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Monica de Bolle: O plano Biden
Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente
Diretamente de Washington D.C., vejo com curiosidade a maneira como a imprensa brasileira tem repercutido o plano do presidente Joe Biden para aprimorar a infraestrutura do país e deslanchar sua dupla agenda de proteção social e combate às mudanças climáticas. Curiosidade e também alguma graça. Persiste no Brasil a ideia de que os Estados Unidos são o exemplo de país em que o desenvolvimento se deu pela iniciativa privada, sem protagonismo do Estado. A ideia é errada e mostra um profundo desconhecimento da história do país. E o desconhecimento histórico, nesse caso, não é inofensivo, porque acaba servindo para afastar os aspectos positivos do Estado indutor, em argumentos simplórios, que apresentam apenas seus aspectos negativos, que de fato existem. Tenta-se revitalizar, com esse tipo de construção, a noção de que o Estado protagonista só traz ineficiências, como se o mundo pudesse ser simplificado para caber no que tenho chamado de “liberalismo à brasileira”.
Os Estados Unidos se industrializaram tardiamente, assim como a Alemanha e o Japão, quando se tem o Reino Unido como termo de comparação. A industrialização americana aconteceu na segunda metade do século XIX e foi extremamente rápida: no fim do século, os EUA já rivalizavam com o Reino Unido no comércio internacional. A industrialização no país seguiu alguns dos princípios estabelecidos por Alexander Hamilton — o primeiro secretário do Tesouro — no final do século XVIII. Em sua obra Report on the subject of manufactures, publicada em 1791, Hamilton elabora os princípios da industrialização destacando que o desenvolvimento nacional requeria medidas que discriminassem a favor dos produtores locais.
Portanto, argumentava Hamilton, o processo de industrialização teria de se ancorar em dois eixos principais: o protecionismo e a substituição de importações. Alguns anos mais tarde, Friedrich List iria se valer de argumentos semelhantes para tratar da industrialização alemã. O interessante é que List o faria a partir de suas observações em relação ao que se passava nos Estados Unidos, onde residira antes da publicação de Sistema nacional de economia política, em 1841. Tanto Hamilton quanto List exerceram grande influência sobre o papel do Estado na industrialização americana. Ao final do século XIX, os grandes conglomerados industriais deveriam sua existência ao Estado indutor do desenvolvimento.
Para o desgosto de alguns no Brasil, o “desenvolvimentismo” marcou, assim, a ascensão da economia americana e continuaria a se fazer presente, em maior ou menor intensidade, nas muitas décadas que se seguiram. Em 1934, estaria lá o Estado para socorrer o país da Grande Depressão. A corrida espacial e o complexo tecnológico que a possibilitou durante a Guerra Fria não teriam sido possíveis sem o papel do Estado. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, a internet foi concebida e desenvolvida pelo governo americano. Todo o setor de tecnologia de informação hoje existente não teria se formado sem o financiamento do Estado. Por fim, e essa não é uma lista exaustiva, os Estados Unidos não seriam dominantes na área de biotecnologia sem o papel do Estado. Esse domínio, hoje, está mais visível do que nunca no desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19: as vacinas gênicas da Pfizer e da Moderna, que usam tecnologia mais sofisticada, foram possíveis graças a financiamento e contratos de compra no âmbito da Operação Warp Speed.
É nesse contexto que se insere o Plano Biden. Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente.
Ele prevê investimentos maciços em áreas diversas e seu tamanho — todo o PIB do Brasil — deixou alguns assombrados. É curiosa essa reação. Trata-se do país emissor da moeda de reserva internacional, o dólar, anunciando um plano ambicioso e caro, como fez em diferentes momentos ao longo de sua história. Mas, para muitos, parece que essa história não existe, ou foi reinterpretada à luz de um punhado de anos em que reinou suprema a ultraortodoxia da Escola de Chicago, que não mais existe aqui nos Estados Unidos.
Os “liberais à brasileira” vão ter de se conformar com o “desenvolvimentismo” de Biden. O mais saboroso? Serão testemunhas do quão acertado o plano é para o momento atual.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkin
Época: FHC menciona 'mal-estar' por não ter votado em Haddad em 2018
Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso expressou certo arrependimento por ter votado nulo no segundo turno da última eleição presidencial que consagrou Bolsonaro
Sérgio Roxo e Gustavo Schmitt, Revista Época
1. O presidente Jair Bolsonaro se mantém com apoio de um terço do eleitorado e tem chance de ir ao segundo turno das eleições de 2022. Qual é sua análise sobre esse fenômeno?
Em primeiro lugar, ele ganhou a eleição. Tem muita gente que se sente representada por ele. O estilo dele, um pouco rude, aparece como uma coisa aberta, de sinceridade, uma certa raiva das elites e um sentimento de que o Brasil precisa de gente dura. Agora a situação econômica está ficando mais complicada por causa da pandemia. Mas acho que ele vai manter, de alguma maneira, um certo favoritismo, pode ser até reeleito.
2. Bolsonaro foi eleito com propostas liberais, mas promoveu intervenção na Petrobras. O senhor acha que ele vai abandonar de vez as propostas liberais?
Tenho a impressão de que ele nunca foi liberal. Tem uma formação militar. Eu conheço bem, meu pai era militar general, meu avô marechal. Ele expressa um pouco esse sentimento mais próximo do povo do que uma visão liberal que ele nunca teve. Num país como o Brasil, com tanta desigualdade, com tanta pobreza, se referir só ao liberalismo não resolve. Ele se elegeu não porque era liberal. Elegeu-se porque se identificava com o povo. Tinha capacidade de falar e tocava no interesse popular. Será que ele vai ser capaz de novo? É possível. É claro que essa pandemia é desagradável para qualquer um que esteja no governo. E ele trata mal a pandemia. Não é uma pessoa que tenha sentimento de sofrimento alheio. Depende de aparecer alguém que toque naquele momento o povo. Se não houver alguém que expresse um sentimento que diga “venha comigo e eu te levo ao paraíso”, o pessoal vai no Bolsonaro.
3. O senhor acha que há risco para a democracia brasileira se Bolsonaro for reeleito?
Fazer o quê? Pode ser reeleito. Nada assegura que a maioria esteja consciente de todos esses problemas. É preciso, durante a campanha, aumentar o grau de informação, debater mais abertamente e pegar aqueles pontos que são sensíveis à população.
4. Em 2018, o senhor votou nulo no segundo turno. Numa situação semelhante em 2022, com duelo entre PT e Bolsonaro, repetiria esse caminho?
Eu preferia não votar. Foi a única vez na vida que votei nulo. Não acreditava na possibilidade de o outro lado fazer uma coisa, que, no meu modo de entender, fosse positiva. Embora eu reconheça que o outro lado tinha mais sensibilidade social do que o Bolsonaro. Mas tinha medo que houvesse uma crise muito grande financeira e econômica e rachasse ainda mais o país. Só em desespero que se vota nulo. Tinha votado no Geraldo Alckmin no primeiro turno e fiquei sem ter candidato. E achei melhor que uma candidatura do PT, de uma pessoa que eu conheço até, me dou bem com ele, o Fernando Haddad. É uma boa pessoa, mas eu achei que ele era pouco capaz de levar o Brasil, naquela época. Hoje, deve ter melhorado. A pior coisa é você ser obrigado a não ter escolha. Ao não ter escolha, permite o que aconteceu: a eleição do Bolsonaro. Teria sido melhor algum outro? Provavelmente, sim. Pergunta se eu me arrependo? Olhando para o que aconteceu com o Bolsonaro, me dá um certo mal-estar não ter votado em alguém contra ele.
5. Mas em 2022 o senhor votaria no PT contra Bolsonaro?
Depende de quem do PT seria capaz de levar o país. Espero que não se repita esse dilema. Pouco provável que se repita. O PT perdeu muita presença. O Lula tinha uma imantação, que era do Lula, e não do PT. Não sei quem vai ser o candidato do PT. Mas eu prefiro que seja um candidato saído do PSDB, do centro, não necessariamente do PSDB. Porque acho que temos de fazer a economia crescer e, quando temos um candidato que é muito antimercado, como era sensação no caso do PT, há pouca chance de que o país se reconcilie consigo próprio. Nós somos hoje um país muito dividido. É preciso ter uma pessoa que seja capaz de unir esse Brasil. Mas que não tenha como propósito rachar. A sensação que eu tenho com o Bolsonaro é que, na cabeça dele, quanto mais rachado, melhor. Nós já estamos demasiado polarizados. Por enquanto, temos um polo só que é negativo: a favor do Bolsonaro ou contra. Não temos o outro. Quem for capaz de criar um polo que transcenda seu próprio partido e chegue ao povo terá meu voto, independentemente de ser do meu partido ou não. Prefiro obviamente que seja do meu partido.
6. O senhor acredita que a força política de Lula se esvaziou?
O Lula sempre foi uma pessoa muito inteligente, sempre foi mais da sensibilidade do que da razão. O Lula melhorou muito, aprendeu muito com a vida. Não creio que hoje — o Lula tem 75 anos — ele tenha a mesma energia para governar o Brasil. Não sei se há no PT alguém que tenha condições efetivas de substituí-lo. Não sei se o Lula vai ter... provavelmente terá capacidade de entender que não é a hora dele. Mas deve ter alguém que ele apoie. Ele apoiou da outra vez o Haddad. O Haddad é uma pessoa correta, que eu saiba, e governou a cidade de São Paulo. Ele é muito paulista. É muito difícil alguém que não tenha capacidade de ser diverso chegar lá com o voto. Estamos vivendo um momento de desânimo. Precisamos de alguém que anime o Brasil. O Lula foi capaz de ter algo disso naquela sua época, agora acho que precisa de alguma coisa diferente.
7. O senhor acha que o PSDB faz oposição clara ao governo Bolsonaro?
Não acho. Com o tempo, o PSDB virou um partido como os demais. O PSDB ficou mais dissolvido na geleia dos partidos. Mas existe ainda um sentimento no PSDB de que tem de fazer a diferença. Será capaz? Não sei. Depende de quem seja o candidato do PSDB. Pode ganhar eleição? Isso é outra coisa. Vai ser capaz de mudar o Brasil? A gente ainda tem umas dúvidas. Acho que falta um pouco mais de crença, de ideologia, para falar em termos mais tradicionais.
8. O senhor disse recentemente que todo político tem de encontrar um jeito de se identificar com o povo. A vacina seria um meio para Doria? Por que ele ainda não conseguiu transformar esse ativo em popularidade?
O pai dele era baiano, mas ele ficou muito paulista. E a vacina é um instrumento que ele tem grande e que é de interesse nacional. O problema do Doria é exatamente isso. Como é que ele vai se vestir de brasileiro e não só de paulista? É impossível? Não. Porque ele tem onde se apegar. Ele tem raízes. Já o Luciano Huck é diferente. Porque ele fala na televisão todo dia. Fala com todo mundo. Conhece o povo. O Luciano é o oposto do Doria. Só que ele não conhece a máquina, o mecanismo, o Estado. Mas tudo isso se pode aprender, não é uma coisa tão difícil assim. Já o rapaz do Rio Grande do Sul (Eduardo Leite), que é muito simpático, eu conheço menos. Não conheço o suficiente para saber se ele vai ter essa capacidade de se nacionalizar. Um candidato tem de ser nacional. Quem for candidato vai ter de simbolizar mais do que só a sua região. O Lula veio do Nordeste. Mas o Lula ficava à vontade em qualquer lugar. Era capaz de entender, de reagir à altura de seu interlocutor. Outras pessoas que eu não vou citar o nome não são capazes disso. Não conseguem ultrapassar.
9. O senhor está mandando recado para Doria?
Acho que o Doria tem de mostrar essa capacidade. Ele é baiano de origem. Agora, ele fez a vida em São Paulo. Eu acho que ele tem de demonstrar que é brasileiro. É mais do que paulista, mais do que empresário. Que é capaz de sentir. Tem de ouvir. E não é essa coisa de roupa. Não é isso. Tem de compreender as dificuldades. E não é só o Doria. Isso vale para todos que são candidatos.
10. Recentemente, Doria tentou assumir o comando do partido e acabou isolado politicamente. Como reação, parte dos deputados lançou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O senhor acredita que esse movimento político colocou a candidatura de Doria em risco?
Olha, eu acho que está na hora de colocar a candidatura. Agora, vai ter mais de um candidato no PSDB. É bom que tenha. Porque começa a haver discussão dos nomes. Os candidatos têm de começar a existir fora do partido, na sociedade. Mas a escolha vai depender do desempenho, da capacidade que cada um tem de se mostrar. Quem escolhe o candidato não são os líderes do partido. Tem de ver quem é que tem capacidade de atrair gente. O candidato se faz. Os que são governadores mostraram que alguma capacidade têm. Os dois mencionados são de estados fortes — São Paulo e Rio Grande do Sul. Têm marca. Isso é bom, mas não é suficiente. Precisa ter marca com os outros. Os outros têm de reconhecer. Não adianta você querer ser. Os outros é que têm de querer que você seja. Caso contrário, você vai morrer querendo ser e fica com raiva de quem é e dos que vão ser. Os deputados têm importância, é claro. Mas eles não são cegos. Eles vão sentir se a própria eleição vai ser facilitada ou dificultada por tal candidato. Tem de convencer o eleitorado.
11. O PSDB vai acabar tendo de ir para uma prévia?
Eu acho que a prévia pode acontecer. É bom que aconteça. Nunca fui contra prévia.
12. Doria voltou a defender o afastamento do deputado Aécio Neves (MG) do PSDB por causa das denúncias de corrupção e disse que o senhor concordava. O senhor concorda?
Não estou de acordo. Acho que é ruim afastar o Aécio. Ele governou Minas Gerais e foi nosso candidato a presidente da República. Isso tem um valor. Não acho um bom caminho afastar alguém burocraticamente, ainda que seja possível do ponto de vista estatutário, mas não acho razoável. Acho que é melhor mantê-lo. Ele tem influência em Minas Gerais. É um estado complicado e difícil. Ele tem um enraizamento ali. E, ao optar pela expulsão dele, uma parte de Minas Gerais vai ficar contra. Não acho que seja o melhor caminho. Nem acho que Doria vai insistir nesse ponto. Porque se insistir, perde.
13. Isso não atrapalha a imagem do PSDB e coloca o partido num patamar muito parecido com o PT?
A imagem do PSDB está atrapalhada não só pelo Aécio. Não é único. Não adianta você imolar uma pessoa para salvar o partido. Eu não estou defendendo esse tipo de comportamento. Mas eu não creio que o caminho de expulsão seja correto, sobretudo porque ele foi candidato nosso.
14. O candidato a enfrentar Bolsonaro precisa caminhar pelo centro?
Eu acho que tem de caminhar pelo centro, mas o centro sem lado é inútil. Tem de dialogar com todos os campos.
15. Gostaria de ver Huck no PSDB?
Acho que primeiro tem de ter uma estrutura partidária razoável. O Luciano não tem nenhuma e vai escolher. Essa escolha é importante para a estruturação da campanha, e não para o voto. Tem de escolher um partido que tenha a capacidade, que seja irrigado por vários setores da sociedade para que você possa chegar a eles. Acho que o Doria já tem um partido. É suficiente? Não. Há o governador do Rio Grande do Sul, o Eduardo Leite. Ele pode querer ser. Não sei. Acho que seria melhor uma composição entre eles. É mais fácil, para ter vitória, haver uma composição entre eles. Se for um contra o outro não, vão rachar a base, o que é ruim, é negativo. E vão facilitar a vida do outro lado, que é o Bolsonaro.
16. O senhor quer dizer que seria importante uma composição entre Huck, Doria e Leite?
É isso o que eu quero dizer. Mas é difícil, porque há dois lugares só (na chapa, candidato e vice).
17. Mas para Huck seria bom entrar no PSDB?
Ele vai ter de calcular isso. Se vale a pena para ele. Para o PSDB é um candidato a mais. Mas o Huck vai ter de pensar em outra coisa. Qual é o partido que convém a ele? Será que é o PSDB ? Do meu ponto de vista, é. Mas o que vai prevalecer não é o meu, mas o ponto de vista dele. Nunca conversei com ele sobre isso.
Monica de Bolle: A face econômica da necropolítica
Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central
Foram mais de 1.000 mortos por dia por causa da Covid-19 no Brasil, segundo a média móvel de sete dias. Apenas no dia 9 de fevereiro foram quase 2 mil mortes em 24 horas. Duas mil mortes em 24 horas são mais de 80 mortes por hora, o que equivale a mais de uma morte por minuto. Como números num papel não dão a experiência do tempo, convido o leitor a parar o que estiver fazendo agora e olhar o ponteiro dos segundos de um relógio, ou acionar o alarme do telefone. Deixe passar 60 segundos e pense: “Aqui, agora, enquanto eu nada faço além de esperar o tempo passar, mais de uma pessoa morreu de Covid no país”.
Agora, considere: hoje (ontem) é dia 12 de fevereiro e seria sexta-feira de Carnaval. Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central.Sei que há muitos indignados no Brasil. Sei também que, de modo geral, as pessoas no Brasil não têm o costume de olhar para o que está acontecendo no resto do mundo. Mas se o fizessem constatariam que o Brasil é dos únicos países que, em meio a uma severa crise humanitária, com variantes perigosas do vírus circulando em seu espaço, coloca em pauta tema arcano de política monetária como se prioritário fosse.
Como se isso não bastasse, tem o único governo que, neste momento, tenta enfraquecer sua própria economia “argentinizando-se”. Explico. Paulo Guedes e sua equipe querem que contas bancárias possam ser abertas em dólar no Brasil, instituindo um sistema bimonetário. É uma história com desfecho conhecido. Foi desse modo exato que teve início o processo de dolarização da economia argentina, há mais de 40 anos. De lá para cá, o país sofreu inúmeras crises econômicas, várias delas, se não todas, decorrentes da vulnerabilidade provocada por ter um sistema bimonetário.
Não há qualquer benefício na dolarização parcial que supere seus riscos. Quando a economia de um país passa a ser dependente de uma moeda que ele não é capaz de emitir, escancara as portas para a vulnerabilidade externa e para a volatilidade cambial. Trata-se de medida com alto potencial destrutivo, conforme testemunhei em meus anos de Fundo Monetário Internacional, onde trabalhei na crise da Argentina de 2001 e na crise do Uruguai de 2002. É imensurável a estupidez guediana.
O mais inquietante é que estejamos perdendo tempo com isso enquanto morre gente. Lidamos diuturnamente com pautas arcaicas, de um tipo de prática econômica que padeceu no mundo inteiro. Trata-se não mais de uma economia do sacrifício, mas de uma economia sacrificial. O mundo ruma para moldar a economia a desafios de saúde pública e meio ambiente. O mundo se orienta, pouco a pouco, para o que se tem chamado de economia do cuidado. Esse reposicionamento inclui países como China, Rússia e Índia, ou seja, países que hoje têm condições de vacinar boa parte dos emergentes e dos mais pobres. O Brasil poderia ser parte desse rol, se a orientação da política pública de Bolsonaro fosse o cuidado, não a destruição. Mas dá-se o contrário, e é importante que isso esteja claro.
O bolsonarismo se apresenta como uma necropolítica com desdobramentos na área ambiental, na Segurança Pública, na Saúde, na Educação e na Economia.
Ele atua para a construção de um país em que os que já eram tratados como seres humanos “inferiores”, dada nossa estrutura colonialista, passem a ser tratados como não cidadãos e não humanos. Constituição? Que Constituição? A existência da Carta Magna não importa para tipos como Paulo Guedes. Caso importasse, ele não teria tido a audácia de falar em Estado mínimo. Afinal, o tamanho do Estado foi pactuado pela sociedade e inscrito na Constituição, que é como se faz em uma democracia. O Brasil já não parece uma democracia. Pior, o que é triste não é sequer a constatação, mas o fato de que ela tenha se tornado banal. Ela é hoje tão banal que há quem insista em separar Bolsonaro de Guedes, talvez por preguiça, talvez por desconhecimento, talvez por falta de compreensão.
O bolsonarismo e sua necropolítica contam com isso. Contam com a não percepção, com a definição equivocada de que se trata de uma ideologia. O bolsonarismo não é uma ideologia, é um mecanismo de destruição e perseguição por meio da comunicação. Ele opera nas construções que as pessoas fazem de circunstâncias, para separar o que não é separável e relativizar aquilo que não é relativizável.
Imagino Guedes. Imagino os apoiadores de Guedes. Imagino os que vocalizam e os que calam. Imagino-os na Sapucaí. Imagino-os cantando: “Diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais cruel que eu?”.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Monica de Bolle: A política econômica de Guedes e a Covid-19
O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento?
“Quer criar auxílio de novo? Tem de ter muito cuidado, pensar bastante. Se fizer isso, não pode ter aumento automático de verbas para a educação e segurança pública porque a prioridade passou a ser a guerra (contra a Covid). Pega as guerras aí para ver se tinha aumento de salário, se tinha dinheiro para a saúde e educação. Não tem, é dinheiro para a guerra.” Essas palavras são de Paulo Guedes em recente matéria da Folha de S.Paulo.
É bom lembrar que a metáfora da guerra é inadequada para a pandemia, uma crise sanitária com desdobramentos singulares na economia. O ministro deveria saber disto: na guerra, o capitalismo implica a produção intensiva de certos bens. Mas a fala também deixa ver a ideia que Guedes tem do capitalismo. Ela tem relação com um fenômeno que fez Arendt afirmar, sobre o imperialismo em suas Origens do totalitarismo, que “a expansão não era uma fuga apenas para o capital supérfluo. Mais importante do que isso, a expansão protegia os donos do capital contra a ameaça de se manterem, eles próprios, completamente supérfluos e parasitários”. Arendt, tão citada por liberais, era uma crítica da centralidade da economia na política, da política econômica como uma forma de administração da vida. Se cabe alguma analogia entre a pandemia no Brasil e a guerra é que o governo que Guedes integra e ao qual dá racionalidade administra a morte.
Desde o início da pandemia, a política econômica de Guedes contextualiza a epidemia no Brasil e aponta as escolhas que devem ser administradas em tal situação.
Auxílio ou saúde?
Auxílio ou segurança pública?
Auxílio ou educação?
A descontinuidade e os contrassensos deveriam ser visíveis, mas muitos se esforçam para fazer vista grossa. Não há antagonismo entre saúde e auxílio, por exemplo. Se o governo de fato quisesse tomar medidas para proteger a população e frear as cadeias de transmissão — agora mais do que necessário, com a presença de novas variantes do vírus — estaríamos impondo quarentenas e cordões sanitários em várias partes do país. Para tanto, necessitaríamos do auxílio emergencial e, claro, de mais recursos para o SUS e para os hospitais colapsados em vários estados, sem oxigênio.
Mas a política econômica de Guedes nunca enxergou a saúde pública e a sustentação da economia como aspectos intrínsecos do problema e positivamente relacionados. Depois de passarmos alguns meses no início da pandemia argumentando que não havia antagonismo entre saúde e economia, o negacionismo prevaleceu. Muitos já comentaram o ocorrido, inclusive eu. Foi há pouco, apenas em novembro de 2020, que um dos principais assessores de Guedes no Ministério da Economia negou a presença de nova onda pandêmica no país, citando “estudos epidemiológicos” feitos pela equipe de economistas. Àquela altura, as variantes detectadas no Reino Unido e na África do Sul já alarmavam os cientistas. E, pouco depois, tomaríamos conhecimento da variante P.1 do vírus, a que surgiu em Manaus. À época, ainda dava tempo de prorrogar o decreto de calamidade, permitindo que o auxílio fosse renovado e que mais recursos fossem destinados para a saúde. Mas o mesmo assessor de Guedes declarou que a renovação do auxílio seria ruim para os mais pobres pois contribuiria para elevar a dívida brasileira, o que poderia criar condições para uma crise fiscal futura.
Parte do mercado, do empresariado e da imprensa abraçou a visão de Guedes e de seus assessores não nominalmente, mas pela insistência na “responsabilidade fiscal”, nas reformas, na integridade do teto de gastos em plena pandemia. Tudo em nome da “expansão”, do crescimento econômico a que Arendt se refere e que, no contexto atual, produz seres supérfluos, à semelhança do processo que ela analisa. Ao fazer essa opção ante uma epidemia descontrolada, tornam-se parasitas de todo o sistema político e econômico. Tornam-se, também, parasitas dessas vidas que se foram. São palavras duras. Mas considerem: O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento? Não no futuro, no presente, agora. Enquanto escrevo penso nas mortes que ocorreram nestes minutos. É disso que se trata.
Responsabilidade fiscal? É óbvio que esse tema é importante. Contudo, é mais importante do que salvar vidas em meio a uma crise humanitária? Estamos todos cegos, ou simplesmente permitimos que nos manipulassem para que víssemos no cenário de absoluta tragédia que nos cerca algo de normalidade dos tempos? Bolsonaro não é o único responsável pelo calvário brasileiro. Seus ministros são responsáveis. Guedes é responsável. A política econômica de Guedes é responsável. E, como tal, ela é indefensável. Que isso fique bem claro para quem ainda queira defendê-la.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Monica de Bolle: A posse e seus símbolos
Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos
Foram quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o início do dia.
Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.
Quem capturou a atenção na cerimônia, entretanto, foi Amanda Gorman, jovem poetisa de 22 anos, que declamou seu poema “O monte que galgamos” com alegria e bravura. Foi emocionante, e não houve sentimentalismo em suas palavras ou sua postura. Por isso foi tão impactante. Como ela disse, “nós, sucessores de um país e de uma época em que uma menina negra magricela, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira pode sonhar em ser presidente, apenas para se ver recitando para um presidente”. Há promessa e poesia nessas palavras: promessa da política, pelo novo que irrompe anunciando aos que vieram antes que o mundo não perecerá, e poesia da política também. O poema de Gorman deixou claro que um ciclo se encerrava para que outro se abrisse. Novo. O novo como cumprimento da promessa, ainda que em situação de crise.
Os ritos pareciam encerrar a transição que se iniciou logo após a eleição. A seu término, Biden partiu para a Casa Branca com o propósito de desfazer males feitos por Trump.
O novo presidente vinculou os Estados Unidos de novo ao Acordo do Clima de Paris, tomou medidas para frear a pandemia e assinou decretos se comprometendo com a proteção social.
Comunicou por atos três pilares de seu governo: a proteção social, o meio ambiente e a saúde pública, além do multilateralismo. Sem ter tido muito tempo para refletir sobre o que tudo isso representa, fui chamada para uma entrevista. Nela me perguntaram: “Como ficam as relações entre o Brasil e os Estados Unidos”. Relações? Que relações? O Brasil de Bolsonaro tem relações frágeis com uns Estados Unidos imaginários, pois o amigo fantasia do presidente brasileiro, Trump-My-Way, jamais deu a mínima para ele ou para o país. De bate-pronto, respondi: vejamos os decretos que Biden acaba de assinar, os compromissos que acaba de assumir e os comparemos com o Brasil. Proteção social? Bolsonaro extinguiu o auxílio emergencial. Meio ambiente? Bolsonaro tem criado condições propícias ao desmatamento, com desmonte institucional e restrições orçamentárias. Saúde pública? Bolsonaro deixou morrerem centenas de milhares de brasileiros e fez de tudo para que a pandemia chegasse a seu pior momento. Multilateralismo? Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto, é, ao mesmo tempo, antiglobalista e árduo defensor de um liberalismo econômico sem peias. Trata-se da política do “E daí?” em todas as áreas que são caras para Biden. Portanto, que relação Brasil-EUA?
É preciso muito pensar. Pensar nesse 20 de janeiro, nas promessas da política. Cultivar esse momento em que as possibilidades são muitas e estão em aberto a quem tem disposição para disputá-las.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Merval Pereira: Passando do limite
Se havia alguma dúvida de que o presidente Bolsonaro queria ter um sistema de inteligência que o servisse, e à sua família, em termos pessoais, agora não há mais. É devastadora a revelação de Guilherme Amado na revista Época de que a Agência Brasileira de Informação (Abin) fez pelo menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flavio Bolsonaro na tentativa de anular as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o esquema de “rachadinha” montado por ele e outros deputados estaduais na Assembléia Legislativa do Rio.
O diretor-geral da Abin é ninguém menos que o delegado Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro queria ter nomeado para a direção-geral da Polícia Federal, e foi impedido por decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal. A alegação para proibir sua nomeação foi evitar o que aconteceu agora. O delegado tornou-se amigo da família quando passou a fazer a segurança pessoal do então presidente eleito Jair Bolsonaro, e a partir daí sua proximidade com o clã tornava sua nomeação potencialmente uma afronta ao princípio da impessoalidade, da moralidade e do interesse público, exigências para a nomeação de servidores.
Justamente no momento em que, por não concordar com a nomeação, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, pedia demissão e acusava o presidente Bolsonaro de interferência na Polícia Federal. Aliás, esse caso da Abin já teve um começo escandaloso, quando foi denunciada pelo próprio Guilherme Amado uma reunião no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Bolsonaro, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, com os advogados do senador Flavio Bolsonaro, para discutirem caminhos para a defesa do filho do presidente das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Na ocasião, o ministro Augusto Heleno admitiu que houve a reunião, mas disse que nada foi feito porque verificou que aquela não era uma tarefa que dissesse respeito à segurança institucional do país. Já era escandalosa a reunião em si, mas a garantia de que nao houve consequências dela pareceu satisfazer. Os documentos obtidos pelo repórter da Época, porém, tiveram a autenticidade e a procedência confirmadas pela defesa do filho do presidente, o que colide com mais uma negativa do General Augusto Heleno, que voltou a afirmar que não partiram da Abin tais informações.
Acreditando-se no depoimento do General, e sabendo-se que os documentos vieram da Abin, por WhattsApp, para a defesa de Flavio, é factível acreditar que funciona na Abin uma inteligência paralela que alimenta a defesa do filho de Bolsonaro sem que o chefe da inteligência brasileira tenha conhecimento, o que aumentaria a gravidade do caso.
O caso do filho 04 do presidente Bolsonaro, Renan Bolsonaro, que teve a festa de inauguração de sua empresa de eventos filmada e fotografada gratuitamente por uma firma que tem contratos com o governo federal, é um trambique mixuruca, medíocre, coisa de republiqueta de banana. Comparável com o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, que perdeu o posto porque extorquia uns caraminguás do concessionário do restaurante da Casa.
Tem que punir, não se pode aceitar, mas o caso da Abin é gravíssimo, e passível de impeachment do presidente por improbidade administrativa. É o presidente usando órgãos de investigação do Estado brasileiro para proteger seu filho. E para desmoralizar outros serviços públicos, como a Receita Federal e o Coaf. Não se pode aceitar isso. Estamos vivendo num país em que coisas anormais viram normais.
Houve uma reunião no Palácio do Planalto, no gabinete do presidente, para usar a agência de segurança nacional, instituição do Estado brasileiro, para resolver problemas de acusação de corrupção da família do presidente.
É um coquetel de mal-feitos. Faz contato com a investigação que está sendo realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela denúncia de interferência na Polícia Federal, dando indícios graves do que estava sendo tramado no entorno do presidente. Quem quiser ligar os pontos, terá uma imagem perfeita do que acontece nesse governo que mistura o público com o privado como nenhum outro.
Guilherme Amado: Em busca do anti-Bolsonaro
Os movimentos políticos rumo à construção de uma candidatura forte para enfrentar o presidente começaram antes mesmo do primeiro turno, mas até agora qualquer avanço esbarra no excesso de nomes para encabeçar chapas e na falta de clareza do PT sobre qual será seu rumo
Terminada a eleição de 2020, foi dada a largada em busca de quem será o anti-Bolsonaro, o mais apto (ou apta) a derrotar o ex-capitão em 2022 e devolver o país aos trilhos da tão distante tranquilidade democrática. Os movimentos políticos rumo à construção de uma candidatura forte para enfrentar o presidente começaram antes mesmo do primeiro turno, mas até agora qualquer avanço esbarra no excesso de nomes para encabeçar chapas e na falta de clareza do PT sobre qual será seu rumo.
Atualmente, quatro nomes já se movimentam com mais clareza para enfrentá-lo, cada um num degrau diferente da escada rumo ao que pode se tornar uma candidatura de fato: Ciro Gomes, o terceiro colocado de 2018; João Doria, o governador de São Paulo eleito pelo voto bolsodoria e agora opositor; Luciano Huck, o apresentador de TV que ninguém sabe de fato se será candidato; e Sergio Moro, o ex-juiz, ex-ministro e agora consultor. Os quatro tentam formar uma chapa que una centro-direita e centro-esquerda, sabedores de que uma aliança forte será fundamental para tentar furar a polarização Bolsonaro-PT. E é aí que mora o primeiro problema.
Nenhum dos quatro tem perfil para ser vice do outro. Alguém imagina Huck deixando a vida de estrela da TV para ser vice de Doria? Ou de Moro? Ciro? Mais experiente da turma, Ciro toparia ser vice de Huck, a quem só se refere como “o estagiário”? E Doria, há tempos convicto de que seu próximo ambiente de trabalho será o terceiro andar do Planalto, por acaso aceitaria ser vice de Moro? Ou de Huck? E há mais nome na praça.
O ex-presidente do STF Joaquim Barbosa não descartou concorrer a presidente.
O ex-ministro do STF reuniu-se dias após o segundo turno com o PSB, partido em que esteve mais perto de ingressar no passado, e ouviu novamente uma sondagem para entrar na política. Barbosa ainda não sabe se deseja concorrer, mas se disse preocupado com o Brasil e afirmou seguir observando o cenário para avaliar que contribuição pode dar.
Em outro lado do espectro, o PT até agora dá sinais de que terá, sim, candidato em 2022, em que pese o fracasso de 2020. A eventual anulação do processo do tríplex liberaria Lula para ser o nome, mas Jaques Wagner e Fernando Haddad também estão no páreo. Seja o petista que for, será um candidato com grandes chances de estar no segundo turno, na configuração dos sonhos para Bolsonaro. O presidente sabe que em 2018 foi eleito mais pela negação ao PT do que por seus atributos.
Há, enfim, dois complicadores a mais na equação: a incerteza sobre como será a economia em 2021 e o imponderável trazido pela imensa capacidade de Bolsonaro de gerar crises. O presidente é um candidato competitivo em quase todos os cenários, mas bem menos se retomar seus flertes golpistas e não conseguir controlar o tamanho da fila do desemprego.
Época: O horizonte da extrama-direita após o baque das eleições municipais
Como o bolsonarismo se reorganizará depois do fracasso nas urnas de 2020
Natália Portinari e Naira Trindade, de Brasília, e Gustavo Schmitt e Guilherme Caetano, Revista Época
O sábado 14, um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, foi quando o presidente Jair Bolsonaro caiu em si. Apesar de ter passado a última semana fazendo lives em prol dos candidatos que apoiaria no dia seguinte, já sabia que o desfecho que se desenhava não era promissor. Suas principais apostas, Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro, amargavam números desanimadores, segundo as últimas pesquisas. Sem muita modéstia, atrelou o mau resultado dos aliados a sua própria ausência da corrida eleitoral — já que suas lives se tornaram frequentes apenas às vésperas do pleito. Mas reconheceu estar preocupado mesmo com outra coisa: o desempenho de seu filho Carlos Bolsonaro, candidato à reeleição para vereador no Rio de Janeiro.
Não se tratava, obviamente, do medo de que o zero dois não se elegesse. Carlos tinha sido o vereador com mais votos em 2016, e sua recondução ao cargo estava assegurada. O que deixava o presidente tenso era a possibilidade de sua votação ser abaixo do esperado. Bolsonaro atingiu em setembro o maior índice de aprovação numa pesquisa do Ibope desde que assumiu — 40% —, mas o respaldo dos eleitores ao filho serviria como um termômetro atualizado da popularidade do pai no reduto eleitoral da família. Abertas as urnas, ficou claro que os temores do presidente tinham, sim, fundamento. Carlos, que o acompanhou em carro aberto no dia da posse, acabou saindo menor do que entrou na campanha municipal. Em 2016, obteve 106 mil votos. Neste ano, não passou de 71 mil, uma queda de 33%. E, de quebra, o filho perdeu o posto de vereador mais votado da cidade para Tarcísio Motta, do PSOL.
Esse foi o pior recado do pleito, mas não o único. Russomanno, que contou com o apoio expresso do presidente, largou na frente nas pesquisas. No começo da campanha, isso encheu de esperança o Palácio do Planalto, que anseia fincar raízes no reduto eleitoral de seu adversário, João Doria, governador de São Paulo. Na tarde nublada de 3 de outubro, na Zona Sul de São Paulo, após um evento de campanha de Russomanno, Fabio Wajngarten, secretário executivo da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), era só otimismo. A bordo de um jipe Mercedes preto, disse a ÉPOCA, sorridente: “Ele (Russomanno) já está eleito”. E prosseguiu em sua análise: “De um lado, a esquerda está acabada por causa da Lava Jato. De outro, tem o PSDB desgastado em São Paulo. Ninguém aguenta mais. Foi assim em 2018”, apostou o secretário. Russomanno amargou o quarto lugar, com apenas 560 mil votos (10,5% do total), enquanto o adversário do tucano Bruno Covas no segundo turno será Guilherme Boulos, do PSOL — cenário que configura dupla derrota para o presidente, que há dois anos venceu na capital paulista com 60% dos votos.
Em todo o país, dos 44 candidatos que ganharam o aval do presidente, apenas nove se elegeram. Entre esses poucos sortudos não estão parentes de sobrenomes considerados ilustres no bolsonarismo, como o irmão da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). Ela tem 1 milhão de seguidores no Twitter e 2,2 milhões no Facebook. Ele atraiu apenas 12 mil votos, abaixo da linha de corte para conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. O pai de Zambelli, candidato a vice-prefeito em Mairiporã, no interior paulista, tampouco prosperou. Edson Salomão, líder do Movimento Conservador e aliado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o zero três, ficou de fora da Câmara de Vereadores de São Paulo. No Rio de Janeiro, Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, não foi eleita, apesar do sobrenome e do empenho, principalmente de Carlos.
Antes de dormir, no dia 15, Bolsonaro tentou minimizar a contagem de mortos e feridos. Escreveu em sua conta no Twitter que sua “ajuda a alguns poucos candidatos a prefeito resumiu-se a 4 lives num total de 3 horas”, que a esquerda saiu derrotada e que a “onda conservadora chegou em 2018 para ficar”. Dois dias depois, ao se reunir com alguns parlamentares empenhados na criação de seu (ainda inexistente) partido, o Aliança pelo Brasil, compartilhou uma análise mais realista sobre o pleito. Para o presidente, a direita foi prejudicada em razão da pulverização partidária: “Quem saiu ganhando foi o pessoal do (Luciano) Huck”, vaticinou. A preocupação exposta naquela conversa não demorou a migrar para dentro do grupo de WhatsApp do Aliança pelo Brasil, onde deputados, senadores, ministros e integrantes do governo Bolsonaro debatem a criação do novo partido.
O sentimento geral, segundo um membro do grupo relatou a ÉPOCA, foi de um “choque de realidade” diante do que a cúpula da legenda reconhece ser uma derrota da extrema-direita. Sem um partido que abarcasse toda a direita radical, seus candidatos haviam ficado dispersos por várias siglas nas eleições municipais. “A direita bolsonarista aprendeu uma lição nesta eleição, a de que existe um eleitor de direita não necessariamente bolsonarista”, disse Alexandre Borges, analista político e proveniente de antigos círculos de estudo de Olavo de Carvalho. “É uma descoberta dura para o bolsonarismo, que se achava dono desse campo político.”
Entre os que aproveitaram o fraco desempenho dos aliados do Planalto nas urnas para criticar o presidente, ninguém se compara aos que o ajudaram a se eleger em 2018 e depois romperam. “O grande derrotado dessas eleições é o bolsonarismo. O presidente virou o Mick Jagger. Ele apoiava alguém e o cara morria (nas pesquisas) no dia seguinte”, disse o Major Olimpio, senador do PSL por São Paulo, referindo-se à fama de pé-frio do vocalista dos Rolling Stones. O senador defende um “expurgo” de bolsonaristas do PSL e cita a deputada Zambelli como alvo. “A direita, na verdade, por princípio, respeita o indivíduo e a individualidade. O autoritarismo não convive com uma filosofia direitista. A lógica bolsonarista é muito mais próxima de Stálin, que perseguiu seus principais apoiadores”, disse a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), convidada para ser a vice na chapa de Bolsonaro em 2018 e hoje uma feroz crítica. Mesmo dentro do bolsonarismo não faltou virulência.
Parafraseando a máxima do escritor russo Tolstói, quando vencem, todos os grupos políticos se parecem, mas, quando perdem, cada um perde a sua maneira. Isso ficou evidente após a eleição. Os apoiadores do presidente deram início a um processo de busca de causas e explicações com características bem bolsonaristas. Não faltaram dissimulações e uma facção apontando o dedo contra a outra. O presidente logo engatou uma segunda marcha e passou a defender a interlocutores que o pleito municipal não serve como previsão do que ocorrerá na eleição presidencial de 2022. Mas a tentativa de baixar a temperatura não evitou uma lavagem de roupa suja e o fogo amigo.
Mateus Colombo Mendes, diretor do Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais da Secom, escreveu uma longa análise e desabafo em sua rede social. “Chega do pensamento mágico de confiar apenas na imagem do presidente e de se ficar sempre esperando que o presidente resolva tudo sozinho, enquanto o restante fica resmungando nas redes, cada um na sua.” Filipe Martins, assessor especial da Presidência, compartilhou a postagem, logo depois de fazer sua própria reflexão, expondo indiretamente seu chefe. “Muitos se perguntam por que candidatos apoiados por cabos eleitorais de peso foram derrotados. A resposta é simples: perderam porque eleição municipal é base, é construção, não é improviso. Não adianta chegar às vésperas da eleição e dar carteirada nem tentar levar no grito”, escreveu.
O guru de Martins e do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, aproveitou o momento de fragilidade para endurecer as críticas aos alvos de sempre: os militares, que ele acredita terem um projeto próprio de poder que não inclui necessariamente Bolsonaro e o núcleo ideológico de seu governo. “O péssimo desempenho dos bolsonaristas na eleição não tem mistério nenhum. Ludibriado pela conversa mole de generais-melancias, o presidente confiou demais no sucesso inevitável da sua liderança pessoal, sem perceber que ela não passava, precisamente, disso: uma liderança pessoal sem respaldo militante e incapaz, por isso, de transmitir seu prestígio a qualquer aliado.” “Melancia”, no vocabulário da direita extremada é sinônimo de quem é vermelho (comunista) por dentro.
Para a fúria ainda maior dos mais radicais da extrema-direita, Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e, aparentemente, um dos “melancias” na visão de Carvalho, foi às redes comemorar o desempenho do centrão nas eleições. Ramos disse que o PT foi mal e frisou que PSD, PP, DEM e MDB vão governar mais prefeituras do que o partido do ex-presidente Lula. Para os olavistas, o centrão é o problema, não a solução. Para a ala mais pragmática do governo, o caminho após o fracasso eleitoral é mais, e não menos, centrão. A aposta é que, nas eleições presidenciais de 2022, a base de sustentação da campanha de Bolsonaro será formada por partidos tradicionais, os mesmos que o apoiam hoje no Congresso.
Como num roteiro de série de TV, os principais atores do bolsonarismo vivem um drama que envolve passado e futuro. Muitos apoiadores não acreditam que Bolsonaro conseguirá se firmar como um candidato competitivo à reeleição seguindo a fórmula adotada em 2018, com foco quase que exclusivo nas redes sociais. Para os defensores dessa tese, as eleições municipais deram algumas evidências favoráveis ao mostrar que forças de diferentes pontos do espectro político acordaram para a necessidade de ocupar espaços nas redes sociais. WhatsApp, Facebook, Instagram e Twitter já não são uma raia exclusiva do bolsonarismo. Isso aconteceu, por exemplo, na campanha para a prefeitura de São Paulo. Trabalhar nas redes sociais foi o que fizeram tanto Guilherme Boulos como Arthur do Val, o Mamãe Falei, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), que atraiu 10% dos votos. “Nós trabalhamos bem com a rede. O PT apanhou e perdeu espaço para o PSOL porque ainda está na lógica ‘meio acadêmico, sindicato e Igreja’. O PSOL fez uma campanha virtual boa”, reconheceu o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), um dos fundadores do MBL.
Enquanto o campo virtual tem sido povoado por diferentes nuances partidárias, o mundo real ainda carece de ser compreendido pelos políticos da nova direita advinda do bolsonarismo — fraqueza que muitos enxergam como a principal ameaça à continuidade de um projeto conservador no Brasil. Estrategistas políticos que trabalharam em campanhas de candidatos ditos conservadores nestas eleições relataram a ÉPOCA as dificuldades em convencer seus clientes da importância de articulação política e dos atos de rua. “Eu disse a eles: ‘Saiam da internet’. Mas eles não entendiam. Diziam que o Jair Bolsonaro tinha sido eleito pela força das redes sociais e que em 2020 seria assim de novo. Diziam que não precisavam de coligação porque o PSL não havia feito isso em 2018”, afirmou Rodrigo Morais, que trabalhou no governo de transição de Bolsonaro e hoje tem uma consultoria política.
No entorno do presidente, é ruidoso o grupo que, ao contrário do general Ramos, defende que o bolsonarismo precisa de um partido para chamar de seu. Daí as tentativas, até agora infrutíferas, de criar o Aliança pelo Brasil. Bolsonaro nunca foi dirigente partidário, tampouco seus filhos. A dinâmica maçante da formação de uma sigla e seus diretórios é o que garante musculatura para que candidatos disputem cargos a cada dois anos. Sem isso, não surpreende que o presidente não tenha conseguido engajar eleitores para o pleito municipal. A burocracia partidária e seus dissabores — incluindo divergências políticas — foi o que ajudou a azedar a relação de Bolsonaro com sua legenda anterior, o PSL. Mas quem apoia o presidente hoje diz que, quando ele tiver seu próprio partido, tudo será diferente. “A eleição municipal deixa claro a desvantagem da direita em relação à esquerda, já que falta estrutura partidária. Fora isso, a esquerda tem ONGs, centro de estudo e de formação de pensamento. A direita também tem de ter isso”, disse o empresário Otávio Fakhoury, aliado de primeira hora de Bolsonaro e hoje investigado nos inquéritos das fake news e da promoção de atos não democráticos.
Um ano depois de sua concepção, o plano de fundar o Aliança não conseguiu reunir nem 10% das 492 mil assinaturas necessárias para o registro da legenda junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E as trocas de farpas entre bolsonaristas durante todo o processo denota que a concordância ideológica não se converte em harmonia na hora de dividir o poder. Integrantes do grupo rivalizam entre si por protagonismo e sofrem com uma ausência de definição, da parte de Bolsonaro, de quem é o verdadeiro responsável pelo Aliança. Quem vem assumindo as rédeas do projeto é o advogado Luis Felipe Belmonte, que coordenou viagens e eventos em prol da sigla nos últimos meses. Mas o futuro do Aliança é ainda incerto. Parte da base de apoiadores nos estados se voltou contra os organizadores, como Belmonte e os também advogados Karina Kufa e Admar Gonzaga. As brigas dificultam ainda mais a criação da legenda e a coleta de assinaturas. Oficialmente, porém, o grupo atribui à pandemia e às eleições municipais a demora do registro dos apoiamentos no TSE.
Depois dos desentendimentos passados com Luciano Bivar, presidente do PSL, o presidente parece estar reticente diante da possibilidade de “entregar” seu partido às mãos de alguém que não seja um de seus filhos. Bolsonaro também teme que o gesto de alavancar o Aliança desagrade ao centrão, que hoje é a base de seu governo, sobretudo diante da possibilidade, cada vez mais concreta, de que ele se filie a um partido tradicional para concorrer em 2022, como o PP, o PL e Republicanos, que é onde estão abrigados seus filhos Carlos e Flávio Bolsonaro. Sem a onda antipolítica alimentada pela Operação Lava Jato e com poder de fogo das redes sociais reduzido, o caminho para a direita bolsonarista a partir de 2021 é incerto porque requer diálogo — item escasso por aquelas bandas.