entrevista
El País: 'Nunca traí nem Dilma, nem ninguém. Especialmente não traí a mim mesmo', diz Temer
Ex-presidente diz que não pretende seguir movimentos de oposição a Jair Bolsonaro e refuta a ideia de que tenha dado início à militarização da Esplanada dos Ministérios
Afonso Benites, Carla Jiménez e Rodolfo Borges, do El País
Quando Michel Temer (Tietê, São Paulo, 1940) deixou a presidência do Brasil em 2018, parte da população o via como um golpista, um traidor da presidenta Dilma Rousseff (PT), de quem era vice até 2016. Uma elite econômica cansada do PT e protestos da centro direita culminaram com o impeachment de Rousseff e alçaram Temer à presidência. Teve apoio dessa mesma elite e do Congresso, mas sempre teve a popularidade baixa. Deixou o Governo com 7% de aprovação.
Sucedido por Jair Bolsonaro, um radical de direita, o político do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) passou a despertar nostalgia. Com gestos suaves , aos 79 anos volta ao debate público na onda das entrevistas por videoconferências que se multiplicaram na pandemia. Diz ter participado de mais de 60 entrevistas online nos últimos meses. Em todas, evita criticar seu sucessor diretamente. Sobre seu passado, nega que tenha traído a mulher que o fez vice-presidente, ou que tenha atuado a favor de sua destituição. “Eu fiz o que pude pelo Governo”. Temer é alvo de vários processos na Justiça por suspeita de corrupção, alguns derivados de investigações da Lava Jato. Leia os principais trechos da entrevista.
Repercussão mundial da covid-19 do presidente
Houve repercussão nacional e internacional, forte popularidade do seu nome — não quero dizer se é positiva ou negativa — dele e do Brasil. Não escondeu o fato. Esperamos que ele logo melhore, adote métodos científicos para se curar, importante para ele e para o país. O país precisa saber que o presidente adotou critérios médicos. [Bolsonaro falou publicamente que toma cloroquina, medicamento sem comprovação de que funciona no combate à doença].
Por que tirou o nome de um protesto pró-democracia
Não desisti da defesa da democracia. Toda vez que falo, saliento e enalteço o papel fundamental, é a derivação da própria Constituição. Me pediram um vídeo para o movimento Direitos Já. O condutor desse projeto, Fernando Guimarães, me telefonou para dizer que estava pegando declarações de umas 100 pessoas, que iam sustentar o conceito de democracia e vida, no confronto que houve entre vida e economia [debate aberto em função da pandemia]. Eu disse que faria. Mas depois eu vi que era um movimento de oposição a Bolsonaro. Um ex-presidente tem de ser muito discreto. Digo o que é importante ao país, mas eu não quero entrar numa campanha a favor deste ou aquele. Quando vi que era um movimento contra Bolsonaro, contra o presidente, eu decidi que não ia participar. Não porque eu seja a favor ou contra Bolsonaro, mas não quero participar de nenhum movimento a favor ou contra. O [ex-]presidente Sarney também não participou, nem o presidente do Supremo. Não tem lado. O lado é a favor da democracia. Mas quando vi que era movimento de natureza política eu confesso que não me senti à vontade.
Brasil e a democracia hoje
Falar da defesa da democracia é nada mais que cumprir a Constituição Federal. Veja que no Brasil não é apenas um Estado democrático ou um Estado de Direito. Na ciência política são expressões mais ou menos equivalentes. Como constituinte, queríamos tanto reforçar tanto a ideia da democracia que dizíamos Estado democrático de Direito. Quando me perguntam se a democracia corre risco, eu confesso que não acho que corre. Acho que as instituições estão funcionando adequadamente. Enquanto for assim, não há risco para a democracia. Em síntese, temos de defender a democracia, mas eu não entro em movimento político que vise derrubar a A ou B ou C.
Comportamento de Bolsonaro
Em entrevistas, e a interlocutores do presidente que me pediam alguns palpites, eu dizia com toda franqueza que ele não podia falar na saída do Palácio da Alvorada. Ele tem 50, 100 apoiadores, para um Brasil que tem 211 milhões de habitantes. A palavra do presidente no presidencialismo é muito forte. Ela faz a pauta do país. Você não pode fazer a pauta, a agenda do país às 8h30/9h00 da manhã. Entra muitas vezes num confronto. Não faz bem ao país. Ele tem de saber que é presidente da República, a palavra dele é fortíssima e repercute em todo o país. Eu sugeri o que fiz no meu Governo. Eu tinha um porta-voz que ao final do dia, começo da noite, dizia o que foi feito. E eu dava uma coletiva uma vez por semana. Mas não pode todo dia. Segundo ponto. Não tem sentido o presidente comparecer a eventos onde uns poucos defendem o fechamento do Supremo, do Congresso, porque contradiz a Constituição. Você pode até não dizer nada contra os poderes, mas um movimento em que há faixas negativas não pode ser prestigiado. Intervenção militar? Tire isso da frente. Não há a menor possibilidade.
Forças Armadas “não têm a menor intenção de tomar o poder”
Tive muito contato com as Forças Armadas durante a presidência da Câmara, a vice-presidência, e como presidente da República. Eles não têm a menor intenção de tomar o poder. Pelo contrário, sempre me diziam que eram servidores da Constituição Federal. Em 2016, houve no final do ano muitas rebeliões de presídio, eu chamei os comandantes das Forças Armadas, juntamente com o ministro da Defesa. Falei a eles que precisaria muito deles, para haver varredura nos presídios. O [comandante do Exército, Eduardo] Villas Boas me disse. “Presidente o senhor é o comandante das Forças Armadas. Diga o que devemos fazer”. A partir daí eu verifiquei que eles eram cumpridores rigorosos do texto constitucional. Não há a menor possibilidade [de intervenção]. De uns 20 dias para cá, o presidente acabou não fazendo mais esses gestos [participando de atos antidemocráticos] porque as palavras são comprometedoras, elas comprometem a sua ação.
Militarização em seu Governo
Eu não tive militares em um número imenso no meu Governo, ao ponto de dizer que eu inaugurei uma fórmula para trazer os militares ao Governo [Temer quebrou a prática, que existia desde o Governo FHC (1995-2002) de colocar um civil como ministro da Defesa] . Quero ressaltar o seguinte, eu nunca fiz e nem faço distinção entre militares e civis. São todos brasileiros. O militar quando vai ocupar uma função civil no ministério ele está desempenhando uma atividade civil. O risco, o perigo é que ele chegue lá como militar e se comporte como militar e daí queira dar golpe como militar. Isso é perigoso. Mas se você colocar um militar preparado, ajustado à democracia, numa função civil, ele passa a exercer uma atividade civil.
Calmaria depois da detenção de Fabrício Queiroz
Se essa detenção [do pivô do investigação de corrupção contra Flávio Bolsonaro] gerou isso no presidente, acho que foi um fato positivo. Se em função disso que ele parou, melhor para ele e melhor para o país. Não ajudava o país, nem o Governo e nem ele. Nesses 20 dias, ele percebendo que a coisas melhoram com mudança de atitude creio que, por sabedoria política, ele continua no mesmo diapasão. São palpites, mas sabedoria política revela que se deu certo, vamos continuar.
Aliança com o Congresso, que antes rejeitava
Executivo tem essa denominação porque executa a vontade popular. Quem vocaliza essa vontade? É a lei. Quem produz a Lei? O Legislativo. Essa coisa de achar que presidente pode tudo é fruto de nossa política institucional que vem do Brasil Colônia até hoje, achando que concentração de poder reside na figura do chefe do Estado e de Governo. Não é assim. A Constituição diz que quem governa é Executivo e Legislativo e se houver controvérsia, quem soluciona é o Judiciário. Necessariamente, acho que ele vai ter que trazer Congresso para governar com ele.
Entrega de cargos com o Centrão
Acho que isso é um preconceito que não deve existir. Veja, quando digo trazer Congresso para governar com ele, nada impede que congressistas indiquem nomes. Quando se assume a presidência, há 450, 500 cargos para preencher. Cargos de confiança, direções. O presidente não tem 500 nomes na cabeça para colocar no lugar. Nada impede que agentes públicos indiquem nomes. Cuidados a se ter são os critérios técnicos e éticos. Quem esta no Congresso não foi levado pela centelha divina. Foi levado por quem tem poder, que é o povo. O regime é republicano porque se ancora na ideia de temporalidade de mandato. Se não der certo, elimina e coloca outro. Sou contra rótulo. Centrão, direita, esquerda. Não existe mais. O que interessa ao povo é o resultado. Se for positivo, muito bem. É questão de coerência política também. Vamos dizer que tais partidos pertencem ao Centrão. Portanto, tomo liberdade de colocar entre aspas e dizer “é gente que não vale nada”. De “não vale nada” para indicar um nome também tem que coerentemente dizer “não quero o voto dessa gente, não”. Quando tiver projeto meu lá, quando tiver conversão de medida provisória, não quero esses votos. Você imaginou o que é perder 150, 160, 170 votos no Congresso Nacional?
Protesto contra reforma
Eu nunca tive povo na rua contra mim, né? Você vê as denúncias que houve, não havia um brasileiro na frente do Congresso Nacional. Houve, sim, na reforma da Previdência, que nós brigamos por ela. E tanto brigamos que conseguimos convencer o país e o Congresso de sua indispensabilidade, que no começo do Governo Bolsonaro nós conseguiram aprovar a reforma da Previdência. Ali, sim, houve movimentos o pretexto era o de que a reforma, falsamente se alardeou que nós íamos tirar direitos dos mais pobres, quando, na verdade, quem fez aquele movimento, foram os privilegiados do serviço público. Foram aqueles que ganhavam 30.000, 40.000, 50.000 [reais] e não queriam reforma da Previdência de jeito nenhum. Naquele período, sim, houve um movimento de rua. Mas não era contra o meu Governo, era contra a reforma da Previdência.
O movimento Fora Temer
O que era o Fora, Temer? Era um movimento político. Com muita legitimidade, até. Eu que sou um democrata, eu digo, é natural de quem perdeu o poder. Tem de combater mesmo que está no poder. Então, eu aceitava com maior naturalidade. Em uma das últimas entrevistas que eu dei antes de sair da Presidência, um colega de vocês me perguntou: “O que você vai mais sentir falta da Presidência?”. Eu vou sentir falta do Fora, Temer. Porque eu já estarei fora, mesmo. Quando eu estava aqui ainda tinha o fora, Temer.
O impeachment de Dilma
Às vezes querem insinuar que a ex-presidente Dilma é incorreta, eu faço questão de, nas entrevistas, dizer que a presidente Dilma no plano pessoal era extremamente honesta. Ela não tem uma desonestidade a macular a vida dela. Aqui no Brasil, a pessoa, quando está no outro lado, quer destruir o outro. Isso é muito ruim para a nossa cultura. Eu faço essa observação positiva em relação à senhora ex-presidente. É claro que ela teve problemas, as pedaladas [fiscais], as dificuldades com o Congresso, as milhões de pessoas [em protestos] nas avenidas. Porque quem derruba presidente não é o Congresso Nacional. Quem derruba é o povo nas ruas. O povo nas ruas sensibiliza o Congresso, e daí o Congresso derruba o presidente.
A atuação na destituição da presidenta
Ela [Dilma] vai se recordar que eu fui uma vez ao Palácio da Alvorada. O presidente da Câmara [Eduardo Cunha] tinha me procurado e dito: “O PT está me apoiando, portanto eu vou arquivar todos os pedidos de impeachment”. Eu fui a ela e disse: “Presidente, durma tranquila. O presidente da Câmara acabou de me dizer isto, etc., etc., etc.” Ela disse: “Ô, coisa boa, Temer. Excelente”. Até chamou um outro ministro para contar isso. Mas tempos depois o PT começou a fustigar o presidente da Câmara e o presidente que, tinha me dito que havia um dos pedidos que era quase impossível negar sequência, que ele achava que ia dar questão judicial, ele abriu o pedido de impeachment. Ou seja, com isto quero evidenciar que, evidentemente, não trabalhei pelo impedimento. Tem mais, quando começou o processo de procedência da acusação na Câmara dos Deputados, eu vim para São Paulo. Fiquei aqui um bom período. Só voltei uns três ou quatro dias antes da votação porque estava começando a pegar mal aquela história de eu não estar em Brasília. Em várias oportunidades eu era chamado exatamente para isso, e só para isso. Eu era chamado quando havia dificuldades junto ao MDB. Eu ia lá e acertava a situação toda. Portanto, apoiando o Governo. Eu fiz o que pude pelo Governo.
- Poderia ter feito algo mais?
Não sei o que poderia fazer. Vou dizer a vocês. Uma ocasião, o presidente Lula me ligou durante o processo [para falar] sobre o MDB. Eu disse: “Presidente, eu vou examinar”. Até encontrou-se comigo em Congonhas. E eu chamei o pessoal do MDB. Mas a coisa tinha tomado tal vulto que eu percebi que seria quase impossível segurar aquilo lá [o impeachment].
“Nunca traí nem a presidente, nem ninguém”
Essa palavra traição eu nunca ouvi no PT. Eu ouvi a palavra “golpe”. Eles até têm certa consideração por mim. Eles nunca individualizam demais. Quando falam em golpe, entendem que foi um golpe de vários partidos. Um golpe parlamentar, etc. Traíra, confesso que é a primeira vez que eu ouço a palavra. Eu nunca traí nem a presidente, nem ninguém. Especialmente não traí a mim mesmo, as minhas convicções.
Oposições aos presidentes
Qual foi o Governo que não teve um “fora presidente”? Eu não me lembro de nenhum, seja num governo autoritário, seja num governo democrático que não tenha tido um movimento fora fulano. Eu sei que essas coisas que eu digo as pessoas não levam a sério. Porque aqui no Brasil instalou-se muito essa coisa do punitivismo, do ódio contra ódio. Muitas coisas que eu digo, eu digo pensando o seguinte: quem está me ouvindo está achando que eu vivo em Marte.
Papel do Governo Bolsonaro
O papel do Governo Bolsonaro, e ele vinha fazendo, era dar sequência ao meu Governo. Você sabe que ele, em várias oportunidades até, ele critica os governos anteriores. Mas no meu Governo ele diz: se não fosse o Governo Temer ter feito isso, aquilo, etc., etc., etc. Ele deu sequência ao meu Governo. Ele levou para a Infraestrutura uma pessoa formidável, que me ajudou muito na Presidência, o Tarcísio de Freitas, que era o secretário-executivo do PPI (Programa de Parceria e Investimentos). Tempos atrás ele me disse: olha presidente, nós estamos fazendo as coisas que estavam pré-datadas no seu Governo. O meu Governo não foi de quatro anos, de oito anos. Foi um governo de dois anos e meio. Um Governo curto. Eu acho que ele estava dando sequência. E tanto é verdade que vocês viram que a inflação continuou estável, ficou em 3,75%, os juros continuaram a cair. O Governo ia caminhando. Aí, veio a pandemia. A pandemia, realmente, estragou tudo. Vai precisar começar do zero.
Centro não se une
Se formos nos ater a esses conceitos, de siglas, sabe o que acontece com o centro, ele é muito atomizado, ele não consegue se unir. Cada um quer tomar o seu caminho. Para voltar ao campo dos rótulos, a esquerda é muito unida. Quando ela consegue se unir, ela vai em frente. A extrema direita também consegue se unir. O centro, não. Pode pegar as figuras hoje detectáveis como “centráveis”. Pode verificar que cada um tem o seu projeto. Está difícil. Talvez, para ficar no campo dos rótulos, tivesse um de extrema esquerda, um de extrema direita e um de centro. Isso seria a razoabilidade eleitoral. Neste momento eu não vejo o centro capaz de ter essa unidade desejável, mas de difícil execução.
Justiça parcial ou imparcial a partir da Lava Jato
A Lava Jato é um vocábulo que se deu para uma coisa que a Constituição proíbe. A Constituição proíbe a improbidade administrativa. Resolveu-se rotular-se cinematograficamente, jornalisticamente aquele combate à impunidade como Lava Jato. Se for restringir-se à ação do pessoal que trabalhou na Lava Jato. De fato, a Justiça imparcial é uma coisa fundamental. Sabe para que existe o Judiciário? Para que não seja parte interessada no litígio. Isso é parte do sistema democrático. Você é um cidadão comum, você tem um problema qualquer, você sabe que pode bater às portas de um poder qualquer, o Judiciário, que é imparcial. O risco que eu corro aqui é dizer: Temer é contra a Lava Jato. Eu não sou contra a chamada Lava Jato. Tenho desprezo pelo vocábulo, mas não tenho desprezo pela ideia de combate à impunidade. Pelo contrário, acho que eles prestaram um papel. Eles despertaram bastante fortemente a ideia de combate à improbidade, à corrupção. Isso foi útil. Agora, quando começa a se tratar diferentemente pessoas da área pública, especialmente, é claro que fere esse princípio da imparcialidade.
Legado imediato do Governo Temer
Não é daqui a dez ou vinte anos, não. Eu estou sendo lembrado atualmente como um presidente que fez reformas no país, que recuperou a economia, ainda que palidamente. Eu espero que, mais adiante, realmente, as pessoas possam dizer que eu fiz as reformas indispensáveis ao país. Uma crítica que faço ao Governo Bolsonaro, não uma crítica, uma observação, é de ele ter juntado os ministérios da Justiça com o da Segurança Pública.
Bolsonaro é responsável pelo avanço da pandemia no país, diz Política Democrática
Editorial da revista da FAP critica atuação do presidente e chama atenção para a onda de desinformação
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
É clara a responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no avanço da pandemia no país, segundo editorial da 20ª edição da revista mensal Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). “A julgar por suas declarações, a batalha sanitária foi dada por perdida, o quanto antes, melhor, a qualquer custo em termos de vidas, para reforçar o combate na frente, ilusória, da economia”, diz o texto.
Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!
A revista pode ser acessada, integralmente e de forma gratuita, no site da FAP. De acordo com o editorial, em poucos meses, o Brasil passou de uma situação de segurança relativa, na qual as deficiências estruturais eram compensadas pela atuação do SUS (Sistema Único de Saúde) e pela clareza das autoridades sanitárias, para epicentro da doença no mundo, no caminho célere em direção ao caos.
O editorial da revista Política Democrática Online destaca que não haverá recuperação econômica enquanto perdurar a pandemia. “Mas, para jogar o peso do governo na estratégia suicida da temeridade, a arma utilizada é a desinformação. Primeiro, na subestimação das consequências, ainda pouco conhecidas, de uma nova enfermidade”, critica.
A segunda estratégia do governo é o que o editorial chama de demolição de toda tentativa de estabelecer barreiras sociais para retardar a contaminação. A terceira, diz o texto, é a apologia dos falsos remédios milagrosos, com o intuito de tranquilizar a população. “Finalmente, na tentativa, imediatamente baldada, de amenizar as estatísticas sanitárias. No mínimo, como se não houvesse consequências graves, uma atitude infantil, como a reação das crianças, que fecham os olhos ao enfrentar uma injeção”, lamenta.
“Há uma segunda frente de combate no Brasil e nela também campeia a desinformação: a defesa do Estado Democrático de Direito”, alerta o editorial da revista Política Democrática Online. “A Constituição está acima de todos; a disciplina e a hierarquia subordinam as forças estaduais aos governadores eleitos; apologia da ditadura é crime; a Federação não é hierárquica; e, no dia em que o presidente tiver o poder de determinar o que o Judiciário pode investigar, a democracia terá cedido lugar ao império da ditadura e da corrupção”, afirma.
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Em sua 20ª edição, publicação da FAP analisa mobilizações contra racismo e reflexos da pandemia na política
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Ex-ministro da Defesa em partes dos governos Lula e Dilma, Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos Poderes da República, em entrevista especial da nova edição da revista mensal Política Democrática Online. Lançada nesta quarta-feira (17), a publicação também destaca avanço da luta contra racismo no mundo, erros e acertos da política com avanço do coronavírus e análise que aponta “comportamento inefável” do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.
Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online
Produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, a revista disponibiliza todos os seus conteúdos no site da entidade. No editorial, a publicação critica o que chama de “clara a responsabilidade” do presidente Jair Bolsonaro no avanço da pandemia do coronavírus no Brasil. “A julgar por suas declarações, a batalha sanitária foi dada por perdida, o quanto antes, melhor, a qualquer custo em termos de vidas, para reforçar o combate na frente, ilusória, da economia”, diz um trecho.
Na entrevista exclusiva, Jobim diz ainda que os militares da ativa enfrentam dois problemas. “O primeiro surgiu com aquela manifestação do presidente Bolsonaro na frente do QG [quartel geral] do Exército, em Brasília. O segundo, com a retirada do controle e do monitoramento das armas”, observa. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o próprio Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar uma ruptura do processo", afirma, em outro trecho.
A reportagem especial desta edição mostra diversas faces do racismo e os reflexos desse crime na sociedade, como a mobilização mundial após o assassinato do norte-americano George Floyd, negro, que foi sufocado até a morte por policial militar branco nos Estados Unidos. “Negros são os que mais morrem em ações policiais e também lideram o ranking das vítimas de coronavírus. Têm menos acesso à saúde, grau de escolaridade e oportunidade de emprego, em comparação com pessoas brancas”, afirma o texto.
Em uma das análises da revista Política Democrática Online, o historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que também é diretor-executivo da FAP, observa que pandemia da Covid-19 está obrigando a sociedade a repensar a economia, a cultura, a política e a “filosofia de vida”. O avanço do coronavírus mostrou onde a política falhou e onde acertou.
A situação do governo do Rio de Janeiro, o papel de Gramsci no pensamento de Olavo de Carvalho, a natureza normativa dos atos das organizações internacionais e o novo normal estão entre assuntos abordados em outros artigos da revista. O conselho editorial dela é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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O Globo: ‘Máquinas de mentira não podem ter mais uma eleição’, diz Alessandro Vieira
Amanda Almeida, O Globo
Autor do projeto que trata do combate às fake news e da regulação das empresas de redes sociais, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) defende que o texto precisa ser votado com urgência, apesar das divergências sobre o tema. Ele argumenta com o calendário, lembrando que o processo eleitoral se aproxima e que o país não pode voltar às urnas sem um controle mais rígido da internet. As críticas mais comuns têm sido de que a falta de um critério claro para definir fake news pode limitar a liberdade de expressão das pessoas, e que a obrigação de cessão de dados às empresas donas das redes pode expor os usuários. Sem consenso, a votação da proposta esta semana foi adiada. O senador quer vê-la na pauta do plenário da próxima semana.
Seu projeto conseguiu unir petistas e bolsonaristas. Ambos os lados dizem, por exemplo, que o texto fere a liberdade de expressão. O senhor aceitou parte das críticas?
A gente continua achando as críticas desarrazoadas. Não há no texto qualquer risco à liberdade de expressão. Mas a gente tomou uma providência. A gente retirou dele as referências em relação à situação de (o que é) desinformação, checagem de fatos, enfim, aquela questão toda. No projeto, a gente tentava regulamentar isso, o que já é feito pelas empresas, pela plataforma. E a gente deixou esse tema para um debate posterior. Não há risco à liberdade de expressão, privacidade ou confidencialidade.
Críticos apontam que, ao tentar reforçar o controle das redes, o projeto acaba por fornecer em demasia dados dos usuários às plataformas. Dizem que vamos virar uma sociedade patrulhada e que esses dados podem ser usados equivocadamente.
Não vejo nenhum sentido. As empresas de tecnologia já têm um volume imenso de dados sobre cada cidadão. O que a gente está focado em garantir não é mais dado para empresa, mas o direito a uma eventual vítima de identificar o autor daquela ofensa, daquele crime. Para que isso aconteça, você precisa ter o suficiente para a identificação do usuário. Não vejo esse risco. Esse dado só seria acessível via ordem judicial. Não tem de colocar “Amanda” e seu CPF em seu perfil. Apenas ter o dado disponível para se a Justiça necessitar.
Outra crítica é de atropelo no debate, já que o projeto corre em meio à pandemia, sem passar pelas comissões.
Durante uma pandemia, a mentira e a desinformação matam. Isso é um ponto muito claro. E, segundo, a gente está se aproximando de um novo momento eleitoral. E a gente não pode chegar a mais uma eleição com máquinas de mentiras, de desinformação, de ataques, disponíveis nas redes sociais. A gente sabe o impacto que isso tem. É plenamente justificada a necessidade de votação imediata. E já passou de uma centena de reuniões com todas as plataformas, com entidades de direitos nas redes, com especialistas. Todo mundo foi ouvido, alguns mais de uma vez, tiveram oportunidade de deixar sua sugestão, várias incorporadas. Então, não vejo falta de debate.
Do projeto original, o senhor vê alguma mudança fundamental?
A gente teve mudanças, como a que suscitava esse debate da subjetividade. As empresas já verificam conteúdo, já tarjam conteúdo. A gente queria que isso fosse de forma bastante transparente. Mas, para evitar qualquer tipo de incompreensão, optamos por tirar esse pedaço. Nosso eixo está claro. O projeto objetiva garantir a identificação dos usuários, acabar com contas falsas e redes artificiais não declaradas, a rede de robôs. Hoje, estão levantando uma hashtag sobre o Fábio Porchat. Você vê aquele volume imenso de mensagens iguais. Isso custa de dinheiro. Alguém paga. Só que o usuário final, na ponta, não sabe que está interagindo com uma máquina, pensa que é gente mesmo. Isso tem impacto violento na sociedade. Tanto para fins eleitorais como para moldar comportamentos. Você pode continuar manifestando sua opinião, inclusive ofensiva. É um direito e vai ser responsabilizado, caso alguém se sinta agredido. A situação atual impede a responsabilização e isso é muito ruim.
O relator fala sobre a necessidade de recadastrar linhas pré-pagas. Quer controle mais rígido. Diz que é a raiz das fake news por dificultar a identificação dos titulares. O senhor concorda?
Está fora do escopo inicial do projeto. O relator está apontando um problema que é real. Você realmente tem dificuldade grande para encontrar usuários de aparelhos pré-pagos. Mas não sei como ele vai resolver isso tecnicamente. Estou aguardando o relatório para analisar.
O controle das ferramentas é o suficiente para o combate às notícias falsas?
No projeto, há a obrigação de o Estado promover o processo educacional, do ponto de vista da segurança e da independência, de liberdade de pensamento. Assim que se resolve definitivamente, qualificando o cidadão que consome informação. O crime sempre vai existir. Mas, hoje, é muito difícil de ser punido e altamente compensador.
Sob argumento de combater fake news, o STF abriu um inquérito próprio, alvo de críticas. O senhor concorda?
Eu entendo e manifesto desde o início que esse inquérito é inconstitucional. Você não pode ser, ao mesmo tempo, a vítima, o acusador e o juiz. Dito isso, entendo que é inconstitucional, mas que os fatos apurados são graves e precisam ser investigados.
IstoÉ: 'O Brasil é muito maior do que Bolsonaro', diz Celso Lafer
O jurista Celso Lafer, 78 anos, foi um personagem de destaque em vários momentos da história brasileira.
Vicente Vilardaga, IstoÉ
Coube a ele, por exemplo, organizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92. Além disso, ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores por duas vezes, nos governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso. Escritor profícuo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Lafer sempre esteve alinhado com a democracia e com os direitos humanos. Neste momento, portanto, ele tem muito com que se preocupar. Tanto que foi um dos signatários do manifesto Basta!, lançado no dia 31 de maio contra os persistentes ataques do presidente Jair Bolsonaro às instituições democráticas. Mais de 600 advogados assinaram o documento, que denuncia a ofensiva do presidente contra os outros poderes da República. Para Lafer, o governo Bolsonaro substituiu a lógica da cooperação pela do confronto, tanto no plano interno como nas relações internacionais, e está fazendo o País perder credibilidade. “Vivemos um momento de exacerbação dos ódios e o governo dá uma contribuição significativa para isso”, disse à ISTOÉ.
O senhor é um dos signatários do manifesto Basta!, contra os ataques sucessivos de Bolsonaro à democracia. Qual é o objetivo desse manifesto?
Nós aqui no Brasil estamos vivendo um momento politicamente tenso e difícil, que está ligado à crise política, que se soma aos problemas econômicos e ao desafio da pandemia. Temos uma crise de saúde imensa, uma crise econômica muito respeitável e uma crise política que se soma às outras duas. É um problema triplo. E ela tem se colocado também em termos de debate e discussão muito acirrada por parte do Executivo sobre o papel dos demais poderes do Brasil, entre os quais o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Acho que para voltar ao tema básico da divisão dos poderes deve haver aí um respeito aos parâmetros que a Constituição estabelece. E a Constituição de 88, que é fruto da redemocratização, colocou como um de seus valores fundamentais a vida democrática e o pluralismo de ideias e opiniões, além do papel próprio das instituições nesta dinâmica.
O senhor acha que a democracia está ameaçada?
Acho que as instituições são fortes e que você tem uma sociedade civil que está se manifestando com muita clareza, como se manifestou na semana passada em diversos documentos e declarações de múltipla abrangência, inclusive com o manifesto Basta!, e de pessoas de diversas linhas e de diversas orientações que sentiram importante manter esse terreno comum, onde pode haver concordância e discordância, mas onde é necessário que haja respeito e civilidade.
O problema é que o ódio está dominando as relações políticas. Como evitar isso?
Nós estamos vivendo um momento de exacerbação dos ódios e para isso o governo dá uma contribuição muito significativa, pelo espírito que alimenta as facções que o apóiam e, inclusive, pela maneira de sustentá-lo por via das fake news. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em um dos seus primeiro livros, a Meditações do Quixote, diz que o ódio é um sentimento que conduz à aniquilação dos valores, promove a falta de conexão entre as pessoas e, ao fabricar essa falta de conexão, isola e desliga, pulveriza e corrói o papel dos indivíduos. O ódio tem um efeito deletério que corrompe e avilta o espaço público.
Há um crescimento do preconceito e da intolerância?
Um dos objetivos da República, entre outros, é o de promover o bem de todos sem discriminação de qualquer espécie. E sem preconceitos, que é a ideia da tolerância. Busca-se construir uma sociedade livre, justa e solidária. Norberto Bobbio dizia que uma das virtudes da democracia é contar cabeças e não cortar cabeças. E o que justamente esses escritos e mensagens de ódio dos grupos radicais almejam é fechar o espaço para o pluralismo de ideias, de opiniões e valores que são característicos da sociedade brasileira. Não creio que uma sociedade abrangente como a nossa deva se abrir para a obscuridade dos ódios públicos no qual o ressentimento desempenha um grande papel. A Hannah Arendt discute isso quando analisa o caso Dreyfus e o Rui Barbosa também trata desse tema dos espasmos de ódio. Machado de Assis diz, com razão, que não haverá pior coisa que mesclar o ódio às opiniões. Creio que, neste momento, a intolerância dos radicais torna difícil a gestão de um país complexo como o nosso. O que serviu para o presidente ganhar a eleição, que foi, justamente, o confronto, não serve para administrar o País. E os grupos de ódio representam uma maneira de minar as instituições e a democracia.
O senhor percebe um esforço do governo de fazer uma mudança cultural, de abolir a cordialidade e a solidariedade da nossa cultura?
Em princípio, a cultura une, diz Bobbio, e a política divide. O que o governo está fazendo no âmbito da cultura é uma política voltada para dividir, separar e isolar e acho que isso vai contra o espírito da Constituição e vai contra a criatividade que sempre caracterizou a cultura brasileira. Ou seja, eles estão remando contra a maré de uma realidade sociocultural cuja importância me parece indiscutível. Você não consegue fazer uma política de estímulo cultural contestando todos os atores culturais.
Fala-se no combate ao marxismo cultural. O governo diz que há uma visão esquerdista que se impõe na cultura. Como o senhor vê isso?
Vejo como uma visão distorcida do que é a cultura brasileira nas suas múltiplas dimensões. Claro que é uma cultura que tem várias vertentes e tem também uma vertente de sensibilidade de esquerda, mas você não mudará isso com afirmações e colocações como essas que caracterizam o gabinete de ódio e os seguidores do Olavo de Carvalho. Você precisa ter um elemento de persuasão, de convencimento, você precisa ter uma capacidade de abrangência. Se quisermos mudar a cultura ou influir sobre a cultura, é necessária certa abrangência para atingir uma sociedade com 200 e tantos milhões de pessoas com muitos desníveis. Não é por uma ação de força que você vai conseguir isso.
Como o senhor vê a posição das Forças Armadas neste momento?
A Constituição conferiu um papel constitucional às Forças Armadas de preservação das instituições. Acho que no correr da nossa história, elas tiveram oscilações, mas as Forças Armadas, como um todo, consideraram importante a redemocratização e creio que houve uma valorização do seu papel social e político. As Forças Armadas têm muitas virtudes, como a noção de responsabilidade, de missão e de patriotismo e acredito que isso não faltará na preservação da democracia.
Em que medida a reunião ministerial que levou à demissão do ex-ministro Sérgio Moro é reveladora do funcionamento caótico desse governo?
A reunião acabou iluminando as características do processo decisório do governo e revelou uma total falta de governança. Hoje em dia há muita preocupação com a governança. Gestão de riscos, por exemplo, é uma preocupação que qualquer um que exerça uma função pública ou privada deve ter. Pois essa reunião ministerial revelou pouca preocupação com os riscos do que foi dito, seja em matéria de meio ambiente, em matéria de educação, de direitos humanos, de investimentos, ou do relacionamento do País com outros países.
Era uma reunião que deveria tratar de pandemia
E não se tratou do assunto. Mostra uma falta de foco. Um dos grandes problemas do país é, indiscutivelmente, a pandemia e as políticas públicas de saúde. Mas o assunto não mereceu atenção na reunião ministerial.
Há uma aversão do governo às questões técnico-científicas, uma recusa a tomar decisões baseadas na ciência. O que isso revela?
No mundo contemporâneo, onde a inovação científica e tecnológica afeta de maneira tão dramática a vida de todos não é possível você ignorar o conhecimento no processo de gestão. Isso envolve tudo. Envolve desde temas como saúde e passa evidentemente pelos problemas do meio ambiente e da economia. Reduzir as coisas ao achismo ou ao negacionismo é levar o país para a deriva. A agricultura brasileira, por exemplo, que tem um papel tão significativo na vida econômica do País, foi fruto da capacidade empreendedora, mas, ao mesmo tempo, da incorporação da ciência e da tecnologia na área produtiva. Não foi o desmatamento, mas a Embrapa que deu ao agronegócio brasileiro as suas vantagens comparativas. E isso está sendo dilapidado. Estamos perdendo crescentemente nossa credibilidade.
O presidente deveria estar estabelecendo um plano de ação conjunta, mas perde tempo numa briga sem fim com os governadores. Aonde isso vai levar?
O Brasil é uma federação, não é um estado unitário. E os estados e os municípios têm competências próprias e competências que são concorrentes. Cabe ao governo buscar uma ação coordenada para atingir objetivos e fins comuns. Mas não é isso que acontece. O governador Montoro, que era uma figura muito interessante, gostava de fazer uma citação do filósofo Teilhard de Chardin, que dizia que é pela elevação que se chega à convergência. O que caracteriza o atual governo não é a elevação, mas é justamente o oposto, é o rebaixamento, que leva à divergência.
Há uma proliferação de movimentos em defesa da democracia se formando no País. A sociedade brasileira será capaz de conter os desmandos do governo?
Como diz Hannan Arendt, o poder surge do agir conjunto. E as manifestações da sociedade mostram que está havendo um agir conjunto de uma parcela majoritária da cidadania brasileira. A sociedade tem poder de conter o arbítrio ou o potencial do arbítrio.
O senhor crê que o resultado dessa luta será virtuoso?
É um ciclo de contenção da ameaça à democracia e de qualquer ameaça de poder arbitrário fora daquilo que são as competências estabelecidas pela Constituição. O Bolsonaro quer medir o Brasil com a própria régua, mas a régua dele é pequena para o tamanho do País. O Brasil é muito maior do que o Bolsonaro.
Como o senhor vê a diplomacia do governo Bolsonaro?
Tenho sido muito crítico com a diplomacia nesse governo. É uma diplomacia que não atende os interesses nacionais. Sempre considero que a política externa é uma política pública. E ela tem como objetivo traduzir necessidades internas em possibilidades externas, o que envolve uma análise daquilo que é importante para o País e da possibilidade de obter espaços no plano internacional. Aqui existe uma tradição diplomática importante. A diplomacia teve um papel na construção do País e o livro do Rubens Ricupero (“A Diplomacia na Construção do Brasil”) mostra isso com muita clareza. Devemos à diplomacia a construção de um país como o nosso em paz com seus dez vizinhos.
E onde ela está falhando agora?
Acho que esta tradição diplomática brasileira está mais ou menos consolidada nos princípios que regem as relações internacionais no país. E um desses princípios é a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Mas o governo Bolsonaro tem sustentado uma diplomacia de confronto e de combate. É uma expressão no plano externo na maneira de atuar e operar do presidente, que é voltada para o conflito e para confronto. Não sei se esse confronto atende a nossa necessidade. Ele cria dificuldades para nossa inserção no mundo e cria conflitos desnecessários com parceiros importantes para o Brasil, como a Argentina, a França, a Alemanha e, evidentemente, a China.
O Brasil abandonou seus próprios interesses?
A gente tem um sistema internacional muito tenso com lógicas de confronto e tensões de hegemonia, entre as quais esta que caracteriza a maneira pela qual o Trump vê o mundo e a relação dos Estados Unidos com a China. Não é uma agenda do interesse do País e não temos porque endossá-la. Temos sempre que buscar aquilo que foi a característica da nossa presença internacional, que é a de ter um contato construtivo com os países e, além disso, buscar sempre nos valer não apenas das instâncias bilaterais, mas das multilaterais. É justamente a recusa em reconhecer a importância do multilateralismo um dos traços da política externa de Bolsonaro, seja em relação à ONU, à OMS ou aos mecanismos regionais de cooperação.
Qual é a nossa opção?
O Brasil sempre teve um papel criativo e construtivo no âmbito da nossa região e está afastado da possibilidade de exercê-lo. Para nós cabe buscar com nossos vizinhos uma aproximação e transformar nossas fronteiras em fronteiras de cooperação e não de separação. Mas nós estamos nos confrontando com uma situação de isolamento. Basta ver que até mesmo no caso dessa pandemia não estamos sendo vistos como um país que lida com a doença de maneira construtiva e positiva. O Brasil é um país de escala continental, não é uma grande potência, mas tem um papel construtivo, que pode ser exercido na ordem mundial e atender nossos interesses. É o que se chama de “soft power” da nossa dimensão internacional. Estamos dilapidando esse componente de credibilidade.
Isso se percebe no debate sobre o meio ambiente.
É um exemplo óbvio. O Brasil desempenhou desde a Rio-92 um papel importante na área do meio ambiente e na área da sustentabilidade, clima, biodiversidade e na compreensão de que o meio ambiente não é uma externalidade, mas uma coisa a ser incorporada nos processos decisórios das políticas públicas e privadas. Além do mais nos confrontamos com a questão da mudança climática, um tema de natureza global que afeta a tudo e a todos. Por essa razão na área de investimento e nas questões de natureza econômica ter um reconhecimento da importância do meio ambiente é fundamental.
Quais as consequências dessa perda de credibilidade?
No mundo que virá depois dessa grande pandemia, que terá alterações, sejam construtivas ou destrutivas, nossa posição estará profundamente enfraquecida pelos erros de visão e de orientação da diplomacia no governo Bolsonaro.
O Brasil está assumindo uma posição submissa aos interesses dos Estados Unidos? E a relação com a China?
Não nos cabe comprar a agenda de outros países. O que nos cabe é cuidar da nossa própria agenda. E devemos manter uma sábia equidistância dessa grande tensão internacional e aproveitar a capacidade de diálogo que temos com os Estados Unidos e com a China. Não se trata de fechar caminhos, mas de abrir portas. Obviamente há mudanças nas placas tectônicas políticas e econômicas da ordem mundial. E os Estados Unidos e o Trump identificam a China como seu grande rival estratégico. Não é um tema nosso. O que devemos fazer é manter um diálogo aberto. Os americanos falam em “american first”, mas, para nós, o Brasil deve ficar sempre em primeiro lugar.
Paulo Fabio Dantas Neto: O Brasil vive um perigo político imenso
Rodrigo Aguiar, Jornal A Tarde
Que cenários vê para as próximas semanas no país, após os protestos de grupos contra o governo no último final de semana?
Acho complicado prever as próximas horas, quanto mais semanas. Quem disser que não está com a vista turva quer iludir ou se iludir. Da minha parte, o que posso ver é um perigo político imenso. Gente com boa fé ser arrastada a um confronto que, caso se consume nesse momento, não aponta para um desfecho democrático. E diante disso o que posso dizer é que é preciso persistir na busca de unidade de todos os democratas, no espírito do manifesto do movimento “Estamos juntos”, que todo cidadão e toda cidadã precisa assinar e divulgar já! É um respaldo social imprescindível a que lideranças políticas e institucionais possam agir e cumprir seu papel, com ainda mais firmeza e eficácia.
Essa unidade acima de posições políticas tem dois objetivos. Primeiro não deixar que desça ladeira abaixo o que se conseguiu reunir de esforços para combater a Covid. Nada, absolutamente nada, é mais urgente nesse momento. Essa luta é sanitária e política e precisa ser sustentada em três frentes: a do máximo isolamento social possível; a do apoio ao trabalho que vem sendo feito no Congresso para decidir medidas e políticas emergenciais a pessoas vulneráveis, empresas empregadoras e os governos estaduais e municipais para que continuem a enfrentar essa pandemia; e a de denunciar e entregar à Justiça a inaceitável sabotagem do governo federal à execução dessas medidas e políticas.
O segundo objetivo é defender, sem ressalvas ou meias palavras, as nossas instituições democráticas reais (Congresso, STF e imprensa) e quem está à frente delas, de ataques que vêm sofrendo de inimigos da democracia, que invocam seu nome em vão. Reagir com firmeza sabendo reconhecer as armadilhas postas por quem quer nos fazer crer que o problema se resolverá bem na queda de braço.
O possível acirramento entre os grupos contra e a favor do presidente, com possíveis confrontos nas ruas, seria um ambiente mais ou menos favorável a Bolsonaro?
Sem dúvida alguma favorecerão o presidente e a onda fascistóide que ele patrocina. A própria quebra do isolamento social por parte de quem deseja combatê-lo já é um equívoco, do ponto de vista social, pelo agravamento do problema sanitário para o qual as manifestações de rua, nessa hora, contribuem. E é também um tiro no pé, do ponto de vista político, porque a intenção do gesto é outra, mas, na prática, se iguala, nos resultados sanitários, às imprudências dos bolsonaristas. Isso nos tira força e autoridade moral para condenar e combater esses sabotadores da luta contra a Covid.
Mas além de efeitos negativos ao desafio sanitário - que, a meu ver, repito, é a prioridade social, o acirramento ajudaria o presidente também pelo clima de violência política propício ao caos que ele tenta fomentar. Estou convencido de que, na conjuntura em que estamos, a violência, parta de onde partir, é a inimiga mais letal dos democratas. Não se pode flertar com ela. E é exatamente isso que se faz quando se admite, em nome da luta pela democracia, mobilizar torcidas organizadas para um enfrentamento de rua com o fascismo. A luta antifascista só tem chance de êxito se for uma luta cívica, fundada não só na ideia de liberdade, mas também na da paz. O sentido dessa luta é a união do país e não consagração da luta de classes. Além disso, é muito ruim politizar o futebol, assim como a religião e as relações de trabalho ou de família. Pois o fascismo se alimenta exatamente da politização de tudo.
Muito se fala sobre Bolsonaro ter ou não apoio das Forças Armadas (ou dentro das forças de segurança) para um eventual golpe. Qual a sua leitura sobre isso?
Leio que Bolsonaro, seus ministros militares e seus apoiadores, não só nas redes sociais, mas também em setores políticos e empresariais restritos, tentam fomentar violência política e caos social para arrastar as Forças Armadas a, em nome da ordem, pressionarem o Congresso e o Judiciário a lhe concederem poderes excepcionais, através de um estado de sitio. Esse instituto constitucional, nas mãos de Bolsonaro, seria o meio para, a médio prazo, acabar com a democracia e instituir uma ditadura sua, ainda que com algumas aparências de democracia. Ele precisaria fazer isso até 2022, pois sabe que mantidas as atuais regras democráticas, não vencerá eleições em dois turnos no meio de destroços de uma pandemia que ele se recusou a combater, seguida de uma forte recessão econômica. Mesmo que chegasse ao segundo turno, aí o País se uniria contra ele. Tenta, então, virar a mesa.
Esse parece ser o desejo presidencial, cenário radical que usa a todo momento como ameaça. Mas não é fatal que esse desejo se realize, depende também da firmeza e da inteligência dos democratas. Concordo, porém, que o quadro preocupa muito porque, mesmo que o desejo do presidente não se realize, sua ação subversiva pode inviabilizar também a sustentação da democracia plena que temos. Pode se impor um “meio termo” amargo, que ainda pode ser evitado, se não fizermos bobagem.
O que pode estar se apresentando agora, nos bastidores dessa crise, é uma hipótese de quase guardiania militar, com Mourão, como preço para nos livrar de Bolsonaro. Continuidade parcial do que aí está, até 2022, o que implica em acomodações. Qual o risco? A depender do grau da crise econômica e social no contexto pós-pandemia, essa quase guardiania virar, adiante, uma guardiania de verdade, no lugar da democracia. Podemos estar entre esse inseticida tóxico, ou manter o inseto letal no governo. Vale dar à democracia uma dose de cloroquina para tentar livrá-la do vírus Bolsonaro? O STF vem resistindo a isso, crendo na possibilidade de que seja garantida sua prerrogativa de Poder que dá a última palavra. Sem dúvida, essa resistência merece apoio. Esse é o caminho. Mas ela pode dar com os burros n’agua se, de algum confronto de rua, surgir um cadáver, seja qual for. Essa será a gota d’agua que falta para deixar aos políticos e à sociedade, como último recurso, escolher entre o inseto e o inseticida. Toda pessoa que ama, sinceramente, a democracia, dever pensar duas vezes antes de, neste fim de semana ou em dias próximos, expor-se ao vírus da Covid e ajudar a expor o País à armadilha autoritária que tenta provocar um confronto desigual.
Acredita que a onda mundial de protestos pela morte de George Floyd pode ter efeitos significativos no Brasil e na política nacional?
Sem dúvida, também. O Brasil não é uma ilha e esses protestos estão carregados de uma moral cívica promissora, revigorante, que chegará aqui também. E chegando deve ser saudada. O exemplo mais positivo dessa moral cívica foi dado pelo irmão de George Floyd, ao afirmar que não se sente representado pelos atos violentos, que também ocorreram e ocorrem, em meio aos atos de protesto. Foi uma declaração fortíssima, que chama a atenção para o caráter agregador da luta contra o racismo. Toda a sabedoria dos democratas brasileiros, em especial dos seus cidadãos negros e negras, estará na sua capacidade de respirar os bons ventos que sopram dessa indignação da sociedade norte-americana, recorrendo à política do bom combate para fazer com que eles soprem a favor da democracia, em vez de ajudarem à guerra interminável que seus inimigos querem nos impor.
Cientista político e professor da UFBa.
Marina Silva: ‘Bolsonaro obstrui a Justiça para evitar combate a crimes’
Para a ex-senadora, é preciso 'sabedoria' da classe política para conduzir qualquer processo de impeachment sem prejudicar atendimento à saúde e sem transformá-lo em luta pelo poder
Vinícius Valfré, O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA - O “e daí?” que o presidente Jair Bolsonaro deu como resposta, no início do mês, a uma pergunta sobre as mais de 5 mil mortes causadas pelo novo coronavírus até então, teve um significado especialmente amargo para a ex-ministra e ex-senadora Marina Silva (Rede) – ontem, foram confirmadads 11.123 vítimas fatais da doença. Na adolescência, no Acre, ela viu familiares e vizinhos perderem as vidas nas epidemias de sarampo e malária. Ela descreve “um sentimento triplo de tristeza, vergonha a indignação por ter um presidente que, em um momento como esse, é capaz de, em atitude de desrespeito e de falta de humanidade, dizer que não tem a ver com isso porque não faz milagre”, afirmou. Em entrevista concedida ao Estadão na semana passada, Marina Silva afirma ver crime de responsabilidade nas atitudes do presidente. Segundo ela, é preciso “sabedoria” para conduzir um eventual processo de afastamento do presidente sem fragilizar a saúde pública nem o socorro a quem mais precisa.
Que lições a pandemia tem deixado para a atividade política?
A primeira coisa que é óbvia é a proteção da vida das pessoas. É o que temos de mais precioso, acima de projeto de poder, econômico, de protagonismos individuais. Tudo o que possa comprometer essa frágil estrutura de proteger as pessoas, de prevenir, atender, curar, amenizar sofrimentos… Nada disso deve fazer parte da política. Infelizmente, a gente não está vendo isso desse jeito. E o pior exemplo vem do próprio governo. Demite o ministro no meio da crise, dá comando dizendo que a economia é mais importante do que a vida, estimula o contágio, com ele próprio (Bolsonaro) saindo às ruas, e criando crises com governadores e prefeitos. O pior exemplo vem daquele que deveria estar agregando.
Como recebeu o "e daí?" do presidente ao ser questionado sobre o recorde de mortes?
Um sentimento triplo de tristeza, vergonha e indignação por ter um presidente que, em um momento como esse, é capaz de, em atitude de desrespeito e de falta de humanidade, dizer que não tem a ver com isso porque não faz milagre, ao som de risadas de seus apoiadores, achando aquilo uma grande “lacração”.
Como avalia a saída de Sérgio Moro do governo?
Primeiro, acho que nem deveria ter entrado. Quando foi cogitado o nome dele para Ministério da Justiça do governo Bolsonaro, olhando para trajetória política, para campanha do Bolsonaro, já achei coisa muita estranha. Mas a decisão foi dele. A saída foi só a confirmação do que eu achava, que nunca deveria ter entrado.
Com base nas declarações de Moro, a senhora acha que estamos diante de um caso que exige a saída do presidente?
Temos duas possibilidades diante dos crimes de responsabilidade: seja o impeachment, pelo Congresso, seja o afastamento, pelo Supremo Tribunal Federal. Existe crime de responsabilidade que não pode ficar impune. Isso é claro. Temos que ter sabedoria de como conduzir o processo sem arriscar vidas das pessoas, sem prejudicar o atendimento de saúde, sem fragilizar o socorro para aqueles que já estão passando fome e necessidade.
A sra. vê ambiente para que um pedido de impeachment prospere?
O que está sendo feito é uma ação em várias frentes. Tem ação do STF, do Ministério Público, do Congresso. Para lhe botar noções de limites: qual dessas frentes pode prosperar para interditar as ações que ele vem tomando na contramão da defesa da vida, da defesa do patrimônio público e da democracia? Não sabemos. Mas temos que reconhecer que tem várias frentes, inclusive com CPI em andamento. Somos o único País do mundo que tem o governo que em vez de agregar está esfacelando toda e qualquer forma de ação conjunta. E faz isso de propósito, porque aposta no caos, porque sonha com o estado de sítio, sonha com situação de descontrole social para justificar seus arroubos autoritários.
Mas correr para apresentar um pedido de impeachment neste momento não é exatamente incentivar uma disputa por poder?
Não. Como eu disse, são várias frentes. O Ministério Público está disputando poder? Não. Está querendo proteger a Constituição, dizer que existem limites institucionais para esse tipo de atitude. Tem que atuar num tripé: defesa da vida, dos direitos à dignidade das pessoas e da democracia. Os mecanismos da AGU foram acionados. Os do Parlamento também. E não só pela Rede, inclusive por partidos que não são tradicionais do campo da oposição, como o PSDB, a ex-líder do PSL (Joice Hasselmann).
A senhora está entre as pessoas que avaliam que o Brasil vai sair melhor da crise sanitária ou no grupo dos que acham que estaremos piores?
A pandemia mostra uma coisa importante, que é a radicalidade do fosso da desigualdade no mundo e no Brasil. Se queremos fazer uma transição para uma economia sustentável, justa, com geração de renda para as pessoas, é um investimento que precisamos fazer a partir de agora.
O Estado de S. Paulo: ‘O Brasil está à deriva, não vejo nenhuma estratégia’, diz Eduardo Giannetti
Para Eduardo Giannetti, presidente “encarna o corporativismo”, e governo precisa deixar claro conteúdo e cronograma de reformas
Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo
Ainda é cedo para dizer que o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019 - que surpreendeu não tanto pelo crescimento fraco, de 1,1%, mas por sua composição, com baixo nível de investimento - vai se repetir em 2020, segundo o economista Eduardo Giannetti. A ausência de um plano econômico claro, com propostas e cronogramas definidos publicamente, no entanto, pode fazer com que isso volte acontecer, o que, por sua vez, frustraria a população.
“Aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vem se manifestando na sociedade. O desapontamento com o (presidente Jair) Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda”, diz o economista.
Para ele, o País está “à deriva” - “não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido” -, e uma possível perda de poder da ala liberal dentro do governo, além do coronavírus, acentuam a imprevisibilidade.
A seguir, trechos da entrevista.
• No fim do ano passado, o sr. falou que acreditava que 2020 não repetiria a decepção com o PIB registrada em 2018 e 2019. Ainda acha isso?
Em função de fatores externos e domésticos, estou menos convencido agora de que a recuperação cíclica é irreversível. Mas acho que é cedo para dizer que vamos repetir o que aconteceu nos últimos três anos.
• Mas as revisões para baixo já começaram.
Já, mas acho que é cedo para determinar, diante de tantas incertezas, inclusive externas, qual vai ser o desempenho em 2020. O mundo está mais imprevisível. Nos últimos 12 meses, tivemos ameaça de guerra comercial, de guerra entre EUA e Irã e agora o coronavírus. Cada um desses eventos gera incerteza. Seria improvável um mundo em que eventos de baixa probabilidade nunca acontecessem. Eles acontecem. O que mudou é que antes eles eram locais e agora são globais. Isso torna o mundo mais imprevisível.
Três fatores aumentam a imprevisibilidade mundial. Primeiro, a maior interdependência. Quando teve a Sars, em 2003, a China era muito menor do que é hoje. Uma queda da produção da China hoje faz cair o preço das commodities e afeta os emergentes. A interdependência de comércio, finanças, pessoas e informação aumenta a imprevisibilidade.
A segunda coisa é a tecnologia. Ninguém sabe qual será a estrutura econômica futura e se ela sancionará os atuais modelos de negócio que são vitoriosos. A indústria digital é um serial killer, mata um setor econômico de cada vez. Isso gera enorme insegurança nos tomadores de decisão e muita imprevisibilidade microeconômica. A terceira coisa é a polarização política. Estamos nas mãos de governos que agem de acordo com uma lógica que não era a estabelecida no sistema democrático de poucos anos atrás. Isso é uma novidade que aumenta a imprevisibilidade no processo decisório. Então, é bom a gente se preparar porque o mundo ficou mais imprevisível. Talvez esse seja o novo normal. O aumento da imprevisibilidade torna mais difícil o processo decisório e afeta investimentos.
A tendência, então, é uma queda geral de investimentos?
As pessoas vão ter de aceitar correr mais riscos. Não vão poder se ausentar completamente. Ao mesmo tempo, as taxas de juros estão baixas, o que leva os detentores de ativos a buscar alternativas para investir. São forças em direções contrárias.
E como o sr. vê a questão de previsibilidade doméstica?
Aí o governo Bolsonaro deixa muito a desejar, porque não está nem um pouco empenhado em dar sequência ao movimento reformista.
• O presidente ou o governo como um todo?
É o governo como um todo. O Brasil está à deriva em termos de governo. Não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido.
Não há um plano liberal sendo implementado?
Não vejo estratégia, comprometimento ou clareza. É espantoso que a equipe econômica não tenha, até agora, dito o que deseja de reforma tributária. Eles sabem da importância desse assunto para a vida empresarial e não se manifestam. A única coisa que aparece desse governo é corporativismo. É, por exemplo, liberar terra indígena para mineração. O presidente confunde defender os grupos de interesse que interessam a ele politicamente com o governo do Brasil. Ele defende os militares na reforma da Previdência, se omite na greve das polícias militares, defende os canais de televisão dos grupos de mídia que o apoiam liberando sorteios, quer abrir terras indígenas para garimpo para defender grupos até paralegais que atuam em mineração ilegal na região amazônica.
O corporativismo era tido como uma das grandes característica do governo PT...
Ninguém encarna mais o corporativismo pequeno do que o nosso presidente. Ele não vê problema em usar o poder para favorecer aqueles que os apoiam.
O sr. já disse várias vezes que vê risco à democracia no Brasil sob Bolsonaro. Como o sr. avalia o fato de o presidente ter compartilhado um vídeo convocando para protesto contra o Congresso?
Concretamente, a linha não foi atravessada. Mas fica cada vez mais claro que o sentimento é de atropelar instituições. Temo que, num momento de crise, esse sentimento se transforme em ação. O risco é alto e tenho certeza de que a insegurança política gerada pelos pronunciamentos do Bolsonaro em nada contribui para a economia brasileira. Houve um rumor, pouco tempo atrás, de que o Paulo Guedes poderia sair do governo. E se o Bolsonaro resolve dar um cavalo de pau na economia e chamar um militar? Aliás, isso é curioso. Há três grupos no governo: o militar geopolítico, o liberal econômico e o familiar astrológico. Essa correlação de forças tem mudado e o familiar astrológico se enfraqueceu, enquanto o militar avançou e aparentemente está de olho na economia.
O sr. dizia que o familiar o preocupava. Como vê essa mudança?
A força que me parecia menos ameaçadora era a econômica. O enfraquecimento dela é mais um elemento de incerteza.
Voltando ao PIB, o resultado de 2019 e a possível debilidade que deve haver neste ano ameaçam a agenda reformista?
Pouca reforma foi feita até agora, mas uma conquista é que o Brasil saiu da UTI fiscal. Isso começou no governo Temer e teve continuidade neste início do governo Bolsonaro.
Mas isso é algo que a população não sente. As pessoas percebem o desemprego.
Está faltando essa agenda de reforma administrativa, tributária, de marco regulatório adequado para investimento em infraestrutura e de um governo que tranquilize, em vez de hostilizar. Um governo que mostre seriedade e compromisso em criar um ambiente estável para que as pessoas possam se sentir confiantes em relação ao futuro. O governo Bolsonaro não contribui em nada para isso. Essa maluquice que fez, se recusando a comentar os números do PIB, é um desastre para a credibilidade. Mas as reformas não foram feitas ainda. Se forem feitas e não derem resultado, aí tem duas possibilidades: elas podem ser necessárias, mas não suficientes, ou se mostrarem contraproducentes. Mas, se acontecer uma boa reforma tributária, isso só pode contribuir para o melhor desempenho da economia brasileira. Não tem como piorar.
O que mais precisa ser feito?
Reforma administrativa. A questão do pacto federativo é importante. Temos de descentralizar as decisões em relação ao uso de recursos públicos no Brasil. Essa é uma boa agenda que a equipe econômica do governo Bolsonaro tem, mas não está acontecendo. O governo tem de apresentar propostas, apresentar um cronograma de encaminhamento da reforma administrativa, definir uma agenda exequível de iniciativas. Isso não está acontecendo. E a impressão que dá é que eles (ala liberal do governo) estão se enfraquecendo dentro daquele arranjo tripartite de forças do governo.
Sem propostas e cronograma, além dessa ala perdendo força, o que podemos esperar para os próximos três anos?
Vamos continuar nessa frustração e aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vêm se manifestando na sociedade. Tivemos junho de 2013, a quase vitória da Marina (Silva) na eleição de 2014 foi um sentimento anti-establishment violento, o impeachment da Dilma também foi uma onda anti-establishment, a greve dos caminhoneiros e a própria eleição do Bolsonaro. Bolsonaro capturou na eleição esse sentimento anti-político. O desapontamento com o Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda. As pessoas vão começar a ficar muito inquietas, insatisfeitas e aí um acontecimentozinho pode deflagrar, com as novas tecnologias, uma nova onda (de protestos).
Como o sr. vê a ameaça do coronavírus?
Tem dois cenários. Um de que é um fenômeno de grande impacto, mas de curto prazo, que, no segundo semestre, haverá uma volta à normalidade e até um movimento de recuperação do que se perdeu no primeiro semestre. A mais pessimista é de que é um choque de oferta, como foi o do petróleo nas décadas de 70 e 80, que tem implicações duradouras e que vai gerar problemas de demanda também. O choque de oferta interrompe cadeias produtivas, leva à queda de suprimentos, a fechamento de fábricas, ao aumento do desemprego, á perda de renda. E aí você tem uma recessão. O fato de o BC americano ter se precipitado e usado boa parte da sua munição tão rápido mostra que ele está assustado e que pode ter usado rápido e cedo demais a pouca munição que tem para baixar juros.
Em qual desses cenários o sr. apostaria?
Esses cenários dependem de coisas difíceis de se modelar, quanto mais de ter um resultado para o qual se possa atribuir probabilidade. Qualquer resposta muito confiante em relação a isso mostra ignorância.
El País: 'Num mundo de incertezas, quem oferece esclarecimento enganoso é recompensado na política', diz Daniel Innerarity
Filósofo basco Daniel Innerarity esboça em seu novo livro um plano de choque para transformar a democracia e garantir sua sobrevivência. Ele defende um ‘reset’ radical da política
Por Miquel Alberola, do El País
O filósofo (Bilbao, 60 anos) é um dos grandes pensadores do mundo de acordo com a revista Le Nouvel Observateur. Sua solvência no âmbito do pensamento é provada em uma dezena de ensaios como La sociedad invisible (A Sociedade Invisível), Los tiempos de la indignación (Os Tempos da Indignação), Un mundo de todos y de nadie (Um Mundo de todos e de Ninguém) e La democracia del conocimiento (A Democracia do Conhecimento). Agora, o professor de Filosofia Política e Social da Universidade do País Basco acaba de publicar Una teoría de la democracia compleja. Gobernar en el siglo XXI (Uma Teoria da Democracia Complexa. Governar no Século XXI, ainda inédito no Brasil), cuja primeira edição se esgotou em dois dias na Espanha, em que esboça a necessidade de transformar o sistema para sua sobrevivência.
Pergunta. Seu livro apresenta um plano de choque à democracia. Propõe uma democracia mais sustentada na biologia do que na física.
Resposta. O paradigma das instituições modernas da democracia é a relação entre forças físicas tal como foram definidas por Newton e Laplace. Jefferson, por exemplo, gostava muito de física. Quando se analisa uma ideia tão fundamental ao sistema político como o checks and balances, pesos e contrapesos, é um universo de inércias e gravidade. A pergunta que abre o livro é se a reflexão política fez a passagem que as ciências da natureza realizaram, que desde então passaram por Einstein, Heisenberg, os avanços da neurociência, a teoria da emergência, das causalidades não lineares... Minha resposta é não. Ainda estamos pensando na política em um universo newtoniano.
P. No que a democracia ficou defasada?
R. Em quase tudo. Com exceção do núcleo de valores, de princípios normativos para os quais nunca encontraremos um substituto útil: a ideia de autogoverno, de igualdade, de representação, de deliberação, de justiça... Essas ideias não sofrerão grandes evoluções, a não ser que precisem se concretizar em contextos diferentes. Mas o restante das ideias... Nosso conceito de soberanias, territorialidade, autarquia, de poder, sofreram uma transformação que contrasta muito com a evolução feita pelos que se dedicam a pensar nessas coisas e os que exercem a política prática.
P. A questão, portanto, não são ajustes, e sim redefinir o sistema.
R. Projetamos um sistema para sociedades que cumpriam condições como simplicidade, autarquia, abrangência e instrumentos tecnológicos de pouquíssima sofisticação. E em 300 anos teremos um mundo interdependente, espaços abertos, soberanias compartilhadas em muitas regiões do mundo (ou pelo menos relações poliárquicas), uma sociedade muito mais plural, mais granular, mais diversificada... Já não funciona que os que estavam no Governo supostamente concentravam o maior nível de conhecimento frente a uma massa que sabia pouco. Hoje os Executivos precisam governar com subsistemas muito inteligentes. Isso significa um reset radical da política. Não estamos diante da típica reforma administrativa, sequer constitucional.
P. Essa redefinição é urgente?
R. Devemos realizar já certas revisões de nossos conceitos e o quanto antes, melhor. Para muitas coisas já chegamos tarde. Por exemplo a crise climática. Para a robotização, em parte, também. Mas esse é um processo que também tem um longo percurso. Deveríamos conseguir que as instituições políticas de vários formatos incorporem em seu estilo de governo dimensões cognitivas e reflexivas. Estamos passando de uma época em que as instituições estavam acostumadas a dar ordens a um mundo em que se deve dedicar o maior tempo possível a aprender.
P. Como fazer essa passagem ao “governo dos sistemas inteligentes” sem danificar seus princípios?
R. É o grande desafio. A direita costuma ter uma linguagem de adaptação: é preciso se adaptar às mudanças sem se preocupar muito pelos critérios de legitimidade que podemos estar carregando em certas adaptações. Em certa parte da esquerda, o que temos é um discurso de impugnação, da desordem do mundo, das injustiças e uma atitude receosa em relação às tecnologias e à globalização. Entre essas duas concepções equivocadas da vontade política (adaptação e repúdio) se abre todo um campo que deveria ser presidido por como conseguir realizar (não adaptar) os ideais irrenunciáveis da democracia em contextos e situações que vão mudando com o passar do tempo.
P. Sabemos como?
R. Não seria honesto apresentar meu livro como uma solução a todas essas questões. Meu livro pretende ser uma caixa de ferramentas para começar com essa tarefa. Não sei como construir o mecanismo, mas proporciono alguns instrumentos que podem ajudar muita gente, porque precisamos fazer isso entre todos: governantes que abandonem esse foco obsessivo no curto prazo e na escaramuça imediata, mas também a população, os veículos de comunicação...
P. O senhor considera que a principal ameaça da democracia é a simplicidade. Não é um contrassenso?
R. Simplicidade, no sentido da simplificação. Em uma versão dupla. Em primeiro lugar, há várias disfuncionalidades na política porque há um contraste entre os conceitos que recebemos e as realidades com as quais estamos lidando. Essa simplificação, conceitos políticos que levam em consideração a riqueza da sociedade e dos novos entornos, é a primeira. Mas há outro tipo de simplificação, mais de ordem prática, que tem a ver justamente com esse mundo da complexidade, cheio de incertezas em que estamos navegando como podemos, em que, pelo menos a curto prazo, os simplificadores têm todas as chances de ganhar. Quem oferece um consolo passageiro, um esclarecimento enganoso do panorama é recompensado em termos políticos.
P. Como Donald Trump e Boris Johnson?
R. Por exemplo. Quem fala de construir um muro para delimitar um espaço, todo mundo entende isso. Quem fala de recuperar um controle que havíamos perdido, mais da metade dos eleitores britânicos entende isso.
P. A democracia se torna complexa e a política se simplifica.
R. Ou, pelo menos, a política não tem o nível de complexidade adequado à sociedade que deve gerir. É o famoso princípio de Ashby de que não podemos desenvolver um sistema inteligente se não desenvolvermos um nível semelhante de complexidade. E se ele não existe, o que se deve fazer é transacionar e estabelecer uma relação mais horizontal. Quando o regulador é mais inteligente do que o regulado, a relação pode ser vertical e funciona bem; quando estão igualados, na verdade desequilibrados no sentido contrário, o que se deve fazer é obter informação, acertar com o regulado um certo tipo de troca entre informação e legitimidade.
P. O senhor fala de proteger a democracia de si mesma, ou seja, da imaturidade, fraqueza, incerteza e impaciência da população.
R. A soberania popular, para que não aja irreflexivamente, seja mais deliberativa e produza melhores resultados, precisa estar bem-organizada. O soberano tem a última palavra, mas também sabemos que se equivoca muitas vezes. Pensamos que a democracia é soberania popular e nos damos conta de que a autolimitação da soberania popular faz parte da soberania popular. De fato, todos nós o fazemos. Estamos colocando limitações no plano pessoal e coletivo para justamente ter uma maior liberdade.
P. A democracia é até um instrumento útil para os que pretendem atacá-la.
R. Não podemos proteger a democracia ao extremo de não correr alguns riscos. É um sistema aberto, em que há liberdade de expressão, em que qualquer um pode entrar (o direito de sufrágio passivo está aberto a todo mundo),... E mais, quando se horizontalizou muito e existem cada vez menos guardiões da porta: os jornais já não têm a verticalidade que tinham, os partidos não são organizações férreas, os próprios agentes políticos estão submetidos ao monitoramento de todos os pontos de vista... A democracia, por sua própria definição, será sempre um sistema de governo frágil e vulnerável. E precisamos aprender a gerir essa vulnerabilidade.
P. A perda de confiança nas instituições e intermediadores é uma causa ou um efeito do que acontece à democracia?
R. Todas as instituições que estabeleciam uma intermediação entre o público e o interesse geral foram desafiadas pela sedução do imediatismo. Já existem muitas utopias que colocam que o melhor esquema de agregação das microvontades é criar um dispositivo que sem nenhuma deliberação reunisse nossos desejos. Diante disso, defendo que uma política de mediações bem configurada pode ser mais igualitária do que a pura espontaneidade da agregação de vontades individuais através de telas de computador. A justificativa da mediação política é corrigir os vieses que estão na sociedade e nos sistemas informatizados: a defesa dos interesses que não podem se fazer valer em uma sociedade entendida como o choque e o combate espontâneo das forças em jogo, onde costumam ganhar, que casualidade, os que têm outro tipo de poder.
P. O senhor afirma que a categorização esquerda-direita também responde a uma simplificação da complexidade ideológica.
R. O que não significa que não possamos continuar utilizando-a e que não entendamos todos perfeitamente o que queremos dizer quando nos referimos à esquerda e à direita. Primeiro, precisamos pensá-la com um pouco menos de profundidade. Segundo, não se pode entender como a clássica contraposição Estado-mercado, da qual viemos. E terceiro, terá que conviver com outros eixos de confronto porque não são os únicos que funcionam na sociedade.
P. Dizer que a direita e a esquerda já não existem costuma ser um argumento de direita?
R. Uma pessoa que o diz costuma refutar a politização das coisas. E a despolitização das coisas costuma beneficiar os que já têm poder.
P. O independentismo é uma solução simples em meio a esse mare-magnum de complexidade?
R. É uma opção pessoal cuja plausibilidade aumenta na medida em que o sistema político é incapaz de canalizar com uma lógica democrática, deliberativa, de negociação, reivindicações fortes de identidade plurinacional.
P. A questão da Catalunha é um problema complexo abordado com muita simplicidade?
R. Sem dúvida. Falei com muitos líderes políticos sobre a Catalunha imaginando qual seria uma solução razoável praticável para o conflito catalão. Do ponto de vista teórico não há grandes dificuldades. Bastaria pensar de que modo a democracia se realiza em um sistema político composto, como o que temos. Pensar que a unidade de que se fala na Constituição é compatível com uma redistribuição diferente do poder. Idealizar mecanismos de reciprocidade, em virtude dos quais a cessão de uma parte seja compensada com a cessão de outra, e gerar um marco de confiança para uma negociação. O grande problema é quem o faz: quem tem liderança suficiente nos dois mundos, em um momento em que, além disso, os tea partys são numerosos, para explicar aos próprios que existem coisas melhores do que uma vitória. Por exemplo, um grande acordo.
P. As tensões territoriais estão na Catalunha, mas também em León e em Teruel. O Estado-nação está desmoronando?
R. No livro o que apresento é que temos que conceber os espaços políticos de uma maneira mais poliárquica. No conflito catalão há uma pressão porque não existe nenhuma assimetria em relação a outras comunidades autônomas, algo tremendamente disfuncional, porque não haverá uma solução na Catalunha se não existir uma especificidade reconhecida constitucionalmente. Depois vêm os casos como Teruel Existe e a Espanha Esvaziada. E Madri, como grande centro de sucção de recursos e com certas formas de competitividade de outros centros alternativos, como Barcelona, Valência, Sevilha e Bilbao. Estamos realmente diante de uma definição do espaço no qual queremos viver e isso, em si mesmo, não me parece um problema. Vê-lo com uma certa displicência, como se fosse uma espécie de retorno do tribalismo e de rebelião das províncias, me parece que reflete uma maneira muito elitista e muito madrilenha de ver as coisas. Isso dito por uma pessoa que gosta muito e sente-se muito bem em Madri.
P. Há uma disputa entre a cidade-Estado e a nação-Estado?
R. Sem dúvida. Madri é um exemplo de um centro em uma sociedade que já não pode se organizar a partir de um centro. A única maneira de se reorganizar a partir de um centro é fazê-lo de maneira tremendamente disfuncional e tremendamente desigual.
Folha de S. Paulo: Brasil sofre vácuo de lideranças, e polarização é ameaça, diz FHC
Para tucano, ataque de Jair Bolsonaro a repórter da Folha é inaceitável e ele deveria se comportar como presidente
Igor Gielow, da Folha de S. Paulo
O Brasil precisa de liderança, e o posto hoje está vago. A opinião é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou de 1995 a 2002.
Para ele, o comportamento de Jair Bolsonaro, que insultou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, foi "inaceitável". O atual titular do Planalto precisa se comportar como um presidente, avalia FHC.
Ele descarta risco institucional. Afirma, contudo, que "o alarme precisa ser dado" porque a polarização vigente no país ameaça a democracia —e aponta para a rejeição à corrupção e ao PT como ponto de partida do debate atual.
No seu campo político, de olho no Planalto em 2022, ele elogia o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) pela gestão e pela juventude (34 anos).
Sobre um protegido político seu, Luciano Huck, ele disse que o apresentador da TV Globo precisa "se transformar num líder político", porque hoje "conhece o caldeirão" [referência ao nome de seu programa e ao contato com a população em quadros da atração]. Já o governador João Doria (PSDB-SP) "conhece o poder".
O tucano, 88, elogiou os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ) e do Senado (Davi Alcolumbre, DEM-AP). Ele falou no fim da tarde de quarta (19), na Fundação FHC, no centro paulistano.
Como o sr. vê o clima político do país?
O risco é a polarização. Você não pode deixar que a polarização afete o jogo democrático, que supõe a diferença. É preciso que algumas pessoas que têm responsabilidade institucional, como foi o caso dos presidentes da Câmara e do Senado, manifestem sua estranheza.
Eu sou bastante cuidadoso, sobretudo no exterior, porque fui presidente e sei que as coisas são difíceis. Mas está chegando um momento em que os que são responsáveis pelas chefias do aparelho institucional se comportem institucionalmente. Quem tem função presidencial tem de se comportar como tal. Eu sei que às vezes você fala por falar.
No episódio da repórter da Folha, o limite foi ultrapassado, não?
Aí a coisa passou para outro plano. É inaceitável, não tem cabimento você fazer referências assim a qualquer mulher, pelo que apareceu na mídia. Não acho que haja risco institucional, não sou alarmista. Acho apenas que é preciso ter um certo cuidado. Vamos pegar uma pessoa que me deu muita dor de cabeça política, o Lula. Ele agiu institucionalmente no cargo —no que diz respeito às questões pelas quais ele foi preso.
Nós sentimos o gostinho da liberdade. Só quem viveu com censura, como eu vivi, sabe. Isso acabou. Você não pode atacar todo dia a mídia. Eu sei que a mídia exagera também, talvez até seja sua função.
Quem tem poder político não pode utilizá-lo contra isso. Pode reclamar, mas não pode usar sua força para coibir. Não vai dar certo, vai abrir espaço para o regime que não se quer.
Mas o sr. vê risco disso?
A democracia é uma planta tenra, não pode dar de barato que não vai virar outra coisa. Temos de dizer: "Cuidado, hein? Não passe desse ponto, senão passa". O alerta tem de ser dado, sem alarmismo. Quem tem poder não pode exagerar. Você tem de se autocontrolar.
Como vê a renovada militarização do governo?
Eu não tenho nenhuma versão negativa das Forças Armadas, nem poderia ter. Meu pai era general, meu avô foi marechal.
Quando vejo os generais nomeados, tudo bem, é preciso ver como é a pessoa, se funciona ou não funciona. Agora, tem limite para tudo. Tem de haver um certo equilíbrio que, quando é rompido, as prejudicadas são as Forças Armadas. Você não pode confundi-las com o poder político.
Governadores escrevem carta contra o presidente, Maia bate-boca com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), o Congresso toca a agenda mais positiva. Como o sr. vê isso?
Veja as reformas. O Parlamento assumiu a primazia, o que leva a crer que uma parte do Executivo não assumiu como tarefa sua fazer passar.
Isso é inegável. O Brasil não é uma República parlamentarista, o povo rejeitou isso. Num regime presidencialista, a iniciativa é do Executivo, o Parlamento não pode substituir, pode suprir lacunas.
E levar adiante as reformas não significa só mandar a reforma. Tem de falar com os parlamentares e tem de convencer a nação sobre a necessidade delas.
Como o sr. vê a atuação do Paulo Guedes? Em todo governo há um ministério cujo titular é mais capaz de liderar. Eu não conheço o Guedes, mas sou favorável à reforma da Previdência, tentei fazer uma também. Está faltando falar com o país. Quando o presidente não tem interesse ou qualidade, o ministro precisa falar.
Sim, mas aí o ministro falou que as domésticas não deveriam ir tanto à Disneylândia.
Ele não tem experiência política.
Isso não trai um espírito da certa elite brasileira?
É algo cultural. Nos Estados Unidos, eles conseguiram acreditar na Constituição, em que todos são iguais perante a lei. Aqui não é bem assim. As pessoas não se sentem iguais. Todos nós temos, em graus diferentes, impulsos que não são democráticos, que não são de igualdade.
Não deveria ser assim. Então, acho que essas expressões contra mulheres, contra pobres, vêm daí, de um desprezo de classe que é incompatível com a regra democrática.
Fala-se muito em uma extensão do mandato do Rodrigo Maia, por exemplo, vamos mudar a Constituição.
Não acho que seja solução, nem creio que ele aceite isso. Tem de respeitar as regras. Se você as desrespeita no Congresso, vai começar a desrespeitar no Executivo.
O sr. promoveu mudança em 1997, com a adoção da reeleição. Não é contraditório? É diferente agora?
Veja, eu sempre fui favorável a um mandato maior. Nós não discutimos na Constituinte, e quatro anos não é nada para alguém governar. É melhor ter uma reeleição. Mas você não pode ser favorável à permanência. Tem limite.
O tumulto político segue até a eleição de 2022?
Depois da eleição municipal de outubro, tudo vai girar em torno da expectativa de futuro. Apesar das instituições, elas não funcionam sem lideranças. É preciso ter pessoas. Você não leva o eleitorado a votar pelo que você fez, mas sim pelo que você pode fazer. Alguém vai encarnar esse futuro. Pode ser o próprio Bolsonaro, com a permanência da polarização. Eu não gostaria.
Quem é o tal centro? Huck, Doria e Eduardo Leite?
Eu vejo o Eduardo Leite positivamente porque ele faz um bom governo e é jovem. Eu vou fazer 90 anos no ano que vem, é preciso passar o bastão.
Veja os movimentos de renovação da política, eles não estão nos partidos. Mas não basta ser jovem. O que eu vejo, em renovação, está por aí, neles [o trio acima]. Quem vai ser, vai depender do que vai acontecer.
E o ar está sulfuroso, a polarização de 2018 ainda está presente.
Exatamente, ela vem de trás. A polarização vem da oposição ao PT, é isso. Corrupção e PT. Aí você vem imaginar que tem comunismo no mundo? Isso é ridículo, é anacrônico, para dizer o mínimo.
E o Huck? Ele se colocou, não?
Ele se colocou um pouco mais. Mas o Huck por enquanto é uma celebridade. Ele está se transformando num líder político. Vai ter que se transformar se quiser ser presidente, vai ter de passar por essa etapa. Pode? Pode.
E o Doria?
Ele tem, digamos, virtudes diferentes. O Huck conhece o caldeirão. O João conhece o poder. É difícil saber o que vamos precisar mais daqui a um ano e meio, o que vai sensibilizar mais o povo. Será a capacidade de conhecer o Estado e trabalhar com as forças organizadas ou será a erupção de um sentimento coletivo? Eu não sei. Idealmente, todos deveriam se unir.
Parece difícil.
É difícil. E é indiscutível que o presidente tem força, a hipótese de reeleição precisa sempre ser considerada. Ele já se elegeu e a polarização rende para quem está polarizando. Ela é ruim para o país e para a democracia, mas rende voto.
Em 1995, o sr. enfrentou aquela greve dos petroleiros. Eles estão parados de novo. O sr. faz algum paralelo de pressão, vê a possibilidade de outras agitações sociais?
Essa é a principal questão do mundo, a crise das instituições. A explosão moderna se dá não só nas relações formais de classes, há curtos-circuitos em qualquer coisa.
Eu me lembro que encontrei por acaso o ministro Eliseu Padilha [Casa Civil de Michel Temer] durante a greve dos caminhoneiros de 2018 e ele não tinha com quem conversar. Não havia líder, partido, sindicato. Isso obriga a liderança de pessoas, que falem com a nação. Pode acontecer de novo? Pode.
Os protestos de 2013 tiraram algo dessa pressão, não?
Sim, mas mostraram a possibilidade. Não sei quando vai estourar de novo ou em que setor. Há um mal-estar, insegurança, basta ver o desemprego. As pessoas se sentem inseguras, precisam de liderança. Não quero ser injusto com quem exerce a liderança, é difícil.
A liderança também se impõe pela situação, como ocorreu quando Winston Churchill virou premiê britânico no começo da Segunda Guerra Mundial. O posto de líder no Brasil está vago?
Acho que sim. Há alguns candidatos.
O Brasil é um país muito diverso, é difícil você exercer influência. Estamos em um momento em que é preciso construir pontes. É mais difícil do que saltar no vazio. E estamos construindo muralhas.
IHU Online: Fim do piso para a saúde é o divórcio definitivo da economia dos problemas sociais, diz Ligia Bahia
Por Ricardo Machado, IHU Online
No centro do alvo das políticas administrativas e econômicas do atual governo estão as políticas sociais. Os três pilares que sustentam o austericídio das políticas públicas são as Reformas da Previdência e Trabalhista e a Emenda Constitucional – EC 95, que congelou os investimentos em áreas fundamentais para o país, como saúde, educação e segurança. Uma nova ofensiva visa desmantelar ainda mais o Sistema Único de Saúde – SUS. “A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais”, ressalta a professora doutora e pesquisadora Ligia Bahia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde”, avalia a pesquisadora. No fundo há uma visão, por parte de quem defende o corte de recursos para a saúde, vulgarizada do que é o SUS, ao mesmo tempo que se romantizam os planos privados, que, atualmente, devem mais de R$ 1,7 bilhão aos cofres do Sistema Único de Saúde. “A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita”, critica.
O ataque à saúde pública e universal é mais um capítulo no processo contínuo de destruição das conquistas sociais da Constituição Federal de 1988, que tem ocorrido, de forma explícita, desde 2016. Ao projetar o futuro, Ligia Bahia faz um balanço sobre os investimentos na área nos últimos dez anos. “A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil”, projeta.
Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a extinção dos pisos para investimento nas áreas de saúde e educação está no raio de ação da PEC do Pacto Federativo?
Ligia Bahia – A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. Ambas políticas foram justificadas com o argumento que poderia haver aumento dos recursos para a saúde e o que ocorreu foi o contrário. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais. Essa ameaça de “liberação” das amarras do orçamento é o ponto máximo dessa ruptura onde haveria um orçamento extraído de impostos, taxas e contribuições que não dialoga com as necessidades sociais do país. Em tempos de Coronavírus ao invés dos esforços para ampliar recursos para a saúde pública o governo anuncia que irá restringir as respostas para a melhoria da saúde.
A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência – Ligia Bahia
IHU On-Line – Em específico para a área da saúde, quais os riscos da extinção do piso mínimo de investimento? Como isso se materializaria no cotidiano do SUS?
Ligia Bahia – O financiamento do SUS dependeria exclusivamente da boa ou má vontade de cada governo e assim fica tudo ainda mais difícil. O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde.
IHU On-Line – O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo, já declarou que além de educação e saúde, estuda incluir o setor de segurança pública no pool de áreas que devem ter o piso mínimo para investimentos extinto. Quais podem ser as consequências de medidas como essas?
Ligia Bahia – São proposições diretamente derivadas de acepções completamente errôneas sobre as relações entre economia e questões sociais. Nós nunca defendemos engessamento do orçamento, os pisos foram adotados como estratégias de resistência às políticas sucessivas de ajustes fiscais e subfinanciamento do SUS. Os pisos se confundem com tetos exatamente porque os governos não priorizam políticas essenciais para a efetivação de direitos básicos de cidadania. O núcleo do problema nunca foi a “reserva” de recursos e sim a negligência com as políticas sociais.
IHU On-Line – Em mais um verão, o Brasil vê aumentar a incidência de doenças causadas por vetores, como a Dengue. O que esses dados revelam acerca dos investimentos estatais em saúde pública e na própria concepção do SUS nesse último ano?
Ligia Bahia – As arboviroses, entre as quais a Dengue, se tornaram endêmicas no Brasil. O país realizou investimentos na produção de vacinas e mantém esforços em relação à vigilância epidemiológica. Entretanto essas iniciativas sempre foram insuficientes e uma parte delas está sendo descontinuada. A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita. A acepção sobre as relações entre saúde e desenvolvimento econômico e social está soterrada sob o cimento da indiferença de autoridades governamentais pelo sofrimento da população com doenças que poderiam ser evitadas.
A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita – Ligia Bahia
IHU On-Line – Como avalia atualmente a estrutura e ações de saúde preventiva no Brasil, desde a ação de agentes comunitários de saúde, a unidades de atenção básica?
Ligia Bahia – Estamos certamente diante de uma retração do SUS e de sua possibilidade de resolver problemas de saúde. A prevenção no sentido literal sempre foi frágil e está evidente, desde os casos de febre amarela, que temos problemas muito graves que incluem desde qualidade e transporte adequado de vacinas até a oferta de unidades de saúde abertas limpas e dotadas de profissionais de saúde e medicamentos.
IHU On-Line – Em agosto de 2019, o governo federal encerrou o programa Mais Médicos e abriu, em substituição, o Médicos pelo Brasil. Pouco mais de meio ano depois, como avalia essa mudança?
Ligia Bahia – O programa Mais Médicos foi um marco no Brasil, demonstrou ser possível alocar profissionais de saúde em lugares distantes e inóspitos. O Ministro Mandetta não suprimiu a política de interiorização de médicos. Considero que a continuidade deva ser comemorada como uma conquista da saúde pública. É importante dar seguimento a uma política que busca uma distribuição mais homogênea de recursos. Certamente houve perdas de traços importantes do programa mais médicos relacionados com a presença dos profissionais cubanos: disposição para trabalhar sob condições muito precárias em áreas remotas. Mas houve também o reconhecimento, ainda que não explícito, de seus acertos. Os desafios agora estão explicitados: 1) a alternativa carreira de Estado para médicos é de difícil viabilização, requer formulação e decisão política que são incompatíveis com o sentido e direção da reforma administrativa pretendida pela área econômica; 2) os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis para manter a oferta de serviços nessas localidades.
Os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis – Ligia Bahia
IHU On-Line – O ano de 2019 encerrou com um verdadeiro caos na saúde pública do Rio de Janeiro. O que esse caso revela acerca da política de saúde pública no Brasil? Como conceber saídas para casos como esse do Rio de Janeiro?
Ligia Bahia – O Rio pode estar na “vanguarda” do caos. A queda de arrecadação, repasse irregular e insuficiente de recursos conjugada com a ausência de liderança de autoridades sanitárias e presença de milícias em unidades de saúde plasmam uma crise de enormes proporções. As saídas requerem reconhecimento dos problemas, transparência e participação e mobilização social para a definição de prioridades e monitoramento permanente da execução de políticas.
IHU On-Line – Quais os desafios para o fortalecimento e manutenção do SUS agora em 2020? E, além da PEC do Pacto Federativo, qual a maior ameaça?
Ligia Bahia – O SUS está de pé, ficou de pé. As principais ameaças são a expansão do setor privado. Os lobbies mais ativos na saúde concentram-se em torno da desregulamentação das coberturas dos planos privados. Empresas privadas querem vender mais planos. Do lado governamental, a principal ameaça é o desestímulo completo das carreiras públicas (um ministro que considera que servidores púbicos são parasitas). Não existirá um SUS abrangente e de qualidade sem servidores públicos muito bem formados, sem uma burocracia moderna e eficiente. A PEC do pacto federativo, a extinção dos mínimos orçamentários são ameaças que poderão ser revertidas por governos que priorizem a saúde, a acepção do SUS como política negativa, fracassada, ultrapassada causa danos irreversíveis.
A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública – Ligia Bahia
IHU On-Line – Como o Brasil encerra a década de 2010 na área da saúde? E o que se projeta para a próxima década?
Ligia Bahia – A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil. Iniciamos a década com uma baita crise na saúde em várias cidades brasileiras.
No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil – Ligia Bahia
IHU On-Line – Este ano tem eleições. Como a pauta da saúde deve emergir nesse contexto?
Ligia Bahia – Nas eleições municipais a saúde tem presença garantida nas plataformas eleitorais. Possivelmente haverá novidades porque as velhas soluções mágicas como os corujões, mutirões, atendimento móvel, nada disso deu certo, mostraram-se insuficientes. Temos que contribuir para a elaboração de programas e debates eleitorais que vinculem os temas sociais aos econômicos, buscando impedir que as promessas de campanha sejam meramente retóricas.
Leia mais
- Planos de saúde e o SUS. Uma relação predatória. Revista IHU On-Line, Nº. 541
- Sistema público e universal de saúde – Aos 30 anos, o desafio de combater o desmonte do SUS. Revista IHU On-Line, Nº. 526
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Economista avalia que Governo enfraquece democracia no Brasil e diz que principal falha da equipe de Paulo Guedes é ignorar o debate sobre desigualdade no país
O Brasil voa hoje às cegas com o Governo de Jair Bolsonaro, em que vigoram políticas públicas baseadas em achismos, contrárias à ciência e à evidência empírica. A cada ataque diário à imprensa, às minorias ou a cada recusa a prestação de contas e manipulação de dados, a atual gestão vai minando a democracia. A avaliação é do economista brasileiro Claudio Ferraz, professor da Universidade de British Columbia, em Vancouver no Canadá. Ferraz, que também é professor da PUC-Rio e especialista em medir o impacto da implementação de medidas e programas, diz que, em sua visão, nem o contrapeso do Congresso é capaz de conter todo o avanço autoritário imposto pelo Planalto. “Não acho que estamos em um momento em que você possa acordar e achar que a democracia não sofre perigo nem probabilidade sofrer algo mais drástico”, pontua.
Morando há mais de seis meses fora do país e sem data para voltar, o professor acredita que a visão atual do exterior é que o Brasil hoje é governado por um presidente autoritário com políticas esdrúxulas, o que afugenta os investidores estrangeiros em um momento em que a economia brasileira caminha para sua recuperação em passos lentos. O economista, que se declara como de centro-esquerda, acredita que parte do discurso da equipe econômica vai na direção correta, mas critica a falta de uma discussão sobre desigualdade na pasta comandada pelo Paulo Guedes, que nesta semana chocou mais uma vez o país com suas declarações sobre empregadas domésticas e consumo.
Pergunta. Muito se discute se o Governo de Jair Bolsonaro representa hoje um risco para a democracia brasileira. Qual a sua avaliação?
Resposta. A dificuldade de conversar sobre risco à democracia é conseguir medir o que significa exatamente esse risco. Se levarmos em conta as perguntas que cientistas políticos usam para medir índices de democracia —se há eleições livres, se há liberdade de imprensa, de formar partidos etc.—, o Brasil não está em risco. Mas é uma forma de ver muito ruim e tosca, porque mesmo se você olhar para países onde claramente a democracia já está ameaçada e tem sido deturpada constantemente, como Hungria e Turquia, percebemos que esses índices não capturam esses fenômenos. Muitos analistas e acadêmicos estão chegando à conclusão que, desde que Donald Trump e outros populistas de direita chegaram ao poder ao redor do mundo, a democracia já não se rompe como antes, com um grande golpe de Estado em que chegam militares ao poder ou algum outro grupo. A democracia vai se enfraquecendo devagar, com pequenos desvios, usurpação de poder, com quebras institucionais, que, muitas vezes, você não consegue nem perceber. Em um ano de poder de Bolsonaro há vários quesitos em que isso está acontecendo. Desde ataques contínuos à imprensa, manipulação para quem se dá a informação, negação de prestação de contas, manipulação de quem vai estar à frente da Polícia Federal. Podemos ver ataques a grupos minoritários feitos diretamente pelo presidente e por vários ministros do Governo, sejam ataques diretos ou indiretos que têm efeitos nas políticas públicas. Todos são exemplos de ataques à democracia diários.
P. Mas todos eles representam um perigo real à democracia brasileira ou ela é forte o suficiente para aguentar?
R. As opiniões diferem. Algumas pessoas interpretam, por exemplo, algumas falas do Rodrigo Maia e o papel que o Congresso tem tido em contrabalancear algumas das loucuras do presidente e dos ministros como um sinal de que a democracia está funcionando. Ou seja, que hoje temos uma separação de poderes de forma que o Legislativo consegue conter alguns avanços do Executivo contra a democracia. A minha percepção é que isso funciona em algumas dimensões, principalmente nas políticas grandes, que geram grandes impactos. Mas existem mais políticas e medidas adotadas diariamente que não passam pelo Congresso. Funciona em parte, não controla todo o avanço autoritário. Observar o que está acontecendo agora também não quer dizer que, eventualmente, em algum momento essa corda não vá se romper de uma forma ou outra. Acho que foi o [cientista político] Cláudio Couto que usou essa analogia de você descer a serra de carro e ir freando até que em um dado ponto o freio já não funciona. Acho que o grande perigo é que tudo que aconteceu até agora foi em apenas um ano. São quatro de Governo. Até quando a democracia brasileira sustenta esses constantes puxões? Eu não acho que estamos em um momento que você possa acordar e achar que está tudo ótimo e que a democracia não sofre perigo nem probabilidade sofrer algo mais drástico.
P. Você estuda bastante sobre os impactos de políticas públicas. Uma das que gerou bastante crítica recentemente foi a campanha da ministra Damares Alves que incentiva abstinência sexual para a prevenir a gravidez na adolescência. Quais os efeitos práticos de uma medida como essa?
R. Há algo muito ruim nesse Governo, que é uma visão do mundo onde ciência e evidência empírica não são importantes para a tomada de decisões de políticas públicas. Não estou falando só da Damares. É algo mais amplo, que passa pelo Ministério da Educação, pela forma de combate ao crime, pela posição sobre a Amazônia e a mudança climática, o papel de radares de velocidade de reduzir mortes no trânsito. As políticas públicas deste Governo, com muitas raras exceções, como as do Ministério da Economia, são uma falta completa de diagnóstico de problemas, de estudos do que pode ser feito olhando para outras experiências exitosas, tanto realizadas em municípios e Estados brasileiros como em outros países. No final, há uma falta completa de avaliação para essas políticas públicas. No momento em que você não acredita em ciência e números verdadeiros, não tem porque avaliar uma política pública. O grande perigo é você voar num avião cego, sem nenhum mapa sobre o que fazer. Vira uma política pública de achismos. E o mais grave é que é um Governo conservador, com uma grande influência de ideias religiosas. Em várias dimensões que pode vir desde “a gente não deve ter educação sexual dentro de escola" ou abstinência ou como pensar em Amazônia. A grande gravidade em termos de políticas públicas é essa visão totalmente ideológica em relação ao que fazer.
P. Você elogiou o Ministério da Economia. Acredita que a equipe de Paulo Guedes está na direção correta, apesar da verborragia do ministro?
R. Não sei se correta. Tanta proposta já foi feita e tão pouca coisa implementada no sentido do que se fala e do que se fez. A minha visão de fora é que existem duas coisas, o que acho que o ministro e o Ministério da Economia querem fazer e, por outro lado, o que muita gente já imaginava que ia acontecer, que o presidente não tem muito de liberal. Se você olhar o histórico como deputado e mesmo diversas falas ao longo da história, ele está muito longe de liberal. Acho que esse conflito entre favores para grupos específicos da sociedade vis à vis liberalismo vai estar intrínseco no Governo durante o tempo que existir um ministro como o Guedes e um presidente como o Bolsonaro. No final, vai ser um equilíbrio político, um toma lá, dá cá. Alguma concessão de um lado em troca de outras políticas de outro lado. Eu acho que em termos de algumas ideias e políticas do Ministério da Economia a visão é acertada.
P. Quais?
R. Por exemplo, o aumento de concorrência, no sentido da necessidade de liberalização comercial no Brasil. Hoje o país é um dos mais fechados do mundo. A necessidade de aumento da produtividade na economia, de reduzir má alocação de recurso, de simplificação tributária. Todas essas propostas vão eventualmente na direção correta.
P. A recuperação econômica em curso é a mais lenta da história e oferece um paradoxo. Fatores muito positivos são insuficientes para estimular o crescimento. A inflação e os juros estão baixos, a nova Previdência foi aprovada no ano passado. O desemprego ainda segue alto. Quais políticas faltam para reativar a economia?
R. É complicado. As políticas de criação de emprego muitas vezes no curto prazo podem ser inimigas das políticas de geração de crescimento e desenvolvimento no longo prazo. A desoneração é um exemplo disso. A gente sabe que no Governo de Dilma Rousseff foi tentado, mas não deu certo e continua no menu. Porque existe uma percepção de que se você reduzir a carga tributária de empresas específicas e incentivar a contratar mão de obra, vão contratar gente. No longo prazo, o que a gente precisa são de políticas que aumentem a produtividade da economia brasileira. Nenhum país cresce no longo prazo de forma sustentável sem aumento da produtividade. Uma política que aumente emprego no curto é a melhor para o país crescer no médio. E é onde essa pressão populista de entregar resultado no curto pode ser complicada. Você pode pensar a mesma coisa sobre a discussão de liberalização comercial, ela é complexa. Apesar dos economistas gostarem dessa ideia como um choque na economia pelo aumento da concorrência, por outro lado há evidências bastante concretas que aberturas de mercado criam desempregos em algumas áreas e quebram empresas. Ela pode, inclusive, no curto prazo, aumentar a desigualdade. Então políticas boas no longo prazo têm um custo de transição no curto. Em um momento em que você possui uma alta taxa de desemprego e está saindo lentamente da crise, os incentivos e as pressões políticas para não adotarem algumas dessas políticas é ainda mais forte. Acho que o que falta na verdade na equipe econômica é uma discussão de que a desigualdade importa. Falta comunicação entre Ministério da Economia e da Educação, de proteção social. A princípio você gostaria de ter um Governo em que essas coisas caminhassem juntas.
P. Acredita que desigualdade no país também emperra o crescimento?
R. Essas coisas estão ligadas, porque parte da desigualdade brasileira —e existe um mea culpa a ser feito pelo Governo do PT— é que a política industrial implementada no Brasil desde a crise de 2008 favoreceu grandes empresas. Grandes grupos, campeões nacionais se beneficiaram de forma desproporcional comparado a pequenas e micro empresas que poderiam ter ativado a dinâmica econômica e gerar redistribuições. Apesar das pessoas falaram que a JBS, por exemplo, cria milhares de empregos, proporcionalmente o custo para o Governo da política industrial e de crédito do BNDES para criar esses empregos é altíssimo e ineficiente. Não faz o menor sentido. E outro lado que é uma das grandes causas de desigualdade no Brasil e que, eventualmente, também gera grandes ineficiências é o setor público com alguns salários exorbitantes, como no caso do Judiciário. Mas não é só o Judiciário.
P. O próprio Banco Mundial mostrou em estudo que hoje muitos dos salários públicos não são compatíveis com o da iniciativa privada...
R. Com certeza. Mas o grande perigo é que também não podemos ir para o outro lado. Existe uma grande correlação entre a qualidade da burocracia, a qualidade de implementação de políticas e o desenvolvimento e crescimento econômico. Esse Governo, depois de um ano, é um estudo de caso de diversos ministérios. Não estou só falando da catástrofe do Enem, mas existem vários exemplos que ter gente ruim no Governo tem impacto direto e custosíssimo para a implementação de políticas públicas. Então não adianta dizer que vai cortar salário de todo mundo do Governo. Não é só cortar salário. É gerar responsabilização, criar incentivo dentro do Governo para as pessoas trabalharem, melhorar salário baseado em produtividade e mérito. Mas mais uma vez se entra em choque. Há o que o ministério quer, com proposta de reforma administrativa, mas que politicamente é muito custosa.
Não é só cortar salário. É gerar responsabilização, criar incentivo dentro do Governo para as pessoas trabalharem, melhorar salário baseado em produtividade e mérito
P. O investimento público baixo é inevitável dado o momento crítico das contas públicas?
R. Eu acho que não tem como fugir. Investimento baixo é uma consequência do momento, mas mesmo dentro do investimento público existem escolhas que sempre são feitas. Há como escolher na margem onde colocar o dinheiro. Você ter na cabeça que há restrição orçamentária é importante também, não dá para fingir que ela não existe. Existe uma discussão eterna sobre quanto o investimento público faz a economia girar ou não. Se está investindo pouco ou se você deveria estar investindo mais para gerar emprego, que é uma discussão controversa. Dentro dos gastos públicos existem escolhas e ela deveria ser feita com base em onde na margem seu dinheiro dá mais retorno em termos de política pública. Em vários ministérios, essa escolha não está sendo feita dessa forma.
A polarização dá uma carta branca pra quem está no poder e ela acaba fazendo coisas que em outras circunstâncias não seriam admitidas.
P. Estamos mergulhados em uma polarização gigante no Brasil. O quanto isso afeta o momento político econômico?
R. Acho que afeta muito, é péssimo. A polarização faz com que você se permita fechar os olhos e passar o pano sobre absurdos que acontecem porque caso contrário o outro time chegaria ao poder. Os republicanos passam pano sobre os absurdos do Trump porque senão corre o perigo de chegar um comunista como Bernie Sanders ao poder. A mesma coisa no Brasil. Muitas pessoas que não se consideram bolsonaristas de carteirinha, mas ignoram os absurdos do presidente em relação gênero, LGBTs, indígenas e o que for, porque, caso contrário, Lula, o grande corrupto, irá voltar ao poder e o que será de nós? A polarização dá uma carta branca pra quem está no poder e ela acaba fazendo coisas que em outras circunstâncias não seriam admitidas. E, de certa forma, ela tem um efeito forte na economia, porque gera muito incerteza. O mundo polarizado é um mundo em que quem está no poder importa muito. As políticas variam muito. Se o Trump ganhar ou perder tem um efeito enorme nas políticas públicas e na economia dos EUA.
P. No caso do Brasil é um ingrediente a mais para esse momento de lenta recuperação?
R. Acho que sim. Não sei se a polarização em si, mas certamente essas atitudes autoritárias do Governo elas afugentam investidores estrangeiros. Em geral, as pessoas sentem medo das loucuras do Bolsonaro. Isso afeta a percepção de estrangeiros. Se ele é louco em diversas coisas, como vou saber que amanhã ele não fará algo que irá me afetar. A visão internacional hoje é que o Brasil tem um presidente autoritário com políticas esdrúxulas em relação a várias áreas: educação, passando por meio ambiente e Amazônia, até cultura, minorias.
P. Você defende mais as análises dos dados micro para responder às grande questões da macroeconomia brasileira. O que o país ou os economistas deveriam estar discutindo?
R. Infelizmente, essa revolução da macroeconomia aqui fora de usar dados micros para responder questões macros ainda não chegou no Brasil. São poucos os acadêmicos que usam microdados de empresas de empregos etc. para responder perguntas. Acho que há muitos questionamentos em aberto, desde impacto de políticas implementadas até perguntas como por que o país está demorando tanto para sair da crise. Para isso seria preciso aprofundar em microdados do IBGE de empresas. Quais são as companhias que sobreviveram tanto tempo em épocas de bonança de crédito de bancos públicos? Será que são as mais ineficientes? Será que em parte porque as mais ineficientes sobreviveram elas não conseguem contratar porque não conseguem vender seus produtos? Quem está contratando agora? Maiores ou menores? Há várias coisas da dinâmica de produtividade e dinâmica de emprego no Brasil que não são discutidas. Não é porque o pesquisador brasileiro é pior em nenhuma dimensão, mas sim porque no país temos menos dados e são mais difíceis de acessar. Para ver os microdados do IBGE é complexo, você precisa estar lá, há uma sala de sigilo, você precisa apresentar um projeto, demora. O acesso é mais difícil.
P. Entre economistas heterodoxos e ortodoxos, onde o senhor se posiciona? E no espectro político, esquerda ou direita?
R. Honestamente, essa discussão dos economistas é inexistente aqui fora. No Brasil, ela também é deturpada. O que muita gente chama de economista ortodoxo no Brasil é o que usa modelos neoclássicos e matemáticos e que utiliza técnicas estatísticas e econométricas. Essa coisa do heterodoxo no Brasil surgiu um pouco contra o uso de modelos matemáticos. E as críticas são deturpadas. “Os economistas heterodoxos acreditam que os agentes são racionais e é só isso que você olha” ou “O economista ortodoxo não olha para a desigualdade”. Eu me posiciono como centro esquerda. Acho que existe uma confusão no Brasil que se você é um economista ortodoxo e usa modelos matemáticos, você é de direita, e se você é heterodoxo, você é de esquerda e não usa estatística. Existe uma série de economistas que se consideram ortodoxos no sentido da metodologia que usam, mas podem ser considerados de centro esquerda, no sentido de preocupações sociais e desigualdade. E esse tipo de economista no Brasil é mal visto. As pessoas pedem essa polarização entre esquerda e direita, ortodoxo e heterodoxo. Eu acho que isso é uma deturpação ruim para economistas, onde as pessoas não vêem que você pode usar métodos neoclássicos, estatísticos, econometria e mesmo assim fazer trabalhos importantes para pensar em grandes questões que tem a ver com igualdade de oportunidades, desenvolvimentos e coisas afins.