época

Monica De Bolle: “Mas os piratas existem!”

Lembram-se de 2010? Há quase dez anos a economia brasileira crescia 7,6%, embalada pelo excepcional quadro global e pelas políticas de expansão do governo, sobretudo do crédito dos bancos públicos. Esse artigo não é sobre nada disso.

Em 2010, meu filho, que acaba de completar 15 anos, idade dos alunos avaliados pelo Pisa, exame que mede a qualidade da educação em mais de 70 países elaborado pela OCDE, estudava em uma escola particular no Rio de Janeiro. Era a hora da história, aquele momento em que as crianças sentam-se ao redor da professora para ouvi-la contar sobre aventuras e fantasias. Ela havia escolhido uma história sobre piratas, aqueles de perna de pau, olho de vidro, cara de mau. Corte dessa cena.

Tomada seguinte: em 2010, os piratas da costa da Somália corriam os mares a pleno vapor, capturando mercadorias e embarcações. Vocês devem se lembrar do filme que contou parte dessa história bem real — Capitão Phillips, lançado em 2013, protagonizado por Tom Hanks. Pois em 2010, os piratas da Somália estavam por toda parte. Nas manchetes dos jornais, na televisão, nas conversas entre familiares e amigos. O adolescente de agora que então tinha 5 aninhos sempre foi garoto atento. Os piratas bem reais da Somália atiçaram sua imaginação de menino.

Retomo a cena na escola. Quando acabou a história, alguém perguntou para a professora se os piratas existiam. A professora disse que não, piratas são da imaginação, da fantasia. Imagino que ela se referia aos de perna de pau, olho de vidro, por aí vai. A resposta não agradou um de seus alunos, que rapidamente disse: “Mas os piratas existem!”. Quando a professora insistiu que não, eram apenas personagens em uma história, ele retrucou: “E os da Somália?”. Silêncio. Ele ficou tão contrariado com esse silêncio que a primeira coisa que me contou quando chegou em casa foi o que havia passado na escola. Eu já sabia que a educação no Brasil, mesmo nas supostas melhores escolas particulares, deixava a desejar. Essa história, entretanto, virou espécie de mito familiar sobre as imensas lacunas da educação brasileira, lacunas que atingem a todos, dos mais pobres à elite.

Aos fatos. No último exame Pisa para o qual temos os dados completos, o de 2015 — o exame é aplicado a cada três anos e ainda não temos as informações de 2018 —, o desastre da educação no Brasil ficou mais uma vez explícito. O Pisa define sete níveis de proficiência em três áreas: ciências, matemática, e leitura. Os níveis mais baixos são o 1a e o 1b, que retratam a incapacidade de alcançar o nível mínimo de proficiência, considerado como o alcance do nível 2. O Pisa também traz informações sobre o nível socioeconômico dos alunos avaliados em cada país, definido por meio de um índice com metodologia clara. Desse modo, é possível avaliar o desempenho nas três áreas das diferentes classes sociais. Agora, preparem-se.

Comecemos pela matemática. Segundo os dados do Pisa, em 2015 86% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2; 83% dos alunos de classe média baixa e média não alcançaram o nível 2; 72% dos alunos de níveis socioeconômicos mais altos não alcançaram o nível 2.

A desgraça no manejo de conceitos, operações, e raciocínio matemático é generalizada.

Nas ciências, 72% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2. Isso se compara a 60% para a classe média baixa e para a classe média, e a 35% para os níveis socioeconômicos mais altos. A desigualdade em ciências é clara, mas o resultado é desastroso para um país que será atingido em breve pelas mudanças no mercado de trabalho provenientes dos avanços tecnológicos que exigirão alto grau de proficiência em matemática e ciências.

Por fim, o trágico acidente de leitura. São 65% de analfabetos funcionais nos níveis socioeconômicos mais baixos, 53% nas classes médias e 32% entre os filhos das elites do país. Repito: um terço dos filhos da elite brasileira são, pelo Pisa, analfabetos funcionais.

Está aí a pirataria cometida por governos sucessivos, acentuada pela atual guerra ideológica do bolsonarismo, que tem a educação como alvo, e um ministro da pasta sem preparo ou estratégia. Deixo-os com o verbete.

Pirataria: crime de depredação cometido no mar de lama contra embarcações e passageiros responsáveis pelo futuro da nação.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica de Bolle: Avenida Brasil

A religiosidade tacanha e o anti-intelectualismo são aspectos centrais dessa ideologia do retrocesso

Não assisto a novelas desde Roque Santeiro , e, por isso, não assisti a Avenida Brasil , sucesso de público e de exportação em 2012. Contudo, lembro bem o furor causado pela trama e, sobretudo, pelos personagens. Avenida Brasil quebrou padrões ao retratar a vida da chamada nova classe média brasileira, as dezenas de milhões de pessoas que viram seu padrão de vida melhorar durante os anos 2000 com a queda da informalidade do mercado de trabalho e as oportunidades que se abriram naquele período por motivos diversos. A novela acabou em 2012, alguns meses antes dos protestos em massa que eclodiriam em todo o país. Os protestos de 2013 e a falta de respostas dos políticos a uma clara frustração da sociedade brasileira marcariam o início da implosão do centro político. Abrir-se-ia nova fase na radicalização que dali viria a definir os rumos do Brasil, chegando no bolsonarismo.

Nestes quatro meses de governo, já é possível dar contornos ao bolsonarismo. Trata-se, antes de mais nada, de uma “ideologia do retrocesso”, caracterizada por muita ignorância sobre o Brasil, um desprezo pelas redes de proteção social criadas nos últimos 30 anos e a visão tosca de que a diversidade — de gêneros, de ideias, de opiniões, de raça — não é algo a ser cultivado, mas algo a ser condenado como fruto do “marxismo cultural”, do “globalismo”, da “esquerda”.

Damares Azul-Rosa Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo são a porta-bandeira e os mestres-salas do bolsonarismo. Não rodopiam com leveza, apenas se expressam com notável rudeza e falta de sofisticação.

O bolsonarismo, cujos contornos dificilmente haverão de se alterar nos próximos meses e anos, poderá abrir imensa oportunidade, verdadeira Avenida Brasil, para as vozes progressistas, se essas souberem utilizá-lo. Para isso não bastará apenas manifestar contrariedade e fazer denúncias quanto aos atos e às falas do presidente e de seus ministros. Para além disso, será necessário apresentar propostas alternativas ao desmantelamento que já se vê em diversas áreas, do meio ambiente à educação, da política externa ao esgarçamento das redes de proteção social. A visão minimalista de Paulo Guedes não é compatível com a de um Estado que tenha políticas claras para o combate às desigualdades. E esse tema não interessa a Bolsonaro.

Segundo os dados mais recentes do IBGE, o desemprego no país continua a subir, tendo alcançado 12,7%. São 13,5 milhões de desempregados e nenhuma perspectiva de melhora pela frente, já que todos estão agora revisando para baixo as projeções de crescimento para o ano. Como já havia escrito antes, para o desagrado daqueles que ainda não haviam se dado conta da realidade na ocasião, estamos por ora fadados a crescer em torno de 1% ao ano, não mais do que 1,5% ou 2% mais à frente, caso a situação melhore um pouquinho. Essas taxas não são suficientes para que recuperemos o nível do PIB de 2013 antes de 2022. Essas taxas tampouco são suficientes para reduzir substancialmente o desemprego. A sociedade continuará desalentada, mesmo que a reforma da Previdência seja aprovada.

Mas, se a reforma da Previdência for aprovada com alguns ajustes importantes para que não seja parte do desmonte da rede de proteção social do país, o bolsonarismo deixará excelente oportunidade para o centro: um médio prazo mais arrumado para as contas públicas. Com a arrumação do médio prazo, haverá espaço para retomar uma agenda de políticas sociais e de investimentos públicos que ajudem o país a sair do atoleiro — a condição necessária é que essas políticas preservem a sustentabilidade fiscal de médio prazo. Portanto, o bolsonarismo está abrindo alas para que os moderados comecem a construir tanto um discurso quanto uma agenda de propostas concretas e bem concatenadas desde já. A liderança que encampe essas ideias e que seja um rosto novo na política brasileira — preferencialmente mais jovem — tem mais chances de eliminar o bolsonarismo em 2022 que qualquer alternativa da esquerda presa ao estatismo excessivo que teima em não se atualizar e modular suas posturas.

As pessoas que se viram retratadas e representadas em Avenida Brasilsão as mesmas pessoas que estarão buscando essa via no carisma de alguém que ainda não apareceu. Está na hora de o protagonista dar as caras.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: Rosáceas

A defesa do meio ambiente, para Bolsonaro, é coisa da “esquerda”, coisa de “comunista”.

A primeira vez em que as vi, acho que tinha uns 10 anos de idade. De lá para cá, nas incontáveis vezes em que estive em Paris, jamais deixei de vê-las. Não tenho religião — por escolha pessoal —, mas sempre senti algo dentro da Catedral de Notre-Dame, algo edificante, algo mais adequadamente definido na palavra inglesa uplifting. Já apreciei a beleza de muitas igrejas brasileiras e europeias, já me encantei com a mesquita de Córdoba, mas nada é comparável ao sentimento que evoca a majestosa catedral parisiense. Resgato esse sentimento agora não apenas por causa do incêndio que a devorou parcialmente nesta semana, mas porque pouco há de majestoso ou inspirador na atualidade.

Tenho lido e pesquisado sobre as relações entre as mudanças climáticas e as várias crises migratórias mundo afora, sobre as várias crises migratórias mundo afora e a ascensão do nacionalismo populista. O último relatório da ONU sobre o drama migratório global estimou em pouco mais de 40 milhões o número de pessoas desterradas e em mais de 20 milhões o número de refugiados.

Os desterrados são aqueles que deixam as regiões de origem em seus países e deslocam-se para outras ainda dentro das fronteiras. Os refugiados são aqueles que fogem de seus países para outros, geralmente mais desenvolvidos, onde esperam melhores condições de vida.

O dado perturbador é que a maioria acachapante dos desterrados e refugiados que a ONU contou em 2016 fugiu não de violência e conflitos como geralmente se supõe, mas de eventos catastróficos relacionados ao clima. Secas, inundações, temperaturas escorchantes e suas consequências, como a perda de lavouras e das condições de vida de muitos dos que dependem da produção agrícola de subsistência. Um estudo científico publicado em 2015 aponta a seca desastrosa que atingiu a Síria como fator de estresse para o conflito que mais tarde se daria.

A literatura sobre alterações climáticas e a deflagração de guerras e conflitos é vasta, e a correlação é bem estabelecida. Em alguns casos é possível ver mais do que meras correlações. Em alguns casos é possível afirmar que problemas climáticos causaram guerras e conflitos. Para acrescentar ofensa à injúria, alguns estudos mostram que o ponto em que estamos hoje não é o resultado acumulado de muitas e muitas décadas de descaso. O agravamento das mudanças climáticas é, na realidade, resultado dos últimos 25 a 30 anos.

Apesar dessas evidências e do temor que elas deveriam causar, vários líderes mundiais as ignoraram. Alguns, talvez, porque não viverão muito mais mesmo, caso do septuagenário que ocupa a Casa Branca. Outros pela mais profunda ignorância sobre qualquer tema, em particular sobre o complicado tema das mudanças climáticas. O ocupante do Palácio do Planalto, que em campanha ameaçou tirar o Brasil do Acordo de Paris, esvaziou o Ministério do Meio Ambiente, suspendeu contratos com organizações não governamentais ambientalistas e extinguiu secretarias que formulavam políticas públicas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas globais.

Por essa razão, inseriu no Ministério do Meio Ambiente representante da “nova direita” que anda fazendo estragos consideráveis na pasta pela qual é responsável. Não à toa, o Museu de História Natural de Nova York se recusou a prestar seu espaço para evento que homenagearia o presidente brasileiro em meados de maio, fato inusitado repercutido nas manchetes internacionais e locais.

É impossível afastar a angústia diante de tudo isso. Ainda que as besteiras de Damares Azul-Rosa Alves sirvam para que se possa rir um pouco — goiabeiras, mulheres submissas e coisa e tal. Portanto, pensem nas rosáceas. Elas sobreviveram às labaredas, vocês viram as labaredas? As belíssimas rosáceas do século XIII e suas pétalas divinamente coloridas por onde já atravessou a luz de tantos séculos continuam lá, não explodiram, não derreteram, como seria de imaginar.

A sobrevivência das rosáceas é uplifting, não porque acredito em milagres ou qualquer outra interpretação religiosa, intervenção divina ou seja lá o que for. A sobrevivência das rosáceas é uplifting porque ela simboliza a resistência do espírito humano que as concebeu e a capacidade que todos temos de apreciar a força e a beleza dessa resistência, mesmo que as circunstâncias sejam as mais violentas e cruéis.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: Cem dias de aflição

A matilha que forma com seus filhos parece brava, late e ofende sem trégua

Cem dias de aflição Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
ARNALDO ANTUNES

Esperança? Desespero? Raiva? Indignação? Orgulho? Agonia? Meu sentimento é a aflição nestes 100 dias transcorridos desde a posse de Bolsonaro. Aflição por um país que permanece sem rumo, por um país que se deixou levar pela fúria constante das redes, pelas brigas, pela incivilidade, pela barbárie. Aflição por um país que elegeu um presidente da República que nada conhece além do confronto, pouco importa quem seja o alvo: jornalistas, intelectuais, congressistas, gente comum.

Seguidores fiéis imitam o comportamento vulgar e os gestos ofensivos. Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro mostrou que sua ignomínia não tem limites, o que deveria ser causa de profunda aflição e angústia para quem realmente se ocupa de preocupar-se com o Brasil.

Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro viajou para os Estados Unidos e ajoelhou-se perante Trump. Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro viajou para o Chile e insultou as autoridades do país com seus comentários sobre a ditadura de Pinochet. Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro foi a Israel e disse a todos que o nazismo é de esquerda, imitando seu vergonhoso ministro das Relações Exteriores, para o profundo constrangimento internacional do país. Nenhuma dessas viagens trouxe qualquer ganho econômico para o Brasil ou mesmo alguma melhoria da imagem do país, a percepção de que há rumo bem traçado para os próximos anos. Nos últimos 100 dias, Bolsonaro permitiu que o Palácio do Planalto divulgasse vídeo abjeto e revisionista sobre a ditadura militar e sobre o golpe de 1964. Os macacos de auditório do Twitter — não tão numerosos, mas bastante barulhentos — rapidamente repercutiram a estupidez e a inominável ofensa às vítimas da opressão que o Brasil jamais condenou como fizeram outros países latino-americanos.

Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro questionou as estatísticas de desemprego como um liderzinho qualquer. Curioso será se resolver questionar o déficit da Previdência.

Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro nomeou um ministro despreparado para uma das pastas mais importantes do governo, a da Educação. Não é mistério para ninguém que o país padece quando o assunto é educação. A dificuldade do próprio presidente da República com as palavras é exemplo de nossas falências. O ministro despreparado foi corajosamente enquadrado pela jovem deputada de 25 anos, Tabata Amaral, formada em astrofísica e ciências políticas pela Universidade Harvard. Amaral foi o bálsamo para a aflição destes 100 dias, deixando entrever um pouquinho de esperança. A outra ministra despreparada, Damares Azul-Rosa Alves, não merece mais do que essa frase.

Nestes 100 dias de governo, Bolsonaro brigou com congressistas de seu próprio partido, de outros partidos, com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Foi por ele repreendido algumas vezes ao não entender que o Congresso é poder democrático independente tão relevante quanto o Executivo — mas fora Bolsonaro quem elogiara Fujimori por ter o presidente peruano fechado o Congresso em 1992, inaugurando o autogolpe. Portanto, de democracia nada entende. Ao instalar o caos nas relações entre o Congresso e o Executivo, ao deixar ressabiados os parlamentares com quem terá de negociar a reforma da Previdência, fez de seu ministro da Economia o Sísifo tupiniquim. Guedes foi encarregado de empurrar as rochas da reforma ladeira acima, mas Bolsonaro haverá de assegurar que voltem ladeira abaixo, já que não entende que só ele pode respaldar politicamente o que muitos esperavam que fosse o principal feito de seu governo. E, mesmo que depois de tudo isso consiga aprovar a reforma da Previdência, restará fazer todo o resto para tirar 13,1 milhões de pessoas do desemprego, para melhorar a segurança do país, para socorrer os estados quebrados, para uma lista infindável de prioridades perdidas na balbúrdia dos 100 dias.

Nestes 100 dias, inflou-se a ideia de que basta a reforma da Previdência para o país voltar a crescer. Mas a Previdência é um ajuste fiscal e, como ajuste fiscal, contracionista no curto prazo. Essa verdade inconveniente e aflitiva está perdida em meio ao pensamento mágico das expectativas que empurrariam a economia.

Cem dias. Sem nada. Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: Sangue latino

O que dizer de um país que tenta levar adiante uma das mais importantes reformas econômicas para seu futuro enquanto imperam a desordem e a incansável balbúrdia do bolsonarismo?

Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos

Sangue latino México, Argentina, Brasil, Equador. Separadamente, a Venezuela. A América Latina atravessa momento econômico — e político — bastante complicado. O risco sistêmico na região é, sem exageros, o mais elevado desde os anos 80. Não digo com isso que estamos prestes a testemunhar quebradeiras em série como naquela época, mas que a elevada vulnerabilidade de diferentes países resultante de caminhos tortos perseguidos no passado e no presente assusta.

Comecemos pelo México, onde a situação é fascinante e dramática em igual medida. Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, como é conhecido, anda colocando em prática vários truques do populismo de esquerda que sempre foi característico da região em diferentes épocas. Transformou o palácio presidencial em museu e foi morar em um apartamento modesto.

Vendeu o avião presidencial e viaja de econômica em voos comerciais. Circula em automóvel modesto apenas com seu motorista e um guarda-costas. De segunda a sexta-feira se apresenta, das 7 até às 8 horas da manhã, para entrevistas coletivas com a imprensa, durante as quais estabelece o assunto da conversa e fala de forma simples para o povo que ele diz representar — não tuíta muito.

O povo, por enquanto, está gostando: AMLO foi eleito com 54% dos votos, mas as últimas pesquisas de opinião mostram que ele tem índice de 80% de aprovação. Ou seja, quem não votou em AMLO está satisfeito com o que tem visto. Enquanto isso, o mercado anda preocupado.

A Pemex, empresa estatal de petróleo, foi recentemente rebaixada pelas principais agências de risco internacionais em razão das políticas de AMLO para a empresa e para o setor. O presidente insiste em construir refinarias que muitos julgam custosas e ineficientes e prometeu durante a campanha desfazer as reformas de seu antecessor responsáveis pela abertura do setor de óleo e gás. A Pemex é, hoje, a empresa de petróleo mais endividada do planeta, posição já ocupada pela Petrobras. Após o rebaixamento da nota de risco da Pemex e dos alertas das agências sobre a nota de risco do México, AMLO decidiu atacar as mensageiras em vez de reverter as políticas, em clara atitude populista.

Em clara atitude populista, AMLO também prometeu expandir programas de assistência social cujos retornos são baixos e cujos custos para o Orçamento são elevados, contrariando parte de sua equipe econômica. Caso leve esses planos adiante, porá em risco a situação fiscal do México, que poderá vir a ser agravada por rebaixamentos adicionais da Pemex ou da nota soberana. Caminhos tortos.

A Argentina assumiu os pecados de Cristina e tenta desesperadamente correr contra o tempo, a recessão, a inflação. O programa de reformas apoiado pelo FMI está sendo implantado, mas até agora tem tido pouco efeito na contenção das altas de preços — a inflação anualizada na Argentina já supera os 30%.

Embora o pacote do FMI seja suficiente para cobrir as necessidades de financiamento externo do país em 2019, o mesmo não pode ser dito de 2020. As eleições de outubro permanecem encobertas por incertezas, embora o campo kirchnerista do peronismo ainda esteja desestruturado, o que tem ajudado Macri a manter seu nível de aprovação na faixa dos 40%, apesar da recessão e das pressões inflacionárias. O que importa, por ora, é não estar vencido.

O Brasil, o que dizer do Brasil e de seu ciclo deplorável de notícias envolvendo o presidente da República e seu círculo íntimo? Como acreditar que exista milagre que separe a política do Congresso da política dos escândalos em série que circundam a Presidência? Bolsonaro, alvo de críticas tanto do campo progressista quanto do campo conservador — não do campo ultraconservador —, está cada vez com mais cara de que jurou mentiras e de que seguirá sozinho.

O Brasil que rompe tratados e trai os ritos. Que quebra a lança e lança no espaço. Sempre o mesmo grito, sempre o mesmo desabafo.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: Engulam os generais

Os generais sabem que Bolsonaro não foi eleito para ficar atacando marxismo cultural, ideologia de gênero, doutrinação ideológica nas escolas e tantos outros espantalhos mais.

Engula os generais Lembro-me bem de frase que era repetida à exaustão após o impeachment de Dilma Rousseff por aqueles que não estavam exatamente satisfeitos com a posse do vice-presidente:

“Temer é o que temos para o jantar”. Essa ladainha era repetida constantemente nas redes sociais para contrapor qualquer argumento que criticasse — de forma construtiva ou não — o governo que se instalava. O pessoal que aceitou jantar Temer nos últimos dois anos não percebeu bem que a ida do vice de Dilma para o governo, sobretudo enroscado como estava com alegações diversas de envolvimento em esquemas de corrupção, acabou por implodir o centro político no Brasil, abrindo espaço para Bolsonaro. Quem jantou Temer e, querendo ou não, pôs na Presidência da República representante do baixo clero carregado de ideologia torpe não pode agora se dar ao luxo de não gostar da atuação dos generais, sobretudo do vice-presidente Hamilton Mourão.

Do leito do hospital, Jair Bolsonaro tuíta bobagens sem parar. “A doutrinação ideológica nas instituições de ensino forma militantes políticos e não cidadãos de bom senso e preparados para o mercado de trabalho. É preciso quebrar essa espinha para o futuro saudável do Brasil. Tire suas conclusões:”. Em seguida, aparece um vídeo de um minuto em que alunos-manifestantes cantam “Ele não” ao som de “Bella ciao”, enquanto dois formandos abrem uma faixa com os dizeres: “Fascistas, racistas, machistas e homofóbicos não passarão”.

Difícil entender por que condenar racistas, fascistas, machistas e homofóbicos seria a tal da doutrinação ideológica das instituições de ensino à qual se refere o capitão-presidente. Enquanto isso, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, ícone do ultraconservadorismo de botequim cultivado por Bolsonaro e seus filhos, fala, em visita aos Estados Unidos, que o “socialismo do século XXI representado por Maduro na Venezuela está ruindo”.

Para quem sabe um pouquinho do que se passa na Venezuela, já está mais do que claro que o regime que lá está não é socialista, comunista ou qualquer outra coisa que tenha um mínimo de conotação ideológica. Trata-se de uma ditadura criminosa, de um narco-Estado ocupado pelo crime organizado, por organizações terroristas — o Hezbollah tem presença na Venezuela —, por infiltrados da Coreia do Norte, da Turquia, da Rússia. Maduro ainda não caiu porque seu regime está sustentado por esse conjunto pérfido.

Os generais sabem que Ernesto Araújo não conhece a fundo a situação da Venezuela, ao contrário do general Mourão, que lá morou nos anos 2000. Sabem também que mudar a embaixada brasileira para Jerusalém e outras bobagens provenientes do guru cujo nome não merece citação podem trazer imensos prejuízos ao Brasil. Os generais, gostem ou não, é o que há de disciplina e competência no governo Bolsonaro. São eles os únicos que entenderam que os eleitores que levaram Bolsonaro ao poder não estão unidos em torno da agenda abestalhada de Damares ou de Vélez Rodríguez.

Gostem ou não, a chance que o Brasil tem de pôr em prática uma agenda razoável para a política externa e para a economia passa pelo crivo dos generais, representantes da instituição que sobrou após a achincalhação do Executivo, do Legislativo e também de partes do Poder Judiciário nos últimos anos promovida pela aliança entre o PT e o PMDB. Aliança que teve, também, a participação do PSDB minguante e de outros partidos políticos. Gostem ou não, o Brasil só terá chances de sair do atoleiro de curto prazo com os militares à frente das principais decisões do país.

Não gostaram? Temem o que pode significar no futuro militares no poder pela via democrática? Pois essa é a herança de ter jantado Temer e apoiado Bolsonaro sem dar qualquer chance a um dos diversos candidatos de centro durante o primeiro turno das eleições. Como diria Zagallo, jantaram Temer, agora engulam os generais.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Guilherme Amado: Os bolsonaros e os generais

Em meados de 2017, o general Augusto Heleno, hoje à frente do Gabinete de Segurança Institucional do Planalto, reuniu-se mais uma vez com um grupo de generais, da reserva e da ativa, em Brasília, com quem debatia havia já alguns anos os rumos da crise política sem fim em que o Brasil se meteu. Daquela vez, comentavam os últimos lances do “tem de manter isso, viu”, e faziam projeções para as eleições de 2018. Lula seria candidato? A direita teria chance? Geraldo Alckmin? João Doria? Luciano Huck? Jair Bolsonaro? Dos que estavam naquele encontro, ninguém se lembra com exatidão em que parte da conversa Heleno levantou-se e encarou os demais, mas todos têm fresca na memória o que ele disse: “Bolsonaro? Só se ele parar de falar m...”.

Dali a algumas semanas, Heleno cobraria Bolsonaro e ouviria dele a mesma explicação que o então deputado sempre dava a quem lhe perguntava o porquê de seu jeitão enfurecido, meio amalucado, na Câmara e nas redes sociais: “Senão, ninguém me notaria”. Foi naquela conversa, após Bolsonaro prometer que, eleito, seria mais moderado, que o general topou trabalhar pelo capitão.

Mas, no meio do caminho, tinha um filho. Três filhos, para ser preciso. Nenhum daqueles generais reunidos em 2017 imaginava que, em janeiro de 2019, estariam todos na Esplanada tendo de tocar a nona maior economia do mundo e tendo Flávio, Carlos e Eduardo como as principais ameaças ao governo.

“Sabe qual foi a última do Carlos?” A pergunta volta e meia atravessa os despachos entre generais do governo Bolsonaro, em referência ao zero dois, vereador no Rio de Janeiro e tuiteiro voraz e virulento, que, sabe-se lá por que, rifou uma candidatura praticamente ganha de deputado pelo Rio de Janeiro.

O fato é que Carlos não quis. Tampouco recebeu um cargo no Planalto, diante do temor de Bolsonaro de ser acusado de nepotismo ao nomear o filho. Preferiu a trincheira da briga, com ataques explícitos ao hoje secretário-geral da Presidência Gustavo Bebianno, presidente do PSL durante a campanha, e a outros aliados. No mais grave tuíte, entretanto, Carlos não teve coragem de dar nome aos bois. Acusou pessoas que estão “muito perto” de terem interesse na “morte de Jair Bolsonaro”. E mais não disse. Os fãs da teoria da conspiração enlouqueceram.

Eduardo Bolsonaro, o zero três, ora é alvo de piada, pelas brigas virtuais rocambolescas em que se meteu com uma ex-namorada, ora é visto com preocupação, por buscar um protagonismo nas relações internacionais que, na visão dos generais, caberia ao Itamaraty. Mas é Flávio Bolsonaro, o zero um, o filho que realmente tem tirado o sono da caserna.

Nenhum general saiu em apoio a Flávio. E nem deve sair. “O Flávio? Aquilo está mais assustado do que cachorro na beira da canoa. De olho arregalado, achando que vai ser engolido pelo mar”, debochou um dos generais, numa conversa privada na semana passada, arrancando gargalhadas de seus interlocutores. E depois completou: “Já passou da hora de explicar tudo”. A avaliação de Heleno, do vice Hamilton Mourão, de Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, e de outros fardados da Esplanada vai na mesma direção.

Mas se em relação a Flávio os generais observam à distância, o oposto ocorreu com Carlos. Na segunda quinzena de janeiro, houve uma articulação deliberada entre alguns quatro estrelas para reduzir os danos que, na opinião deles, Carlos vem causando na relação com a imprensa, e para tentar neutralizar a influência dele na Secretaria de Comunicação, responsável pela propaganda e pela relação do governo federal com jornalistas.
A estratégia foi capitaneada pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, que convenceu Bolsonaro a nomear o também general Otávio Rêgo Barros, ex-chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, para ser o porta-voz da Presidência. Villas Bôas também conseguiu evitar que Carlos indicasse para a Secretaria de Imprensa (SIP) um nome seu, tal qual fizera na própria Secom, nomeando para o cargo o publicitário Floriano Barbosa, ex-assessor de Eduardo Bolsonaro na Câmara.

O titular da SIP agora é um tenente-coronel, que se orgulha de dizer que as diretrizes centrais de seu trabalho são a boa relação com os jornalistas e a tentativa permanente de passar uma imagem positiva do governo, em vez de apenas reagir e brigar. Tudo que Carlos não faz.

Mais que uma disputa por gabinetes, a disputa pela Secom é central no conflito de visões de mundo dos Bolsonaros com os generais. Enquanto os militares defendem a profissionalização da comunicação do governo, sem ataques à imprensa, a família Bolsonaro mantém o clima de campanha, quando, todo dia, no melhor estilo do PT, afirma ser vítima de uma conspiração midiática.

Ao longo de janeiro, ficou claro o descompasso entre os perfis dos Bolsonaros no Twitter e os discursos públicos dos generais.

No dia 2, enquanto Carlos Bolsonaro tuitava que a imprensa era “suja” e “podre”, e seu irmão Eduardo dizia que Carlos “se lixa” para os veículos de mídia, o general Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, agradecia em seu discurso de posse a presença dos jornalistas, por “cobrarem quando é necessário” e “ajudarem a dar transparência” ao trabalho dos militares.

Dois dias depois, o ministro da Aeronáutica, Antonio Carlos Moretti Bermudez, tomava posse e dizia que “é determinante o papel da imprensa na conexão com a sociedade”. Já Carlos, também no dia 4, rebatia os questionamentos sobre por que ele, vereador, participara de uma reunião ministerial, e chamava jornalistas de “lixos da mídia” e “boçais”.

No dia 11, foi a vez de Villas Bôas agradecer em discurso aos jornalistas, “permanentemente vigilantes”, e que, com isso, “produziram o efeito de induzir o aperfeiçoamento institucional” do Exército. No Twitter, Eduardo dizia que a imprensa era “nojenta” por questionar o fato de Bolsonaro estar nomeando amigos para cargos públicos.

A visão sobre a imprensa não é a única discordância. Enquanto Eduardo trombeteia até nos Estados Unidos que a embaixada brasileira em Israel deve mudar de Tel Aviv para Jerusalém, alguns generais pensam diferente. Acham uma promessa de campanha tresloucada e preferem que a embaixada fique onde está.

Não só nesse episódio os generais têm atuado como força de moderação às alas do governo (e da família) que não entenderam que a campanha terminou. Coube a Mourão criticar o discurso de ódio contra Jean Wyllys, que renunciou ao mandato após anos de ameaças. Também têm sido os generais que têm se virado nos trinta para completar as lacunas da despetização de Onyx Lorenzoni, que, após demitir quase todos os arquitetos do Planalto, dificultou as primeiras semanas de trabalho por falta de pessoal para fazer as adaptações necessárias nas salas para acomodar o novo governo.

À ponderação dos militares, se soma a disciplina. Heleno chega todos os dias antes de Bolsonaro. Recebe o chefe pessoalmente na garagem. No elevador, já começa a despachar os assuntos do dia. Quando não é Heleno, o ritual cabe ao general Valério Stumpf, número dois do GSI. São esses despachos de elevador que têm dado norte ao governo e orientado Bolsonaro, cujo entorno sabe que, com exceções na Economia, na Justiça e em outras poucas pastas tocadas por civis, os melhores quadros do governo usam farda — hoje são pelo menos 18 generais só no Planalto.

Mas os generais sabem que de pouco adiantarão as grifes da equipe de Paulo Guedes ou de Sergio Moro se os três rebentos continuarem nesta toada. Na avaliação pragmática de um general, cada um dos quatro Bolsonaros tem uma missão pela frente. Flávio precisará explicar seus rolos no caso Queiroz. Carlos terá de decidir se quer ser vereador ou tuiteiro. Eduardo deverá aceitar que é deputado, e não chanceler. E Jair Bolsonaro precisará entender que, se não controlar os filhos, já existem generais que veem a necessidade de Heleno ter com o presidente uma nova conversa, nos mesmos moldes da que teve em 2017. Mas, desta vez, em vez de o próprio Jair ser enquadrado, o tema da conversa serão Flávio, Carlos e Eduardo.


Monica De Bolle: Em nome do quê?

Contudo, o presidente jamais disse em nome de que faria política econômica.

A democracia brasileira está em risco? Para responder a essa pergunta, a Companhia das Letras reuniu cientistas políticos, sociólogos, historiadores, economistas e especialistas em Direito e publicou 22 ensaios em livro, já disponível sob o título Democracia em risco?. Contribuí para o livro com um texto sobre minhas primeiras impressões a respeito do bolsonarismo. Mais especificamente, o intuito era tentar entender em nome de que se fará a política econômica no Brasil. Afinal, em muitos aspectos o bolsonarismo é, sim, uma ruptura com nosso passado, ao menos desde a redemocratização.

A política econômica sempre foi feita em nome de alguma coisa. Durante a primeira metade dos anos 90, ela foi feita em nome da inflação, ou melhor, em torno da necessidade de reduzir a inusitada inflação brasileira, que por mais de 20 anos ficou acima dos 500% anuais. O Brasil é dos raríssimos casos no mundo em que a hiperinflação virou um modo de vida por quase duas décadas. Depois que o Plano Real deu fim à enorme mazela, a política econômica passou a ser formulada para lidar com os tropeços da segunda metade dos anos 90 — nessa época, vimos crises financeiras em série nos mercados emergentes. Essas crises trouxeram grande instabilidade para a economia brasileira em momento delicado, quando os ganhos e avanços do Plano Real ainda não estavam plenamente consolidados. Foi uma época complicada, com ramificações políticas que conosco permaneceriam até os dias de hoje. Ainda há quem fale na herança maldita de FHC, embora tenha sido em seu governo que foram plantadas algumas das sementes mais importantes da estabilidade econômica.

No início dos anos 2000, a política econômica mudou sutilmente de norte. Embora a estabilidade macroeconômica continuasse a ser o principal objetivo, o Brasil havia avançado o suficiente para que outros objetivos pudessem ser contemplados. Foi a época em que a política econômica foi feita, também, em nome da redução das desigualdades de renda, da formalização do mercado de trabalho, da diminuição da pobreza. Ou seja, o governo FHC e os governos petistas — por mais manchados que estejam estes últimos pela corrupção — fizeram política econômica em nome da melhoria de vida das pessoas. E, por mais que se queira demonizar Lula, o fato é que ele — como FHC — deixou um legado além da corrupção.

Nos anos Dilma, a política econômica mudou de configuração: a estabilidade macroeconômica ficou de lado e a busca pelo crescimento que se perdia com a reversão do quadro global se tornou mais importante, sob o argumento de que só dessa maneira seguiria o país garantindo os ganhos sociais vistos em anos anteriores. O foco no crescimento como único objetivo levou o governo Dilma a adotar um amontoado de medidas econômicas incoerentes, que acabariam por desaguar na recessão de 2015 e 2016, também agravada pelas revelações da Lava Jato e pela paralisia de diversos setores fundamentais, como o de construção civil.

Esse arco histórico é necessário para que se possa pensar na pergunta que intitula este artigo. É fato amplamente citado que Bolsonaro não falou sobre a agenda econômica nem durante a campanha, nem depois da posse. Houve menções às privatizações aqui e acolá, referências à reforma da Previdência, platitudes acerca da necessidade de abrir a economia brasileira.

E, vejam bem, quem tem de dizer isso é o presidente eleito, não o ministro da Economia ou qualquer outro integrante técnico do governo. Se Bolsonaro jamais disse em nome de que formularia a política econômica, houve alusões de sobra ao nome de Deus, o que não surpreende. Afinal, o bolsonarismo tem como principal fiadora a ideologia ultraconservadora da nova direita religiosa do Brasil. A ministra Damares Alves a ilustra bem, assim como o ministro Ernesto Araújo. Essa ideologia não tem interesse na agenda econômica do país, seja por falta de conhecimento, por desinteresse ou pela prioridade que dá à retrógrada agenda de costumes que defende. Nunca antes na história deste país — ao menos não nos últimos 30 e poucos anos — tivemos uma agenda econômica tão desligada do núcleo político do governo.

Não quero dizer com isso que há sombra ominosa sobre a economia brasileira. Quero apenas dizer que a resposta à pergunta que encabeça este artigo é, por enquanto: em nome de nada.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Época: Em Davos, Bolsonaro defenderá agenda econômica liberal e evitará temas ambientais e de comportamento

Presidente brasileiro será a principal atração da manhã de quarta-feira (23) no evento anual que reúne poderosos, ricos e famosos

Por Eduardo Salgado e Cleide Carvalho.  Colaboraram Martha Beck e Eliane oliveira

Status. Essa é a palavra que define o Fórum Econômico Mundial. Para participar do encontro que acontece anualmente em Davos, na Suíça, não basta ter dinheiro. O bilionário Donald Trump nunca tinha sido convidado para o evento antes de chegar à Casa Branca. Não basta ter uma presença dominante nos mercados em que atua. Representantes do grupo Odebrecht deixaram de ser bem-vindos depois de os escândalos de corrupção eclodirem. Ser convidado para passar quatro dias na estação de esqui no lugar que serviu de inspiração ao escritor Thomas Mann no livro A montanha mágica é um privilégio para cerca de 3 mil pessoas. Nenhum outro encontro anual consegue juntar tantos chefes de Estado, presidentes e executivos de grandes corporações mundiais, membros de famílias reais, representantes de ONGs e celebridades. Davos é o clube mais exclusivo do mundo. O rendez-vous deste ano será entre os dias 22 e 25 de janeiro.

Esse vai ser o palco para a estreia de Jair Bolsonaro na comunidade internacional, salvo algum cancelamento ou mudança de última hora. Na quarta-feira 23, o presidente brasileiro será a grande atração da parte da manhã. Ele deverá ser apresentado por Klaus Schwab, o presidente do Fórum, e terá pouco menos de 30 minutos para dizer a que veio. O tratamento é completamente diferente ao dado a Michel Temer no ano passado, quando falou para um pequeno grupo de empresários, a maioria do Brasil e de outros países da América Latina, e saiu assim como chegou, sem brilho. Bolsonaro vai ocupar o salão principal do evento, com capacidade para cerca de 1.000 pessoas. Num ambiente extremamente hierarquizado, essa distinção não é pouca coisa. Todos os que estão em Davos chegaram ao topo, mas há galhos mais embaixo e mais em cima. Chefes de Estado, presidentes de grandes corporações multinacionais e diretores de organismos internacionais são o nível mais alto. E o salão principal é para poucos entre eles. Foi ali que Xi Jinping falou, em 2017. No mesmo dia de sua apresentação solo no salão principal, Bolsonaro deverá participar de um jantar com foco em América Latina.

Um veterano de Davos disse que, desde a primeira participação de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, um presidente brasileiro não causava tamanha curiosidade. A expectativa é que Bolsonaro tenha casa lotada, ao contrário de Dilma Rousseff, que, em 2014, só encheu um terço das cadeiras.

Não deve ser ainda desta vez que Bolsonaro encontrará Trump, sua inspiração nas redes sociais e também no conteúdo dos discursos. Presente no ano passado, o presidente americano cancelou a participação neste ano em função da crise que enfrenta com o Congresso. Mas a lista de convidados já confirmados em Davos 2019 e que poderão ouvir Bolsonaro no salão principal ou pedir uma conversa reservada, as famosas conversas one-to-one, uma característica marcante do evento, inclui nomes como a chanceler alemã, Angela Merkel, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, o secretário-geral da ONU, António Guterres, a diretora do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde e o príncipe britânico William. Os efeitos dos quatro dias na Suíça não devem ser subestimados, na opinião de Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores dos dois mandatos de Lula e assíduo frequentador de Davos. “O evento é uma oportunidade de apresentar o país e manter contato com pessoas que realmente têm poder de decisão.”

O interesse despertado por Bolsonaro tem a ver com o Brasil e com ele próprio. O líder recém-eleito de uma das maiores economias do mundo, como o Brasil, que assume prometendo uma nova agenda econômica é sempre um chamariz. E o que Bolsonaro tem a dizer sobre economia é tudo o que a plateia de um dos maiores templos do liberalismo quer ouvir. Não é mera coincidência que a tarefa de escrever o discurso de Bolsonaro tenha caído, principalmente, nas mãos do ministro da Economia, Paulo Guedes, que também vai ao encontro. A decisão de Bolsonaro de ir a Davos teve a participação ativa de Guedes. Num almoço com o presidente e o ministro, João Doria, o governador de São Paulo, deu a ideia de Bolsonaro viajar para Davos. Diante da impressão entre os presentes de que o presidente não sabia do que se tratava, Guedes disse, sem vacilar, que Bolsonaro tinha de ir.

Guedes será a grande atração da edição deste ano do almoço realizado pelo banco Itaú Unibanco no Hotel Belvedere, um dos mais luxuosos da cidade. Se o programa for seguido à risca, Guedes falará em inglês com Mario Mesquita, economista-chefe do banco, e depois responderá a perguntas de alguns dos 70 convidados. “Há muita gente querendo saber o que vai acontecer no Brasil”, disse Ricardo Villela Marino, presidente do Conselho Estratégico da América Latina do Itaú Unibanco. Sergio Moro, ministro da Justiça, também vai e é outro com potencial de brilhar, só que nos debates sobre políticas de combate à corrupção.

Caso Bolsonaro decida se inspirar em seu chanceler, Ernesto Araújo, outro confirmado em Davos, para uma parte de seu discurso, a coisa pode degringolar. A última fala importante de Araújo, a de sua posse, juntou Raul Seixas com uma ave-maria em tupi e críticas ao que chama de globalismo — e deixou a comunidade internacional com vergonha alheia. É sempre bom lembrar que o tema do encontro deste ano é Globalização 4.0. Para evitar conflito, Bolsonaro deverá também evitar comentários sobre suas pautas ambiental, indígena e de comportamento. Entre os convidados já confirmados estão Marco Lambertini, diretor-geral do WWF Internacional, Jennifer Morgan, diretora executiva do Greenpeace, duas ONGs ambientais atacadas por bolsonaristas, e Kenneth Roth, diretor executivo da Human Rights Watch, ONG voltada para a defesa dos direitos humanos. Em alguns dos principais órgãos da imprensa internacional, e provavelmente no imaginário da plateia de Davos, Bolsonaro faz parte do time de populistas formado por Trump, Viktor Orbán — o primeiro-ministro da Hungria, que veio para a posse em Brasília — e o filipino Rodrigo Duterte. A não ser que haja mudanças de última hora, Bolsonaro deverá ser o único representante dessa turma. Por isso é bom não esperar reforço da retaguarda nas pautas fora da área econômica.

Christina Garsten, professora de antropologia da Universidade de Estocolmo, é uma das autoras do recém-lançado Discreet power — How the World Economic Forum shapes market agendas (Poder Discreto — Como o Fórum Econômico Mundial influencia as agendas das empresas, em tradução livre). Em sua avaliação, os populistas representam uma grande ameaça aos valores mais caros a Davos, de fortalecimento da democracia e das soluções baseadas na cooperação internacional. Entre os temas que Davos mais ajudou a colocar na agenda está a preservação ambiental, um dos alvos prediletos de Bolsonaro. “A estratégia do Fórum sempre foi convidar pessoas influentes para debater abertamente. Davos é uma oportunidade para Bolsonaro expor suas ideias, mas também é uma chance de outros líderes, presidentes de empresas e ONGs fazerem o presidente brasileiro pensar duas vezes antes de ir em frente com algumas de suas promessas de campanha”, disse Garsten. A esperança de muitos ambientalistas e defensores dos direitos das minorias é que a mágica da montanha funcione em Bolsonaro.


Monica De Bolle: Guerra de atrito

Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente

Em 2016, a polarização crescente pariu o Brexit e a vitória de Donald Trump. Em 2019, o nacionalismo deturpado responsável pela composição genética desses dois eventos transformou-se naquilo que estrategistas militares, matemáticos e economistas chamam de guerra de atrito. Dito de modo simples, a guerra de atrito é a tentativa de ganhar uma batalha — seja na esfera política, no âmbito da negociação privada, ou no campo militar — exaurindo o oponente por meio de um período prolongado de perda de recursos. Na esfera política, os recursos perdidos são o capital político e o apoio do eleitorado; nas negociações privadas, os recursos perdidos são geralmente financeiros; no campo militar, os recursos perdidos são armamentos e soldados. Sai “vitorioso” da guerra de atrito o lado que possui mais recursos ou que tem mais capacidade de aguentar as perdas prolongadas, contínuas e exageradas. Não é difícil construir cenários em que o lado “vitorioso” acaba amargando perdas maiores do que os ganhos de ter vencido a guerra.

Para entender o Brexit e a birra de Trump pelo muro que fechou partes do governo americano, é útil formular estrutura simples para reflexão. Em uma barganha privada, onde as partes envolvidas tentam obter concessões umas das outras, impasses são geralmente resolvidos com perdas e ganhos racionalmente distribuídos.

Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente.

Esse terceiro participante é a população, ou o eleitorado. Considerando apenas o embate político, quando o eleitorado está mais alinhado ao centro ideológico, a batalha entre extremos acaba envolvendo concessões de ambas as partes, o que quebra eventuais impasses de forma mais rápida. Para os que conhecem a literatura técnica sobre o assunto, esse resultado é uma espécie de corolário do teorema do eleitor mediano — o teorema afirma que, se o eleitor mediano for representativo das posições ideológicas da população, prevalecerão medidas e agendas políticas mais ao centro. O centro é o local que abriga as concessões capazes de quebrar impasses.

Contudo, quando aumenta a polarização do eleitorado, o teorema do eleitor mediano vai para o espaço. Além disso, quando os eleitores e observadores da barganha política estão entrincheirados nos extremos ideológicos, eles tenderão a endurecer as posições daqueles que negociam diretamente, aumentando as chances de uma guerra de atrito. Sob essa espécie de formalização teórica meio simplória, é possível entender tanto as causas do Brexit e do shutdown americano quanto entender por que os impasses dos dois lados do oceano devem não só perdurar, mas acabar gerando perdas muito maiores do que se poderia conceber para todas as partes envolvidas direta e indiretamente.

Theresa May perdeu o voto sobre seu plano para o Brexit após dois anos de intensas negociações com os parceiros europeus porque os defensores e opositores da saída do Reino Unido da União Europeia (UE) não querem ceder milímetro para o outro lado. Como o plano de May necessita de inevitáveis concessões, foi veementemente rechaçado pelos engalfinhados na guerra de atrito, o que não isenta a primeira ministra de críticas a sua atuação. No embate entre a UE e a Grã-Bretanha, parece que a ilha tem mais a perder do que o continente, o que aumenta a chance de que em 29 de março, prazo estabelecido para o Brexit, o Reino Unido saia da UE desunido e sem acordo — o pior cenário para todos.

Algo semelhante ocorre aqui nos EUA. Trump esperneou e disse que sem financiamento para o muro não apoiará qualquer medida legislativa para reabrir o governo. Por outro lado, o Partido Democrata, que hoje lidera a Câmara, afirmou que o muro como medida de segurança para a fronteira não faz sentido e que portanto não dará a Trump nenhum tostão a mais do que já fora oferecido. Fortalecidos pelos eleitores de ambos os lados, estão dadas as condições para a guerra de atrito. Como acaba, ninguém sabe. Não é fácil saber qual o lado mais fraco nessa história. Contudo, é certo que o impasse prolongado seguirá uma espécie de princípio de Hemingway: os custos serão lineares e graduais e, subitamente, exponenciais e abruptos. Não é impensável que a economia americana em final de ciclo de expansão acabe sendo duramente atingida, levando consigo o resto do mundo. Araújos à parte, da última vez que conferi, o Brasil ainda fazia parte do resto do mundo.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Marco Aurélio Nogueira: O bode expiatório

O que está por trás dos ataques dos bolsonaristas ao chamado “marxismo cultural” e como isso pode empobrecer a democracia e prolongar a crise do sistema político

Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala.

Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.

A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.

A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.

Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate. Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.

O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.

Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.

A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.

Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.

Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Tudo isso não se deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje. Tanto quanto o pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares, fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos, diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a dialética chama de unidade na diversidade.

O fato é que não houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.

Em seus escritos, muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites. Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso. O debate sério sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo, sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que aprisionou os comunistas durante décadas.

Paradoxalmente, a cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o debate pode fluir de forma democrática.

É o que faz o antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle, reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos, suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula. Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma ideologia.

O ataque ao “marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus, transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita conservadora chegou tão longe.

Não se trata de um ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de “macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.

Afinal, o combate ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.

O desdobramento disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre menos técnicos.

Na hipótese de essa parábola se completar, perderemos todos.


Luiz Antonio Simas: Um medalhão em Saramandaia

Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas: a teoria do medalhão, de Machado de Assis, estava toda ali no discurso de posse de Ernesto Araújo. Lembranças também dos professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira, de Dias Gomes

O escritor carioca Machado de Assis publicou o conto Teoria do Medalhão em 1881, no jornal Gazeta de Notícias . A trama é simples: Janjão está completando 21 anos, a maioridade naquela época. Logo depois do jantar de comemoração do aniversário, o jovem é chamado pelo pai para uma daquelas conversas definitivas sobre o futuro.

Em resumo, o pai aconselha o filho a ser o que ele mesmo não conseguira: um medalhão. O que seria isso? Basicamente, o medalhão é “grande e ilustre, ou pelo menos notável”. Para chegar ao auge entre os 45 e os 50 anos, período em que o medalhão geralmente desabrocha, Janjão deveria se preparar desde cedo, aparelhando o espírito para evitar o perigo das ideias próprias.

Dentre diversas dicas para que o status de medalhão seja alcançado, o pai de Janjão ressalta a importância da linguagem. Cito: “podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum ”.

Por fim o pai sugere que o medalhão não chegue a nenhuma conclusão que já não tenha sido chegada por outros, mas faça isso de forma aparentemente original, e evite os riscos da ironia, coisa de “céticos e desabusados”.

A nova onda da internacionalização de Machado de Assis
Ao escrever o conto Machado satirizava uma turma da sociedade aristocrática e bacharelesca que misturava, nas mesmas proporções, mediocridade e pedantismo. Os medalhões difundiam ideias rasteiras recheadas de citações, tentavam impressionar os populares com demonstrações de conhecimento das coisas do povo e, ao mesmo tempo, comover os eruditos com axiomas clássicos, enfiando três ou quatro máximas em outras línguas para arrematar.

A Teoria do Medalhão me veio à memória quando escutei o discurso de posse do novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo. A linguagem do medalhão estava toda ali: citação em grego de versículo do Evangelho de São João, citação da banda Legião Urbana em música com versos de Camões, citação em latim do brasão da Ordem de Rio Branco, referências a Tarcísio Meira, Raul Seixas e José de Alencar, menção a uma série de ficção científica e, para arrematar, a Ave Maria em Tupi, de acordo com a tradução do padre José de Anchieta. No meio do sarapatel, ataques ao globalismo, exortações ao caráter libertador de Bolsonaro e saudações aos governos conservadores de direita da Europa.

Confesso que, até me recordar da Teoria do Medalhão, comecei a considerar o arrazoado do ministro similar aos discursos que dois personagens de Dias Gomes faziam nas novelas Saramandaia e Roque Santeiro : os professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira. Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas eram comuns aos homens das letras, sempre vestidos de preto, criados por Dias. Registre-se que Aristóbulo e Astromar, nos intervalos entre um discurso e outro, viravam lobisomens.

Outro detalhe chama atenção no discurso do chanceler. Em alguma medida, ele parece ir em direção oposta à comunicação do governo. Enquanto o presidente e outros assessores buscam construir imagens populares de pessoas comuns, com sucesso, o chanceler aparece com fumos de erudição, saca do colete dezenas de autores, arremata tudo isso com sentenças bíblicas em línguas clássicas e, dando uma de Policarpo Quaresma, enfia no meio um tupi-guarani suspeito.

O discurso do chanceler, digno de um medalhão bem sucedido, sugere duas possibilidades: uma delas é a da confirmação da atemporalidade da obra de Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho, ao diagnosticar a sua época, permanece atual. O que escreveu em 1881 continua irretocável em 2019; coisa que só faz afirmar o preto do Morro do Livramento como um gigante das letras. A outra possibilidade é a de que o chanceler de 2019 seja um exemplo bem acabado de brasileiro de 1881.

A minha impressão é a de que elas não se excluem: o escritor do século XIX continua vivendo no século XXI. O chanceler do século XXI continua vivendo no século XIX.

*Luiz Antonio Simas é historiador, autor de 15 livros, ganhador de dois prêmios Jabuti – entre eles o de Livro do Ano de Não Ficção de 2016, com Nei Lopes