ESCRAVIDÃO
Consciência Negra: conheça nomes que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil
Aline Brito*, Correio Braziliense
Neste domingo (20/11) é comemorado o Dia da Consciência Negra. A data, que surgiu como uma forma de refletir sobre o valor e contribuição da comunidade negra para o Brasil, tem o papel de jogar luz sobre a resistência do povo negro e dar maior visibilidade à busca por igualdade, por direitos, e contra o racismo. Para entender o que envolve o movimento negro da atualidade, é necessário fazer um resgate histórico e falar sobre as raízes que envolvem essa luta.
O povo negro tem uma trajetória que começou muito antes da escravização, sendo alicerçada em território africano e formada por reis, rainhas, guerreiros e guerreiras de tribos que ali viviam. No Brasil, antes da chegada dos portugueses, estudos arqueológicos mostram que os primeiros habitantes eram indígenas. A chegada dos negros em solo brasileiro se confunde com a escravidão, uma vez que eles eram traficados da África para trabalharem, de forma forçada e desumana, para o império e os poderosos coloniais.
A escravidão no país começou por volta de 1530, quando os portugueses implantaram base no Brasil e, consequentemente, surgiram demandas de mão de obra. Os primeiros escravizados foram os indígenas, mas acabaram sendo substituídos pelos negros — estima-se que cerca de 4,8 milhões de africanos foram traficados para o Brasil durante todo o período que durou a escravidão.
Desde o início, essa exploração violenta da força de trabalho foi marcada pela resistência dos negros. “Essas pessoas são apagadas da história para que seja perpetuada a história branca e todos os privilégios que ela representa na sociedade. Conhecimento é poder, imagina se a população negra, que é maioria da população, mas não em espaços de poder e decisão, começa a conhecer a verdadeira história? Com certeza terão mais reivindicações, para ocupar, cada vez mais, espaços nos quais o povo negro não chega de forma proporcional. E não chega não por falta de vontade, inteligência ou talento, e sim por causa das barreiras impostas pelo racismo estrutural”, explica Luiza Mandela, mestra em Relações Étnico-Raciais.
“Não veio do céu, nem das mãos de Isabel”
Ao longo dos mais de 300 anos de exploração dos africanos no Brasil, os escravos se organizaram, de diversas formas, para resistir à escravidão e tentar fugir das senzalas. Uma personalidade muito conhecida por lutar pela libertação do povo contra o sistema escravista é Zumbi dos Palmares, um grande exemplo da batalha travada na época.
Zumbi foi líder do Quilombo dos Palmares, uma comunidade formada por escravos negros que fugiam de fazendas, prisões e senzalas. O quilombo surgiu por volta de 1580 e, em pouco tempo, se tornou o maior do período colonial, ocupando uma área equivalente ao tamanho de Portugal e com mais de 30 mil habitantes.
Apesar do Dia da Consciência Negra ser na data que marca a morte de Zumbi, uma forma de homenagem e também de garantir que a história de resistência do povo negro não seja esquecida, antes dele outros guerreiros como Ganga Zumba, primeiro líder do Quilombo dos Palmares, foram cruciais para o percurso que resultou na abolição da escravatura. Depois dele, também tiveram outros nomes tão importantes quanto, mas que não são lembrados em livros de história ou estudados dentro de salas de aula.
“A invisibilização da história negra causa impactos na construção da identidade e da subjetividade das pessoas negras. Essas pessoas crescem não se vendo de forma positiva, acreditando que não têm uma história, se achando inferiores, incapazes. Essa narrativa, que favorece a história eurocêntrica, afeta a saúde mental da população preta. Crescemos não gostando de nós mesmos por acreditarmos que não somos potentes, não temos história, nem identidade e, com isso, somos adoecidos e precisamos recorrer a tratamentos terapêuticos, psiquiátricos. E sabemos que nem todas as pessoas negras têm acesso a esses serviços”, esclarece Mandela.
De acordo com a especialista, é necessário que a população conheça a história do povo negro, para que seja descentralizada a visão eurocêntrica do Brasil, afinal, assim como mostrou o samba-enredo da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, campeã do carnaval carioca de 2019, a liberdade dos escravos “não veio do céu, nem das mãos das mãos de Isabel”.
“Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar. Na luta é que a gente se encontra [...] Brasil, o teu nome é Dandara e a tua cara é de cariri [...] Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo. Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês ”, diz a canção Histórias Para Ninar Gente Grande.
Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial Isabel do Brasil assinou a Lei Áurea e decretou o fim da escravidão no Brasil. No ensino básico regular, livros de história e até no imaginário de muitos brasileiros, ela foi a “salvadora” dos escravos, mas, a verdade, é que a abolição da escravatura não foi uma benfeitoria dos regentes do país na época, e sim resultado da pressão popular e do crescimento do movimento abolicionista.
Como cantou a Mangueira na maior festa popular do Brasil, no carnaval de 2019, a “liberdade é um dragão no mar de Aracati”. Nomes como Luís Gama, Luísa Mahin, José do Patrocínio, André Rebouças, Cosme Bento, Francisco José do Nascimento, José Luis Napoleão, Quintino de Lacerda, Aqualtune, Tereza de Benguela, entre muitos outros, foram negros, escravos ou filhos de escravos que, ao longo do tempo, tiveram expressiva participação no movimento que, verdadeiramente, contribuiu para a extinção da escravidão.
“O resgate da história de Dragão do Mar, José Luís Napoleão, José do Patrocínio, Luísa Mahin, Maria Felipa entre outras personalidades é de fundamental importância para que seja trazida a narrativa da luta negra , da construção da identidade positiva das crianças negras, e respeito às diferenças e a cultura afro brasileira e africana. Romper com o epistemicídio também faz parte da luta contra o racismo” afirma a professora Luiza Mandela.
Conheça personalidades importantes na luta pela liberdade do povo negro
Aqualtune
Aqualtune é uma das mais antigas líderes negras no Brasil e um dos maiores símbolos da batalha pela liberdade negra do regime escravocrata. Não se tem muitos registros que contam a história dela, nem se sabe exatamente onde nasceu e quem são seus pais, mas indícios históricos sugerem que ela teria nascido no século XVI (por volta de 1600), no Congo, na África Central, e teria uma linhagem real, sendo, possivelmente, filha de um rei do Congo.
A princesa Aqualtune foi uma guerreira africana que liderou cerca de 10 mil homens guerreiros que lutaram na Batalha de Ambuíla, contra o reino de Portugal, em 1665. O reino do Congo perdeu a guerra e, com isso, Aqualtune foi capturada e traficada para a então América Portuguesa, onde hoje fica o nordeste brasileiro.
Ao chegar no Brasil, a princesa congolesa foi escravizada e levada para uma fazenda localizada no atual estado de Alagoas, onde foi estuprada pelos donos da terra e colocada junto aos outros escravos. No local, Aqualtune ouviu falar sobre a resistência negra que estava em curso no país, liderada por quilombos, e se junto a outros negros que, mais tarde, conseguiriam fugir da fazenda onde eram explorados.
Detentora de grandes conhecimentos políticos, organizacionais e de estratégia de guerra, Aqualtune foi fundamental para a consolidação da República de Palmares. Ela se tornou líder quilombola à frente de uma das moradias do Quilombo dos Palmares, se tornando mãe de Ganga Zumba, primeiro líder desse quilombo e mãe de Sabia, que, mais tarde, daria à luz a Zumbi dos Palmares.
Portanto, Aqualtune foi avó de Zumbi e, de acordo com alguns historiadores, teria morrido em 1677, durante um incêndio provocado por invasores do Quilombo dos Palmares. Apesar de ser pouco lembrada pelos livros e escolas brasileiras — que costumam citar apenas Zumbi dos Palmares como o principal líder negro da época —, a princesa do Congo foi uma figura muito importante para a história da população negra durante o Período Colonial e passou a ser símbolo de liderança e resistência contra a opressão da comunidade negra e uma personagem importante de luta das mulheres negras.
Tereza de Benguela
Assim como sugere seu nome, Tereza de Benguela teria nascido por volta de 1700, em Benguela, uma cidade em Angola, na África. Foi uma líder quilombola trazida como escrava para o Brasil e liderou o Quilombo do Piolho, localizado no atual estado do Mato Grosso.
Tereza, assim como outros inúmeros escravos do Brasil Colônia, fugiu da senzala onde era escravizada e, junto com o marido, José Piolho, se abrigou no quilombo que foi o maior de Mato Grosso. Historiadores acreditam que José tenha chefiado o Quilombo do Piolho até o início de 1750, quando foi assassinado.
Depois da morte do marido, até cerca de 1770, Tereza foi a rainha do quilombo e, sob seu comando, a comunidade negra da região resistiu à escravidão durante duas décadas. Do local, a chamada Rainha Tereza coordenou a comunidade que vivia do plantio e comandou a estrutura política e econômica do grupo. Ela também criou um sistema de defesa com armas, que contribuiu para a proteção do quilombo e resistência à escravidão.
Tereza morreu por volta de 1770. Em sua homenagem, foi criado o Dia Nacional de Tereza de Benguela, comemorado em 25 de julho. Essa mesma data é dedicada ao Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. A mulher escravizada que virou rainha é um ícone da resistência negra no país e heroína do movimento de mulheres negras.
Nã Agontimé
Nascida no reino do Daomé no século XVIII, onde hoje fica Benim, na África, Nã Agontimé foi uma rainha africana, esposa do rei Agonglo. Após a morte do marido, a estabilidade do reino ficou abalada e um de dos filhos dela, Adandozan, tomou o trono, mesmo que o próximo rei, de acordo com as vontade de Agonglo, deveria ser o filho de Agontimé, o Gakpe.
Tremendo reação negativa à traição que cometeu, Adandozan, conhecido por ser um homem cruel, vende a madrasta, Agontimé, como escrava. Depois disso, o paradeiro da rainha se perdeu, já que o novo rei ordenou aos compradores de escravos que ela fosse rebatizada, justamente para que ninguém a encontrasse.
Por falta de registros históricos, não se sabe ao certo onde Agontimé viveu no Brasil, nem por quanto tempo. O rastro da rainha ficou perdido durante anos, até que, em 1948, um pesquisador francês Pierre Fatumbi Verger descobre vestígios de que ela conseguiu uma carta de alforria e foi uma das fundadoras da Casa da Minas em São Luiz do Maranhão.
No Brasil, Agontimé foi rebatizada como Maria Jesuína e foi pioneira na disseminação da religião de matriz africana em território brasileiro. A rainha criou o culto de tradição Ewe-Fon no país, cultuado na Casa da Minas, que, em africano, carrega o nome de Querebentã de Zomadonu e significa “Casa grande de Zomadonu”, em referência ao vodun protetor de Maria Jesuína.
Assim, o Maranhão é o único lugar das Américas onde se encontraram cultos às divindades ancestrais da realeza do Daomé, lugar onde nasceu Agontimé. Além disso, a Casa da Minas é o primeiro templo de tambor do Maranhão e serviu de modelo para a instalação de outras no Norte e Nordeste do Brasil, bem como para a implementação de outros centros de religião africana em todo território brasileiro.
Cosme Bento
Negro Cosme, como ficou conhecido o líder quilombola Cosme Bento, liderou uma das maiores revoltas de escravos do Maranhão, a Balaiada. Nascido escravo entre 1800 e 1802, em Sobral, no Ceará, onde conseguiu alforria.
Em 1830, pouco depois de chegar ao Maranhão, foi preso por assassinato e, em 1833, conseguiu fugir da cadeira. A partir de então, passou a promover uma vasta rebelião de negros em vários pontos de trabalho escravo da região. Para não ser pego, Negro Comes se encondia em diversos quilombos e ajudava escravos a se libertarem da opressão de seus esploradores.
Negro Cosme também foi responsável por criar o maior quilombo da história do Maranhão, a fazenda Tocanguira, localizada no município de Itapecuru-Mirim, interior do estado. No local, oferecia auxílio a todos que apoiavam a luta contra o escravismo e ficou conhecido como defensor da liberdade.
O objetivo dele era criar uma outra visão de liberdade e igualdade entre os homens, buscando a insurreição contra à escravatura, em favor da liberdade. Ele foi mais que um líder entre os balaios, sendo considerado o chefe da revolta negra maranhense.
Luísa Mahin
Uma das principais responsáveis por todas as revoltas de escravos na Bahia. Luísa Mahin nasceu, provavelmente, em 1812, em Costa da Mina, na África, e foi traficada como escrava para o Brasil.
Ela comprou alforria e se tornou quituteira em Salvador, onde teve um filho, o abolicionista Luis Gama. Luísa esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que sacudiram a então Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX.
Luisa ajudava com a distribuição de mensagens codificadas, em árabe, por meio dos meninos que fingiam comprar seus quitutes. Essas mensagens continham informações relevantes para a resistência dos escravos e os movimentos que contribuiam para a libertação deles. Desse modo, esteve envolvida na Revolta dos Malês e na Sabinada.
A ex-escrava transformou sua casa no quartel general das revoltas de escravos e, caso o levante dos malês tivesse sido vitorioso, Luísa teria sido reconhecida como Rainha da Bahia.
Luís Gama
Filho de Luísa Mahin, Luís Gama foi um dos principais nomes do movimento abolicionista no Brasil. Nasceu em 1830, em Salvador, e mesmo sendo filho de pai branco e mãe negra liberta, foi feito escravo aos 10 anos de idade.
Permaneceu analfabeto até os 17 anos, quando passou a estudar e, mais tarde, conquistou na justiça a própria liberdade. Depois disso, passou a advogar em defesa dos escravos e, aos 29 anos, já era considerado o maior abolicionista do Brasil e o único a ter sido feito escravo.
Toda a vida de Luís Gama foi pautada pela abolição da escravatura e fim da monarquia no Brasil. Ele escreveu também artigos para jornais da época, sempre sobre assuntos sociorraciais do Brasil Imperial.
Além de ajudar escravos libertos a conseguirem empregos e defender judicialmente escravos acusados de crimes, a principal atuação de Gama em prol da abolição da escravatura foi nos tribunais. Em 1880, em uma carta autobiográfica enviada ao amigo Lúcio de Mendonça, o abolicionista revela que já havia libertado do cativeiro mais de 500 escravos.
Gama também é conhecido pela maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas, quando conseguiu a liberdade de 217 escravos. É dele a célebre frase “o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”, proclamada durante um júri.
André Rebouças
André Rebouças foi um engenheiro, inventor e abolicionista brasileiro. Ele é considerado um dos mais importantes articuladores do movimento abolicionista e trabalhou pelo desenvolvimento de territórios africanos.
Nascido 50 anos antes da abolição da escravatura, em 1838, ele era filho de mãe escrava e um alfaiate português. Diferente de muitos negros de sua época, Rebouças teve a oportunidade de estudar desde muito jovem e ingressou na Escola Militar do Rio de Janeiro, onde se tornou 2º tenente.
Ao lado de nomes importantes na história do Brasil, como Machado de Assis, o engenheiro foi um dos representantes da pequena classe média negra em ascensão no Segundo Reinado. Ele ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, e participou também da Confederação Abolicionista.
André trabalhou também ao lado de Luís Gama no movimento em busca da liberdade da comunidade negra. Com os movimentos abolicionistas crescendo, pela atuação de nomes como Rebouças e Gama, e a pressão social contra o Império cada vez mais forte, em 1888 a escravidão é extinta no Brasil, sendo o último país das Américas a acabar com a exploração do povo negro.
Quintino de Lacerda
Ex-escravo, Quintino de Lacerda se tornou um herói abolicionista. Ele foi líder do Quilombo do Jabaquara, em São Paulo, além de ter se tornado o primeiro vereador negro do Brasil e receber a patente de Major honorário do Exército Nacional.
Lacerda foi o primeiro líder político negra de Santos, no litoral paulistano, considerado o mais atuante fomentador da abolição na região e participou ativamente de grandes eventos nacionais, como a Revolta Armada e o processo de desestruturação do sistema escravista no Brasil.
O político nasceu escravo, em 1855, em Sergipe, e se afeiçoou à família para a qual foi vendido e da qual herdou o sobrenome. Depois de oito anos de serviço, ele conquistou a carta de alforria e se juntou ao movimento contra a escravidão, se tornando, nas duas últimas décadas do século XIX no Brasil, uma figura central nos movimentos sociais e debates políticos.
Além de lutar pela extinção do sistema escravista, após a promulgação da Lei Áurea, Quintino, enquanto capitão do Exército, organizou um batalhão com o objetivo de derrubar o trono brasileiro. Sendo assim, o abolicionista foi também uma figura importante para a proclamação da República.
Francisco José do Nascimento
“Liberdade é um dragão no mar de Aracati”, assim é retratado Francisco José do Nascimento no samba-enredo da Mangueira, em 2019. Conhecido como Dragão do Mar, o líder jangadeiro nasceu em 1839, em Aracati, município do Ceará.
Antiescravista, o Dragão do Mar teve participação ativa no Movimento Abolicionista no Ceará, que foi o primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão e, por isso, ficou conhecido como Terra da Luz.
Desde 2017 reconhecido, oficialmente, como Herói da Pátria, o líder se juntou à luta contra a escravidão em 1881 quando se recusou a transpostar escravos para os navios negreiros que saíam do litoral cearense com o objetivo de vender essas pessoas no Rio de Janeiro. Esse movimento foi chamado de Greve dos Jangadeiros e resultou na abolição da escravatura no Ceará, sendo também decisivo para que a liberdade do povo negro fosse implantada no Brasil por meio da Lei Áurea.
Em 1884, Dragão do Mar foi homenageado na capa da Revista Illustrada, importante periódico abolicionista da época. “À testa dos jangadeiros cearenses, Nascimento impede o tráfico dos escravos da província do Ceará vendidos para o sul”, noticiou a revista.
Francisco José do Nascimento é, até os dias atuais, símbolo da resistência popular cearense contra a escravidão. Ele também foi homenageado pelo governo do Ceará, com seu nome dado ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, pelo que ele e os outros jangadeiros realizaram em nome da liberdade da comunidade negra.
José do Patrocínio
Outra figura importante nos momentos decisivos do movimento abolicionista, que conquistou o fim da escravidão. José do Patrocínio foi um farmacêutico, jornalista, escritor, orador e ativista político brasileiro.
Em 1879, iniciou a campanha pela abolição da escravatura no Brasil e entrou para a Associação Central Emancipadora. Em em 1880, juntamente com Joaquim Nabuco, fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Além disso, ele teve uma forte atuação como jornalista com artigos contra a escravidão em periódicos da época, Patrocínio também preparou e auxiliou a fuga de escravos e coordenou campanhas de angariação de fundos para adquirir alforrias, com a promoção de espetáculos ao vivo, comícios em teatros, manifestações em praça pública.
Patrocínio também participou da Maçonaria, atuando no processo de emancipação do trabalho escravo, defendendo o fim da escravidão a partir de discussões no Parlamento, de debates entre a elite branca e da defesa de uma abolição da escravatura, por intermédio da Sociedade Brasileira contra a Escravidão.
Os guerreiros e guerreiras da atualidade
134 anos depois da Lei Áurea e da árdua história dos negros em busca da própria emancipação, o Brasil ainda vive um desafio. Muito por conta da invisibilização histórica da comunidade negra no processo de abolição da escravatura, o povo negro ainda é muito associado à escravidão e vítima de um racismo estrutural.
“São muitos anos com essa associação da negritude à escravidão, mas outras histórias já estão sendo contadas. Para avançarmos precisamos estudar, para conhecermos mais a verdadeira história do povo negro, que não começou na escravidão”, destaca Luiza Mandela, mestra em Relações Étnico-Raciais.
Assim como antes de 1888 ou durante os anos seguinte à abolição, os negros lutaram e seguem lutando por direitos, igualdade e para que a história de resistência dos cerca de 500 anos desde a chegada dos primeiros negros africanos no Brasil não seja apagada. “Essas personalidades que resistiram e lutaram contra a escravidão pavimentaram o chão para que pudéssemos estar aqui vivos e resistindo, apesar de, infelizmente, o negro ainda ser o que mais morre diariamente no Brasil, sendo um a cada 23 minutos”, lamentou Mandela.
O movimento negro segue contando com nomes importantes e que são essenciais para toda e qualquer conquista dessa comunidade. Afinal, desde que o Brasil é Brasil, os direitos da população negra foram adquiridos a partir da luta travada com as próprias mãos.
Podemos destacar na história mais recente personalidades como Ruth de Souza, atriz e a primeira grande referência para artistas negros na televisão; Antonieta de Barros, jornalista, uma das primeiras mulheres eleitas no Brasil e a primeira negra brasileira a assumir um mandato popular; Conceição Evaristo, escritora e uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil; Katiuscia Ribeiro, filósofa e um dos principais nomes da atualidade responsáveis por disseminar o conhecimento acerca da ancestralidade; e Abdias do Nascimento, ator e um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos humanos no Brasil, tendo recebido o Nobel da Paz em 2010.
“Eu destaco nomes importantes que me inspiram a continuar no caminho da luta contra o racismo, como Christina Ramos (minha mãe e militante do Movimento Negro), Nilma Lino Gomes, Conceição Evaristo, Joana Oscar, Ricardo Jaheem, Bárbara Carine, Roberto Borges, Jurema Werneck, entre tantos outros nomes fundamentais, que precisamos conhecer”, destaca a mestra em Relações Étnico-Raciais.
Por mais que, ao longo dos anos, o povo negro tenha conseguido alguns avanços, como as Cotas Raciais, as leis Afonso Arinos e Caó, que proíbem a discriminação racial e tipificam o crime de racismo, ou a Lei 11645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira e africana em todas as escolas públicas e particulares do ensino fundamental até o ensino médio, ainda há muito o que progredir.
Para isso, Luíza Mandela ressalta que é importante garantir que essas leis sejam aplicadas, principalmente a que determina o ensino da cultura afro nas escolas, “para que a história de resistência, potência e beleza da população negra e indígena seja contada nas escolas, universidades, imprensa e em todos os espaços”. “Mas, para isso, precisamos ter letramento racial e estudar para sairmos da visão eurocêntrica e reducionista que nos foi ensinada”, conclui.
*Texto publicado originalmente no Correio Braziliense
No true crime à brasileira, a vítima é sempre negra
Folha de São Paulo Piauí*
Em 300 anos de escravidão regulamentada por lei, mais 41 anos de República Velha, uma década e meia de Era Vargas, 19 anos da hoje chamada Quarta República (1946-1964), 21 anos de ditadura e pouco mais de 30 desde a promulgação da Constituição de 1988, a sociedade brasileira ostenta uma característica de impressionante imutabilidade, que é também um de seus pilares: a violência racial. Só nos 34 anos que se seguiram à redemocratização, quando houve certo consenso em oficializar a distribuição irrestrita da cidadania, já tivemos: policial acusado de homicídio qualificado alegando que a vítima foi responsável por sua própria morte ao ter dado cabeçadas na porta de uma viatura; secretário de Segurança Pública promovendo PM que entrou numa favela e executou moradores sumariamente; Ministério Público arquivando casos cheios de provas de tiros à queima-roupa; Tribunal de Justiça anulando condenação do júri… Este texto poderia ser todo ele uma lista.
Entre 2021 e 2022, o Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP se dedicou a analisar oito casos dessa lista: o massacre no presídio do Carandiru (1992); a execução sumária de Mário Josino na Favela Naval (1997), em Diadema (SP), quando policiais militares foram filmados agredindo moradores; a chacina do Borel, no Rio de Janeiro, com quatro execuções sumárias (2003); o desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo Dias de Souza, na favela da Rocinha, no Rio (2013); a chacina do Cabula (2015), quando a Polícia Militar executou doze jovens negros na Vila Moisés, Salvador (BA); a tortura e morte de Luana Barbosa dos Reis (2016), em Ribeirão Preto (SP); o massacre de Paraisópolis (2019), quando o cerco da Rota ao baile da DZ7 resultou na morte de nove jovens; e o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por forças da segurança privada no Carrefour do Passo d’Areia (2020). São oito casos, 140 mortes e, até muito recentemente, apenas nove condenações confirmadas. Isso porque foi somente ontem – 17 de novembro de 2022, mais de 30 anos após os fatos – que o Supremo Tribunal Federal declarou o trânsito em julgado da condenação de 74 policiais militares acusados de participar do Massacre do Carandiru.
O estudo Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020) investiga o que acontece depois que crimes cometidos por agentes de segurança vão parar nas mãos das instituições do sistema de justiça criminal. O projeto também deu origem a um memorial online que documenta cada uma das histórias e um podcast com oito episódios chamado Justiça em Preto e Branco.
Todo o projeto parte de dois consensos no campo acadêmico antirracista voltado para a relação entre raça, justiça e violência: 1) no Brasil, a letalidade policial afeta desproporcionalmente a população negra; 2) a ausência de responsabilização do Estado nesses homicídios. Partindo dessas duas premissas, analisamos as respostas institucionais às mortes, considerando também demandas históricas do associativismo negro e das articulações políticas lideradas por familiares de vítimas.
Ocorridas em diferentes momentos do pós-redemocratização, as oito histórias tiveram em comum repercussão midiática e mobilização social. Pensamos que a atenção pública poderia ter motivado respostas mais eficientes à violência letal contra a população negra. Mas, mesmo nesses casos marcantes, não houve o mínimo zelo procedimental por parte de autoridades, em especial, das do sistema de justiça criminal, que, em vez disso, têm aprimorado um repertório, ao mesmo tempo padronizado e adaptável, de práticas e discursos para não responsabilizar indivíduos e órgãos do Estado.
Investigamos então os mecanismos, normas, recursos administrativos e interpretações jurídicas mobilizados nesses processos de não responsabilização. Como essas narrativas jurídico-institucionais criadas em torno dos assassinatos cometidos por policiais reproduzem valores de uma cultura e uma prática jurídicas racializadas? Qual o impacto das mobilizações e da pressão da mídia? Repercussão e mobilização redundaram em mudanças políticas? Foram algumas de nossas perguntas.
O foco foi a Justiça, já que a engrenagem que faz a administração burocrática das mortes conta com autoridades judiciais, as quais aceitam acriticamente versões de policiais sob investigação. Outra peça chave aqui é o Ministério Público, que se destaca em todos os casos por não desempenhar sua função constitucional de controle externo das polícias, tanto na avaliação de operadores do direito, quanto de familiares de vítimas e ativistas que ouvimos.
Dos 28 anos entre o primeiro caso – Massacre do Carandiru (1992) – e o mais recente – Beto Freitas (2020) –, identificamos algumas linhas de continuidade. Entre elas, decisões discricionárias proferidas em 2ª instância anulando as (raras) condenações de policiais em primeira instância pelo Tribunal do Júri. Isso ocorreu em três dos oito casos analisados – o que, na verdade, representa a totalidade de casos que havia ido a júri até o momento de realização da pesquisa. Na Chacina do Borel, uma das condenações, que já havia inclusive recebido um segundo veredito do Tribunal do Júri, foi anulada pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, em 2005. A justificativa se apoiou na inusitada afirmação de que os jurados haviam se mostrado vacilantes e incoerentes ao responderem às perguntas direcionadas ao Conselho de Sentença.
Nos casos do Massacre do Carandiru e da Favela Naval, condenações do Tribunal do Júri também foram modificadas em 2ª instância. O Coronel Ubiratan, que conduziu a invasão da Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, e foi originalmente condenado a 632 anos, teve sua sentença revertida, em 2006. De forma semelhante, no ano 2000, desembargadores do TJSP anularam o júri de Otávio Lourenço Gambra, o “Rambo”, PM responsável pela morte do mecânico Mário José Josino, vítima fatal do caso Favela Naval, sob a justificativa de que a decisão dos jurados havia contrariado a prova dos autos. Avaliou-se que não existiam evidências para condenar o policial por outras três tentativas de assassinato: somente foi admitida a condenação quanto à morte de Josino, que, além de ter sido filmada, “Rambo” confessou.
A anulação de veredictos do Júri é apresentada como medida excepcional na Constituição Federal. Nas histórias que estudamos ela é a regra. A investigação dos homicídios cometidos por policiais está entregue às próprias corporações, que tendem a corroborar narrativas de legítima defesa, ainda que diante de provas irrefutáveis de execução. E o Poder Judiciário, em vez de se contrapor, dá continuidade a essa cadeia de chancelamento das versões policiais. A Chacina do Cabula exemplifica outra estratégia nesse sentido: a absolvição sumária dos acusados, sem que sequer houvesse instrução processual ou Júri. Nesse caso, a decisão foi posteriormente anulada, mas atrasou significativamente o andamento processual.
Nesse sentido, duas mudanças são urgentes: a legitimação das versões das testemunhas de acusação, bem como de eventuais vítimas sobreviventes; e o reconhecimento do racismo como motivador da violência policial e impulsionador do modo de agir do Poder Judiciário.
Todos os levantamentos apontam que negros morrem mais do que brancos, por homicídios em geral e pela ação da polícia. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2021, das 6.145 vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais, 84,1% eram negras. As cifras de guerra racial tornam mais escandalosa a ausência de respostas também em termos de políticas públicas que, junto com o sistema de justiça, tem contribuído deliberadamente para o apagamento das evidências do racismo de Estado.
A linha temporal dos casos analisados explicita, de outro lado, a importância das estratégias de familiares, movimentos e organizações internacionais no estímulo ao debate e no questionamento dos silêncios institucionais sobre o peso de raça, gênero, sexualidade e classe/território, nas mortes provocadas por policiais. Assim, os casos de Luana Barbosa, Amarildo, João Alberto e Paraisópolis chegaram ao Judiciário a partir da denúncia do racismo como causa das mortes.
O que observamos na Justiça são barreiras a esses argumentos. O caso de Luana Barbosa é paradigmático por demonstrar a retirada sistemática do conteúdo referente à raça ao longo das instâncias do fluxo processual. Na cidade de Ribeirão Preto, SP, em abril de 2016, Luana, mulher negra e lésbica, saía de casa com o filho quando foi abordada por uma viatura com três policiais homens. Luana, que na ocasião vestia roupas consideradas masculinas, reivindicou seu direito de ser revistada por uma policial mulher – protesto ao qual um dos PMs reagiu com a frase “se quer andar que nem homem, vai ser tratada como homem”, seguida de socos e chutes, com os agentes chegando a esfregar seu rosto no chão. Tudo na frente do filho, então com 14 anos, e de outras testemunhas. Levada à delegacia na condição de agressora dos policiais, Luana foi liberada no mesmo dia. Em mais cinco, ela morreria em decorrência de lesões cerebrais, que ocorreram no caminho até a delegacia.
Na última movimentação processual acompanhada pela pesquisa na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SP, mesmo com o arcabouço probatório e a sustentação oral da assistente de acusação abordando a problemática do racismo interseccionado a gênero e classe, a decisão dos desembargadores foi por manter a sentença de pronúncia dos réus no artigo 121, caput, do Código Penal, mas afastar as qualificadoras indicativas do motivo de agir dos policiais: racismo e sexismo. Os PMs declararam que foi Luana que jogou repetidas vezes sua cabeça na porta da viatura, sendo a responsável por sua própria morte. A decisão dos magistrados foi ratificada pelo procurador da República.
A Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário (2021), do Conselho Nacional de Justiça, aponta que escolas de magistratura que atuam com a formação continuada não têm, em sua maioria, promovido cursos que abarquem temáticas relacionadas à raça. Apenas 32,6% das escolas tiveram cursos nos últimos doze meses envolvendo o assunto, e 16,9% das escolas mapearam o interesse de magistrados e servidores sobre isso. O desinteresse se reflete ainda na insuficiência de dados sobre o perfil de quem acessa a justiça na condição de usuário ou réu.
Compreender e reconhecer a composição de raça e gênero dentro das instituições da Justiça é uma tarefa primordial para o enfrentamento ao racismo institucional. Essa política somada às ações afirmativas e à educação continuada na temática racial são medidas que põem em questão a manutenção de uma maioria de juristas brancos desconectada dos efeitos do racismo no acesso à justiça.
Já a possibilidade de fortalecimento do controle social das polícias passa necessariamente por uma escuta simétrica das demandas e análises políticas dos movimentos negros e movimentos de familiares de vítimas da violência do Estado. Levando a sério o questionamento sobre a diferença entre o que o Estado chama de justiça e o entendimento das pessoas diretamente impactadas pela violência racial é que poderemos começar a caminhar para superar o silêncio e a negação, dupla de fiéis escudeiros do racismo no Brasil: um racismo que mata.
Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo Piauí.
Revista online | Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos
Vercilene Francisco Dias*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)
A sociedade brasileira pouco sabe sobre a história e resistência negra quilombola no Brasil. Isso é fruto da invisibilidade da luta e resistência negra por direitos. Durante a colonização do país, milhares de pessoas negras foram trazidas da África para serem escravizadas aqui, tratadas como objetos, desumanizadas e submetidas a todos os tipos de maus-tratos. O povo negro resistiu. Uma das maiores formas de resistência, mas não a única, foram as formações dos quilombos, para manter e reproduzir seu modo de vida característico em um determinado lugar, com identidade cultural, espiritualidade e liberdade para a produção e reprodução de práticas inspiradas na ancestralidade.
Os quilombos ou remanescentes das comunidades dos quilombos são grupos sociais remanescentes de pessoas afrodescendentes com identidade étnica própria, ou seja, uma ancestralidade comum e formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais que os singulariza, distinguindo do restante da sociedade (Decreto nº 4887/2003). Trata-se de um processo histórico de luta e resistência negra do qual pouco se ouve falar, tampouco é ensinado nas escolas.
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Com o fim formal da escravidão, pouco se mudou na realidade do povo negro aquilombado. Esquecidos, muitos negros se juntaram aos quilombos existentes. Outros foram trabalhar nas fazendas onde eram escravizados, pois o Estado brasileiro não se preocupou em implementar políticas que inserisse os negros na sociedade enquanto sujeitos de direitos. Ao contrário, leis foram criadas para perseguir a população afrodescendente e criminalizar nossa cultura.
Somente após um século de esquecimento, os quilombolas foram lembrados na Constituição de 1988, devido às lutas do povo quilombola junto ao movimento negro urbano. A Carta Magna assegura, por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), aos povos quilombolas, o direito ao título de suas terras. No entanto, passados mais de 33 anos de sua promulgação, esse direito ainda está pendente de efetivação.
Segundo dados oficiais preliminares para o censo quilombola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em abril de 2020, existem no Brasil 5.972 localidades quilombolas, dispersas por 25 unidades da Federação, em 1.672 municípios, o que representa 30% das cidades brasileiras. O levantamento por região evidencia que a maior quantidade de localidades quilombolas está no nordeste, concentrando 53,09% do total destas localidades. A porcentagem de localidades quilombolas é de 14,61%, no norte; de 22,75%, no sudeste; de 5,34%, no sul; e de 4,18%, no centro-oeste.
Apesar da garantia constitucional do direito às suas terras tituladas, o levantamento do IBGE mostra que, das 5.972 localidades quilombolas, 4.859 (81,36%) estão fora de territórios “oficialmente delimitados” e de qualquer etapa do processo administrativo de reconhecimento, delimitação e titulação considerados pelo instituto. São dados alarmantes da realidade quilombola sobre esse primeiro levantamento oficial, tendo em vista que, hoje, segundo a Fundação Cultural Palmares, existem 3.495 comunidades com certidão expedida.
Porém, quando se olha os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela política de titulação dos territórios quilombolas, a realidade é pior. De 1995 até o ano de 2022, apenas 295 títulos foram emitidos, em 195 territórios. A maioria é formada por títulos parciais, ou seja, o órgão emite o título de uma gleba ou áreas específicas dentro do território, o que não é a titulação de todo o território da comunidade.
Desses 295 títulos, grande parte foi emitida por órgão de regularização estadual ou em parceria com o Inca. São números ínfimos diante da quantidade de comunidades levantadas hoje no Brasil. A maior parte delas está em situação de insegurança territorial, o que acirra ainda mais os conflitos dentro dos territórios quilombolas e tem comprometido a segurança e ceifado a vida de várias de suas lideranças.
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Em decorrência dessa demora em cumprir o mandamento constitucional, os povos quilombolas vem pagando a conta por violações dos seus próprios direitos e garantias fundamentais. Essas violações prejudicam, de forma sensível, o desenvolvimento digno desse povo fundador da identidade nacional. A titulação do território quilombola é passo fundamental para a efetivação de outros direitos e garantias fundamentais, a exemplo de políticas públicas de saneamento básico, saúde, educação, trabalho, acesso a crédito e produção agrícola.
A Constituição é nítida ao estabelecer o dever do Estado de agir para assegurar a reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas. Porém, para esse Estado, somos invisíveis, não bastando a garantia do direito, a obrigação do ente e o destinatário desse direito. Por isso, é necessário que os quilombolas travem disputas todos os dias para que seus direitos sejam respeitados e que suas vidas não sejam ceifadas, em decorrência de um Estado negligente e violento com seu povo.
Para se ter um mínimo de respostas e tentar assegurar a vida do povo quilombola nesse contexto de pandemia da covid-19, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) buscou o Poder Judiciário para denunciar e fazer cessar violações e omissões do governo ao não garantir a vida desse povo, no contexto de crise sanitária global, diante da realidade de violência estrutural enfrentada pelas comunidades.
Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Quilombola 742, proposta em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a vulnerabilidade estrutural dessa população e determinou à União que implementasse, no prazo de 30 dias, um Plano Nacional de Enfrentamento aos efeitos da pandemia nos quilombos, devendo, para tanto, constituir um grupo de trabalho paritário em 72 horas, para construção, discussão, implementação e monitoramento das ações determinadas.
A decisão do STF, no entanto, não foi o bastante. Para que a União cumpra seu dever constitucional, todos os dias é necessário que os quilombolas cobrem a implementação das determinações do Supremo, que, após mais de dois anos de pandemia, foram cumpridas apenas parcialmente. Nesse cenário, somos barrados a todo momento, devido a diversos empecilhos impostos pelo governo, para tentar justificar o não cumprimento da determinação, como a alegação da inexistência de orçamento para implementação da política quilombola.
Como bem ressalta Selma dos Santos Dealdina, no Livro Mulheres Quilombolas: Territórios de Existências Negras Femininas, não existe boa vontade política do Estado brasileiro, que se comporta como se estivesse fazendo um favor a nós, quilombolas. É como se fosse preciso bondade ou voluntarismo para cumprir nossos direitos constitucionalmente assegurados. Enquanto isso, o racismo estrutural, que se ramifica nas instituições públicas, formatando o Estado e a sociedade brasileira, faz com que o exercício do direito seja vivido enquanto conflito e violência imediatos.
Sobre a autora
*Vercilene Francisco Dias é quilombola do Quilombo Kalunga, advogada, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2019, tornou-se a primeira mulher quilombola com mestrado em Direito no Brasil. Graduou-se no mesmo curso pela UFG, três anos antes. É coordenadora do Jurídico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela também foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres de sucesso de 2022.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Gilberto Maringoni: entre a análise e a militância
Gilberto Maringoni, Carta Capital*
Os cem anos de fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) mereceram comemorações públicas abaixo de sua importância histórica. No mundo editorial há, no entanto, uma celebração maiúscula: a reedição das obras completas de Astrojildo Pereira (1890-1965), um dos fundadores e um dos primeiros teóricos da agremiação.
Lançados esparsamente entre 1935 e 1963 por pequenas e heroicas editoras, os cinco volumes vêm agora numa caixa, acrescidos de um sexto. Trata-se de O revolucionário cordial, perfil político de autoria de Martin Cezar Feijó. Estamos diante de um de nossos raros intelectuais orgânicos a serviço de uma causa transformadora, para usar a definição de Gramsci.
Coleção Astrojildo Pereira é lançada com nova edição de seis obras
Em Astrojildo, biografia e bibliografia são inseparáveis. Da obra, pode-se dizer que “é como Portugal e os jumentos: é pequena, mas tem uma história grande”. A definição bem-humorada é dele mesmo, ao classificar seu primeiro livro URSS, Itália e Brasil, lançado numa magérrima tiragem de 180 exemplares, em 1935.
A vida política do personagem, ao contrário, foi longa e rocambolesca. Como líder anarquista na juventude, percebeu as limitações de uma ação pública sem organicidade definida e teoricamente frágil. Influenciado pelos ventos da Revolução Russa, logo transitou para o marxismo e o comunismo.
Esse carioca de Rio Bonito foi o único brasileiro a presenciar os funerais de Lenin, em 1924, “sob um frio de 30 graus abaixo de zero”, em Moscou. Em sua folha corrida consta o feito de levar os primeiros livros marxistas ao capitão do Exército que liderara uma marcha pelo interior do Brasil entre 1925 e 1927. Por suas mãos, Luís Carlos Prestes começou a trajetória de dirigente comunista, num encontro na Bolívia, em 1929.
Em reviravolta marcada por acusações de desvios pequeno-burgueses e sectarismos variados, foi expulso, no ano seguinte, do Partido, ao qual voltaria apenas em 1945. Seguiu a partir daí trajetória inusitada, de vendedor de frutas a refinado crítico literário.
Os primórdios do comunismo no Brasil geraram dois intelectuais que viviam às turras entre si, Astrojildo Pereira e Octávio Brandão, autor de Agrarismo e industrialismo (1927), tentativa de se fazer um levantamento da economia brasileira sob a ótica socialista. Lido hoje, o livro mostra-se primário e maniqueísta, mas foi uma ousadia em tempos de escassez de dados oficiais e reduzido acesso à literatura marxista. O que Brandão exibia de dogmatismo, Astrojildo escancarava em criatividade e aplicação flexível do materialismo dialético.
Seu segundo livro, Interpretações (1944), é uma espécie de portfólio pessoal. Nos anos finais do Estado Novo, o autor revela maturidade intelectual em análises literárias e históricas, em pelo menos dois ensaios longos e inovadores. O primeiro é “Machado de Assis, romancista do segundo Reinado”, no qual aponta “uma consonância íntima e profunda entre o labor literário (…) e o sentido da evolução política e social do Brasil”, com destaque para a escravidão. O segundo é “Confissões de Lima Barreto”, sobre o autor que pertencia “à categoria dos romancistas que (…) menos se escondem e se dissimulam” em suas obras.
É pouco provável que Astrojildo tivesse contato com as formulações pioneiras do marxismo no terreno da estética, em especial as de György Lukács, lançadas no Brasil no início do século XXI. A esse respeito, José Paulo Netto assinala, no prefácio de Machado de Assis (1959), terceiro volume da coleção, que seu “quadro teórico (…) era pobre” no âmbito da crítica literária. É, porém, inegável que o fundador do PCB incide com competência nas relações entre literatura e ideologia.
Nessa obra, ele dá seguimento ao caminho aberto por José Veríssimo, em História da literatura brasileira (1912), que arrisca estabelecer correspondências entre a literatura e a ideia de nação. A partir de uma crônica de 1873, Astrojildo especifica: “O problema da literatura como representação e interpretação da nacionalidade foi, com efeito, uma constante inalterável em toda a obra de Machado de Assis”. O conceito de nação, um dos mais controversos nas Ciências Sociais, é enfrentado sem escorregões pelo autor.
Astrojildo jamais colocou suas memórias no papel. Apenas um fragmento foi produzido, com Formação do PCB (1962), lançado para as comemorações dos 40 anos do Partido. Uma observação feita no prefácio dá a noção do país em que o ativista se formou: “Não nos esqueçamos que o PCB, em 40 anos de vida, passou ao menos 35 na ilegalidade”. Se estendermos a observação para os dias atuais, podemos dizer que a agremiação enfrentou seis décadas e meia de proscrição institucional.
Há, no livro, uma permanente tensão entre o analista e o militante, o que o leva a delimitar seu período de análise do Partido entre 1922 e 1929, ou seja entre os antecedentes da fundação da legenda e a data de seu III Congresso. Nada há sobre o abalo político representado por sua expulsão.
Crítica impura (1963) é seu último e mais alentado trabalho, e único publicado por uma grande editora, a Civilização Brasileira. Nele, Astrojildo alarga seu radar reflexivo para autores como Eça de Queiroz, José Lins do Rego, Monteiro Lobato, Aníbal Machado, José Veríssimo e Howard Fast, e faz ensaios sobre Cuba, China, sindicalismo, escravidão etc.
Preso aos 74 anos, após o golpe, Astrojildo Pereira morreria em 1965, de ataque cardíaco. A reedição de seus textos deve ser saudada em tempos nos quais o país se debate entre um obscurantismo tacanho e a possibilidade da retomada de tradições democráticas e libertárias no terreno cultural.
*Texto publicado originalmente no Carta Capital
Primeiro romance escrito por negra, no Brasil, aborda o abolicionismo
João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Em meio à escravidão, nasce um romance entre dois jovens, a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo. A narrativa escrita por Maria Firmina dos Reis aborda a cultura afrodescendente em um contexto anterior à Lei Áurea. O livro Úrsula é considerado o primeiro romance escrito por negra no Brasil.
Para o escritor Luiz Gusmão, a obra de Maria Firmina, publicada em 1859, combate a herança deixada pela a “desumanidade da escravidão”. “Devemos conhecê-la e divulgá-la para combater um legado nocivo e compreender a história da luta contra o racismo em nosso país”, diz Gusmão sobre Úrsula.
Todo o enredo e críticas retratadas no livro serão discutidas na terça-feira (24/05), a partir das 19 horas, de forma online, no Clube de Leitura Eneida de Moraes, organizado pela Biblioteca Salomão Malina, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. O encontro virtual será transmitido pela página da biblioteca no Facebook, assim como no site e canal da FAP no YouTube.
O escritor recifense Luiz Gusmão confirmou participação para mediar o debate da roda de conversa. Ele diz que Úrsula destaca a voz de personagens escravizados e oprimidos. “Chagas históricas de nossa sociedade que afetaram, e ainda afetam, profundamente a vida no Brasil”, analisa.
Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula foi a segunda mais votada para o webinar no quesito “autoras negras”. A enquete ocorreu entre os participantes do clube de leitura no grupo de WhatsApp e foi aberta ao público nas redes sociais (Instagram e Facebook) da biblioteca.
Abolicionismo
133 anos da lei Áurea. No dia 13 maio, o documento que extinguia a escravidão no Brasil, assinado pela princesa Isabel, em 1888, completou mais um ano de existência. O livro temático deste mês do clube de leitura retrata o período anterior a essa lei. À época, a princesa ocupava a Regência do Império do Brasil, em virtude de um tratamento de saúde que seu pai, o imperador dom Pedro 2º, realizava na Europa.
Autora
Negra, filha de mãe branca e pai negro nascida na Ilha de São Luís, no Maranhão, Maria Firmina dos Reis (1822 - 1917) fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), um instrumento de crítica à escravidão por meio da humanização de personagens escravizados.
Maria Firmina morreu cega e pobre, aos 95 anos, na casa da ex-escrava Mariazinha, mãe de um dos seus filhos de criação. É a única mulher dentre os bustos da Praça do Pantheon, que homenageiam importantes escritores maranhenses, em São Luís.
Clube de Leitura Eneida de Moraes
Com o encontro mensal, a roda de conversa existe desde junho de 2019 e leva o nome da jornalista e escritora Eneida de Moraes, que morreu, em 2003, aos 92 anos.
Para participar do clube, basta entrar em contato com a coordenação da biblioteca pelo WhatsApp oficial (61) 98401-5561. Todos os participantes estão reunidos em um grupo no próprio aplicativo em que são divulgadas as informações sobre encontros e assuntos de literatura em geral.
Mediador
Luiz Antônio Gusmão, de 40, ou Kuzman, como prefere ser chamado, nasceu em Recife, mas mora no Distrito Federal desde 1992. Ele começou a participar do clube de leitura em 2021 e é autor do livro Azul-Planalto: haicais candangos. É uma coleção de poesias de formato tradicional japonês sobre a paisagem e a vida no Planalto Central do Brasil.
Dentre a coletânea, ele afirma ter um carinho maior pelo haicai sobre o reflexo do céu no lago Paranoá. “Ele ainda hoje evoca em mim o sentimento de completude. Um momento de plena consciência da integração entre os elementos do ar (céu), água (lago) e terra (chão), num espaço aberto”, diz, para acrescentar: “Acho que ele registra o momento em que meu olho de haicai se abriu pela primeira vez”.
Serviço
Clube de Leitura Eneida de Moraes
Dia: 24/05/2022
Horário da transmissão: 19h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Abolição não significa libertação do homem negro, diz historiador e documentarista
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O historiador e documentarista Ivan Alves Filho, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História, diz que “o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional”, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de maio (edição 31), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
“A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório”, afirma ele, na publicação. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no portal da FAP.
Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021
De acordo com o documentarista, a passagem ocorreu em um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando, segundo ele, formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos 19 e 20. “Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão”, pondera.
“Mas se a abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital”, analisa o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online.
Segundo Ivan, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já havia advertido para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro.
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“Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão”, analisa
Na avaliação do historiador, se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. “Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar”, acentua.
A íntegra da análise do historiador está disponível, no portal da FAP, para leitura na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.
O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.Leia também:
Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras do governante’
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Fonte:
RPD || Ivan Alves Filho: 13 de Maio, um ponto de convergência
Como única revolução social brasileira até o momento, ao consagrar juridicamente uma mudança que já vinha se operando no modo de produção, o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional. A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório. E ocorreu um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos XIX e XX. Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão.
Mas se a Abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital.
Lá atrás, ou seja, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já nos advertira para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro. Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão. Se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar.
Outro ponto que me parece fundamental tem que ver com uma certa incompreensão do caráter das transformações sociais entre nós. Ainda que tivesse combinado diferentes formas de luta, que iam dos embates armados dos quilombolas às manifestações na imprensa e no próprio Parlamento, prevaleceria a saída institucional. A Abolição, nunca é demais lembrar, foi uma luta nacional, de negros e brancos. Nem o Estado tinha força suficiente para barrar as mudanças nem a sociedade civil conseguia alterar tudo de chofre ou colocar o Estado abaixo. Daí a via negociada. Nem revolução nem conciliação: negociação.
Eis o que nos desnorteia um pouco. A isso vem se somar outra particularidade do processo histórico brasileiro: a escravidão teve por aqui um conteúdo étnico, o que já não ocorria na escravidão antiga. Durma-se com um barulho desses.
Por outro lado, talvez caiba recordar a lição dada pelo samba de enredo da Vila Isabel, em 1888: é preciso um certo “jogo de cintura…(para fazer) valer seus ideais”. Dir-se-ia que a Abolição entendeu essa nossa particularidade, logrando convergir todas as lutas para o campo institucional.
*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte: