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Felipe Salto: O desmonte do Estado brasileiro

Reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública

É sintomático que o Orçamento de 2021 tenha sido sancionado em bases irrealistas. Os cortes promovidos pelo Poder Executivo devem permitir o cumprimento do teto, mas ao preço de desmontar o Estado brasileiro. Na ausência de mudanças estruturais no gasto obrigatório, reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública.

O chamado shutdown não acontece da noite para o dia. Na verdade, políticas públicas essenciais estão sendo desidratadas ao longo dos últimos anos. Dada a opção pelo teto de gastos, mas sem avanços para conter a despesa mandatória, a fatura vai recaindo sobre o gasto discricionário (mais exposto à tesoura).

Em 2021, o caso do censo demográfico é emblemático. Em pleno ano de pandemia, quando se processam mudanças sociais e econômicas profundas, o Ministério da Economia anunciou que a pesquisa não será realizada. Motivo? Falta de orçamento.

O último censo realizado foi em 2010 e custou R$ 1,1 bilhão. Atualizado pelo IPCA e pelo aumento do número de domicílios, o orçamento do programa deveria ser de R$ 2,8 bilhões em 2021. O censo fundamenta a análise, o planejamento e a formulação de uma miríade de políticas sociais, econômicas, educacionais, etc. Os cortes anunciados levaram o orçamento dessa pesquisa a cerca de R$ 53 milhões. Na verdade, esse gasto não será sequer suficiente para preparar a realização do censo em 2022.

As despesas discricionárias do Executivo estão orçadas em R$ 74,6 bilhões para 2021. É o menor nível da série. O Ministério da Educação ficou com R$ 8,9 bilhões. Somando as emendas de relator-geral, vai a cerca de R$ 10 bilhões. Em 2016 as despesas discricionárias executadas nessa área totalizaram R$ 21,8 bilhões. Isto é, o valor de 2021 corresponde à metade do observado cinco anos atrás. Isso sem considerar a inflação do período. Isto é, uma redução brutal.

Na pasta da Saúde, as discricionárias do Executivo ficaram em R$ 15,5 bilhões, apenas meio bilhão acima do valor observado em 2016. Somando as emendas de relator-geral remanescentes (após os cortes do presidente da República), esse valor sobe para R$ 23,3 bilhões. Ainda assim, é um patamar muito baixo, sobretudo quando comparado a 2020 (o dobro), que também foi um ano de pandemia.

O governo argumenta que os recursos adicionais necessários à saúde serão executados por meio dos chamados créditos extraordinários, que de fato estão sendo autorizados por medidas provisórias. Aliás, alterou-se o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para deixar essas e outras despesas novas de fora da meta fiscal de déficit primário fixada em lei (receitas menos despesas, exceto juros da dívida).

Em benefício da transparência, o ideal seria ter mudado a meta de déficit (R$ 247,1 bilhões). A outra regra fiscal, o teto de gastos, já estaria resolvida, porque todo crédito extraordinário – desde que justificadas a imprevisibilidade e a urgência – não é contabilizado nas despesas sujeitas ao limite constitucional. Estimo, preliminarmente, que o déficit primário efetivo, o que afeta a dívida pública, poderá ficar em torno de R$ 290 bilhões neste ano.

Mais um exemplo da situação crítica das despesas de custeio e manutenção da máquina e de programas essenciais está no Ministério das Relações Exteriores. Após os cortes e bloqueios, o Itamaraty contará com despesas discricionárias de R$ 551 milhões. Em 2016, o orçamento foi quase três vezes maior (R$ 1,5 bilhão).

Na verdade, o remanejamento de verbas promovido via vetos ao Orçamento e bloqueios de despesas por decreto promoveu um corte geral de cerca de R$ 29 bilhões. Esse valor é próximo das contas feitas pela Instituição Fiscal Independente (IFI), R$ 31,9 bilhões, em março. No início da semana passada o governo soltou na imprensa que R$ 20 bilhões seriam suficientes para cumprir o teto de gastos. Errou.

Os cortes realizados mantiveram um orçamento elevado para áreas como Desenvolvimento Regional, cuja discricionária total (Executivo) será de R$ 1,5 bilhão mais R$ 6 bilhões em emendas de relator-geral não atingidas pelos vetos presidenciais. Em 2016 gastou-se R$ 1,3 bilhão e em 2020, R$ 4,4 bilhões.

Se o risco de paralisação de políticas essenciais se materializar, como é provável que continue a ocorrer, o governo sofrerá pressões para desbloquear o que foi tesourado por decreto. Os vetos, vale dizer, só poderiam ser revertidos pelo Congresso. Esses cortes deverão preservar o teto, mas de maneira perigosa e ineficiente.

No ano passado o governo não planejou o Orçamento público de 2021 para um cenário de recrudescimento da crise pandêmica. O plano deveria ser realista e coerente com a responsabilidade fiscal. Já se sabia das dificuldades a serem enfrentadas neste ano, dos riscos de novas ondas da covid-19 e da precariedade social, econômica e fiscal.

O “deixa como está para ver como é que fica” custou caro. Após os cortes, pode-se até cumprir o teto, mas não sem um desmonte do Estado brasileiro. Ou isso ou vão acumular uma montanha de contas a pagar para 2022.

*Diretor Executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI)


Marcus André Melo: O Estado brasileiro é fascista?

A redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente

“Is Brazil a fascist state?” Este é o título do último capítulo de “Brazil Under Vargas” (1942), de Karl Loewenstein. A pergunta não poderia vir de alguém mais qualificado: o ex-pupilo de Max Weber havia publicado “Hitler’s Germany” (1939) e trabalhos pioneiros sobre movimentos autoritários na década de 30. O autor não falava apenas de cátedra: ele próprio fugira de Hitler para tornar-se acadêmico nos EUA e influenciou ativamente a elaboração da Constituição alemã de 1949.

Loewenstein concluiu que os rótulos comuns para o regime de Vargas não eram apropriados: “o regime não é nem democrático nem ‘democracia disciplinada’; nem totalitário nem fascista; é uma ditadura autoritária para o que os franceses cunharam um termo adequado: ‘régime personnel’, mas que exerce poderes teoricamente ilimitados com moderação dado o habitat liberal-democrático brasileiro”.

O Brasil não era totalitário, e a mobilização política oficial era cosmética: “não há a mística de Estado como na Alemanha nem nos primeiros anos do fascismo na Itália”. Mas importante é sua conclusão que, enquanto esses dois países são casos de Estados de partido único, o Brasil representava uma situação peculiar de Estado sem partido: os partidos políticos não existiam nem no papel nem na prática.

Com base em ampla base empírica, Loewenstein analisou o funcionamento das instituições brasileiras (sistema de justiça, mídia etc.) —em comparação com a Alemanha nazista e outros países—, concluindo que no Brasil o arbítrio aplicava-se de forma muito mais restrita. Especulava que “a persistência da regra da lei no Brasil de hoje, mesmo sob pressão de um regime autoritário, o qual em termos constitucionais é materialmente ilimitado, pode ser creditada à tradição enraizada e forjada no marco da monarquia constitucional no Império”.

Revisitar Loewenstein é urgente porque o Estado Novo na nossa experiência histórica foi o regime político que mais se pareceu com o fascismo. E ele próprio é a um só tempo testemunha e pesquisador pioneiro do assunto. Sua análise deixa claro que a redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente.

No debate público americano atual, Jason Stanley e Timothy Snyder têm insistido que sob Trump os EUA teria se tornado fascista. Samuel Moyn retruca, como escrevi neste espaço, que é irônico que a maior oportunidade para implementar o fascismo (a pandemia) produziu inação, e não um ditador.

E adverte que mostrar o que situações tem em comum é banal; há similaridades em quaisquer fenômenos: “a comparação sem o reconhecimento de diferenças é puro partidarismo”. Como amplamente demonstrado por Loewenstein!

*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Murillo de Aragão: Leviatã

Não criamos o monstro chamado “Estado brasileiro”, cuja missão precípua é se alimentar e crescer para atender às necessidades do crescimento da burocracia. O monstro é que nos criou como nação. Fomos paridos das entranhas de um reino altamente burocratizado. O monstro pariu as capitanias hereditárias, as licenças e os alvarás. As filas e as senhas. Os despachantes. E o pistolão.

O monstro pariu bons empregos com belas aposentadorias e planos próprios de saúde, como aquele da Casa da Moeda, recentemente rompido por ser excessivo aos cofres públicos. O monstro também fez com que as verbas dos fundos de universalização das telecomunicações fossem usadas para pagar serviços odontológicos de funcionários públicos, ao invés de serem direcionadas para a finalidade a que se destinavam.

O monstro criou uma alegoria democrática que nos engana e cujos detalhes estão escondidos sob uma grossa nuvem de opacidade. O monstro pode ser mau e pode ser bom. Depende do ponto de vista. Como nação, transformamos a burocracia, para muitos, em meio de vida. Seja para quem cria a burocracia. Seja para quem facilita a burocracia. Seja para quem está na intermediação da venda de facilidades para contornar as dificuldades. Conforme a Operação Lava-Jato revela.

De acordo com pesquisa do IMD (International Institute for Management Development), o Brasil perde posições – pelo sétimo ano consecutivo – no ranking mundial de competitividade. Ocupamos uma vergonhosa 61a posição. É um país forjado para não ser estruturalmente competitivo. Na verdade, somos competitivos de forma oportunista. Como já fomos durante os ciclos da borracha e do café e, agora, em relação ao minério de ferro e à soja. Mas somos dramaticamente, fundamentalmente, não competitivos.

O dramático reside no fato de que poucos no mundo político enfrentam o Leviatã e muitos na sociedade não se dão conta do perverso domínio a que somos submetidos.

Não proponho a anarquia nem o Estado mínimo, e sim o Estado necessário e eficiente. Critico o Estado voltado para si mesmo em detrimento da sociedade. Ataco o Estado que serve ao corporativismo e sufoca a iniciativa privada e individual. Ataco o Estado hiper-regulado, que patrocina uma carga tributária insana e complexa, os maiores juros do mundo civilizado e uma legislação trabalhista que gera o desemprego.

Quando promovemos maior abertura ao capital privado nas concessões e quando buscamos reduzir a burocracia, estamos apenas arranhando o casco duro do Leviatã. Ainda falta muito para nos livrarmos dessa escravidão.

Critico o Estado voltado para si mesmo em detrimento da sociedade. Ataco o Estado que serve ao corporativismo e sufoca a iniciativa privada e individual.