo” representado por adversários e, claramente, apelam ao medo do pior.

Admitindo que melhor, não são.


Vera Magalhães: Uma nova eleição tem início hoje

Bolsonaro ficará fisicamente afastado da campanha, mas ganhará ainda mais protagonismo.

O atentado contra Jair Bolsonaro perpetrado na tarde de 6 de setembro em Juiz de Fora (MG) inicia uma campanha presidencial completamente nova. Diante da facada desferida no líder nas pesquisas por Adélio Bispo de Oliveira, o estado democrático de direito também foi golpeado. E no terreno estritamente eleitoral, todas as estratégias dos demais postulantes à Presidência, as pesquisas e os prognósticos foram jogados no lixo.

A um mês do pleito, a campanha mais imprevisível desde a redemocratização ganha mais um componente inédito e dramático. É impossível prever o que o atentado acarretará do ponto de vista das chances de cada postulante. Diante de um quadro clínico grave e tendo sido submetido a uma cirurgia, Bolsonaro ficará fisicamente afastado da campanha, mas ganhará ainda mais protagonismo.

Existe o risco de que a polarização, que já estava exacerbada, resvale para novas manifestações de violência nas redes sociais e nas ruas. É responsabilidade de todos os homens públicos, da imprensa e das instituições repudiar qualquer relativização do atentado e todas as tentativas de capitalização política do ataque por qualquer lado do espectro ideológico. Portanto, a hora deve ser de serenar os ânimos. Isso deve se refletir na propaganda eleitoral, que entrava num momento de ataques mais sistemáticos, com Bolsonaro como alvo.

É provável que o candidato do PSL escale ainda alguns pontos nas pesquisas. Episódios que geraram forte comoção levaram a esse resultado num passado recente – basta lembrar a morte de Eduardo Campos num acidente aéreo em 2014 e a ascensão de Marina Silva. Resta saber a força que isso terá e a maneira como os demais atores do processo reagirão. É preciso que as instituições falem mais alto, punindo o responsável por um atentado inconcebível numa democracia e assegurando a segurança – física e simbólica – do processo sucessório.


Monica De Bolle: ‘Uma sensação geral de desordem’

O Museu Nacional é o símbolo do descaso do País, do dinheiro desperdiçado em malas obscenas, das prioridades tortas de um país que prefere gastar na manutenção de estádios ou nos aumentos de salários para servidores

Começa com um ponto de cegueira no centro do campo visual, geralmente em um olho apenas – ou mais marcante em um dos dois olhos. Em seguida, transforma-se numa meia-lua cintilante de bordas irregulares que se alarga aos poucos e se move lentamente para a periferia do campo visual. Não há dor, apenas o incômodo de ver algo que lá não está. Quando a meia-lua em zigue-zague está prestes a sumir, ela brilha com força, prenunciando a agonia pulsante, geralmente em um dos lados da cabeça. Durante a aura, ainda é possível espantar a enxaqueca com um forte analgésico. Contudo, uma vez instalada a dor que a sucede, tudo está perdido.

O título desse artigo faz referência ao primeiro livro do neurologista e escritor Oliver Sacks, falecido em 2015. Trata-se de meu favorito em sua vastíssima e erudita obra por abordar um mal que afeta tanta gente.

Queria poder dizer que o Brasil ainda está nesse preâmbulo das auras, que ainda dá tempo de frear a agonia. Não é o caso. Entre o voto de Fachin no TSE, o incêndio que destruiu o Museu Nacional, rumores sobre mais greves de caminhoneiros, e o tempo de TV que se inicia, vejo a desordem instalada. O ministro do TSE e do STF usou um conselho de peritos externos ligado à ONU como justificativa para seu voto a favor da candidatura do ex-presidente Lula.

Nesses tempos em que ninguém mais se interessa por buscar fatos, o conselho virou sinônimo da organização internacional na cabeça de muitos, inclusive na dos oportunistas que querem ver na vitimização de Lula motivos para atiçar a balbúrdia da campanha eleitoral. Entre esses há quem apoie o PT e quem se posicione como anti-PT. Arrisco dizer que tivesse o processo de investigação, julgamento e condenação de Lula caminhado mais lentamente, talvez a ideia de que Lula é um preso político, uma vítima do sistema do qual ele próprio se beneficiou, estivesse esvaziada. Quiçá isso tivesse atenuado os extremismos de todos lados. Mas a aura passou a toque de caixa.

O Museu Nacional é o símbolo do descaso do País, do dinheiro desperdiçado em malas obscenas, das prioridades tortas de um país que prefere gastar o pouco que resta das contas públicas em frangalhos na manutenção de estádios de futebol obsoletos, ou nos aumentos indesculpáveis de salários para certas categorias de servidores públicos. Inevitavelmente, a tragédia do Museu Nacional será politizada por todos os lados – para falar mal dos governos anteriores, para apontar os erros do teto de gastos, para a demagogia torpe dos “privatizacionistas” custe o que custar. O povo, perdido e indignado ante o paupérrimo elenco de candidatos, estará à mercê da cacofonia.

A cacofonia haverá de aumentar com o tempo de TV. Exemplos disso já se vê, com a imagem da menina de olhos fechados, a bala prestes a entrar em sua têmpora. A imprensa não tem conseguido impor nenhuma ordem nesse estado geral de desordem, pois já não consegue se posicionar com clareza ante os desafios do País. Em tempos de polarização extrema, a imparcialidade é posta em xeque – vi e continuo a ver isso de muito perto, numa democracia supostamente madura, a democracia americana. Confesso que, diante do descrédito que contamina a imprensa mundo afora, não tenho ideia do que deveria estar sendo feito de forma diferente.

O que sei é que ataques seguidos a candidatos cujas posições retrógradas instilam a sanha de desqualificá-los já não funcionam. Ou, têm o efeito reverso: seus eleitores sentem-se pessoalmente atacados pela imprensa, o que aumenta sua mobilização. Isso vale também para os candidatos que escolherem essa como a estratégia principal de suas campanhas. Indignação e raiva poderiam ser contidas com sobriedade e a clara articulação de propostas sobre temas caros ao povo brasileiro. Novamente, a aura já passou.

Assim entramos no pior período, o da enxaqueca debilitante, da dor pulsante que não reponde a qualquer medicamento, que precisa de tempo para passar. Às vezes, esse tempo é curto – dura somente alguns dias. Outras vezes, entretanto, o tempo é longo ou não passa. Já não creio que 28 de outubro marcará o fim.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


João Domingos: O fim do teatro do PT

Há de se lamentar a lentidão do TSE em fazer aquilo que deveria ter feito antes

Com a impugnação da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva e a consequente suspensão da propaganda eleitoral do PT, o partido não terá outra saída a não ser substituir o quanto antes o ex-presidente pelo ex-prefeito Fernando Haddad, há tempos o “plano B” para a disputa. Cada dia de ausência do candidato petista na propaganda do rádio e da TV acarretará um prejuízo enorme para as pretensões eleitorais do PT de tornar Haddad conhecido.

Mesmo com a impugnação da candidatura de Lula, não se pode dizer que o PT foi derrotado. Do ponto de vista da estratégia política para manter o nome do ex-presidente e do partido nos meios de comunicação, nas redes sociais e como motivação para a militância, a legenda foi vitoriosa. Há dois anos o partido estava em ruínas. Perdera o poder, com o impeachment de Dilma Rousseff, vira alguns de seus dirigentes presos pela Operação Lava Jato, sob suspeita de envolvimento em corrupção na Petrobrás e em outras estatais, e ficara sem metade de suas prefeituras. Um desastre completo. Recuperar-se em 24 meses, conseguir ter um candidato à frente em todas as pesquisas, mesmo preso, como aconteceu com Lula, e gozar da perspectiva de fazer a substituição do candidato com possibilidade de manter-se competitivo, é uma vitória política.

Quanto a Lula, deve-se admitir que ele soube transformar sua prisão, uma prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, num instrumento político. Sua cela na Polícia Federal, em Curitiba, foi transformada no QG político do PT. A presidente do partido, senadora Gleisi Hoffmann, e Fernando Haddad foram nomeados seus advogados, embora não tenham participado da defesa jurídica dele. Com isso, puderam manter contato com o ex-presidente todos os dias. Durante todo o período da pré-campanha, do registro das candidaturas e do início da campanha, Lula esteve à frente de tudo. Os outros candidatos se tornaram meros coadjuvantes de um teatro político, em que tudo foi instrumentalizado pelo PT.

De tudo isso, há de se lamentar a lentidão do TSE em fazer aquilo que deveria ter feito antes, porque a demora criou uma insegurança jurídica sem tamanho quanto às eleições. Insegurança que obrigou os institutos de pesquisa a optarem por três tipos de perguntas quando se referiam ao candidato petista, uma com Lula, outra com Haddad e outra com Lula dizendo que Haddad seria o seu candidato.

Enquanto o TSE esperava a hora de tomar sua decisão, e a insegurança jurídica só aumentava, o PT se esbaldava. Chegou ao luxo de criar uma chapa triplex, com Lula à frente da chapa, Haddad de vice e a deputada gaúcha Manuela d’Ávila (PCdoB) de vice do vice. Um caso único na história recente das eleições brasileiras.

O que pôde fazer o PT fez. Agora, terá de parar com o teatro que todos sabiam que resultaria na impugnação da candidatura de Lula, pois enquadrado na Lei da Ficha Limpa. Com o fim da candidatura do ex-presidente, o PT terá de parar de se esconder atrás do nome de Lula. Terá de mostrar Fernando Haddad, entrar na disputa para valer, o que não tinha feito até agora. Lula crescia na preferência do eleitor de forma automática, embora preso.

A partir de agora inicia-se uma nova fase do jogo político. Fernando Haddad terá de gastar sola de sapato, como se diz. E se apresentar como o candidato do ex-presidente. Não receberá 100% dos votos que poderiam ser destinados a Lula. Se conseguir um porcentual entre 60% e 70%, poderá se dar por satisfeito. Mas não deve se esquecer de que há outros candidatos de olho na vaga para o segundo turno. Sem Lula, Haddad é apenas mais um, embora competitivo.


William Waack: Enfrentar o ‘inevitável’

Uma vitória de ‘reformistas’ é menos pior para nosso futuro; mas é pouco

O esforço de muitos analistas em traçar cenários pós-eleitorais tem trazido uma curiosa “mediana” de previsões, especialmente entre economistas que já viram de tudo (começando pelo Plano Cruzado). Cofres públicos vazios, dívida pública subindo e quebradeira geral dos Estados “inevitavelmente” levarão a reformas para lidar com a crise fiscal. Candidatos carimbados como “reformistas”, segundo essas previsões, farão mais rápido o necessário. Até mesmo os “populistas” agirão na direção “correta”, pois reconhecem a bomba fiscal.

A velocidade relativa com que uns e outros atacarão os gastos públicos permite até previsões numéricas. Assim, a eleição de um “reformista” sugere um dólar de R$ 3,40 no meio do ano que vem. Se for um populista, dólar de R$ 4,60. A taxa de inflação sob um “reformista” permaneceria em 4,5%; um “populista” a levaria para 8%. E assim por diante com juros e crescimento do PIB que, dependendo do otimismo quanto à recuperação do consumo das famílias, poderia até chegar a uns 3% já em 2019.

Não critico economistas por raramente acertarem previsões; com jornalistas acontece o mesmo. O que sempre me fascina no raciocínio deles é a pouca margem que atribuem à estupidez humana na tomada de decisões – no caso do Brasil, não fazer nada relevante frente à questão fiscal (uma “não decisão” a cargo de humanos) equivale a uma das posturas mais estúpidas possíveis. E, a julgar pelo andar da carruagem político-eleitoral, até mesmo bastante provável.

Da mesma maneira, não posso criticar quem, confrontado com o cenário difuso e nebuloso do momento atual da corrida eleitoral, se apega a “inevitabilidades”, a coisas que “terão” de acontecer. É uma forma de tornar a imprevisibilidade menos imprevisível. E, também, em confiar que decisões coletivas claramente prejudiciais aos interesses de um país (especialmente de prazo mais dilatado) acabam sendo evitadas. Mas é bom considerar Brexit, Trump e o apoio popular à greve dos caminhoneiros. Não era para acontecer, mas aconteceu.

A ideia da “inevitabilidade” de um futuro risonho para um País com tantos recursos e tamanho é tão arraigada quanto a noção de que o tempo trabalharia a nosso favor. Ela mascara o fato (traduzido em estatísticas muito eloquentes) de que na comparação com economias mais avançadas estamos estagnados há mais de uma geração, e estamos ficando velhos. Populistas no Brasil e não só os de esquerda desenvolvem a ficção política de que o País foi feliz e bem sucedido em algum ponto do passado – no caso do PT, nos 13 anos que nos amaldiçoaram por muitos mais.

É a falta de compreensão do papel das pessoas e das ideias que elas abraçaram na confecção do desastre no qual fomos jogados que explica amplamente a popularidade de um criminoso condenado e cumprindo pena de prisão, chefe de um dos maiores esquemas de corrupção da recente história do planeta. A eleição dos governos do PT não era “inevitável” do ponto de vista histórico, nem a adoção de seus postulados desastrosos de economia inclusive por parte relevante do empresariado, interessado em protecionismo, subsídios e anabolizantes para o consumo.

A pergunta abrangente que me parece relevante neste ponto da corrida eleitoral é a de averiguar se há forças comprometidas com o rompimento da estagnação política e econômica atuais, não apenas na configuração tosca do “deixa que eu chuto”. Vai ser necessário enfrentar e derrotar parte do nosso jeito de ser – patrimonialismo, corporativismo e regionalismos – para libertar o que poderíamos ser: inovadores e criativos. Também acho que uma vitória de “reformistas” é menos pior para nosso futuro. Mas é pouco.


Marco Aurélio Nogueira: A metamorfose e a unidade difícil

É da ideia unitária que algum oxigênio poderá ser extraído e injetado na vida política do País

A unidade dos democratas avança com dificuldades.

As principais articulações em curso são eleitorais, haja vista as que envolvem o chamado “centrão”, cortejado por todos e agora associado a Geraldo Alckmin. Coligações são concebidas com os olhos no tempo de propaganda e na “repartição do poder”. São pragmáticas, tentando ser realistas. Diz-se que na mesa estão não somente cargos, mas também uma preocupação com a “governabilidade” do futuro presidente. O quanto será assim não se sabe.

O fundamental não é tratado com seriedade.

Refiro-me à necessidade de instituir um campo democrático que leve em conta as eleições mas vá além delas, comprometendo-se a qualificar a vida política, a ser um vetor programático de reorganização e governo da sociedade.

A renovação política é indispensável. O País não aguenta mais conviver com um sistema político - com seus partidos, sua cultura e suas práticas - que não acompanhou as mudanças que afetaram a estrutura da economia, a sociedade, o modo de vida. As mudanças trouxeram problemas novos sem que os antigos tenham sido resolvidos, formando, assim, um compósito desafiador.

Ainda não se compreendeu bem o quanto há de novidade no mundo atual. Como escreveu Ulrich Beck em seu livro póstumo, não se trata de um mundo forjado pelas mudanças típicas da modernidade capitalista, mas de um mundo que nasceu sob o signo da metamorfose: uma alteração na natureza da existência humana, no modo de estar no mundo, de imaginar e fazer política, de viver a vida.

Evidentemente, nem tudo está se metamorfoseando. Muitas mudanças são, na verdade, reprodução da ordem existente. Mas o importante é compreender o que foge da mera reposição, aquilo que transfigura e cria formas, práticas e expectativas. As lógicas se entretecem, ampliando os problemas e os desafios, mas também abrindo outras perspectivas.

Há um turbilhão pela frente. Precisamos resolver os problemas crônicos de nossa formação e administrar a metamorfose que desponta numa sociedade em que parece faltar a instância decisiva, a política. Sem melhor articulação, mais democracia e coesão, educação e inovação, o futuro ficará travado. Precisamos descomprimir a sociedade, reduzir as polarizações artificiais, ir além da reiteração discursiva esquerda versus direita. Não podemos nos entregar aos reptos “identitários”. Se continuarmos insistindo na lógica “nós” contra “eles”, correremos o risco de retroceder.

Se isso é minimamente razoável, como então pensar em avançar sem ajustes e adaptações, sem reformas nas estruturas e nas instituições, do mercado ao Estado? Necessitamos de uma reeducação geral, para aprendermos a lidar com o que é incerto e ainda não decodificamos.

O ritmo da mudança não é uniforme: muda-se mais depressa nas bases do que nas cúpulas, mais rápido na vida social do que na vida política.

Homens e mulheres têm sua vida sendo alterada, mas não sabem disso e não conseguem extrair disso todos os desdobramentos e exigências. A visão do mundo conserva muitos de seus pedaços presos a imagens tradicionais, que se dissolvem lentamente. O modo de produção transforma-se com rapidez, em silêncio, mas sempre com dor e sofrimento, impulsionado pela revolução técnico-científica e pela globalização do capitalismo. Arrasta consigo as relações sociais e o trabalho, e por essa via invade e reorganiza a vida familiar, os valores e as atitudes, o modo de agir, pensar e sentir.

O plano estatal, porém, resiste, entre outras coisas porque nele estão encastelados os interesses mais bem organizados, que se protegem e tentam bloquear as mudanças que lhes roubam o chão. São interesses que se enraízam em tradições provenientes de um passado que se repõe, embora esteja questionado pela vida. Um passado que identifica, fornece uma linguagem, legitima práticas e condutas. O sistema político é parte disso, e sua resistência à mudança pode impressionar, mas é compreensível.

A sociedade que se metamorfoseia esbarra, assim, numa estrutura de interesses que controla o Estado e dificulta o acesso à política pela população mais sintonizada com a contemporaneidade. O novo é forçado a negociar as regras do jogo com o velho, numa pendência que pode se estender por longo tempo.

É por isso que os candidatos que se querem avançados são levados a se aliar aos setores atrasados. O grito de “renovação” ecoa, mas não se traduz politicamente. O Congresso - visto com desconfiança pela população - não mudará sua composição nas próximas eleições. Os candidatos presidenciais, por sua vez, flertam com o passado, com o mundo que se dissolve e fornece votos, uns vociferando autoritarismo contra a democracia e se oferecendo como salvadores da Pátria, outros tentando abrir uma brecha na muralha.

A “velha” política mostra que é uma das faces ativas da política realmente existente. Não sairá de cena de um dia para outro.

Um campo democrático generoso e renovador é uma construção complexa. O fato de privilegiar mais o futuro que o imediato não o torna sedutor para fins eleitorais. A disposição de agir como uma força - uma ideia, uma causa, uma época - que atraia os democratas que estão espalhados, articulando-os e os unificando, colide com as conveniências e as vaidades dos que, em princípio, deveriam ser seus maiores animadores. O campo democrático precisa questionar os partidos e os procedimentos políticos, mas não tem como se dissociar deles.

Além do mais, sua mensagem não chega aos jovens, que são o dínamo da vida, e não chega porque sua música toca num tom para o qual os ouvidos jovens ainda não foram treinados.

A ideia unitária, em suma, precisa de tempo para frutificar, e o mundo metamorfoseado está marcado pela urgência. Ainda assim, é dela que algum oxigênio poderá ser extraído e injetado na vida política nacional. Talvez não vença no curto prazo, mas tem todo o futuro a seu dispor.


William Waack: Soco na boca

A potência das ‘armas’ na disputa eleitoral será testada no confronto direto que se inicia

Supõe-se que o campo das disputas políticas, especificamente eleições, seja o das decisões frias. Não é à toa que boa parte do vocabulário venha da linguagem militar e do pensamento clássico sobre estratégia, pois trata-se de ganhar uma batalha. Nesse sentido, a expressão mais consagrada é a de um general prussiano do século 19, Helmuth von Moltke (“O Velho”): nenhum plano resiste ao primeiro contato com o adversário.

Antes de mais nada, um recado: vou me concentrar aqui nos personagens políticos que estão pontuando melhor nas pesquisas. Não importa a simpatia e admiração que se possa ter por movimentos autênticos de renovação de métodos e ideias, e o essencial exemplo de engajamento político de milhares em torno de propostas modernas – e o que isso aponte de positivo para a futura política brasileira – o peso desses movimentos nas próximas eleições estará ainda bem aquém das elogiáveis ambições de seus participantes.

Vamos tentar limpar a “verborragia” típica de candidatos, exacerbada com a revolução digital (que incentiva a produção de “soundbites” de 10 segundos para viralização em redes sociais) e focar no que são planos nítidos de combate. O balé do Centrão é, em primeiro lugar, com a quase infinita possibilidade de alianças e parcerias, o espelho fiel da maçaroca ideológica brasileira, impossível de ser corretamente definida pelos termos “direita” e “esquerda”.

Em segundo lugar, essa movimentação é a evidência de que todos calculam friamente que elementos do sistema (tempo de TV, acesso a fundos com dinheiro público e controle de pedaços da máquina governamental) trazem vantagens na disputa eleitoral. E, eventualmente, na capacidade de governar em 2019. É o plano óbvio de Geraldo Alckmin, mas também de Ciro Gomes (que sai em desvantagem), assim como é bastante óbvio o plano de candidatos que se apresentam como “de fora” (não importa se de fato o são, o que importa é a percepção) – Marina Silva e Jair Bolsonaro. É a aposta na capacidade de mobilização através de tecnologias digitais, e o uso do que identificam como qualidade própria de atender à “demanda” do eleitorado por limpeza “do que está aí”.

A potência dessas “armas” será testada no confronto direto que se inicia agora, e meu palpite é o de que miséria, pobreza e infraestrutura precária ainda dão bastante peso ao dinheiro para campanhas e ao tempo de TV, fatores ligados, porém, às qualidades de cada personagem (Chuchu conquistará paladares?) e subordinado ao que todos os generais inteligentes já admitiam desde que batalhas existem, ou seja, que a guerra é o terreno da sorte, do acaso e do imponderável (como a Lava Jato, por exemplo).

E como é que fica com os planos do PT, uma força que não se pode negligenciar? Por enquanto parece-me o cálculo menos “frio” de todos, pois emana do fígado de Lula, o chefe da seita. A dificuldade com o atual “plano” fixado em Lula é o problema que os estrategistas chamam de confusão entre meios e fins: o plano é usar Lula como arma de transferência de votos (que, sem dúvida, ele é) ou só o de livrar Lula da cadeia? Até agora, serviu para isolar a agremiação política e dar conforto a seus adversários.

Diante do quadro ainda indefinido das eleições, saborosas frases antigas sobre como ganhar batalhas continuam tendo ressonância hoje. “A gente se engaja (no combate) e depois vê o que faz”, disse Napoleão, quando perguntaram qual era seu princípio estratégico. Prefiro uma definição de estratégia bem mais recente, e proferida pelo boxeador campeão mundial dos peso pesados, Mike Tyson: “Todo mundo tem um plano até levar um soco na boca”.


Fernão Lara Mesquita: Para nos livrar dos blocos e centrões

O Brasil está sonhando com uma ressurreição moral que sabe que não virá

O que se disputou até agora, faltando dois meses para a eleição, foram só os 12 minutos e 30 segundos de televisão. Ninguém está nem aí pra você. Nem lhe dirigem a palavra. Cada mandato cooptado dá direito a mais alguns segundos. O PT tem 1 e 31, o MDB 1 e 27, o PSDB 1 e 13. Daí pra baixo, quanto mais novo na profissão, menos segundos. Mas vale coligação. Os virgens estão condenados ao silêncio, a menos que passem a rebolar-se para as bruacas velhas do “sistema”. A cada dono de partido as suas estatais e os seus ministérios. A cada “bloco” de donos de tetas, a reversão desta ou daquela “reforma”. Os candidatos “se viabilizam” inviabilizando pedaços do nosso futuro. E quem não jogar com a regra nem entra no jogo...

Mas não se indigne ainda. A indignação sem foco é o ópio do cidadão. Mata qualquer esperança de raciocínio objetivo e os põe exatamente onde os querem os profissionais.

O objetivo disso tudo não é dinheiro. Ninguém quer dinheiro pelo dinheiro. Dinheiro é só o meio mais eficiente de comprar poder. Por isso nenhum cofre jamais precisou ser arrombado no país mais roubado da história do universo. Os donos do poder é que os escancaram para comprar mais poder. E, no entanto, a voz corrente é de que o “poder econômico” é que é o agente, e não o mero coadjuvante da ladroagem. A decorrência obrigatória dessa convicção é que o Estado, o outro nome do poder, é a solução, e não o problema. E tome fundo partidário + um cacife de minutos de suspensão da censura às mídias de massa para vender + o “financiamento público” de campanhas, tudo para “livrar a política da influência do poder econômico”, e cá estamos onde a indignação sem foco nos pôs: ninguém entra, ninguém sai. E como o voto é obrigatório e leva quem tiver a maioria que der, paparicar o eleitor pra quê?

Quem não vive de teta continua no escuro, tentando adivinhar quem “não é contra” esta ou aquela “reforma”. De reforma mesmo, sem aspas, nem os políticos, nem os “especialistas”, nem os seus mais aguerridos antagonistas são a favor. Uns só prometem e os outros só cobram meias-solas para impedir que o organismo parasitado morra já, ou porque estão embarcados na nau do marajalato, como estão todos os candidatos e família, ou porque assim lhes permite o silêncio reinante, pois, no escurinho de cada consciência do Brasil com voz, ninguém quer arriscar o caquinho de migalha que as “excelências” e os “meritíssimos” têm a esperteza de conceder a todos e a cada um para dividir os otários. O resto, o Brasil sem teta nem voz, este está no meio do tiroteio. Tem mais com que se preocupar.

China de um lado, “privilegiatura” do outro. Fusões e aquisições, supersalários e superaposentadorias, tudo sem limites. A classe média meritocrática está em vias de extinção. Só sobrou a corte debaixo do para-raio. O Brasil inteiro vive a “síndrome do Jardim Europa”: menos ricos muito mais ricos, comprando os vizinhos, construindo palácios, e o favelão continental crescendo em volta debaixo de tiro e debaixo de peste. No fim vão sobrar três ou quatro castelos e quem sair fora das muralhas sem um exército à sua volta será comido vivo.

A sociedade dividida em dois extremos, sem meio, é tudo o que os “venezuelanos” querem. Seja quem for que entrar, seguir poupando a corte em detrimento do povo vai nos jogar no colo deles. Eles sabem que só conseguirão segurar a barra que vem vindo a tiro, mas é este o seu diferencial: estão dispostos a saltar para esse nível de crime. Vivem aplaudindo quem já está nele. Não acreditam em mais nada e é isso que os faz duas vezes mais perigosos.

O Brasil está sonhando com uma ressurreição moral que sabe que não virá. O que faz o padrão moral da política é a regra do jogo, e não a iluminação pelos céus de um mítico “candidato honesto”, seja de que “lado” for. Não haverá pacote de leis, nem que venha assinado pelo Homem de La Mancha em pessoa, que resolva isso. Nós somos todos testemunhas. Todas as leis anticorrupção viraram as mais poderosas armas da corrupção. Prende este! Solta aquele! Mexeu no meu privilégio? Maldita Geni!

Tem dado pra trabalhar com esse barulho?

Seja quem for que inicie a cena, quem decide o final são sempre os titulares dos “direitos” que só a “eles” é dado “adquirir”. É essa dimensão coletiva, sem rosto, que os une a todos, os mais e os menos mal intencionados, pela ação ou pela omissão. Quem manda, quem escreve a regra, quem nunca sai do poder é “o bloco” das corporações donas do Estado.

A base de toda a trapaça nesse campo – e muito pouca coisa ao norte de Curitiba não é – é a ideia de que são as pessoas e não o “sistema” que está errado. Se forem só as pessoas, basta prender as da hora e sonhar com a eleição de “um cara honesto” que passa. Se for o “sistema”, então estamos todos errados e será preciso suspender as hostilidades e mudar o País de dono antes de começar a prender de novo, agora para valer.

A lei é a força absoluta. Na mão de qualquer outro, vira uma arma e uma gazua. “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.” Por isso a grande invenção do milênio foi dar exclusivamente ao povo o poder de fazer e de acionar a lei. O jeito disso mudar de conversa para realidade demorou séculos para apurar. Voto distrital puro porque poder é um perigo e por isso precisa ser picado em pedacinhos. Eleições primárias diretas porque não dá pra funcionar senão por representação, mas nós precisamos da dos índios, não da dos caciques. Retomada de cargos e mandatos a qualquer momento para que os representantes nunca se esqueçam de quem é que manda. Referendo do que vier do Legislativo para que a lei não seja transformada em gazua nem em arma de opressão. Leis de iniciativa popular para que você paute o representante, e não o contrário. Eleições de retenção de juízes pois o crime organizado ataca por cima e por baixo e as paradas e tentações são altíssimas.

Aí o controle do seu destino passa a ser seu. Fora daí é rezar, a cada quatro anos, para que o próximo déspota venha menos torto que o anterior.

* Fernão Lara Mesquita é jornalista.