Espaço aberto
Pedro de Camargo Neto: Embrapa em alerta!
Tomar para si o sucesso da agropecuária do País talvez tenha sido o que mais a prejudicou
Neste mesmo espaço, com o título Por favor, Embrapa: acorde!, o pesquisador Zander Navarro incitou o debate sobre o investimento público em pesquisa agronômica realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Apresentou diversas questões pertinentes, cujo debate público e aberto com a sociedade em geral, e não só com seus pares ou os mais diretamente envolvidos tanto academicamente como na prática, pode contribuir para o avanço das ideias. A troca de ideias é o fundamento para o aprofundamento do conhecimento.
Muitos dos desafios que a Embrapa enfrenta hoje não são muito diferentes de inúmeras outras instituições públicas. Decidir sobre a alocação de recursos entre centenas de projetos, todos apresentados como prioritários; avaliar resultados de pesquisas, bem como o desempenho de seus 10 mil funcionários em 47 centros espalhados pelo País; evitar corporativismos, prestigiando a meritocracia; incentivar o diálogo, permitindo que do debate as melhores ideias prosperem – isso seria o dia a dia de qualquer gestor.
A Embrapa não é uma universidade, embora seja essencial que esteja próxima de todas. Pesquisa aplicada é diferente e complementa a pesquisa pura. Seu método de avaliação é também diferente da pesquisa acadêmica. A governança de alocação de recursos e avaliação de resultados precisa incorporar a vinculação com a prática.
Em minha atividade profissional, embora longe da pesquisa, sou usuário de seus resultados. Já avaliava que a Embrapa se havia tornado uma instituição burocrática e com poucos resultados práticos. Vivia de um passado de bons resultados para alguns produtos. Embora tenha centros de pesquisa para as diversas produções, nem sempre sua pesquisa tem grande relevância para os produtores.
O sucesso da agropecuária, que inclui significativos aumentos de produtividade agronômica, não pode ser atribuído só à Embrapa. A participação de inúmeras empresas privadas, nacionais e multinacionais, teve importante relevância.
Tomar para si o sucesso da agropecuária brasileira talvez tenha sido o que mais a prejudicou. Não se trata de negar valor à Embrapa. É um orgulho nacional. Teve, e ainda tem, um quadro profissional de excelência. Teve profissionais dedicados e intimamente vinculados ao campo. Mas não se deve exagerar. A prestação de contas sobre sua relevância para a sociedade deixou de ser uma preocupação interna, pois estaria acima de qualquer dúvida. Protegida por essa aura, burocratizou-se, perdeu agilidade, isolou-se em sua suposta indiscutível competência.
Enfrentamos hoje um momento de inflexão. A rapidez com que os avanços tecnológicos, em todos os setores, ocorrem é surpreendente. Precisamos estar muito atentos. Manter a competitividade da agropecuária continuará a ser um grande desafio, maior do que foi no passado. Produzir mais e melhor, dentro de um ambiente extremamente competitivo e com a pressão das transformações ambientais e econômicas globais, não será tarefa fácil.
Mesmo com uma empresa pública eficiente e revigorada, os avanços virão de todos os cantos, principalmente do setor privado. O desafio incluirá articular e induzir o setor nacional a ocupar esses espaços.
A biotecnologia produz resultados inimagináveis, gostemos ou não, com investimentos cada dia menores, muito menores, e numa velocidade que qualquer burocracia terá dificuldade de acompanhar. Certamente, a da Embrapa não acompanha. O Brasil demorou para incorporar a biotecnologia, registre-se, não por culpa da Embrapa. Mas hoje a empresa vem sendo incapaz de apoiar e induzir a criatividade de nossos pesquisadores e facilitar empreendedores, aí, sim, tarefa para uma empresa pública.
A nanotecnologia representa um futuro ainda pouco nítido, porém com a certeza de que estará presente e com a capacidade de resultados impressionantes. A tecnologia digital, acoplada à de georreferenciamento, acelera sua incursão no setor agropecuário, com automatização de inúmeras atividades. Sensores, drones, robôs, processamento de megadados, acesso a satélites, a precisão de milímetros onde eram metros transformam a atividade produtiva e o produtor. Como exemplo, entre os três destaques da participação, esta semana, do presidente norte-americano, que pela primeira vez compareceu ao congresso anual da American Farm Bureau Federation, entidade de agricultores, foi o anúncio de investimento em infraestrutura em rede de internet, banda larga, no meio rural. Os outros dois destaques, de igual nível de importância, foram a questão tributária e de trabalhadores imigrantes.
Os equipamentos que serão utilizados estão hoje sendo inventados, e numa velocidade surpreendente. Não saberia dizer o que será o futuro. O futuro de alguns poucos anos.
Precisamos da Embrapa. O artigo do pesquisador aqui citado tem o mérito de expor, e oferecer destaque, à sociedade em geral para os desafios que precisarão ser enfrentados. Desafios difíceis de ser alcançados e que exigirão o esforço de todos, a ser construído em amplo e aberto debate. Recebeu, infelizmente, como resposta, sua demissão. Demitido por publicar um artigo expondo à sociedade questões extremamente pertinentes. Artigo que, como qualquer outro, contém sua visão, certamente não a única, e que deve participar com as demais visões da construção do futuro. Não teria seguido as normas internas e os canais de diálogo. Teria infringido o código de ética da empresa. A Embrapa entendeu não ser necessário contestar publicamente os argumentos do autor. Julgou que, como funcionário, não teria o direito de expor publicamente suas críticas.
A empresa é pública. O pesquisador é funcionário público. Os canais internos claramente não deram resposta a contestações que, antes de serem dele, são de todos nós, principalmente nós agricultores e pecuaristas. O debate precisa também ser público.
A reação da empresa com a sumária demissão do pesquisador, na rapidez em que ocorreu, horas após a publicação do artigo, é inadmissível. Nossas cultura e instituições democráticas não aceitam esse tipo de reação.
* Pedro de Camargo Neto foi presidente da Sociedade Rural Brasileira
Bolívar Lamounier: Dois importantes pronunciamentos
O do primeiro-ministro chinês Xi Jinping e o do deputado federal brasileiro Tiririca
Na semana passada e na anterior tivemos dois importantes pronunciamentos: o de Xi Jinping, primeiro-ministro chinês, e o de Tiririca, deputado federal brasileiro. A importância do primeiro decorreu mais do peso econômico e político da China no mundo que de seu conteúdo. Afirmo isso porque a substância do pronunciamento é bem conhecida.
Em sua fala de três horas e meia, o mandatário chinês reafirmou que a China é hoje uma superpotência econômica e política e fadada a um importante protagonismo no cenário mundial. E não precisou bater no peito para indicar que ele, como líder do Partido Comunista, está próximo de atingir uma estatura política comparável à de Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping.
Mantidas as devidas proporções, Tiririca também disse uma coisa relevantíssima, embora desconhecida da maioria dos brasileiros. Anunciando que não pretende se recandidatar no ano que vem, ele afirmou: “Vim para cá pensando em aprovar projetos, mas a coisa aqui é muito complicada”. Para bom entendedor, pingo é letra.
A referência principal de sua curta sentença é, sem dúvida, o poder absurdo que as Mesas do Senado e da Câmara detêm. Nenhum senador ou deputado consegue aprovar projeto algum se elas não quiserem, só com uma paciência de Jó e puxando bastante o saco dos respectivos presidentes.
Esse mecanismo explica um dos maiores paradoxos do Legislativo, dois traços perversos que qualquer cidadão percebe a olho nu: de um lado, o governismo sem-vergonha que reduz as duas Casas a uma quase total impotência, fraudando a estipulação constitucional do equilíbrio de Poderes e desestimulando carreiras políticas sérias; do outro, revoltas inesperadas, surtos de rebeldia, notadamente no chamado “baixo clero”, cujo objetivo é invariavelmente aumentar o custo do apoio às Mesas e, por via de consequência, ao Executivo. Há quem singelamente acredite que a debilidade e a mediocridade do Legislativo sejam como uma danse sur place, um ponto de equilíbrio muito ruim, mas estático. Ledo engano.
O que se passa no Brasil, mercê do equivocado conjunto de engrenagens que compõe nosso sistema político, é um paulatino deslocamento para um equilíbrio cada vez pior. Uma das faces mais visíveis desse processo é a incapacidade do Legislativo, evidente já há muitos anos, de recrutar bons candidatos. Por que cargas d’água uma pessoa apta a desempenhar cá fora um papel de relevo vai se meter numa máquina de moer carne como aquela?
Tiririca disse que não vai se recandidatar, e eu acredito nele. Tem toda a razão: entre ser figurativo ou de verdade, é melhor sê-lo de verdade, cá fora. Circo por circo, os de cá são mais engraçados.
Claro, o deslocamento do equilíbrio para pior deve-se à operação de outros mecanismos, não só ao poder das Mesas. A proliferação desordenada de partidos carentes de identidade é um deles. É mais ou menos assim que a coisa se passa: um aventureiro ou um grupelho qualquer funda um partido e obtém no Tribunal Superior Eleitoral o devido reconhecimento. Só com esse passo ele (aventureiro ou grupelho) já se habilita a participar dos recursos do Fundo Partidário. Se conseguir eleger um punhado de deputados ou senadores, habilitar-se-á a vantagens não menos suculentas: entrará no universo conhecido como “presidencialismo de coalizão”, usando seus votinhos como poder de chantagem para integrar a maioria governista, que cedo ou tarde, no limite, vai precisar deles. A contrapartida do Executivo pode ser em cargos nos ministérios ou nas estatais, mas, em caso de necessidade, há quem a aceite em moeda sonante, como ocorreu abundantemente no “mensalão” arquitetado pelo ex-presidente Lula.
Claro, a proliferação de agremiações acirra a disputa na arena eleitoral. Em cada Estado, um número cada vez maior de pretendentes começa a dar cotoveladas, a azeitar o caixa 2 e a clamar por “chances” proporcionais à contribuição que haverão de prestar à jovem democracia brasileira. Foi assim que, pela Constituição de 1988, deixamos para trás aquele saudável teto de 400 e poucos deputados e passamos aos 513 que integram atualmente uma Câmara proporcionalmente muito maior que a dos Estados Unidos!
Sejamos francos: para que tantos deputados e senadores? Por que não estabelecemos um mínimo de seis (em vez de oito) deputados e dois (em vez de três) senadores por Estado?
Mas seria ainda o caso de rir, e não de chorar, se nossos parlamentares fossem totalmente cínicos, defendendo tais disparates tão somente como uma engrenagem apta a acomodar seus interesses. O problema é que muitos não são cínicos. Muitos há para os quais esses mecanismos são o alfa e o ômega da sabedoria política, a estrada real que levará nosso país ao que chamam de “verdadeira democracia”. Para esses, quanto mais assentos no Legislativo e quanto mais partidos, melhor. Ora, se assim é, por que não uma Câmara com cinco ou dez mil parlamentares, cada um com seu próprio partido? Os que assim pensam não percebem que um corpo superdimensionado é uma forma de debilitar, não de fortalecer o Legislativo, uma forma de desnaturá-lo e castrá-lo, transformando-o num apêndice (é certo que barulhento!) do Executivo.
No Paper Federalista n.º 51, um dos estudos que elaborou como contribuição à Constituição americana, James Madison escreveu: “Se a assembleia de Atenas tivesse dez mil membros, com certeza deveríamos vê-la como uma horda de arruaceiros, não como um corpo deliberativo sério”. Eu só faria um pequeno acréscimo: uma horda formada por um baixo clero de uns nove mil e novecentos, precariamente controlados por uma elite de talvez cem.
Marco Aurélio Nogueira: Políticos imperfeitos
Crítica a Temer deve ser bem calibrada. Ele é produto do quadro político atual...
Na conhecida conferência A política como vocação, proferida em 1919, o sociólogo alemão Max Weber sugeriu que o verdadeiro homem político deveria possuir ao menos três qualidades essenciais: precisaria combinar a paixão por uma causa, o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. Poderia ter uma dessas qualidades em maior dose, mas não poderia deixar de ter as três. Com elas, entre outras coisas, haveria como controlar a vaidade, o desejo de permanecer sempre no primeiro plano, e dar o devido peso à missão política propriamente dita.
A sugestão é útil para que se discuta, por exemplo, a conduta de parlamentares e governantes, seu maior ou menor sucesso, seu estilo de liderança, as razões que os fazem mais eficientes na representação política e na gestão e lhes dão maior capacidade pedagógica de interagir democraticamente com as massas.
Há governantes que se seguram tão somente na paixão pela causa, conseguindo compensar a ausência (relativa) das outras qualidades mediante a organização de uma boa equipe de auxiliares. Enquanto o chefe faz política e enfatiza sua causa, os assessores cuidam da administração e garantem alguma margem de responsabilidade e senso de proporção no processo de tomada de decisões. Lula pode ser aqui tomado como exemplo positivo. Dilma seria um exemplo negativo.
Em seus dois mandatos, o ex-presidente não deixou um minuto sequer de fazer política e reverberar sua causa. Conseguiu terminar seus governos nos braços do povo, sua equipe de auxiliares se encarregou, com eficiência, de fazer a máquina administrativa funcionar e estabilizar a base política, que forneceu ao governo a necessária sustentação. As circunstâncias nacionais e internacionais foram-lhe favoráveis e o beneficiaram com os ventos da Fortuna, mas é evidente que houve Virtù e bom desempenho entre 2013 e 2010.
Com Dilma Rousseff ocorreu o contrário. Apresentada ao mundo como “gestora rigorosa e técnica competente”, não mostrou aptidão particular para a política, não conseguiu expressar causa alguma nem exibiu a exaltada competência administrativa. Seu senso de proporção e responsabilidade foi reduzido, o que impulsionou a crise. Em decorrência, entrou em atrito com amigos, aliados e auxiliares, não estruturou uma equipe leal e eficiente, teve de aceitar a contragosto a transferência da operação política para outros personagens e não conseguiu organizar um Estado administrativo vigoroso. As circunstâncias não a beneficiaram e passaram, em decorrência, a exigir sempre mais talento político, que lhe era escasso. Dilma plantou, assim, os ventos que iriam transformar-se na tempestade perfeita do impeachment. A desgraça configurou-se quando ela, em 2014, bateu pé e fez questão de concorrer à reeleição. Sua vitória nas urnas foi de Pirro e só serviu para bloquear as chances que o PT teria de ajustar o curso do navio.
Faltaram a Dilma, portanto, as três qualidades essenciais estabelecidas por Weber, com o que ela foi devorada pela vaidade e pela dificuldade de interagir democrática e pedagogicamente com as massas. Sua queda foi uma espécie de profecia que se autorrealizou.
Trazendo o argumento para os dias correntes, encontramos Michel Temer como exemplo de político com dificuldades para combinar as três qualidades. Falta-lhe antes de tudo a devoção a uma causa, já que a ideia de fazer de seu governo um artífice da retomada do crescimento econômico e do ajuste fiscal não aquece mentes e corações. Com o tropeço nas pedras que surgiram pelo caminho (Joesley e Janot), Temer viu evaporar o que tinha de força para aprovar reformas, sobretudo porque não soube reunir os consensos sociais necessários para fazê-las e foi sendo desconstruído pelo próprio Congresso, que esperava ver apoiá-lo. O presidente também não demonstra possuir um apurado senso de proporção e responsabilidade, o que fez com que vacilasse na composição de seu Ministério, para o qual convocou pessoas que pouco o ajudam e têm opaca imagem pública, e se entregasse desmesuradamente ao jogo político miúdo e fisiológico. Foi, assim, sendo devorado por predadores de várias espécies, perdendo condições de fazer política abrangente, a ponto, por exemplo, de influenciar sua própria sucessão. Tornou-se um governante inercial, refém do Congresso e sustentado pelos relacionamentos que amealhou durante a longa carreira parlamentar. Seus baixíssimos índices de aprovação e popularidade fecham a moldura.
Mas a crítica a ele deve ser bem calibrada. Temer é produto do quadro político atual, que está majoritariamente ocupado por políticos imperfeitos. Alguns têm causas, outros se declaram responsáveis, mas há poucos que se dediquem a unir uma qualidade à outra. Não porque não as tenham, mas porque não se dispõem a confrontar as bandas podres do sistema e recuperá-lo.
Bons políticos existem e continuarão a existir sempre. O que falta é que eles se reúnam, se articulem, se imponham nos espaços políticos institucionais e dialoguem abertamente com a sociedade. Sem a paixão que promove a entrega a uma causa e sem um sentido superior de responsabilidade (pública), os políticos são atraídos mais pelo brilho do que pela realidade do poder; e terminam por usufruir o poder pelo poder, sem cumprirem funções positivas. Precisam romper com isso.
Constatar que um país como o Brasil esteja entregue nos últimos 15 anos às desventuras de políticos “imperfeitos” – e imperfeitos porque “incompletos” – certamente levaria Max Weber a tremer no silêncio sepulcral em que repousa.
Quanto a nós, pobres seres viventes, a constatação provoca pasmo e uma perturbadora inquietação. O momento é exigente, pede empenho e discernimento. Não precisamos de “chefes”, mas de políticos dispostos ao sacrifício e vocacionados para colocar os dedos nas engrenagens da História, assumindo compromissos claros com uma agenda corajosa.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Rubens Barbosa: ‘O perigoso caso de Donald Trump’
Durante a campanha eleitoral, Jeb Bush previu corretamente que Donald Trump era o candidato do caos e, caso eleito, seria um presidente do caótico. Questões de guerra e paz, armas nucleares, imigração e previdência social, que afetam milhões de pessoas nos EUA e em outros países, são tratadas surpreendentemente de maneira pública, muitas vezes contrariando as posições de seus ministros, em tuítes matinais.
Decorridos dez meses da posse e diante das atitudes desconcertantes de Trump, aumentam as incertezas sobre as perspectivas do atual governo norte-americano. O formato e o estilo de seus pronunciamentos públicos, sem precedentes na história política de Washington, a atitude quase autoritária de impor a sua vontade contra a de seus ministros e a maneira como pauta a imprensa, atacada e desprezada por ele, causam perplexidade não só na política interna, sobretudo na relação com o Congresso, mas igualmente ao redor do mundo, em especial entre os principais aliados dos EUA na Europa e na Ásia.
As ações unilaterais de Trump, em muitos casos incoerentes, estão mudando políticas em vigor sem definições alternativas. Disputas com aliados republicanos, opositores democratas e membros de seu ministério começam a ser percebidas como ameaças à estabilidade do governo, como indicam os primeiros pedidos de impedimento apresentados ao Congresso. Em várias frentes, como saúde, imigração, na chamada guerra cultural, que se estende da briga com atletas por seus protestos contra a violência policial na hora do hino nacional à suspensão da proteção contra a discriminação a transgêneros no trabalho, Trump coleciona derrotas, embora muitos (mais de 38% da população) ainda o apoiem, pelo que entendem ser a defesa dos valores americanos, perdidos com Barack Obama.
A crescente falta de credibilidade da administração Trump entre os governos europeus, em particular o da Alemanha, começa a acarretar um gradual afastamento nas posições defendidas pelos dois lados. Em termos de segurança e defesa, de um lado, e de comércio, de outro, percebe-se uma gradual desvinculação da Europa e a busca de um caminho próprio na defesa de seus interesses.
Para justificar essa percepção, cabe mencionar o que está ocorrendo em três áreas: política interna, comércio exterior e política externa.
Em termos de política doméstica, a guerra com a imprensa (CNN, NBC) pelo que ele diz serem notícias falsas (fake news) acerca da ação da Rússia durante a eleição presidencial, que levou à designação de um promotor especial para investigar essa interferência, a tentativa de revogar todas as políticas internas e externas aprovadas por Obama e a maneira pouco solidária como tem tratado a sorte do povo de Porto Rico depois da destruição pelo furacão Maria são alguns exemplos da divisão existente na sociedade norte-americana.
Quanto ao comércio exterior, basta citar o conflito com a Organização Mundial do Comércio (OMC), severamente afetada pela recusa dos EUA de discutirem a nomeação de juízes para o órgão de apelação do mecanismo de solução de controvérsias, em Genebra, pondo em risco um dos pilares mais importantes da instituição. Também a crise com o Canadá e o México na discussão do Nafta, chamado por Trump de o pior acordo negociado pelos EUA, pode criar um clima de incerteza comercial com repercussão global e uma repercussão negativa política e econômica no México na antevéspera da eleição presidencial, que poderá beneficiar o candidato da oposição e de tendência antiamericana, Manuel Lopes Obrador. O governo de Washington apresentou sete propostas de mudanças, incluindo uma que determina que o acordo seja renovado a cada cinco anos, introduzindo uma insegurança jurídica que os governos canadense e mexicano consideram muito difíceis de aceitar (non-starters). A retirada dos EUA do acordo com a Ásia – Transpacific Partnership (TPP) – e a revisão do acordo comercial com a Coreia do Sul agregam mais um elemento de dúvida quanto à palavra de Washington nas negociações internacionais.
No capítulo da política externa, Trump conseguiu a proeza de juntar ao mesmo tempo dois desafios nucleares, com o Irã e com a Coreia do Norte. A não certificação do acordo multilateral sobre o programa nuclear iraniano não retira os EUA do acordo, mas transfere para o Congresso o exame de novas sanções econômicas pelo que ele considera descumprimento do acordo. Isso só fez aumentar a divisão com a Rússia, a China e os países europeus consideram que o Irã está cumprindo os termos do acordo. As manifestações contraditórias em relação aos programas nuclear e balístico de Pyongyang e as ameaças à China para que interrompa o comércio bilateral com Kim Jong-un, a saída da Unesco, assim como as restrições ao Banco Mundial em razão de empréstimos à China e o esvaziamento do Acordo do Clima de Paris isolaram ainda mais os EUA. A ameaça de intervenção militar na Venezuela alienou o apoio dos países latino-americanos. As marchas e contramarchas em relação à Rússia e à China (considerada o maior inimigo dos EUA) introduzem mais um elemento de incerteza em termos geopolíticos.
As seguidas manifestações de Trump – verdadeiro reality show – com sinais contraditórios não estão sendo levadas a sério e são entendidas e ignoradas como expressões de autossuficiência patológica. O comportamento do presidente norte-americano levou um grupo de 27 psiquiatras e psicanalistas a publicar o livro O Perigoso Caso de Donald Trump (The Dangerous Case of Donald Trump), de grande sucesso editorial nos EUA.
Fora o fato de estar em jogo a credibilidade da palavra do governo norte-americano, sobram razões de justificada ansiedade no mundo.
O Estado de São Paulo
* Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)
Aloysio Nunes Ferreira: A diplomacia do biofuturo
Até 2030 a bioenergia precisará ter sua participação duplicada na matriz energética global e seu uso triplicado nos meios de transportes. Projeções elaboradas pela Agência Internacional de Energia Renovável e pela Agência Internacional de Energia indicam que ela será necessária em larga escala, mesmo considerando outras soluções concomitantes, como eficiência energética, energia solar e eólica, eletrificação dos transportes, cidades sustentáveis e maior uso do transporte público.
O setor de transportes – responsável por cerca de um quarto das emissões globais de dióxido de carbono (CO2) – figura entre os principais desafios para a construção de matriz energética mais sustentável nas próximas décadas. E uma das soluções mais eficazes e de mais rápida implementação para esse setor é a ampliação do uso de biocombustíveis, que produz resultados imediatos na redução da emissão de gases de efeito estufa mesmo em mistura parcial com combustíveis fósseis.
Obstáculos políticos e econômicos, porém, têm dificultado a transição para economia mais limpa no que diz respeito à bioenergia. A difusão de falsa dicotomia entre produção de alimentos e de combustíveis – além da insistente prática do protecionismo agrícola – tem impedido a constituição de mercado internacional para biocombustíveis e sua transformação em commodity global.
A revolução tecnológica que está em curso poderá mudar substancialmente esse panorama. O caso do etanol celulósico ou de segunda geração (E2G) é bom exemplo, já alcançando o estágio de produção em escala comercial no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália. Outras tecnologias promissoras começam também a deixar os laboratórios e a atingir escalas de demonstração. O País está na vanguarda da inovação tecnológica na produção de combustível limpo e ambientalmente prudente, fato que contribui para liderança em desenvolvimento sustentável.
A segunda geração de biocombustíveis utiliza como insumo a celulose, a matéria verde que compõe a maior parte da biomassa das plantas. Avanços no uso da celulose podem tornar viável a produção de biocombustíveis em larga escala em diversos países que, de outra forma, não reuniriam as condições para replicar a bem-sucedida experiência brasileira com o etanol de cana-de-açúcar. O aproveitamento da celulose, sem prejuízo de outras formas de biotecnologia, é essencial para o desenvolvimento da bioeconomia, seja como alternativa, seja como complemento da indústria petroquímica na produção de plásticos, químicos e medicamentos.
Subsiste o desafio de alcançar escala de produção. Será preciso aperfeiçoar os processos em todas as etapas da cadeia produtiva e proporcionar ambiente de negócios favorável ao setor. Nessa nascente corrida tecnológico-industrial, o Brasil pode largar entre os líderes mundiais, desde que decisões corretas sejam tomadas.
É importante esclarecer que não há conflito de interesses ou concorrência entre a primeira e a segunda geração de biocombustíveis. O etanol de cana-de-açúcar, de primeira geração, é sustentável, não compete com alimentos e traz benefícios climáticos e ambientais. Essa fase continuará como base da produção no setor, com eficiência incrementada pela segunda geração. O desenvolvimento de uma avançada bioeconomia global, que se fortalece com biocombustíveis de segunda geração e bioprodutos, será de grande benefício para o País, que reúne as condições para ser um dos mais competitivos produtores mundiais.
O Itamaraty, em coordenação com outras áreas do governo e com o setor privado, tem liderado o esforço de disseminação global da bioeconomia de baixo carbono. Exemplo disso, foi lançada em novembro de 2016 a Plataforma para o Biofuturo, iniciativa multilateral que pretende acelerar o reconhecimento do papel dos biocombustíveis de baixo carbono e da bioeconomia na transição energética global. O Brasil conseguiu mobilizar outros 19 países, incluídas as maiores economias do planeta e países-chave para a expansão dos biocombustíveis, como Estados Unidos, China, França, Índia, Reino Unido, Indonésia, Itália e Argentina, para avançar nesse empreendimento.
O Brasil tem muito orgulho de coordenar a Plataforma para o Biofuturo, com apoio de seus parceiros internacionais. Esse mandato está sendo implementado por meio da negociação de uma Declaração de Visão, que deverá emitir forte sinal para o mercado sobre o papel relevante da bioeconomia nas próximas décadas, da construção de diagnóstico pormenorizado sobre o estado global dessa bioeconomia e da organização de conferências internacionais para troca de experiências e convergência de políticas. Por essa razão São Paulo sediará nos próximos dias 24 e 25 a primeira Cúpula para o Biofuturo (Biofuture Summit).
A Plataforma para o Biofuturo já tem correspondente doméstico em gestação, na forma do programa RenovaBio, que pretende reformular as políticas nacionais de biocombustíveis, com foco na redução de emissões e no estímulo à inovação e à eficiência energética.
Levar adiante essa agenda, simultaneamente nos planos interno e externo, deverá impulsionar o desenvolvimento de nossos setores agrícola, industrial e biotecnológico. A Plataforma afirmará também a posição de vanguarda do Brasil em energia limpa, com efetiva contribuição do País à construção de economia global social e ambientalmente sustentável, em consonância com os objetivos da Conferência de Paris.
O Acordo de Paris representou um marco na evolução da consciência global em favor da promoção do desenvolvimento sustentável e da economia de baixo carbono. Sem a utilização em larga escala da bioenergia não será possível atingir as metas de Paris, vitais para a humanidade, e a Plataforma representa um importante passo nessa direção.
*MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, É SENADOR LICENCIADO (PSDB-SP)
FHC: Quais os rumos do País?
Se não organizarmos já um polo democrático, podemos ver no poder quem não sabe usá-lo
Quando ainda estava na Presidência, eu dizia que o Brasil precisava ter rumos e tratava de apontá-los. Nesta quadra tormentosa do mundo, cheia de dificuldades internas, sente-se a falta que faz ver os rumos que tomaremos.
Com o fim da guerra fria, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, em 1989, tornou-se visível o predomínio dos Estados Unidos. Desde antes do final da guerra fria, por paradoxal que pareça, em pleno governo Nixon – do qual Henry Kissinger era o grande estrategista – começou uma aproximação do mundo ocidental com a China. Com a morte de Mao Tsé-tung e a ascensão de Deng Xiaoping, os chineses puseram-se a introduzir reformas econômicas. Iniciaram assim, ao final dos anos 1970, um período de extraordinário crescimento. A partir da virada do século passado, o peso cada vez maior da China na economia global tornou-se evidente. No plano geopolítico, porém, os chineses buscaram deliberadamente uma ascensão pacífica, escapando à “armadilha de Tucídides” (a de que haverá guerra sempre que uma nova potência tentar deslocar a dominante).
Enquanto a China não mostrava todo o seu potencial econômico e político, tinha-se a impressão de que o mundo havia encontrado um equilíbrio duradouro, sob a Pax Americana. A Europa se integrava, os Estados Unidos e boa parte da América Latina se beneficiavam do comércio com a China e a África aos poucos passava a consolidar a formação de seus Estados nacionais. As antigas superpotências, Alemanha e Japão, desde o fim da 2.ª Guerra Mundial haviam adotado a “visão democrático-ocidental”. No início do século 21 apenas a antiga União Soviética, transmutada em República Russa, ainda era objeto de receios militares por parte das alianças entre os países que formaram a Otan. Como ponto de inquietação restava o mundo árabe-muçulmano.
Na atualidade, o quadro internacional é bem diferente. Com a “diplomacia” adotada por Trump, a Coreia do Norte desenvolvendo armas atômicas, as novas ambições da Rússia, as tensões nos mares da China e o terrorismo, há temores quanto ao que virá pela frente. Os japoneses veem mísseis atômicos coreanos passar sobre sua cabeça, os chineses fazem-se de adormecidos, o Reino Unido sai da União Europeia, os russos abocanham a Crimeia e os americanos vão esquecendo o Acordo Transpacífico (TPP, ou Trans Pacific Partnership Agreement), abrindo espaço à expansão da influência dos chineses na Ásia e deixando perplexos os sul-americanos que faziam apostas no TPP. Também perplexos estão os mexicanos, ameaçados pela dissolução do Nafta, outro dos alvos de Trump. A inquietação americana pode aumentar pelas consequências da política chinesa de construir uma nova rota da seda, ligando a China à Europa através da Ásia e do Oriente Médio, bem como pela aproximação entre Pequim e Moscou.
É neste quadro oscilante que o Brasil precisa definir seus rumos. Toda vez que existem fraturas entre os grandes do mundo se abrem brechas para as “potências emergentes”. Há oportunidades para exercermos um papel político e há caminhos econômicos que se abrem. Não estamos atados a alianças automáticas e, a despeito de nossas crises políticas, nossos erros e dificuldades, estamos num patamar econômico mais elevado que no tempo da guerra fria: criamos uma agricultura moderna, somos o país mais industrializado da América Latina e avançamos nos setores modernos de serviços, especialmente nos de comunicação e financeiros. Podemos pesar no mundo sem arrogância, reforçando as relações políticas e econômicas com nossos vizinhos e demais parceiros latino-americanos.
Entretanto, nossas desigualdades gritantes são como pés de chumbo para a formação de uma sociedade decente, condição para o exercício de qualquer liderança. As carências na oferta de emprego, saúde, educação, moradia e segurança pública ainda são obstáculos a superar.
Pelo que já fizemos, pelo muito que falta fazer e pelas oportunidades que existem, há certa angústia nas pessoas. A confusão política, o descrédito de lideranças e partidos, se expressa na falta de rumos. A opinião pública apoia os esforços de moralização simbolizados pela Lava Jato, mas quer mais. Quer soluções para as questões sociais básicas, e também para os desafios da política, que precisam ser superados, caso contrário o crescimento da economia continuará baixo e a situação social se tornará insustentável. O Congresso, por fim, aprovou uma “lei de barreira” e o fim das coligações nas eleições proporcionais. Foram passos tímidos, na forma como aprovados, mas importantes para o futuro, pois levarão à redução do número de partidos, com o que se poderá obter maior governabilidade e talvez menos corrupção.
Entretanto, quem são os líderes com a lanterna na proa, e não na popa? A crer nas pesquisas de opinião, os políticos mais cotados para vencer as eleições em 2018 mais parecem um repeteco do que inovação, embora haja entre alguns que estão na rabeira das pesquisas quem possa ter posições mais condizentes com o momento. E boas novidades podem emergir. Alguns dos que estão à frente ainda insistem em suas glórias passadas para que nos esqueçamos de seus tormentos recentes, e pouco dizem sobre como farão para alcançar no futuro os objetivos que eventualmente venham a propor.
Se não organizarmos rapidamente um polo democrático (contra a direita política, que mostra suas garras), que não insista em “utopias regressivas” (como faz boa parte das esquerdas), que entenda que o mundo contemporâneo tem base técnico-científica em crescimento exponencial e exige, portanto, educação de qualidade, que seja popular, e não populista, que fale de forma simples e direta dos assuntos da vida cotidiana das pessoas, corremos o risco de ver no poder quem dele não sabe fazer uso ou o faz para proveito próprio. E nos arriscamos a perder as oportunidades que a História nos está abrindo para ter rumo definido.
*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA.
Luiz Sérgio Henriques: O terceiro fantasma
A falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos
Espectros e assombrações, de acordo com sua natureza evanescente, costumam rondar cenários de terra devastada, como é o caso da política brasileira, trazendo presságios e reminiscências mais ou menos distantes e, no entanto, úteis para nossa ponderação. De fato, a devastação é grande demais: líderes e partidos, de governo ou da oposição, parecem dissolver-se no ar, arruinados por denúncias às vezes imprevistas ou transformados em alvo de acusações que os tratam, respectivamente, como delinquentes ou “organizações criminosas” imprestáveis para o funcionamento de uma democracia normal.
Tendo em vista as prosaicas malas abarrotadas de dinheiro ou os sofisticados softwares de propina, não se pode dizer que se trata de calúnias saídas do nada. Mas o fato é que, ao lado do aspecto investigativo-judicial, é preciso voltar os olhos para toda a imensa crise de representação que assim se estabelece, dando ouvidos à assombração italiana dos anos 90 do século passado e à argentina da virada de século. A evolução política daqueles dois países é o que nos interessa de perto; judicialmente, respeitado o processo legal, que os mortos enterrem os mortos. De todo modo, não haverá muito a fazer se e quando condenados, sejam eles quem forem e seja qual for a narrativa persecutória que preferirem.
O impacto da Mãos Limpas na história italiana foi de tal monta que assinalou o ocaso da Primeira República, estruturada em torno de dois grandes partidos de massa, a Democracia Cristã e o Partido Comunista. O primeiro deles ainda tentaria reviver com o nome de seu longínquo antecessor, o Partido Popular, mas sem muito sucesso. E deixaria o campo da centro-direita livre para o surgimento fulminante de um personagem egresso do mundo dos negócios, Silvio Berlusconi, a seduzir cidadãos-consumidores, numa peculiar telecracia, com a retórica da antipolítica. Empresário, estaria comprometido só com a eficiência; rico, não precisaria valer-se da corrupção intrínseca à atividade política.
Em síntese extrema, o que levou à ruína a Democracia Cristã – e o Partido Socialista de Bettino Craxi, morto no exílio – foi a construção de um complexo sistema de poder, que excluía por definição a alternância. Impensável um partido comunista chefiar um governo nacional na Itália daquele tempo. Excluído do poder central e, portanto, só marginalmente atingido pelas investigações, o PCI, já mudado em partido de esquerda democrática, se lançara havia alguns anos em busca de uma identidade distinta da matriz bolchevique, busca evidentemente necessária para a formação de governos alternativos ao de Berlusconi.
Esta função cumprida pelos pós-comunistas italianos é algo que hoje nos falta à esquerda, se for verdade – do ponto de vista estritamente político – que o comportamento do petismo terá significado pelo menos o início da constituição de estruturas de poder avessas à alternância e voltadas para a cooptação bruta de aliados, chamados para ocupar predatoriamente, em posição subordinada, os lugares disponíveis em órgãos de Estado e empresas públicas. E esta falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos, penalizados que seremos pelas contradições e ambiguidades do lulismo e do petismo.
O fantasma argentino também traz sua mensagem para nós. Após a década neoliberal de Menem, uma das mais surpreendentes metamorfoses do peronismo, e do fracasso de seu sucessor “radical”, Fernando de la Rúa, as praças do país vizinho foram invadidas por intensos protestos populares. E até houve quem os tomasse, confundindo a nuvem com Juno, por um processo revolucionário à moda de Lenin, no qual uma eventual invasão da Casa Rosada significasse, quem sabe, a tomada do Palácio de Inverno.
Também aqui a antipolítica ressurgiu com virulência. O lema que se vayan todos, que no quede uno solo, condenatório de toda a “classe política”, correu mundo como expressão da vontade popular de fazer tábula rasa de representantes e instituições representativas. Alguns terão sonhado novamente com a “democracia direta”, a ser exercida nas praças, dispensando mediações e dando voz ao verdadeiro soberano. A ilusão de começar do zero, em meio à instabilidade provocada pela sucessão alucinante de governos brevíssimos, haveria de desembocar paradoxalmente na era Kirchner, manifestação desta feita do peronismo de esquerda, cujo apelo “nacional-popular” nem sempre, ou quase nunca, ocultou o desígnio de uma democracia iliberal e tendencialmente carente de contrapesos republicanos.
Pode ser que um terceiro fantasma tenha, agora, aparecido em nosso relato. Ambíguo, multiforme, o populismo será um espectro capaz de variadas encarnações e, por isso mesmo, de difícil apreensão conceitual. Há mesmo um bom argumento que rejeita seu uso por causa destas suas múltiplas figuras, que vão dos governantes “nacional-populares” da América Latina até Berlusconi ou mesmo Trump. O fato é que, em nossos dias, importantes teóricos voltaram a pôr em circulação a “razão populista”, que invariavelmente tenta desagregar, segundo a lógica feroz de amigos versus inimigos, o consenso em torno das instituições democráticas. O que diferenciaria o populismo progressista daquele reacionário seria a escolha atilada dos inimigos: as elites em vez dos imigrantes, por exemplo.
Em tempos difíceis, como os que temos vivido aqui e agora, o que se requer é uma esquerda que majoritariamente não pense só na afirmação de suas próprias razões, mas seja capaz de levar em conta o conjunto da sociedade, aceitando a espinhosa – e interminável – missão da persuasão permanente. E reconheça, por isso, que apostar na cisão simplória entre o povo e seus inimigos pode acarretar tragicamente “a ruína comum das classes em luta”. Como temos visto, construir esse tipo de esquerda não é nada fácil.
Mais em: www.gramsci.org
Rubens Barbosa: Profissão: político
A profissionalização gera crescentes riscos para o exercício dos mandatos
O episódio lamentável da ocupação da Mesa Diretora do Senado – que serviu até de mesa de almoço – por senadoras que se opunham à aprovação da reforma trabalhista, contra todos os princípios de comportamento parlamentar, levou-me a reflexão sobre a atuação dos políticos na sociedade brasileira. Certamente, as nobres senadoras desconhecem uma das regras básicas na política, recomendada pelo cardeal Mazarino, homem público contemporâneo de Luís XIV, em seu Breviário dos Políticos, segundo a qual “é perigoso ser muito duro nas ações políticas”. A arte da política, como ensinou Maquiavel, consiste em organizar e superar as divergências entre partidos e pessoas, sem o que reinarão o conflito e a anarquia.
Max Weber, sociólogo alemão, assinalou que os políticos vivem “de” e “para” a política e que ela é não só uma vocação, mas também uma profissão. Uma vez entrando na política, são raros os que dela se afastam. Essa situação não existia na democracia ateniense. A regra era o sorteio, e não a eleição dos cidadãos, havia uma rotação de funções e as responsabilidades passavam de um cidadão para outro. Em alguns países essa situação ainda existe. Na Suécia, por exemplo, a renovação é de 40% e muitos dos que entram para a política depois retornam a suas atividades privadas.
Voltando para a nossa triste realidade, não surpreende que nas pesquisas de opinião pública aqui realizadas nos últimos anos seja justamente a classe política o grupo menos considerado pela sociedade. Há uma crise de representatividade. O grito das ruas é eloquente: “Eles não me representam”.
Como explicar o comportamento anárquico, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, durante as discussões e votações de matérias de grande interesse para cada cidadão e para o País, por serem reformas modernizadoras que vão permitir ao Brasil acompanhar as tendências num mundo em fase de grandes mudanças?
A política no Brasil virou profissão no mau sentido. Na França o novo presidente, Emmanuel Macron, classificou a política como um “negócio de profissionais convictos”. Pelo que estamos vendo nos fatos apurados na Operação Lava Jato, a palavra negócio ganha uma atualidade impressionante.
No Brasil, é difícil reconhecer na maioria dos políticos as três qualidade do homem público lembradas por Max Weber: paixão, no sentido próprio de realizar; sentimento de responsabilidade, cuja ausência os leva a só gozar o poder pelo poder, sem nenhum propósito positivo; e senso de proporção, a qualidade psicológica fundamental do político.
A profissionalização da política causa crescentes riscos ao exercício de mandatos, seja no Executivo, seja no Legislativo. A defesa das prioridades partidárias e de seus próprios interesses leva os políticos em geral a atuar deixando de lado o interesse nacional e o bem comum. De forma crescente, os interesses corporativos passam a dominar os objetivos da classe política, como temos podido observar nos últimos tempos. Além disso, com o crescimento da economia o Brasil mudou de escala e as oportunidades de negócios se tornaram muito atraentes, como vimos nos escândalos da Petrobrás. Regras instáveis para as eleições, para o financiamento das campanhas, para a criação e o funcionamento dos partidos, entre outros aspectos, levam à confusão entre o público e o privado e à defesa de interesses pouco republicanos. Aumenta o fosso entre o governante e o governado, cai o nível cultural e instala-se a corrupção.
Como justificar a permanência na vida política por tanto tempo? Muitos apontam para a complexidade das matérias em pauta e a necessidade de conhecimentos jurídicos, econômicos e outros que facilitariam a discussão de temas especializados. Historicamente, a política iniciou-se como uma atividade reservada à chamada elite rural e urbana e houve momentos em que só participavam dela os alfabetizados e os que tinham certo nível de renda. A democratização da vida política foi muito positiva, mas provocou distorções que hoje afastam muitas vocações da militância partidária e abre espaço para políticos que roubam para o partido, como assinalou o juiz Sergio Moro. Há um apego aos mandatos porque a profissão política oferece vantagem material e retribuição simbólica (sem falar narcisista) de grandeza, autoestima, capacidade de sedução e do “sabe com quem está falando”... O índice de renovação nas eleições proporcionais para o Congresso é muito baixo, embora esteja crescendo (43% no último pleito). A longa presença dos políticos na vida pública, com sucessivos mandatos (há mais de 15 deputados com mais de seis mandatos e alguns com mais de 30 anos na Câmara), torna-se regra, agora ampliada pela eleição de membros da mesma família (mulheres, filhos e outros parentes).
A França, depois a última eleição presidencial, está discutindo reformas institucionais que merecem ser acompanhadas pelos que se interessam pelo aperfeiçoamento dos costumes políticos. Macron propôs na campanha ampla reforma institucional. Eleito chefe de Estado, propôs algumas medidas visando a reduzir a acumulação de cargos: os parlamentares não podem exercer mandato nas Casas do Congresso e ao mesmo tempo ser nomeados para cargos no Executivo. Em discurso perante os parlamentares, ousou propor a redução do número de deputados e senadores em um terço e a reeleição a, no máximo, três mandatos. Se os políticos não aprovarem essas medidas, anunciou que vai convocar referendo para que o povo decida.
Eis uma agenda política que, se aplicada no Brasil, mudaria o cenário nacional e melhoraria a percepção dos eleitores quanto à representatividade e à importância da renovação política. Procura-se candidato, com coragem, para enfrentar esse desafio na eleição de 2018.
*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior
Marco Aurélio Nogueira: O País possível
Se nada acontecer de substantivo no próximo ano e meio, as eleições de pouco servirão
Conforme o roteiro estabelecido, em outubro de 2018 será eleito um novo presidente, recomposto o Congresso Nacional e alterada a chefia dos governos estaduais. Há uma expectativa de que, então, se iniciará a superação da crise que hoje ameaça derreter a República. Será isso mesmo?
Olhemos para Brasília. Deputados dedicam-se a encontrar brechas para se reeleger. Querem escapar da Justiça e do repúdio dos eleitores e estão dispostos a pagar o preço necessário para conseguir isso. Inventam dispositivos para que candidatos não possam ser presos e para que os partidos sejam regiamente financiados. Não ligam se os remendos que idealizam ferem a dignidade republicana e andam de costas para o que pensam os cidadãos. Acreditam que ao fim e ao cabo conseguirão mais uma vez iludi-los.
Os candidatos presidenciais até agora anunciados, por sua vez, expressam os descaminhos que temos trilhado. São corresponsáveis pelo nível a que chegamos. Não trazem qualquer esboço de novidade, nem sequer na retórica. De Lula a Bolsonaro, passando por Ciro Gomes, Alckmin e Doria, temos mais do mesmo, uma política que insiste em não se renovar.
Falam uma língua que compreendemos, mas que nada diz. O País que nos apresentam é uma ficção que estaria ao alcance das mãos de quem tem “vontade política”.
Lula enche a boca ao falar do seu “projeto político”, mas não o apresenta a não ser como desejo incontido de voltar ao poder, nele acampar para fugir de Moro e fazer as mesmas coisas de sempre. Ciro segue caminho quase idêntico, impulsionado pela boca gulosa, pronta para lacerar os adversários, mas carrega no peito aquela faixa surrada do nacionalismo populista que tanto estrago já causou. Bolsonaro é um caso singular, tamanhas são as aberrações que nele se incrustam: oferece um roteiro teratológico, a meio caminho entre o militarismo autoritário, a ditadura política e o ódio contra minorias, tudo devidamente temperado pela grosseria e pelo horror à política, à democracia, à representação. Já os postulantes tucanos não se preocupam em ir além de um antipetismo visceral, na vã expectativa de que isso mobilize o eleitorado.
Enquanto esses candidatos preparam suas campanhas, a sociedade segue para o precipício. Expõe ao mundo suas vísceras envenenadas, suas chagas históricas, que vão da desigualdade abismal à violência cotidiana, da corrupção pública aos assassinatos por balas perdidas, do despreparo das forças policiais à insanidade das facções criminosas. São índios e ambientalistas dizimados, 50 mil jovens assassinados por ano, crimes aos montes, cidades inseguras, um desencanto que corrói a alma do cidadão, encurralado por processos que não consegue controlar.
Ficamos olhando para as urnas de 2018, como se delas pudesse sair, por encanto, um País pronto e acabado.
Eleições diretas não deveriam ser desperdiçadas. Não podem ser vividas como um episódio a mais de nossa série preferida. Precisam ser preparadas para que representem um avanço. Se nada acontecer de substantivo no próximo ano e meio, porém, elas de pouco servirão, não trarão nenhuma visão de futuro, nenhum entusiasmo cívico. Serão arranca-rabos entre candidatos conhecidos, com estratégias de marketing e campanhas negativas que já vimos para onde nos podem levar.
O nosso é um macroproblema. Não são somente os políticos ou os partidos, tomados em conjunto ou isoladamente. É o sistema todo que apodreceu, corroído pela desqualificação dos quadros e pela corrupção, que corre nas veias aos borbotões. Faltam honestidade e caráter, mas falta também uma visão estruturada sobre o que fazer. É falsa a ideia de que sabemos quais são as prioridades nacionais e que caminhos nos permitirão alcançá-las. Há um déficit brutal de consenso. O legado dos ciclos políticos mais recentes, desse ponto de vista, é trágico.
Não precisamos de mais disputas por cargos, verbas e recursos de poder. Ainda dá tempo de se chegar a um plano que defina prioridades, reformas, estratégias de desenvolvimento e projete a sério um sistema de educação, de saúde, de habitação, de infraestrutura, de ciência e tecnologia. O que houver de energia e discernimento nos partidos, na sociedade civil, nos movimentos sociais precisaria convergir para um ponto mínimo de unidade, a partir do qual possam ser forjadas ideias consistentes, distantes do malabarismo marqueteiro, da demagogia populista e do radicalismo estéril. Ideias que atualizem o País ao mundo, promovam sua interação ativa com a nova sociedade que emerge.
Sem isso, tanto faz saber em quem vamos votar em 2018.
Presidentes são pessoas. Podem pouco. O segredo está nas articulações que os patrocinam e sustentam; está no pacto que podem coordenar, na “teoria social” em que se apoiarem. Mais importantes do que eles são o programa de ação que se dispuserem a cumprir, os representantes parlamentares que com eles governarem, as ideias que os orientarão.
Em vez de ficarmos perdendo tempo para ver se Lula será ou não candidato, se o PSDB virá com Alckmin ou Doria, se Bolsonaro conseguirá encarnar finalmente o Lord Voldemort que carrega no bolso, se a súcia parlamentar será finalmente afastada, o certo seria trabalharmos para projetar o País que queremos. Que não será o País da esquerda, do centro ou da direita que estão aí, porque essas posições nem sequer honram o nome que buscam carregar, ao menos até agora. Na melhor das hipóteses, será um País possível, melhor que o atual.
Ainda dá tempo. Arquivemos o maximalismo que transfere a um presidente “mágico” o poder de reformular tudo. Pensemos no passo a passo, a ser lapidado pela política com um “p” maior, que faça os representantes pensarem mais no coletivo que em seus próprios interesses. Valorizemos a política, não só para termos eleições mais limpas e frutuosas, mas para que nos encontremos com o País em que queremos viver.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Pedro S. Malan: Entre o inconcebível e o inevitável
O Estado brasileiro tem de ser repensado e e reinventado, sem maniqueísmos e ilusões
Em discurso para a militância, na presença de Dilma, durante a campanha eleitoral de 2014, Lula disse que já se imaginava, em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de independência, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistado “nos últimos 20 anos”. Assim abri artigo neste espaço (14/12/2014), que continuava: “É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos – quer se realizem, quer não”.
Notei no artigo anterior que antes de chegar às eleições de 2022 haveria, óbvio, que passar por 2018. E que não seria fácil explicar então as conquistas dos “últimos 16 anos”, como se fossem um coerente e singular período passível de ser entendido como um todo, como a marquetagem política tentou na eleição de 2014, com o discurso dos “últimos 12 anos”. Por quê? “Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1 diferente de Lula 2; e Dilma 2 será diferente de Dilma 1 – e o mais difícil dos quatro quadriênios. Quem viver verá. Ou já está vendo”, escrevi em dezembro de 2014.
Mas muito antes disso já tinha notado que a política econômica de Dilma 1 trazia seu prazo de validade (outubro de 2014) estampado no rótulo e que teria de ser mudada – qualquer que fosse o resultado das urnas.
Volto ao tema do infindável diálogo entre passado e futuro, instigado pelo discurso do ex-presidente Lula na cerimônia de posse dos novos membros do Diretório Nacional do PT, nesta última semana.
Na ocasião Lula teria dito: “Pensávamos o Brasil para 2022, mas não conseguimos construir o nosso projeto... Tudo que construímos, o direito de greve, as conquistas sociais no trabalho, eles estão desmontando... Não podemos aceitar que façam o ajuste em cima daqueles que são as maiores vítimas dos erros do governo, os trabalhadores... Agora eles estão desmontando o nosso país”. Era, por suposto, um discurso para animar a militância ali reunida. Mas Lula é hoje maior que o PT, assumidamente o candidato do partido à Presidência da República em 2018 – e o único do partido em condições de disputar com alguma chance de vitória.
Como já se escreveu, as próximas eleições serão a oitava campanha presidencial de Lula, quer seu nome esteja na urna eletrônica, quer não. Das sete campanhas anteriores, como se sabe, Lula disputou cinco diretamente (perdeu três e ganhou duas, em ambas teve de ir ao segundo turno) e duas por interposta pessoa. Os termos em que definirá sua participação no debate eleitoral não são irrelevantes para a definição do clima geral da campanha e para o real esclarecimento dos desafios a enfrentar de agora até 2018 – e adiante.
Por exemplo, o plenário do Senado deverá votar nos próximos dias a reforma trabalhista, já aprovada pela Câmara. Em artigo publicado neste jornal (Incluindo os excluídos, 4/7), José Marcio Camargo mostrou que (em 2015), dentre os 40% dos trabalhadores que recebem os menores salários, 50% estavam na informalidade e 20% desempregados. A CLT portanto regia apenas 30% dos contratos de trabalho. Por outro lado, dos 20% mais ricos da distribuição de salários, 80% tinham contratos de trabalho regidos pela CLT. A reforma ora em discussão permitiria incluir parte dos excluídos, em particular em setores nos quais a demanda é instável e intermitente. Mulheres (com taxa de desemprego 40% maior que a dos homens) e jovens de 18 a 24 anos (28% de desemprego) seriam beneficiados. Outros podem, legitimamente, discordar. O tempo dirá.
Sobre a divisão “nós x eles”: o Brasil é um país extraordinário em sua rica diversidade e enorme potencial, mas complexo de entender e difícil de administrar, como logo se dão conta aqueles que se propõem a fazê-lo. Não prestam muito serviço ao País aqueles que o dividem de maneira simplória e maniqueísta entre um vago “nós” e um não menos vago “eles”, recurso retórico destinado a incendiar a militância em discursos de palanque.
Mas que não contribuem em nada para a elevação da qualidade do debate e o entendimento da opinião pública em geral, tratando-a como se ela fosse portadora de uma doença infantil que só entenderia escolhas binárias, do tipo “só existem duas posições sobre qualquer assunto, a nossa e a deles”. O mundo e o Brasil são muito, muito mais complicados.
Toda sociedade precisa ter alguma consciência social de seu passado, algum entendimento do presente como História e um mínimo de senso de perspectiva, além de conviver com a inevitável competição entre narrativas sobre como e por que chegamos à situação atual. Mesmo quando sabemos que o que realmente importa é sempre o incerto futuro – e que a História nunca se repete, mas por vezes rima, com frequência ensina e, de quando em vez, a muitos desatina.
Como escreveu Larry Summers em trabalho recente: “É preciso estar preparado para observar longas cadeias de causas e consequências... pensar e debater sobre um problema, considerar propostas para sua solução não significa que o problema será rapidamente resolvido. Mas o debate afeta o clima de opiniões e as coisas podem evoluir da condição de inconcebíveis para a condição de inevitáveis”.
É o processo pelo qual o Brasil vem passando – e terá de continuar a fazê-lo. A reforma da Previdência, por exemplo, é inevitável: terá de ser feita, talvez em mais de uma etapa, a custos maiores. O próximo governo terá de enfrentar reformas na área tributária. É inevitável repensar e reinventar o Estado brasileiro. Sem maniqueísmos, sem ilusões. Sem busca de atalhos, sabendo que não é fácil lidar com interesses corporativos longamente constituídos.
Mas o País não tem alternativa se deseja crescer de forma sustentada a taxas mais elevadas, com justiça social, estabilidade macroeconômica e menos ineficiência em seu setor público. Não é fácil. Nunca foi. Nunca será.
* Pedro Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
Murillo de Aragão: A renovação política nas Eleições 2018
Caminho para alavancar uma candidatura não alinhada com o antigo será o das redes sociais
Uma das perguntas mais recorrentes em minhas palestras é como e se o novo prevalecerá nas eleições de 2018. A pergunta parte do pressuposto de que existe um notável sentimento antipolítico na sociedade e que, a partir dessa constatação, seria mais do que natural uma grande renovação do sistema político.
No entanto, existem condições muito duras para que o novo prevaleça. A primeira barreira para a disseminação do novo, que chamarei de novos entrantes, são as regras atuais. O marco regulatório das eleições estabelece regras para a distribuição de fundos partidários e para o uso de tempo de televisão. Ambas são críticas para a campanha eleitoral e estabelecem uma situação de privilégio para as estruturas partidárias tradicionais.
Grandes partidos ganham mais verbas, mais tempo de televisão e, na maioria das vezes, mais prefeituras. Ora, numa competição em que haverá escassez de recursos – pela ausência de financiamento empresarial e pela debilidade das doações individuais – o maior financiador da campanha será o Fundo Partidário.
Sabendo disso, o relator da minirreforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido, está prevendo uma verba de R$ 3 bilhões para os partidos. Ainda que tamanha indecência não seja aprovada, grandes partidos continuarão a ser fortes financiadores da campanha eleitoral.
Apenas no primeiro trimestre deste ano o PT recebeu mais de R$ 23 milhões do fundo. Já legendas como o Partido Novo, que não tem nenhum deputado federal, recebeu pouco mais de R$ 300 mil. Ou seja, o sistema privilegia quem está no poder.
Outro fator crítico é a máquina pública. Somente o PMDB tem mais de mil prefeitos eleitos no Brasil. O PSDB tem pouco mais de 700. Entre os novos partidos, somente o PSD tem desempenho importante: 539 prefeituras.
Existem duas saídas para os novos entrantes: aliar-se às estruturas tradicionais ou buscar caminhos completamente inovadores. A fórmula novo-antigo foi testada com sucesso em São Paulo com João Doria. Com um discurso novo, uma campanha inovadora e uma estrutura partidária tradicional e poderosa venceu com certa facilidade. No Rio de Janeiro, a dupla finalista na disputa pela capital apresentou comportamento semelhante. Marcelo Crivella e Marcelo Freixo disputaram apresentando-se como o novo, ainda que os dois não representem nada de novo em termos políticos.
Faltando pouco mais de um ano para as eleições gerais, o sentimento antipolítico não se organizou para se expressar de forma competitiva. As especulações abrangem poucos nomes que poderiam aglutinar a sociedade em torno de um projeto político alternativo. Fala-se de Joaquim Barbosa, Luciano Huck e até mesmo de Sergio Moro. Porém como torná-los competitivos?
A resposta está no trinômio participação-mobilização-redes sociais. Os críticos do sistema político devem transformar sua crítica em participação e a participação em mobilização. Sem uma tomada de posição o sistema continuará mais ou menos como está – mudando pouco para não ter de mudar muito.
Pesquisa recente do Ibope aponta que pela primeira vez eleitores consideram a internet o maior influenciador para eleger um presidente da República. Ainda que o resultado seja apertado em relação à televisão, as mídias virtuais estão em ascensão, conforme pondera José Roberto Toledo (Estado, 12/6). Destaca-se, ainda, o fato de a internet ser fundamental para os eleitores jovens.
Dados do Facebook indicam que 45% da população brasileira acessa a rede social mensalmente. Seriam mais de 92 milhões de brasileiros acessando regularmente as redes. O Instagram tinha 35 milhões de usuários no Brasil em 2016. E o aplicativo de mensagens Whats-App já é utilizado por mais de 120 milhões de brasileiros!
Nos Estados Unidos, na eleição de Donald Trump, segundo seus estrategistas, a vitória se confirmou com a opção de privilegiar as redes sociais, em detrimento da mídia tradicional. Na França, Emmanuel Macron abandonou um partido tradicional, organizou um movimento e usou as redes para alavancar a campanha.
Considerando que as redes sociais assumem papel preponderante na formação da opinião política, pela primeira vez na História do Brasil poderemos ter eleições nas quais as estruturas tradicionais podem não ser decisivas para o resultado final. Em especial se um novo entrante chegar ao segundo turno, em que o tempo de televisão destinado à propaganda eleitoral gratuita é igual para os dois concorrentes.
Poderemos ter um fenômeno Macron no Brasil? Sim e não. Para responder afirmativamente à questão volto às duas peças iniciais do trinômio que propus. Sem participação e mobilização nada de novo acontecerá. A indignação com a política será estéril. Ficará nas intenções vagas de sempre. Porém, se a sociedade civil se mobilizar em torno de um projeto que seja aglutinador e expresse uma nova forma de fazer política, tudo pode mudar. E o caminho para alavancar uma candidatura que não esteja alinhada com o antigo será as redes sociais.
A conjunção de fragilidade financeira das campanhas – sem as doações empresariais – com desmoralização do mundo político e a emergência das redes sociais pode proporcionar uma surpresa eleitoral que ainda não tem cara nem nome. No entanto, justamente por não ter nome é que o tradicional pode prevalecer. Outro fator importante é que a indignação com a política ainda não se traduziu em participação e mobilização. O tempo está passando. Nem a política tradicional dá sinais de querer renovar-se nem os novos entrantes ainda dão sinais de querer, efetivamente, participar.
*Advogado, consultor e jornalista, é mestre em ciência política e doutor em sociologia pela universidade de brasília
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-renovacao-politica-em-2018,70001875569
Luiz Werneck Vianna: A política não é jogo de azar
Os alardeados arquitetos do futuro não se dão conta do terreno em que pisam
A bordo de uma embarcação precária estamos em pleno mar com tripulantes e passageiros surdos aos avisos dos perigos que correm por navegarem sem atinar com os rumos a seguir. Cada qual aferrado a seus interesses particulares sinaliza um caminho: sem forças próprias à mão há os que confiam na sorte e clamam pela eleição direta para a Presidência, remédio heroico inconstitucional e de resultados sabidamente aleatórios; outros, com as virtudes da prudência, recomendam a singela travessia de uma pinguela ainda à disposição.
Vozes dissonantes sugerem o recurso ao clamor popular a fim de obrigar a renúncia da tripulação, embora o som ao redor não aparente estimular os que recorrem a essa solução. Mas nestes tempos estranhos que vivemos se faz ouvir em alto e bom som o grito de guerra salvacionista: fiat iustitia, pereat mundus. O nó górdio que nos ata deveria ser cortado de imediato por decisão judicial, a cabeça presidencial exibida como o bode expiatório que nos expurgaria dos nossos males.
As soluções engenhadas nessa alquimia hermenêutica a que estamos sujeitos encontram, como no poema, uma pedra no seu caminho, o Estado Democrático de Direito e a Carta Constitucional que o institui. No caso, a denúncia a ser apresentada por presumidas ilicitudes contra o presidente da República demanda, conforme a lei, sua aprovação por dois terços de votos na Câmara dos Deputados, inviável, segundo consta, diante da correlação de forças políticas vigente.
Mas há quem sustente que os objetivos maiores de salvação nacional não deveriam recuar diante de questiúnculas formais – conservadores empedernidos ousam falar sem enrubescer a linguagem das revoluções. Que se mude de afogadilho a Constituição para se instituírem de um só golpe as diretas já – há juristas para isso? – se esse for o preço a ser pago pela cabeça do presidente. A ser sucedido por quem, mesmo?
A política virou jogo de azar e diante da roleta se aposta com audácia contra a banca, como se a invocação do grande número – a multidão ainda em silêncio obsequioso – tivesse o condão de fazer a roda do destino favorecer os desejos recônditos dos apostadores. Não se flerta impunemente com as revoluções. As paixões das multidões podem ser desencadeadas por intervenções messiânicas de setores da elite do Judiciário em aliança com a mídia hegemônica, mas é preciso viver no mundo da lua para cogitar, no caso de elas irromperem na cena pública de modo generalizado, de que seriam apaziguadas num passe de mágica com a mera higienização do sistema político. As jornadas de junho de 2013, que conheceram seu momento de fúria, quando apresentaram sua conta não havia quem pudesse pagá-la. A conta de agora pode ser muito maior.
Os alardeados arquitetos do futuro não se dão conta do terreno em que pisam e, definitivamente, o Brasil não é um país para principiantes, em particular para aqueles jejunos em matéria política e que dela só conhecem o que se passa no círculo fechado das corporações. Com efeito, somos aqui refratários à linha reta, amigos do barroco, onde temos fixado boa parte de nossas raízes. Sobretudo, não somos, para o bem e para o mal, filhos da Reforma. Não tememos os ziguezagues, nosso Estado-nação foi criado em nome do liberalismo político e dos ideais da civilização, mas preservou instrumentalmente a escravidão, fizemos a revolução burguesa sem revolução, nos moldes das revoluções passivas, e realizamos uma potente obra de modernização econômica e social sem remover as estruturas patrimonialistas do Estado, que, aliás, também foram instrumentais a ela.
No processo constituinte que conduziu a promulgação da Carta de 88, realizado ainda no curso de uma difícil transição do regime autoritário para a democracia política – vale dizer, sem ruptura com a ordem anterior –, essa história errática foi a matéria-prima com que o legislador teve de se confrontar nos seus pontos mais sensíveis. A questão agrária foi um deles, frustrando-se as tentativas de democratização da propriedade da terra com ameaças de resistência armada por parte de grandes proprietários. A questão sindical não teve melhor sorte, constitucionalizando-se mais uma vez, tal como ocorrera na Carta de 1946, o cerne da legislação do Estado Novo, com o expurgo de sua ganga autoritária.
O gênio do legislador constituinte foi o de continuar descontinuando, democratizando o que lhe foi acessível numa arriscada circunstância de transição. Compensou, no entanto, sua atitude prudencial em alguns temas com uma arrojada legislação em matéria de direitos civis e sociais, criando novos institutos, entre os quais o Ministério Público, destinados a ser lugares de concretização dos direitos que estatuiu, alguns deles facultados à intervenção da sociedade civil para a defesa ou mesmo a aquisição de direitos. Ao estilo de uma obra aberta, o constituinte confiou à sociedade a materialização, ao longo do tempo, do espírito que a animou.
A Operação Lava Jato, herdeira da Carta que criou esse Ministério Público que aí está, não deixa de exercer, em surdina, “papéis constituintes” quanto ao sistema político, dimensão que, em face do clima libertário dos anos 1980, foi negligenciada. Nesse sentido, tem sido muito bem-sucedida, embora, ao contrário do legislador constituinte, que se manteve atento ao realismo político, arrisque temerariamente comprometer sua obra pelo comportamento de “apóstolos iluminados” de alguns dos seus quadros que, visando a passar nossa História a limpo, não temem jogar fora o bebê com a água do banho – no caso, o bebê é a política e a Constituição.
O filósofo Roberto Romano, em Sobre golpes e Lava Jato, luminoso artigo publicado nesta página em 18 de junho, identificou os efeitos nefastos do uso da lei como recurso tático em nome da salvação pública. Eis aí o caminho aberto para um Estado de exceção.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-RIO
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-politica-nao-e-jogo-de-azar,70001873316