ernesto araújo

Ricardo Toledo Santos Filho: Os diplomatas vão à guerra

Contradição em que o Itamaraty se meteu confronta uma tradição de dois séculos

Quando idealizou a fundação do Estado nacional brasileiro, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva preocupou-se em construir uma aliança com as nações vizinhas, também elas libertadas do jugo do colonialismo europeu. Já em maio de 1822 deu instruções ao cônsul que enviaria a Buenos Aires, Manuel Antônio Correia da Câmara, para que iniciasse negociações com a Argentina visando à criação de uma federação sul-americana. O Império do Brasil foi então modelado, e a República consolidaria essa viga diplomática, sob o signo da boa vizinhança. A contradição em que o Itamaraty se meteu na crise da Venezuela agora confronta uma tradição de dois séculos.

Repousam na acomodação da história os incidentes que, por causas específicas e efeitos inevitáveis, fugiram dessa tradição consolidada —a exemplo dos conflitos geopolíticos no instável tabuleiro da bacia do rio da Prata e a Guerra do Paraguai. Desde esse conflito multilateral, encerrado há 149 anos, temos vivido em paz com os dez vizinhos com que compartilhamos 17 mil quilômetros de fronteira. As pendências surgidas nesse interlúdio de concórdia, como a do Acre, foram resolvidas pelo instrumento adequado, a negociação da diplomacia em vez da imposição das armas. Mas agora a casa de Rio Branco, o altivo negociador pacifista, nosso Ministério das Relações Exteriores se apequena como um apêndice extranacional na ofensiva de deposição do governo venezuelano.

Para decupar posições, deixe-se claro de antemão que não se trata aqui de defender o indefensável governo de Nicolás Maduro, mas de reconhecer que a causa é maior que o personagem. Embora gravíssimos, porque o país definha a cada segundo, imerso em uma crise sem precedentes da qual o bolivarianismo parece incapaz de tirá-lo, impondo a seu povo privações de travessia do deserto, os problemas da Venezuela só podem e devem ser resolvidos por seus nacionais.

Constituem dogmas das relações internacionais, amparadas pela Carta da Organização das Nações Unidas e o direito público internacional, reconhecer e preservar a independência e o autogoverno nacionais sem dirigismo externo. O artigo 4º da nossa Constituição é explícito ao determinar que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.

O Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo minimiza esses princípios, levando de roldão também os preceitos da Política de Defesa Nacional, fixada pelo decreto n.º 5.484, de 2005, atualizado em 2012. Ao formular a Estratégia de Defesa Nacional, o documento aprovado pelo Congresso Nacional começa por afirmar que “o Brasil é pacífico por tradição e por convicção. Vive em paz com seus vizinhos. Rege suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios constitucionais da não intervenção, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e democracia.”

O normativo veda qualquer intromissão nos assuntos internos da Venezuela. Se há interesses em jogo, os do Brasil se apartam do apetite de outros países. Já temos suficiente petróleo... Queremos amizade e mercado. E paz na América do Sul. A possibilidade de um conflito armado ("todas as opções estão sobre a mesa”, disse o presidente Donald Trump), com inaceitável participação do Brasil, é um pesadelo geopolítico que a todo custo devemos prevenir.

Oxalá prevaleça a visão castrense do governo brasileiro que zela pela execução da política subcontinental de defesa, alinhando-se às posições antibelicistas que põem na mesa a ideia-força da paz. Nesse episódio, o Brasil cultiva uma nova jabuticaba: o paradoxo de diplomatas pregarem intervenção armada e soldados defenderem a diplomacia.

*Ricardo Toledo Santos Filho é  vice-presidente da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil


Demétrio Magnoli: O Itamaraty, segundo Ernesto

Durante quase 14 anos, nos governos lulopetistas, o diplomata Paulo Roberto de Almeida experimentou o que chama de “exílio involuntário”. Excluído pela chefia de qualquer atividade, instalou seu “escritório de trabalho” numa mesa da biblioteca do Itamaraty. O intervalo entre um “exílio” e outro durou menos de dois anos. Exonerado da direção do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), ele se prepara para seguir rumo à Sibéria: “Vou ter de voltar à biblioteca para poder trabalhar”. O bolsonarista Ernesto Araújo imita Celso Amorim, chanceler lulista, rebaixando o Itamaraty ao estatuto de ferramenta de uma facção.

“Personalidades autoritárias não apreciam espíritos libertários como o meu”. O diagnóstico aplica-se tanto a Araújo como a Amorim. Nos tempos do segundo, ondas de expurgos afastaram dezenas de diplomatas experientes que não aceitavam a condição de sabujos do ministro de turno. Hoje, a pretexto de promover jovens diplomatas, o primeiro cerca-se de bajuladores dispostos a aplaudir com igual fervor suas asneiras retóricas e suas insanas iniciativas de política externa. A corrupção moral não figura no Código Penal, mas suas consequências são tão danosas quanto a corrupção política.

Na democracia, uma fronteira nítida separa a conquista do governo da colonização partidária do Estado. O bolsonarismo aprendeu com o lulopetismo a ultrapassar a linha divisória, excluindo os “espíritos libertários” para não ouvir vozes dissonantes. Daí, nasce o governo de facção, isolado numa concha de certezas ideológicas, protegido da crítica por espessos cordões de puxa-sacos. A demissão de Almeida é mais um sintoma de que a eleição presidencial produziu um giro de 360 graus, colocando-nos de volta no ponto de partida.

Araújo plagia Amorim. O chanceler lulista anunciou um novo começo para nossa política externa, que se tornaria “ativa e altiva”, substituindo a orientação supostamente subserviente de seus antecessores. O chanceler bolsonarista promete “libertar a política externa” dos grilhões do “globalismo” para que ela represente o “Brasil verdadeiro”. A ideia de inaugurar a História, enterrando um passado de impurezas e escrevendo capítulos imaculados no mármore branco, é marca invariável das “personalidades autoritárias”. Mas o paralelo entre os dois chanceleres tem limites —e as circunstâncias da demissão de Almeida lançam luz sobre uma diferença fundamental.

O ato de exoneração — comunicado depois que o diplomata publicou, em seu blog pessoal, as críticas formuladas por FH e Rubens Ricupero à atuação de Araújo na crise venezuelana — derivou efetivamente das críticas de Almeida a Olavo de Carvalho. A polêmica emergiu no 23 de fevereiro, dia do “cerco humanitário” a Maduro, quando Araújo sugeriu a abertura de um corredor de invasão em Roraima, a ser utilizado por forças dos EUA. A ideia evidenciou que o chanceler despreza as leis brasileiras e nossa tradição de política externa. Ao mesmo tempo, revelou que ele comprara, pelo valor de face, o blefe vazio da Casa Branca.

O desatino de Araújo provocou uma intervenção branca no Itamaraty. Um cordão sanitário formado pelo vice, Hamilton Mourão, e pelos generais Augusto Heleno (GSI) e Villas Bôas, ex-comandante do Exército, rodeou silenciosamente o ministro de Relações Exteriores. Então, na impossibilidade de demitir os generais que o sitiaram, o “Zeus de subúrbio” (apud Almeida) direcionou seu raio contra um espírito livre situado no interior de sua casamata.

Todo o episódio distingue, sob um aspecto crucial, o chanceler bolsonarista de seu predecessor lulista. A política externa de Amorim obedecia a centros de comando claros: Lula e o PT. Já a política externa de Araújo emana de um centro de comando clandestino, constituído por Olavo de Carvalho, Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon, o ex-assessor de Trump que tenta construir uma “Internacional dos nacionalistas”.

No fim, a sorte sorriu para Almeida: as amplas vidraças da biblioteca Azeredo da Silveira são o melhor ponto de observação do incêndio que devasta o Itamaraty.


Míriam Leitão: O centro da crise do Itamaraty

A hierarquia no Itamaraty, como nas Forças Armadas, é a forma de transmitir experiência. Quebrá-la é um risco

A crise no Itamaraty é muito mais do que as ideias exóticas defendidas pelo chanceler Ernesto Araújo, na intenção de agradar ao presidente. Fosse só isso, a chancelaria saberia como lidar com o assunto. O pior problema é que ele quebrou a hierarquia dentro da instituição que, a exemplo das Forças Armadas, precisa dela. “Os diplomatas, assim como os militares, funcionam sob instruções, que vêm de alguém mais qualificado, por isso ele tem legitimidade para transmiti-la”.

Essa explicação dada por um diplomata reflete o coração do dilema atual. Mudar isso é subverter a lógica interna mais profunda, com efeitos imprevisíveis. Não bastou ao ministro Ernesto Araújo chegar ao primeiro posto sem ter comandado embaixada. Ele se cercou de pessoas que também não tiveram essa experiência. É normal que o ministro queira ter seu próprio time, mas como ele se deixa levar pelo fígado, acabou não criando uma diversidade nesse grupo.

— Nunca houve uma situação em que tantas pessoas mais graduadas estivessem sob o comando de gente de nível hierárquico inferior. Você ser embaixador lhe confere uma outra experiência. A chefia de posto mostra como são as coisas na prática. É normal ter um ou outro dirigindo uma subsecretaria sem ter chefiado uma representação, mas aí ele ouvirá os outros, que já comandaram postos, sobre como proceder. Assim funcionam os check and balances internos. Mas é inédito ter todos os subsecretários sem esta experiência — informa um integrante da Casa.

Tenho conversado com diplomatas que estão fora do Brasil. Eles relatam que andam confusos. As instruções não chegam. As que chegam ignoram nossas posições ou a natureza das instituições internacionais. O que acontecerá com a postura conservadora do governo em relação à mulher? Com todos os problemas que o país tem nesta área, o Brasil sempre teve uma posição de vanguarda, na área de direitos humanos e direitos da mulher.

— O que faremos agora? Se vamos abandonar a posição tradicional e os aliados naturais nesta questão, vamos ficar com quem? Com os árabes? Eles têm todo um passivo na área de direitos da mulher — avalia um diplomata brasileiro.

Há questões concretas acontecendo neste momento que criam paralisia nas representações e impedem o diálogo entre os mais experientes com os menos experientes, porque tudo é visto como uma cruzada entre o passado pecaminoso e o futuro virtuoso que será inventado agora. Isso leva ao improviso, que é um perigo em relações internacionais. Na diplomacia regional, a grande lição do Itamaraty sempre foi a de evitar conflito. Temos dez vizinhos com fronteira seca. Tudo é muito delicado.

A chancelaria brasileira sempre foi considerada um exemplo, tanto na América Latina quanto no mundo. Uma das razões é que foi capaz de criar um corpo coeso, no meio das diferenças de opinião, ou de níveis na carreira, para defender os interesses nacionais, conjugando aspectos políticos e técnicos. O Itamaraty sempre fez esforço de qualificar seus quadros nos inúmeros temas técnicos. Há as questões econômicas, de investimento, ambientais, de política comercial, de tecnologia, de energia. Vários outros. Normalmente, o Itamaraty integra grupos interministeriais para negociações que exigem capacitação técnica. O próprio Ernesto Araújo fez parte da negociação de tarifas no começo da sua vida profissional. E seus colegas o descrevem como um diplomata focado e sem qualquer das ideias que exibe hoje. Ouvi pessoas que estiveram com ele em etapas diferentes da carreira. Foram unânimes em dizer que ele mudou. As ideias que proclama hoje foram aquisição recente. Vieram-lhe à mente no momento oportuno para agradar aos novos poderosos.

Ernesto Araújo realizou sua ambição. O problema é o que ele fez em seguida, com uma reforma ainda não totalmente implantada, mas que já concentrou tarefas de forma excessiva em algumas áreas. Há perseguição interna, caça às bruxas, discurso ideológico. A grande questão, contudo, é a quebra da hierarquia, porque rompe-se o fluxo de transferência de conhecimento e experiência. Não se consegue ter uma boa imagem externa, com a frente interna desorganizada. É fácil posar de inovador. Mas o risco é quebrar a estrutura da instituição, e o temor é que isso esteja em curso.


Folha de S. Paulo: Ernesto Araújo ataca FHC e diz que Brasil guiou EUA na crise da Venezuela

Em blog, chanceler diz que ex-presidente desprezava povo brasileiro e critica tradição diplomática

SÃO PAULO - Em artigo publicado em seu blog, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ataca Fernando Henrique Cardoso por suas declarações sobre a crise na Venezuela, dizendo que o ex-presidente defende “tradições inúteis de retórica vazia” e que ele “abertamente desprezava” o povo brasileiro e os eleitores de direita.

No texto, intitulado Contra o consenso da inação, Araújo também afirma que foi o Brasil que guiou os EUA nas decisões tomadas recentemente em relação ao país vizinho, e não o contrário.

Na última quinta-feira (28), FHC havia postado em seu Twitter que “novas eleições livres são o caminho para o futuro democrático na Venezuela” e que “intervenções militares não conduzem à democracia”.

Araújo criticou FHC, dizendo que ele usa “o mais surrado dos artifícios retóricos” ao criar “uma falsa dicotomia” entre consenso e intervenção armada no país vizinho. “Ao contrário de FHC, eu acredito na diplomacia, porque acredito na força da palavra e do espírito humano para mudar a realidade, porque não sou cínico nem materialista, porque acredito no povo brasileiro, esse povo dos “grotões” que FHC abertamente desprezava (assim como desprezava e despreza os eleitores de direita que o fizeram presidente duas vezes)”, escreveu.

No texto, o chanceler Araújo critica a tradição da política externa brasileira nos últimos 25 anos, baseada no “consenso” —que ele qualifica de “infame”— e dizendo que ela permitiu a consolidação de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro no poder na Venezuela, a entrada do país no Mercosul e o “predomínio crescente do bolivarianismo na América do Sul concebida como um bloco socialista”.

“Insistir agora em que esse consenso continue a prevalecer na esfera da política externa, por temor e preguiça, sob o pretexto de ‘manter as tradições’, seria trair o povo brasileiro”, escreveu.

Segundo o chanceler, “uma grande liderança democrática venezuelana” disse a ele que foram as iniciativas do Brasil que “mobilizaram os próprios Estados Unidos a romperem a inércia em que se encontravam até o início de janeiro e a virem colocar seu peso político em favor da transição democrática”. “Não foi o Brasil que seguiu os EUA, mas antes o contrário.”

Araújo também teceu críticas ao ex-ministro Rubens Ricupero, ao afirmar que recebeu o agradecimento dos venezuelanos quando visitou as fronteiras do país com a Colômbia e o Brasil e abraçou o autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, “enquanto Rubens Ricupero e Fernando Henrique Cardoso escreviam seus artigos espezinhando aquilo que não conhecem, defendendo suas tradições inúteis de retórica vazia e desídia cúmplice”.


Demétrio Magnoli: Diante do enigma venezuelano

A negação de uma estratégia desvairada não equivale à definição de uma positiva

O "Deus de Trump" invocado por Ernesto Araújo não funcionou. No 23 de fevereiro, suposto Dia D, Maduro escapou do "xeque-mate humanitário", provando que ainda mantém controle sobre a alta oficialidade. A estratégia fracassada representou uma nítida derrota para o líder opositor Juan Guaidó, mas também para Donald Trump e o presidente colombiano Iván Duque. O Brasil só não amargou completa desmoralização porque, na hora H, Bolsonaro entregou o comando ao vice, Hamilton Mourão, assinando uma demissão branca do chanceler Araújo. Há lições a extrair do episódio.

A disputa de poder na Venezuela contrapõe o Executivo (isto é, a ditadura do chavismo terminal) ao Parlamento (isto é, a maioria oposicionista oriunda das derradeiras eleições livres no país). O Parlamento conta com apoio internacional majoritário e o respaldo da maior parte do povo. Contudo, o Executivo tem as armas, pois o regime equilibra-se sobre a aliança entre o aparato político chavista e a cúpula militar. Nesse cenário, a queda de Maduro depende de uma cisão entre os componentes da aliança cívico-militar que o sustenta.

A ideia de uma intervenção militar liderada pelos EUA só passa pelos desvarios conspiratórios de correntes extremistas com as quais o neófito Araújo extravasa seus impulsos infantis. Trump não organiza retiradas americanas da Síria e do Afeganistão para se envolver numa ação isolada na América do Sul. Duque não reativará a guerra civil colombiana em nome da democracia na Venezuela. Os militares brasileiros rejeitam a perspectiva de produzir uma Síria na faixa de fronteira amazônica. O chefe do Itamaraty que clamou por um corredor de invasão a partir de Roraima é evidência dos riscos que Bolsonaro corre ao nomear acólitos do Bruxo da Virgínia a postos de responsabilidade.

No Dia D que não houve, os Estados Unidos, a Colômbia e o Parlamento venezuelano tentaram emparedar os militares entre as alternativas de usar munição real contra o povo ou romper com o Executivo. A encruzilhada, porém, não se materializou. De um lado, superestimou-se a mobilização popular na fronteira colombiana. De outro, subestimou-se a coesão das Forças Armadas, que sofreram defecções apenas periféricas. A vitória pontual de Maduro não altera a paisagem de fundo, que descortina um regime falido e fraturas estruturais na aliança de poder. Mas exige a substituição das proclamações triunfalistas por iniciativas realistas.

O Brasil perdeu o confortável papel de ator coadjuvante. Na reunião doGrupo de Lima, o chanceler de facto Mourão reorientou a diplomacia regional, afastando a sugestão de intervenção militar externa aventada por Guaidó. A negação de uma estratégia desvairada não equivale, porém, à definição de uma estratégia positiva. A ditadura venezuelana não cairá sob golpes retóricos ou a multiplicação de sanções econômicas americanas. É preciso remover as últimas esperanças da cúpula militar e, ao mesmo tempo, convencê-la de que não sofrerá a vingança de um futuro governo democrático.

As chaves do enigma encontram-se na Rússia e na China. As duas potências devem ser persuadidas a abandonar o esquife do regime chavista, ajudando a negociar um pacto de transição com os chefes militares. Sem o pulmão financeiro providenciado por elas, a ditadura seria asfixiada. E, com a garantia delas, os comandos das Forças Armadas venezuelanas dariam crédito à promessa de anistia formulada pelo Parlamento.

Não é missão impossível. Putin carece de meios para projetar poder na América do Sul. O governo chinês não trocará suas relações com os principais países sul-americanos pela proteção a um regime sem amanhã. Contudo, para realizá-la, o "Deus de Trump" precisa sair de cena. Se pretende exercer liderança na crise regional, Bolsonaro deve ter a coragem de apagar as luzes do quarto das crianças. Afinal, já passa da meia-noite.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Celso Lafer: Sobre a identidade internacional do Brasil

Manifestações iniciais do governo Bolsonaro revelam dificuldade em orientar o País no mundo

O tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da sua ação diplomática. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantêm o fio da continuidade que permite falar em identidade internacional.

No trato da identidade internacional do Brasil, tenho utilizado a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam “forças profundas”. São explicativas dos elementos históricos da continuidade de nossa política externa desde a independência que mantêm uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais, provenientes das contradições da vida e das ações políticas. É essa dimensão de coerência que esclarece, como mostrou Rubens Ricupero, o relevante papel da diplomacia na construção do Brasil, incluída a constituição mais pacífica da nossa escala continental, uma singularidade que nos diferencia de outros países de escala continental, como EUA e Rússia.

A política externa e a atividade diplomática têm como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar esses interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país.

Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Nesse contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto de vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, os fatores de persistência esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto de vista que resulta da memória de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva.

San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não acontece da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais mudanças de rumo não têm os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado: é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.

Essa dimensão de continuidade, estabilidade e coerência está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu chanceler, com impacto na credibilidade internacional do nosso país.

Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um Estado confessional. É, desde a República, um Estado laico. A Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa suscitar, de maneira inédita, o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para as tensões da intolerância da geografia das paixões religiosas, inserindo o nosso país numa problemática em que não precisa se envolver. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos termos da Constituição (artigo 225). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta todos os que vivem na Terra. A sustentabilidade é uma exigência de uma economia internacionalmente competitiva, necessária para o comércio internacional dos produtos, incluídos os agrícolas, já que o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.

O Brasil tem desde a Rio-92 uma construtiva e ativa participação na agenda internacional do meio ambiente, que se tornou um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nessa matéria do governo Bolsonaro comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional e põem em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais.

Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua a porosidade das fronteiras e propaga tensões difusas em todas as esferas. Para lidar com os desafios inerentes a essas tensões pelo caminho da efetivação dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil - entre eles a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (Constituição, artigo 4, IX) - é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito das quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar dessa participação a partir da rejeição autocentrada do “globalismo” ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo e não apenas estamos no mundo, mesmo em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isso, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos e da abertura à concessão de asilo político, diretrizes constitucionais da política externa.

Em síntese, esses exemplos, entre muitos outros, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu chanceler revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de esperar que no confronto com a realidade interna e externa essas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.

* Celso Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Elio Gaspari: De Guerreiro@edu para Bolsonaro

Senhor presidente,

Fui empregado do Itamaraty durante 45 anos, seis dos quais como ministro das Relações Exteriores do general João Figueiredo (1979-1985). Ouvi o que o senhor disse em Davos, esperando que o governo da Venezuela “mude rapidamente”. Por cá, tenho ouvido a mesma coisa, pois o presidente Nicolás Maduro arruinou o país. Escrevo-lhe para sugerir que nossa diplomacia trate a crise desse país com quem temos dois mil quilômetros de fronteira seca tirando as meias sem tirar o sapato. Para as pessoas comuns, isso parece impossível, mas no Itamaraty sabemos fazê-lo.

Tenho horror a falar de qualquer coisa, sobretudo de mim. Na Casa corre o chiste segundo o qual eu sou capaz de dormir durante meus próprios discursos. Costumo adormecer os outros mas, mesmo acordado, falo pouco.

Quando sugiro que tiremos a meia sem tirar o sapato, lembro que a hostilidade verbal de seu governo em relação a Nicolás Maduro já foi explicitada. Nossas precauções devem se relacionar com o dia seguinte a uma eventual queda do bolivarianismo. O que advirá? Isso ninguém sabe. Tomara que não aconteça nada e que os venezuelanos resolvam a própria crise.

Em 1965, o Brasil apoiou a intervenção militar americana na República Dominicana, mandou tropas para uma força multilateral de paz e chegou a comandá-la. Mesmo assim, veja a frequência com que se fala das nossas missões militares recentes no Haiti e no Congo. Da República Dominicana, fala-se pouco. O que começou como uma operação destinada a evacuar cidadãos americanos transformou-se numa ocupação, e a tropa brasileira ficou por lá durante 18 meses. Até hoje, a diplomacia americana discute o processo de decisão que levou o presidente Lyndon Johnson a invadir o país. De qualquer forma, a Dominicana fica a dois mil quilômetros das nossas fronteiras.

O Itamaraty tirou a meia sem tirar o sapato em 1982, quando o general argentino Leopoldo Galtieri invadiu as Ilhas Malvinas, ocupada pelos ingleses desde 1833. O general achava que os Estados Unidos ficariam neutros e a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher absorveria o golpe. Não aconteceu uma coisa nem a outra. Se o Brasil apoiasse Galtieri, seria sócio de uma aventura. Se apoiasse a Inglaterra, alimentaria um ressentimento que duraria gerações. Ficamos no fio da navalha, apoiando o direito argentino à posse da ilha e dissociando-nos da invasão. Lembro-me de que o general Figueiredo foi a Washington e disse ao presidente Ronald Reagan que o Brasil não admitiria um ataque ao continente argentino. Ele não ocorreu, até porque não foi necessário.

Um ano depois do caso das Malvinas, pousou em Brasília um avião americano com o diretor da CIA, William Casey. Ele trazia um recado para Figueiredo: os Estados Unidos planejavam uma invasão ao Suriname e queriam nosso apoio, inclusive com tropas. O governo local era esquerdista, tinha ajuda cubana e perseguia a oposição. Conseguimos dissuadi-lo, dizendo-lhe que deixassem o Suriname por nossa conta. Figueiredo fez saber a Reagan que a condição de país limítrofe determinava que quaisquer efeitos negativos repercutiriam em primeiro lugar sobre nossos próprios interesses.

Nunca contei essa história, mas ela foi revelada no diário de Reagan. Outro dia reclamei com ele da indiscrição. Como ensinou o Barão do Rio Branco, diplomata não sai por aí cantando vitórias.

Perdoe-me a impertinência, mas o último presidente que pensou em mover tropas na nossa fronteira norte, para a Guiana Inglesa, foi Jânio Quadros.

Com meu profundo respeito, Ramiro Saraiva Guerreiro.


O Globo: Mourão coloca em dúvida capacidade do chanceler de conduzir política externa

Vice-presidente afirmou à revista 'Época' que Ernesto Araújo 'não falou o que pretende fazer'

Juliana Dal Piva e Guilherme Evelin, de O Globo

O vice-presidente Hamilton Mourão colocou em dúvida, em entrevista à revista "Época", a capacidade do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, de conduzir a política externa brasileira. De acordo com Mourão, o chanceler "não falou o que pretende fazer".

O vice foi entrevistado para um perfil de Araújo, publicado na última edição da revista. No final da conversa, ele sugeriu uma chamada de capa para a reportagem:

— Acho que uma boa seria: "Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?". Porque ele não falou o que pretende fazer — disse.

Mourão ironizou o destaque aos Estados Unidos e a Israel dado pelo chanceler nas relações diplomáticas.

— Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito? — indagou, em tom de troça. — A diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos de outros países. E ainda não está claro.

O vice-presidente tem se reunido com embaixadores de diversos países, como Argentina, Rússia, Ucrânia, Holanda e França — sem a presença do ministro das Relações Exteriores, como é de praxe.

Ele se disse preocupado com as notícias negativas sobre o Brasil, sobre a confusão na nomeação feita por Araújo para a presidência da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex) — primeira demissão do governo Bolsonaro — e com o recuo de falar em construir uma base militar no Brasil — coisa que é contra.


Eliane Brum: O chanceler quer apagar a história do Brasil

Como o ideólogo do governo Bolsonaro usa José de Alencar para pregar a assimilação dos indígenas e justificar a abertura de suas terras para o agronegócio

“Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse. Por quê?

Prestar atenção ao que diz o chanceler Ernesto Araújo tem sem mostrado tarefa penosa, mas fundamental para compreender como a ideologia do Governo Bolsonaro está sendo construída. O diplomata foi indicado por Olavo de Carvalho, considerado o “guru da nova direita” brasileira, desde sua casa nos Estados Unidos. Claramente, Araújo tem a pretensão de dar a base intelectual ao que o bolsonarismo chama de “nova era”. Se integrantes mais preparados do governo concordam, há dúvidas robustas para suspeitar que não. Araújo, porém, segue firme em seu propósito, publicando artigos onde consegue espaço.

discurso de posse como novo ministro de Relações Exteriores é uma falsificação da história, com o objetivo de justificar o presente e o futuro próximo. Para fazer parecer que a estrutura parava em pé, o chanceler usou seu grego, seu latim e até mesmo seu tupi, abusou do recurso do name-dropping (ótima expressão em língua inglesa para aqueles que desfiam nomes e citações para impressionar o interlocutor), dos clássicos à cultura pop. Todos já bem mortos, para que nenhum deles pudesse contestar a citação. Nenhuma de suas escolhas é um acaso. Vale a pena se deter em cada uma delas porque, como já escrevi neste espaço, os malucos agora sapateiam no palco — e sapateiam com poder de destruição.

Ernesto Araújo é um personagem ainda obscuro para o Brasil, embora seja um diplomata de carreira do Itamaraty. Em seu discurso, ele dispôs de figuras e acontecimentos históricos, assim como artistas contemporâneos, como se eles estivessem misturados como bonecos de plástico numa prateleira, para serem usados ao gosto do freguês — e para o propósito do freguês. Arrancados de seu contexto e esvaziados de conteúdo, eles foram manipulados pelo chanceler para produzir a sua falsificação. Cada frase tem ali um objetivo.

Me detenho apenas em uma, que chamou particular atenção e foi reproduzida várias vezes na imprensa e nas redes sociais, com a qual abro esse artigo: “Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”. Por quê?

Não é preciso ter inteligência acima da média para perceber que não faz nenhum sentido contrapor um dos mais importantes jornais do mundo, com edição diária, e dois escritores do romantismo brasileiro do século 19. O objetivo é exacerbar um nacionalismo que se ajoelha diante de Donald Trump, mas despreza a independência do New York Times; idolatra o WhatsApp e o Facebook de Mark Zuckerberg, mas achincalha a imprensa brasileira.

O chanceler quer menos denúncias bem apuradas e checadas contra Bolsonaro e contra os abusos do seu governo, documentados pelo Times e pelos principais jornais do mundo onde a imprensa é livre. Menos imprensa, convertida declaradamente em “inimiga pública”, por Bolsonaro e seus papagaios, porque querem falar diretamente com seus seguidores sem serem perturbados. Do contrário, teriam que responder perguntas difíceis e explicar depósitos de Queiroz na conta da primeira-dama.

Para não terem que prestar contas de seu governo ao público, é preciso destruir a credibilidade da imprensa. Sim, porque um tuíte ou um “live” no Facebook não é prestar contas, é apenas dizer o que quer, como faz a maioria, sem correr o risco de ser contestado com fatos e provas. O que os bolsonaristas querem fazer parecer democracia é apenas autoritarismo e já foi usado antes por governos totalitários, mas sem a enorme facilidade das redes sociais da internet.

O bolsonarismo quer inventar seus próprios fatos

A imprensa só faz sentido se fiscalizar o governo, qualquer governo. A frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) já se tornou clichê, mas ela é precisa: “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. A luta dos bolsonaristas é para inventar seus próprios fatos, de modo que a realidade não importe nem atrapalhe seu projeto de poder.

Mas por que José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), dois escritores do Brasil do século 19, que escreveram no Brasil imperial, durante o reinado de Dom Pedro II?

Essa escolha é capciosa, como todas as outras. E se refere a uma suposta identidade nacional. Alencar e Dias são expoentes do romantismo na literatura brasileira — um na prosa, o outro na poesia. Eles viveram e escreveram sua obra num momento muito particular do Brasil. O país se tornara independente de Portugal, o que significava que deixava de ser colônia dos portugueses.

Na visão dos homens daquela época (e eram majoritariamente homens, porque as mulheres, exceto raríssimas exceções, não tinham voz pública), era necessário criar uma identidade nacional. Para isso, seria preciso marcar essa identidade no campo da cultura. O Brasil deveria ter, ao mesmo tempo, uma literatura que o colocasse no mesmo patamar da Europa, que vivia a fase do romantismo, e ser ele próprio um novo que emergia após os séculos de domínio português. Gonçalves Dias e José de Alencar entregaram-se a essa tarefa. Não foram os únicos, mas tornaram-se referências do romantismo que inaugurava o que se chamou de literatura brasileira.

Para o ideólogo do governo, Bolsonaro seria uma espécie de Dom Pedro I declarando a segunda independência do Brasil

O chanceler de Bolsonaro exalta um momento da história do Brasil em que as elites se empenham em criar uma identidade nacional depois de o país ter sido colônia de Portugal. Araújo parece acreditar — ou quer que acreditemos — que o governo Bolsonaro está promovendo “o renascimento político e espiritual” do Brasil, como ele escreveu em um artigo. Ou, como afirmou em seu discurso de posse: “Reconquistar o Brasil e devolver o Brasil aos brasileiros”. Araújo quer que acreditemos que tudo o que aconteceu entre a independência do Brasil, a de 1822 — e a nova independência do Brasil, a que ele acredita estar sendo liderada pelo seu chefe, em 2019 — não existiu.

O ideólogo do governo parece sugerir que esse hiato de dois séculos foi um tempo de perdição do Brasil de si mesmo. “O presidente Bolsonaro disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que os brasileiros profundamente sentimos”, afirma Araújo, que acredita ainda que suas cordas vocais libertam a voz do povo. Bolsonaro seria então uma versão contemporânea de Dom Pedro I, com sua espada em riste para libertar o Brasil. Não mais diante do riacho Ipiranga, agora no espelho d’água do Planalto.

O chanceler acessa esse episódio em dois momentos de sua vida, como ele mesmo relata no discurso de posse: “Eu me lembro da emoção que eu senti pela primeira vez, quando era Terceiro Secretário (do Itamaraty), que subi as escadas para este terceiro andar, e vi, logo ao subir a escada, o quadro da Coroação de Dom Pedro 1º e o quadro do Grito do Ipiranga. Imediatamente, eu, que tinha 22 anos, me lembrei de quando tinha 5 anos e assisti maravilhado no cinema ao filme ‘Independência ou Morte’, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. E pensei: então tudo isso existe, né? Tudo isso existe... e tudo isso é aqui!”.

Pois é. Em outro ponto, com a sutileza de dar alguns parágrafos de intervalo, o admirador de Dom Pedro I e de Tarcísio Meira usa um tuíte para comparar Bolsonaro à rainha Elizabeth II, da Inglaterra: “Vou dar um exemplo do que temos para ouvir. É o comentário de uma pessoa que segue a minha conta do Twitter, que diz o seguinte... li isso ontem: ‘Antes eu não entendia o amor do povo da Inglaterra pela rainha. Agora entendo. Quando temos alguém que ama seu país e seu povo e os defende, ganha amor e respeito. Não conhecíamos isso antes de Bolsonaro’”.

Em nenhum momento os indígenas são citados nominalmente no discurso de posse do ideólogo do governo de extrema direita, o que em si já diz bastante coisa. Mas uma das línguas indígenas, o tupi, se faz presente. De que modo, porém? Na Ave Maria em tupi do padre José de Anchieta, jesuíta canonizado santo pela Igreja Católica. A língua do indígena usada para catequizá-lo numa religião alienígena às suas crenças. A escolha não é um detalhe. Sem a experiência da cultura, que confere carne à língua e conteúdo às palavras, a língua nada é. Apenas casca, como casca era o indígena do romantismo do século 19.

O bolsochanceler exalta José de Alencar, o escritor que fez do índio “um cavaleiro português no corpo de um selvagem”

O escritor José de Alencar é o principal expoente da prosa do que se chama “indianismo” na literatura brasileira. Em três livros — O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) —, ele busca construir uma identidade nacional fiel aos princípios do romantismo. Como o romantismo europeu é marcado por uma ideia heroica do cavaleiro medieval, Alencar torna o indígena um cavaleiro medieval ambientado na exuberante paisagem tropical do Brasil.

O indígena, habitante nativo que vivia na terra antes do domínio europeu, seria o herói genuinamente brasileiro da nação que se declara independente da metrópole. Mas com todas as qualidades atribuídas à cavalaria, na Idade Média, transplantadas para seu corpo e sua alma. A coragem, a lealdade, a generosidade, a partir de um ponto de vista que servia à manutenção do sistema feudal, e o amor cortês. Para escritores da época de José de Alencar e de Gonçalves Dias, que viviam o período pós-independência do Brasil, escrever era um ato de patriotismo. Eles teriam de dizer com sua obra o que é “ser brasileiro”. É também essa referência que o ideólogo do governo procura resgatar e enaltecer.

Os negros, corpos escravizados que moviam a economia do Brasil e serviam às suas elites, não estavam presentes como formadores de uma identidade nacional nestes romances de fundação. Se os escritores buscavam uma identidade nacional, ela era forjada dentro da matriz europeia. Como seria possível escrever em língua portuguesa, a do colonizador, sem ser colonizado na linguagem, foi uma questão crucial para a qual Alencar e outros também tentaram dar uma resposta no século 19. Mas este é um tema longo para outra conversa.

Em artigo no Nexo, Vinícius Rodrigues Vieira, professor-visitante do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), afirma: “Araújo — assim como as alas mais conservadoras do governo — ambiciona o retorno a uma identidade nacional pré-freyriana, ou seja, antes das ideias que ficaram associadas a Gilberto Freyre. Em suma, o ideal de sincretismo encarnado na malfadada expressão ‘democracia racial’. Não à toa o ministro citou em seu discurso de posse o romancista José de Alencar, cujas obras claramente buscavam no indígena harmonizado com o colonizador as raízes de nossa nacionalidade, sem considerar o legado africano”.

“Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!” A frase é de D. Antônio de Mariz, fidalgo português e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro na obra de José de Alencar. Assim o personagem é descrito em O Guarani, primeiro romance indianista do escritor, publicado na época como folhetim, com grande sucesso: “Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta”.

O “cavaleiro português no corpo de um selvagem” é Peri, um indígena do povo Goytacá, que desde que salvou da morte Cecília, a filha do fidalgo, um “anjo louro de olhos azuis”, é adotado pelo clã dos Mariz. Peri passa a viver numa cabana perto da casa da família, uma espécie de castelo onde o escritor reproduz as relações de vassalagem do feudalismo que o Brasil nunca teve, mas parte da Europa sim.

Peri faz todas as vontades da moça, a quem serve como um cão de estimação. Diz Isabel, outra personagem: “Pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri”.

Peri era manso, domesticado. Mas valente. Quando D. Diogo, filho do fidalgo, mata por acidente uma Aymoré, este povo indígena tenta vingar-se matando Ceci, mas é impedido por Peri. A tensão cresce entre a família portuguesa e o povo indígena. Peri arma então a estratégia de envenenar-se para combater os Aymoré. Como essa etnia mantém o ritual de canibalismo, devorando os valentes vencidos, ele será comido depois de morto e assim exterminará também o inimigo.

A pedido de Ceci, Peri suspende seu sacrifício heroico. Ao final do romance, Dom Antônio entrega Ceci a Peri para que ela seja salva. Mas só entrega a filha se Peri converter-se ao cristianismo: “O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. — Sê cristão! Dou-te o meu nome. Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora”.

O “bom selvagem” é aquele que pode ser assimilado pela “civilização”

Peri e Ceci fogem então numa canoa e são surpreendidos por uma tempestade. Depois, os dois somem no horizonte. José de Alencar termina sua obra com a ideia de que o casal formará a identidade do novo Brasil. “Horizonte”, a última palavra do romance, é ao mesmo tempo futuro e o país que se descobre.

Este é o indígena que aparece no discurso do chanceler, ao citar José de Alencar. Uma identidade nacional forjada por um “cavaleiro português no corpo de um selvagem”, que luta contra um povo indígena diferente do seu para salvar sua adorada senhora branca, filha do colonizador, e que se converte ao cristianismopara fundar com ela o futuro nos trópicos. Peri, o indígena, é o “bom selvagem” que oferta seu corpo para ser assimilado pela civilização.

Ao criar esse herói romântico no século 19, supostamente indígena, Alencar sofreu críticas por desprezar a realidade. Mas o escritor deve ser compreendido no seu contexto. Que Araújo o faça no século 21, usando José de Alencar e desprezando todos os debates culturais daquela e de outras épocas, poderia ser apenas um ataque contra a inteligência. Mas o chanceler do bolsonarismo também precisa ser entendido no contexto do governo que ele tenta justificar não apenas como um governo, mas como uma “nova era”.

O bolsonarismo é um projeto de poder em que até mesmo Bolsonaro pode ser tornar um mero adereço – ou nem isso

O bolsonarismo é um projeto de poder com diferentes forças internas e possivelmente antagônicas, em alguns temas, como o futuro próximo deve mostrar. Como todo projeto de poder, está em disputa. Em algum momento, talvez o próprio Bolsonaro, que dá nome à ideologia em construção, seja apenas um adereço — ou nem mesmo isso.

Há um tema, porém, em que os diversos grupos que formam o capitalismo messiânico que governa o país parecem coincidir, guardando uma eventual ressalva por parte de uma parcela dos militares, cuja posição ainda não está totalmente clara. Este tema é o futuro dos indígenas. Ou, mais especificamente, o futuro das terras indígenas.

A escolha deste indígena com atributos morais europeus, representado pela alusão a José de Alencar, não é um acaso. Este indígena, que na obra do escritor manteve apenas as características do corpo e a cor, vai ser branqueado pela matriz europeia da loira Ceci dos olhos azuis para fundar o Brasil pós-independência. É amor cortês, mas também é assimilação brutal. Sobre Peri, a quem não conhecemos porque Alencar também não conhecia, nada sabemos.

Vale a pena lembrar a declaração do hoje vice-presidente, Hamilton Mourão. Ao justificar ter dito durante a campanha que o país herdou a “indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos negros, o general resgatou sua mestiçagem e a colocou a serviço do apagamento do racismo estrutural do Brasil: “Em nenhum momento eu quis estigmatizar qualquer um dos grupos, até porque nós somos um amálgama de raças. É só olharem para mim. Eu sou filho de amazonense, minha vó é cabocla”.

O que o bolsonarismo anuncia entender por “mestiçagem” é assimilação. É o que Bolsonaro afirmou de várias formas na campanha, com a brutalidade habitual: “O índio é ser humano como nós”. Quem será que pensava que o índio não era humano?

É importante seguir perguntando. O que é, neste contexto, “ser humano como nós”, Bolso? O populista explica que o índio “quer ter o direito de 'empreender' e 'evoluir', o índio quer poder vender e arrendar a sua terra. Mas avisa: “Os índios não querem ser latifundiários”. No entender do novo presidente, ser humano latifundiário o índio não quer ser.

Antes do bolsonarismo, a tática da direita era dizer que os índios não eram mais índios. Era duvidar da “autenticidade”. Como se um indígena usar celular o tornasse menos indígena. Ao deixarem de ser considerados indígenas, os diferentes povos perderiam o direito à terra. Essa tática ainda persiste. Mas a nova direita representada por Bolsonaro é mais esperta. Ela não nega o indígena, e sim afirma uma suposta igualdade do indígena ao branco. Não para que os indígenas mantenham seus direitos constitucionais, mas para que os percam.

Mais tarde, logo após a eleição, Bolsonaro ainda afirmaria: “E por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológico? O índio é um ser humano igualzinho a nós e quer o que nós queremos, e não pode se usar a situação do índio para demarcar essas enormidades de terras que, no meu entender, poderão ser sim, de acordo com a própria ONU, novos países no futuro”. Só para constar: a ONU nunca disse que as terras indígenas serão países do futuro.

O bolsonarismo tenta transformar terra indígena em mercadoria para exploração de grupos privados

O que o discurso do “ser humano como nós” encobre? Pela Constituição de 1988, as terras dos indígenas são de domínio da União. Aos indígenas cabe o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais, mas elas seguem sendo públicas. Uma das principais missões de Bolsonaro é justamente abrir essas terras públicas para exploração e lucros privados.

Uma parcela significativa das terras indígenas está na floresta amazônica. Fazem limite com grandes plantações de soja e criação de boi. Têm sido pressionadas — e invadidas — para o cumprimento do ciclo: desmatamento da floresta para comércio ilegal de madeira, colocação de cabeças de boi para garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de soja. Em algum momento do processo, legalização do “grilo” pelo governo do momento, com anistia aos ladrões de terras públicas — ou aos que compram as terras públicas roubadas pelos ladrões.

Ao tornar o indígena um ser humano que quer converter a terra em mercadoria, o discurso ideológico tem como objetivo fazer com que soja e boi possam avançar sobre a floresta hoje protegida. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você. Mas sim aos grandes criadores de gado e aos grandes grupos plantadores de soja para exportação.

A mudança que os bolsonaristas — o que inclui o agronegócio mais atrasado do país — querem na Constituição vai permitir também a mineração. Não por cooperativas de garimpeiros, sempre criminalizados, mas por grandes grupos transnacionais, apresentados como empreendedores. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você.

Seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas

É fácil perceber que o melhor para o conjunto dos brasileiros é manter a terra ocupada pelos indígenas como terra pública — e a floresta em pé. Como mostrou pesquisa recente do DataFolha, a maioria já entendeu isso: seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas.

O objetivo do bolsonarismo com relação às terras quilombolas é o mesmo: abri-las para a exploração por grupos privados. Era essa a ideia por trás das ofensas do então candidato durante a campanha, que chegou a dizer que os quilombolas não serviam “nem para procriar”. Descendentes de escravos rebelados, os quilombolas têm o título das terras ocupadas pelos antepassados, mas seu uso é coletivo.

Quando o indígena não tem nome próprio no discurso do chanceler Ernesto Araújo é este o propósito. Ao aparecer assimilado no nome de José de Alencar, o indígena já não é. Virou “ser humano igualzinho a nós”. E suas terras ancestrais são mercadorias como as “nossas”. O chanceler de Bolsonaro sabe muito bem a quem serve quando tenta forjar uma identidade nacional para um Brasil que afirma ter renascido pelas mãos de seu chefe. Ele não cita os indígenas, mas afirma enfaticamente em seu discurso que trabalhará pelo agronegócio.

A floresta amazônica é estratégica para evitar que o aquecimento global supere os 1,5 graus Celsius nos próximos anos. Isso não é opinião, é pesquisa científica de alguns dos melhores cientistas do mundo, que trabalham há décadas com a crise climática. Para que o aquecimento global não avance, a floresta precisa ficar em pé. Como manter a floresta em pé se o bolsonarismo se comprometeu a abrir as terras indígenas para exploração?

É preciso criar uma ideologia, como faz o bolsonarismo. Nela, o indígena supostamente teria como aspiração maior da sua vida se tornar branco “como nós” e passar a tratar a terra como mercadoria, ansioso por arrendá-la aos grandes grupos exportadores de soja e carne ou às grandes mineradoras transnacionais. É preciso também afirmar que mudança climática é um complô marxista, como o chanceler de Bolsonaro já escreveu, para não encontrar resistência ao entregar a Amazônia em nome do nacionalismo.

O chanceler criou um departamento específico para o agronegócio no Itamaraty e extinguiu o departamento que cuidava do clima e de energias renováveis. A mensagem é clara. O atual presidente do Brasil fez ainda mais. Transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, fundadora de uma ONG acusada de incitar ódio contra os indígenas. Os evangélicos, grupo que a ministra representa, têm todo o interesse em ampliar a presença da sua religião entre os povos originários. A eles também interessa que o índio seja “ser humano como nós”, o que neste caso significa ser evangélico neopentecostal.

Bolsonaro entregou o banco de sangue aos vampiros

Bolsonaro, como garoto obediente ao agronegócio mais truculento, aquele que se confunde com agrobanditismo, foi adiante: entregou a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, comandado pela pecuarista Tereza Cristina, conhecida como “musa do veneno”, pelos serviços prestados como congressista às indústrias transnacionais de agrotóxicos. Como comentou um jornalista estrangeiro: é o mesmo que entregar o comando do banco de sangue aos vampiros.

O problema para o bolsonarismo se chama “realidade”, já que o planeta não vai parar de aquecer por causa das mentiras de Bolsonaro e de seu chanceler. Mas até isso ficar claro para seus seguidores, a destruição já estará consumada e os grupos que compõem o bolsonarismo já terão multiplicado seus lucros. Se os lucros são de poucos, o prejuízo sobrará para todos. Para os mais pobres e os mais frágeis, o sofrimento será maior e chegará primeiro. Já chegou. Basta ler a imprensa séria para descobrir. Ou lembrar quem sofreu mais com a última crise da água em São Paulo.

O ideólogo do governo afirma ser preciso ler menos o New York Times e mais José de Alencar também porque a imprensa internacional tem apontado duramente o perigo que Bolsonaro representa para o planeta. A importância do Brasil no cenário internacional é dada principalmente pela floresta amazônica. E não para exploração de produtos primários como soja, carne e minérios, mas sendo floresta.

Converter a floresta em matéria-prima de exportação é o pior negócio da história, inclusive para a agropecuária

A conversão de floresta em matérias-primas para exportação pode beneficiar a economia a curto prazo. Isso interessa aos ultraliberais do atual governo, como interessou aos governos do PT, que foram um desastre para a Amazônia. Mas é claramente o pior negócio da história para todos. Inclusive para a agricultura, como sabe o setor esclarecido do agronegócio, que, infelizmente, é minoritário no Brasil.

Nem Bolsonaro nem seu chanceler sabem quem são os indígenas, como vivem e o que fazem. Nem acham que precisam saber. Se a mentira que criaram serve a seus interesses imediatos, para que serviria a realidade?

Para os não indígenas que se interessam em conhecer os indígenas, o primeiro fato a compreender é que não existe um indígena, e sim mais de 240 povos com cultura própria. Vale lembrar que a estimativa é de que havia mil povos antes da invasão europeia, no século 16. Hoje, os povos que sobreviveram às sucessivas matanças e às epidemias transmitidas pelos brancos são, ao mesmo tempo, eles mesmos uma enorme riqueza em sua diversidade cultural e também os maiores responsáveis pela proteção da biodiversidade das terras onde vivem.

Alguns ainda conseguem viver sem saber dos brancos, ou sabendo o mínimo possível, e para todos é melhor que continue assim. Outros, cujo contato com os brancos já foi estabelecido, encontram seus caminhos para gerar renda sem destruir o ecossistema. As terras indígenas, comprovadamente, são os maiores obstáculos à derrubada da floresta amazônica. Em 2018, o desmatamento na Amazônia atingiu o índice mais alto da década. Só no período eleitoral, o desmatamento cresceu quase 50%, comparado ao ano anterior, tão confiantes os desmatadores se sentiram com a certeza da vitória de Bolsonaro.

Em editorial desta semana, o Instituto Socioambiental, que faz a publicação mais completa sobre Povos Indígenas no Brasil, atualizada regularmente e disponível na internet, conta ao governo o que o governo não está interessado em saber. O mel dos índios do Xingu foi o primeiro produto indígena de origem animal com certificação orgânica e registro no Sistema de Inspeção Federal. Já está no mercado do sudeste do país. O óleo de pequi do povo Kisêdjê representou o Brasil numa feira do movimento Slow Food em Turim, na Itália. O cogumelo Yanomami é reconhecido internacionalmente no mundo da gastronomia. A pimenta Baniwa tem 78 variedades que são utilizadas na fabricação de chocolate, molhos e cervejas no Brasil e no exterior. Os indígenas Wai Wai, Xikrin, Kuruaya e Xipaya comercializam safras com toneladas de castanha para uma fabricante de pães e produtos derivados. A borracha dos Xipaya é utilizada por outra grande indústria brasileira. Os Kayapó e Panará vendem o cumaru para empresas internacionais de cosméticos produzidos artesanalmente.

Quem não existe não pode reivindicar terra na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio

O que atrapalha a economia da floresta não é a proteção da floresta. Pelo contrário. O que atrapalha a economia da floresta é a invasão dos grileiros para explorar a madeira, botar soja e pasto para boi. É a anistia destes grileiros por governos como o de Lula e o de Michel Temer, que converteram criminosos violadores de terras públicas em representantes do “agronegócio” e membros do “setor produtivo nacional”. É a demora na demarcação dos territórios ancestrais, hoje paralisada por Bolsonaro. É a instabilidade e a total falta de apoio governamental, apesar de os produtos comercializados pelos indígenas pagarem todos os impostos. É a ignorância dos governos e de seus economistas. É um chanceler que quer reinventar o índio de José de Alencar para inventar um índio que não existe. Quem não existe não pode reivindicar a demarcação de suas terras na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio.

O discurso de posse do chanceler é a tentativa de lançar as bases ideológicas do que está sendo chamado de bolsonarismo, aquelas que pretendem justificar tanto o armamento da população quanto a exploração predatória das terras indígenas e quilombolas. Seria importante que os professores das universidades, instituições tão atacadas por Bolsonaro e seus seguidores, usassem seu conhecimento para dissecar esse discurso naquilo que diz e naquilo que omite. E o fizessem na internet, onde todos têm acesso.

Foi na internet que os malucos passaram a dançar e um deles se tornou presidente. O debate tem que ser travado (principalmente) ali, como já perceberam uns poucos intelectuais. Da tarefa de resgatar a importância dos fatos, a prevalência da realidade e a honestidade do debate ninguém tem o direito de se omitir. Em especial quem é pago com recursos públicos.

Termino com outro trecho do discurso do ideólogo do bolsonarismo: “É só o amor que explica o Brasil. O amor, o amor e a coragem que do amor decorre, conduziram os nossos ancestrais a formarem esta nação imensa e complexa. Nós passamos anos na escola, quase todos nós, eu acho, escutando que foi a ganância ou o anseio de riqueza, ou pior ainda, o acaso, que formou o Brasil, mas não foi. Foram o amor, a coragem e a fé que trouxeram até aqui, através do oceano, através das florestas, pessoas que nos fundaram”.

O projeto de poder em curso quer inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu

Ernesto Araújo torna explícito que o “renascimento” proposto pelo bolsonarismo é criminoso. Seu projeto de poder não busca apenas moldar o presente a partir de premissas falsas como “ideologia de gênero” e “climatismo”, mas sim inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu. Antes será preciso explicar como “o amor” matou milhões de indígenas, extinguiu povos inteiros, e colocou à força no Brasil quase 5 milhões de escravos africanos, durante mais de três séculos. Seus descendentes ainda hoje vivem pior e morrem mais cedo.

José de Alencar sonhava com construir uma identidade nacional no século 19, em um país que acabara de se tornar independente da metrópole e precisava de um rosto para se legitimar como nação. Em seu discurso inaugural, Ernesto Araújo violenta dois séculos de debates culturais e ofende até mesmo a memória de Alencar. O chanceler quer, no início do século 21, apagar todo o passado. Como se o Brasil fosse uma página em branco que o bolsonarismo vai passar a escrever a partir do ponto zero da independência.

Nenhuma novidade. A “nova era” do bolsonarismo apenas copia os piores exemplos dos totalitarismos do século 20, que também quiseram forjar seu próprio mito e sua própria mitologia para justificar as atrocidades que cometeriam logo adiante. Como os dias mostraram, os cadáveres daqueles que destruíram teimam em viver como memória. Não esqueceremos. Nem deixaremos esquecer.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da LendaA Vida Que Ninguém vêO Olho da RuaA Menina QuebradaMeus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Demétrio Magnoli: O que querem os ‘antiglobalistas’

“(...) admiramos os EUA, aqueles que hasteiam sua bandeira e cultuam seus heróis. (...) Por isso admiramos a nova Itália, por isso admiramos a Hungria e a Polônia, admiramos aqueles que se afirmam e não aqueles que se negam.” No seu discurso de posse no Itamaraty, o ministro Ernesto Araújo aderiu ao pacto informal dos governos que se exibem como “antiglobalistas”. À primeira vista, é só um discurso constrangedor — e vazio. Afinal, a guerra comercial EUA/China, a imigração, a crise dos refugiados e a integração europeia são dilemas com fraca incidência sobre o Brasil. Um exame mais acurado revela, porém, a existência de uma agenda comum.

Os “antiglobalistas” usam as palavras para iludir. Falam de Deus, da nação, da soberania e da família, como se essa torrente de referências imprecisas delineasse um rumo político discernível. Destemidos, desafiam o ridículo para denunciar uma conspiração contra os povos articulada por elites liberais “globalistas” junto com as forças do “marxismo cultural”, que é identificado à China de Xi Jinping. Nada disso, evidentemente, tem relevância prática. Vale a pena, contudo, prestar atenção nas suas sentenças condenatórias sobre a “ordem global”.

Araújo convoca os diplomatas a “lembrar-se da pátria”, não “da ordem liberal internacional”, uma “piscina sem água”. Convida-os a abandonar “a escola do globalismo”, que teria feito do Brasil “um país inferior”. Arregimenta-os para uma missão de afirmação nacional, na senda iluminada pelos governos nacional-populistas dignos da sua admiração. As indagações cruciais, que ele nunca faz, são “que ordem global é essa?”, “qual é a sua origem?”, “para que ela existe?”.

A ordem do pós-guerra surgiu de duas fontes paralelas. De um lado, a ruína da ordem estatal anterior, devastada pela fogueira do nazifascismo. De outro, o avanço do sistema soviético sobre o leste da Europa. Do Plano Marshall em diante, ergueu-se uma nova ordem alicerçada na aliança transatlântica entre EUA e Europa Ocidental, que se estruturou em torno de instituições multilaterais de segurança (ONU) e de coordenação econômica (FMI, Banco Mundial). O “globalismo”, no termo pejorativo cunhado pelos neonacionalistas, preveniu a restauração do fascismo e derrotou o totalitarismo comunista.

A fogueira do nazifascismo consumiu a ordem europeia das pátrias orgulhosas de suas soberanias absolutas, de suas raízes inventadas pela imaginação romântica, de seus cultuados heróis nacionais. O discurso de Araújo é uma ode nostálgica (e mal escrita) a um mundo que desapareceu há 80 anos. Mas, sobretudo, é uma conclamação à revolta contra o sistema político resguardado pela ordem construída no pós-guerra.

A paisagem contra a qual Araújo se insurge nasceu de um duplo “não”: a Hitler e a Stalin. A chamada “ordem liberal” é uma tela formada por camadas de pintura superpostas, produzidas tanto pelo liberalismo progressista como pela social-democracia. Nela, estão inscritas as regras da economia de mercado, mas também os valores das liberdades públicas e dos direitos sociais. De Trump a Bolsonaro, passando pelo húngaro Orbán e pelo italiano Salvini, o atual movimento neonacionalista é uma reação sombria ao patrimônio de liberdades e direitos legado pelo pós-guerra.

Trump sonha financiar seu muro na fronteira do México circundando o Congresso por meio de uma declaração de “emergência nacional”. Os governos polonês e húngaro tentam subordinar os tribunais constitucionais à vontade do Executivo. Os quatro governantes admirados por Araújo admiram o russo Putin e o turco Erdogan, que suprimiram as liberdades e calaram as oposições. Os “antiglobalistas” não se conformam com a democracia.

O discurso de posse de Araújo expõe oficialmente, pela primeira vez, um programa que permanecia mais ou menos oculto. Esqueça as teorias conspiratórias sobre a “elite globalista”. O chefe do Itamaraty não está traçando um rumo de política externa. Está dizendo para Bolsonaro avançar contra os direitos constitucionais dos brasileiros.


Folha de S. Paulo: Imagem externa do Brasil mudou para pior no novo governo, diz Benjamin Moser

Para autor americano, chefe do Itamaraty tem discurso de 'ufanista magoado' e usa termos de teor antissemita

Em carta aberta ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, autor norte-americano comenta repercussão internacional das ideias enunciadas pelo novo chanceler em artigo recente.

Prezado ministro,
Há pouco mais de dois anos, o ministério que o senhor hoje encabeça me outorgou o Prêmio Itamaraty de Diplomacia Cultural. Foi um reconhecimento do meu trabalho e trouxe consigo uma obrigação de continuar trabalhando em prol do Brasil —de ser algo como um amigo oficial do Brasil. E é nesta capacidade que lhe escrevo.

Recentemente, o senhor publicou uma matéria no meu idioma, o inglês, e no meu país, os Estados Unidos (“Bolsonaro was not elected to take Brazil as he found it”, ou “Bolsonaro não foi eleito para deixar o Brasil como o encontrou”, na Bloomberg, em 7/1). Se respondo em português, é por dois motivos.

Primeiro, porque sua matéria ilustra muito bem que saber a gramática ou o vocabulário de outra língua não implica compreender suas sutilezas: como soa. Se tivesse maior noção do meu idioma, seria de esperar que não houvesse publicado uma coisa que —digo francamente— expõe o Brasil ao ridículo.

E essa é a segunda razão pela qual lhe respondo em português. Apesar de não ser de nacionalidade brasileira, o Brasil não me é de maneira nenhuma alheio. Desagrada-me profundamente vê-lo alvo de risadas internacionais. Gostaria, pois, que esta conversa ficasse entre nós —em português.

Em inglês, a sua vinculação da política externa com Ludwig Wittgenstein soa bizarra. Suspeito que não seja sua intenção —que é, se estou lendo bem, de deslumbrar o leitor com frases como “desconstrução pós-moderna avant la lettre do sujeito humano e negação da realidade do pensamento”.

Sabe aquele estudante de pós-graduação que encurrala a menina na festa falando de Derrida ou Baudrillard?

Pois é.

Aliás, em inglês, proclamar “não gosto de Wittgenstein” soa pretensioso, arrogante. Sabe aquele homem que, diante de um Picasso, diz que sua filha de quatro anos poderia ter feito melhor?

Pois é.
Mas, além do tom, qual é mesmo seu problema com Wittgenstein? Vejo que não é sequer uma frase inteira, mas uma parte de uma frase: “O mundo tal como o encontramos.”

O senhor lê isso como um pedido —uma ordem, até— de aceitar tudo no mundo tal como é, de não tentar mudar nada, de se comportar como se não tivesse vontade própria. Se acompanho a sua lógica, é assim que o Brasil tem se comportado durante todos os governos, de esquerda como de direita, que precederam o atual.

Para quem conhece a obra de Wittgenstein —assim como para quem tem noções da história diplomática brasileira—, isso pode soar inexato. Mas o senhor pretende romper um padrão que tem impedido o surgimento da verdadeira grandeza do Brasil. O país, segundo o senhor, antes disse: “Eu não acho nada. Eu não tenho ideias. Assim como o sujeito desconstruído de Wittgenstein, eu não tenho um ‘eu’.”

Eu não caracterizaria o trabalho de gerações de diplomatas brasileiros assim. Imagino que, em português, possa soar desdenhoso. Mas estamos falando de como soa em inglês, e, se muito ficou incerto na sua matéria, uma coisa ficou clara: sua vontade de mudar a imagem do Brasil no mundo.

De fato, em poucos meses, essa imagem já mudou bastante. Temo que não seja na direção que o senhor pretende. Pois, em todos os meus anos de brasiliófilo, nunca vi tantas matérias ruins sobre o Brasil surgirem na imprensa europeia e americana. Isso deve ser motivo de preocupação para um chanceler. Porque o Brasil, apesar de seus problemas, sempre desfrutou de um nome positivo no mundo.

O racismo, a homofobia e a saudade da ditadura da nova administração têm sido fartamente comentados na imprensa mundial. Em inglês, o tom dessa cobertura tem sido extremamente negativo. Um chanceler deve poder responder num inglês sereno e compreensível e explicar as razões que levam o novo governo a adotar tal e tal medida.

Quando se dirige a um público internacional, uma coisa a evitar a todo preço é o emprego de termos —“globalistas,” “marxistas,” “anticosmopolitas,” “valores cristãos”— que, em inglês, têm fortes conotações antissemitas.

São extraídos do léxico de conspiração global judaica, e, dada a história deste léxico, pessoas civilizadas, tanto de direita como de esquerda, aprenderam a evitá-lo.

Quando se fala inglês, é preferível, em geral, evitar falar de conspirações. Dá a impressão de ter passado a noite em claro na internet decifrando os segredos das pirâmides. Talvez seja por isso que suas descrições sobre o aquecimento global como trama marxista tenham sido tão amplamente ridicularizadas na imprensa mundial.

Quem, em língua inglesa, quer ser levado a sério evita tais caracterizações. E não é mesmo este o maior desejo do senhor, o de ser levado a sério? É a única coisa que fica clara debaixo da linguagem um tanto acalorada.

A novidade que o senhor anuncia não é outra coisa senão a mais antiga emoção do conservador brasileiro: o ufanismo magoado.

Este é o sentimento de quem quer uma nação que esteja à altura da imagem —muitas vezes exagerada— que tem de si próprio.

Se o senhor imagina que o Brasil não é suficientemente respeitado, seria bom nos brindar com pelo menos um exemplo; na minha experiência, vasta, do Brasil no âmbito internacional, confesso que nunca percebi a falta de respeito.

Mas, mesmo que ela existisse, seria bom lembrar que, em qualquer país, o respeito não se exige. Com paciência e trabalho, se ganha.

Ninguém sabe melhor do que eu os lados positivos que tem o Brasil. Mas, sabemos, brasileiros e estrangeiros, que o Brasil também tem uma cara feia. E é essa cara que seu tom me traz à mente. É o tom daquele patrão que grita “faça que tô mandando!” para a empregada. Asseguro-lhe que não fica mais elegante em tradução inglesa.

Infelizmente, não é apenas uma questão de tom. Desde o primeiro dia, este governo deu a impressão de querer abusar das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Todos os jornais do mundo têm noticiado os ataques aos índios e à população LGBT, além da redução do salário mínimo para os trabalhadores mais pobres.

É possível que haja explicações razoáveis para tais medidas, mas confesso que até agora não as vi. De novo, seria mais eficaz explicá-las com calma do que andar pelo mundo proclamando que os brasileiros não são mais “robôs pós-modernos” e que não suportarão mais “a opressão wittgensteiniana da morte-do-sujeito.”

Porque, ironicamente, é seu medo de ver as pessoas zombarem do Brasil que fará... as pessoas zombarem do Brasil. Deve ter visto a ministra Damares gritando que “menino veste azul e menina veste rosa!” e notado como isso repercutiu pelo mundo. As suas declarações também não ajudam a que as pessoas levem o Brasil a sério.

Se há um ponto em que estamos em total acordo é que também não gosto de ver o Brasil ridicularizado. Por isso, lhe encorajo a lembrar em nome de quem está falando. E de escolher com mais tato, em português como em inglês, as suas palavras.

O senhor se descreve, no seu Instagram, como “ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro”. Não é.

É ministro das Relações Exteriores do Brasil.

Seria bom que se comportasse com a dignidade que tal posição exige.

E se, no futuro, tiver uma dúvida de inglês, pode sempre entrar em contato comigo.

Cordialmente,
Benjamin Moser
Prêmio Itamaraty de Diplomacia Cultural, 2016

*Benjamin Moser, escritor norte-americano, é autor da biografia ‘Clarice’ (Companhia das Letras) e de ‘Susan Sontag: Sua Vida e Obra’, que sai no final do ano também pela Companhia das Letras.


Dorrit Harazim: Sumiu o clima

A ausência do presidente americano rouba de Bolsonaro e Araújo, nossos estreantes em Davos, um escudo de peso

O presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo talvez fiquem desapontados: ainda não será desta vez que haverão de conhecer o mito maior, Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos, emparedado na Casa Branca pelo impasse envolvendo a construção da prometida muralha mítica na fronteira com o México, anunciou que fará forfait em Davos. A paralisação do funcionamento da máquina do governo americano já entra em sua terceira semana, e nem Trump consegue edulcorar a dimensão da encrenca em curso.

Este ano, o Fórum Econômico Mundial começa no dia 22 de janeiro. Sempre no mesmo cenário alpino onde Thomas Mann, Nobel de Literatura de 1929, escreveu sua monumental “A montanha mágica”. Também como sempre, participará das centenas de mesas uma constelação de figurões de ponta da economia global, celebridades, ministros de Estado, chefes de governo, acadêmicos e ativistas. O encontro tem tantos defensores quanto adversários. Alguém já avisou a Jair Bolsonaro e Araújo que para o fundamentalista de direita Steve Bannon, cultuado como estrategista-mor da ascensão de Trump, a reunião anual desse “magma” é produto da treva? “A classe trabalhadora está cansada dos ditames do ‘partido de Davos’”, declarou o personagem em 2014.

A ausência do presidente americano rouba de nossos estreantes em Davos um escudo de peso. Pior, os deixam sós e soltos ao alcance de uma atrevida adolescente sueca de 16 anos, Greta Thunberg, que irrompeu no cenário mundial durante a 24ª Conferência da ONU sobre o Clima, em Katowice, Polônia, em dezembro, quando demonstrou saber se fazer ouvir.

De início, poucos entenderam o que fazia aquela criança de tranças Rapunzel, cara de bolacha e crachá pendurado no pescoço, sentada ao lado do secretário-geral das Nações Unidas. Ela foi uma das palestrantes. Seu discurso durou apenas quatro minutos, mas acordou os representantes de quase 200 países no plenário. Ninguém fez melhor em matéria de frescor, naturalidade e relevância não acadêmica. Vale a pena conferir na internet e redes sociais, onde Greta está por toda parte com sua cruzada pró justiça climática. Abaixo, um trecho do discurso em que a adolescente parecia ser o único adulto no salão:

“Não conseguiremos salvar o mundo jogando pelas regras do jogo. Porque essas regras precisam ser mudadas. Não viemos aqui implorar aos líderes mundiais que cuidem do nosso futuro. Eles nos ignoraram no passado e nos ignorarão novamente.

Viemos aqui para que eles saibam que a mudança está vindo, gostem ou não. As pessoas enfrentarão o desafio. E, como nossos líderes estão se comportando como crianças, teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo.”

Greta havia saído do seu casulo numa segunda-feira de retorno às aulas na Suécia, em agosto passado. Em vez de fazer o caminho da escola onde cursa a nona série, porém, ela tomou assento num degrau à frente da sede do Parlamento no centro de Estocolmo, e empunhou um cartaz onde se lia “Greve escolar pelo clima”. Era uma greve de uma só pessoa, que se repetiria a cada semana até os congressistas votarem as medidas que prometeram cumprir pelo Acordo Climático de 2015 assinado em Paris.

Como na Suécia ir à escola é obrigatório, ela estava infringindo a lei, mas ninguém ousou detê-la, até porque os pais a apoiaram. Não tardou, e a ela se juntaram mais colegiais, a ativista caiu no gosto de cidadãos comuns, a hashtag #We Dont Have Time (maior rede de mídia social para ação climática) a adotou, e, dali para a frente, uma vez por semana, ginasianos em várias cidades do mundo se juntam à sua cruzada. Esta semana foram 3.500 em Bruxelas, outros tantos em Helsinque. “E se um milhão, dez milhões de crianças mostrassem ao mundo que a escola é inútil se não houver futuro?”, pergunta Greta através do movimento #FridaysForFuture.

Em pleno invernão europeu, ela viajará de carro até Davos (65 horas ida e volta de Estocolmo) por ojeriza ao combustível usado na aviação civil. É provável que ela chegue cheia de ideias para o futuro de sua geração. Mas talvez não esteja preparada para ouvir que no Brasil recém-inaugurado o clima sumiu. A palavra “clima “ sumiu de dois ministérios — o das Relações Exteriores e o do Meio Ambiente — junto com “mudanças climáticas” e “aquecimento global”. O país que tem a oitava maior economia do mundo e é o sexto mais populoso do planeta se sentará à mesa em Davos para discutir a Quarta Revolução Industrial cheio de ideias para o passado.