entrevista

O Estado de S. Paulo: 'Eles têm verdades absolutas, acho perigoso’, diz FHC

Um dos problemas do País, diz ex-presidente, é que o governo ‘não sabe ouvir’; para ele, a volta ao normal ‘não será tão rápida’

Sonia Racy, O Estado de S. Paulo

Nas suas sete décadas de vida pública, somadas a uma intensa vida acadêmica, Fernando Henrique Cardoso* viu um pouco de tudo na história do País. Ao passar adiante o poder em 2003 – depois de oito anos como presidente –, a inflação havia sido domada, as contas estavam em ordem e a economia pronta para crescer. Neste final de 2020, perto de completar 90 anos, ele vê a soma de desafios que enfrentam os brasileiros – na saúde, na educação, na economia – e se mostra cauteloso quando perguntado se o Brasil podia estar melhor. “É difícil prever. Mas poderia haver uma compreensão maior do sofrimento dos outros. À medida que você não se solidariza, paga o preço.” E põe o dedo na ferida: “A sensação que (os governantes) transmitem é que eles não são capazes de ouvir. O presidente principalmente, né? Tem verdades absolutas, vai para a ideologia. Acho isso perigoso”.

O ex-presidente, no entanto, não leva a sério as suspeitas de que o presidente Jair Bolsonaro esteja sonhando com um governo autoritário. “Temos os tribunais, o Congresso, a mídia, o clima é de liberdade. O que eu acho é que ele não tem muita noção, não sabe lidar com aquilo lá. Mas não há projeto autoritário.” 

A entrevista para o programa Cenários aconteceu na mesma semana em que morreu Joseph Safra, presidente do grupo e velho conhecido de FHC (na quinta-feira, dia 10, aos 82 anos). “Além de meu amigo, perde o sistema financeiro um líder e a sociedade alguém que fez muito. Generoso no apoio a iniciativas, será sempre lembrado. Em nome da fundação que dirijo expresso à família nossos sentimentos”, escreveu o ex-presidente no seu Twitter. Veja a entrevista abaixo.

Como o sr. vê o mundo pós-pandemia, se é que a pandemia vai passar?

Primeiro, preciso acreditar que ela vai terminar, porque ela vai terminar. Meus pais falavam da gripe espanhola, na qual morreu muita gente. E o bichinho prefere matar gente velha. Eu fico em casa com medo, mas acho que dá para sobreviver. Agora, a economia será bastante afetada, o tal novo normal vai ser a recuperação do que perdemos, não só no Brasil. E acho que não vai ser tão rápido assim. 

Tem muita gente criticando a conduta do presidente Bolsonaro. Acha que eles poderiam ter feito coisa diferente do que fizeram?

Veja, essa pandemia não depende de governos, eu passei por crises que não dependiam de mim, embora o povo acabe achando que o governo é o culpado. Agora, não tem cabimento trocar tanto de ministro da Saúde no meio de uma pandemia. E não tem cabimento esse descrédito, Não é uma gripezinha, é uma coisa grave. 

Se ele tivesse agido de outro modo, seríamos menos afetados?

É difícil prever. Mas poderia haver uma compreensão maior do sofrimento dos outros. As pessoas precisam que os poderosos sejam solidários com suas tragédias. À medida que você não se solidariza, paga o preço. Se continuar como está, já está marcado praticamente que o presidente e sua família não ligam muito para a epidemia. E tá todo mundo vendo, todo mundo com medo. 

As pesquisas têm mostrado que, somando ótimo, bom e regular, Bolsonaro tem 70%. É uma coisa que impressiona. Como me disse um cientista político, “com regular você passa de ano...”

Pode passar, mas depende do outro. E é muito cedo para isso. O presidente tem sempre o poder, ele não perde a maioria de repente, isso é um processo e esse processo depende sempre de quem com quem, A contra B ou C. Quando tivermos isso concretamente, saberemos quais os efeitos dessa... não digo inação, mas confusão, como transpareceu ao País. A desatenção foi grande. 

Temos um presidente que, pelo que se vê, não se inteira das situações, não olha para o outro? 

Olha, nunca vi o presidente Bolsonaro na minha vida. Não dava atenção a ele no Congresso porque ele gritava muito, era muito corporativista, queria aumento de salário para os militares, essa coisa toda. Então, não sei como ele é como pessoa. Mas nos atos, ele é um ator e sua ação foi captada pelos que formulam a opinião pública como se fosse desatenção. Terá sido? Não sei dizer. Não quero cometer injustiça. Quando eu era presidente vi muitos julgamentos precipitados. Não quero fazer o mesmo com o presidente Bolsonaro.

Quando o sr. assumiu como ministro da Fazenda, eu fui a primeira a entrevistá-lo para o ‘Estadão’. E lhe perguntei como se sentia assumindo um cargo daquele tamanho com a economia super ruim... Como vê hoje aquele momento?

A confusão era grande. Eu estava no Itamaraty, um lugar confortável... Mas eu tinha uma formação de História Econômica, trabalhei na Cepal, não era completamente jejuno na matéria. Se pudesse escolher, eu não escolheria ser ministro da Fazenda. Porque teria de matar o dragão da inflação e se você não sabe como fazer isso, tem de aprender. Precisa ter capacidade de decisão e uma certa humildade para ouvir o outro. O presidente Bolsonaro passa a impressão de que não presta atenção. Não sabe, mas não liga. Hoje, por exemplo, eu não falo nada sobre pandemia, a não ser o medo que eu tenho. 

Quando decidiu fazer o Plano Real, o que o levou a bancar essa decisão?

Primeiro, as pessoas que trabalhavam comigo eram muito competentes. Discutiam muito, e eu ouvia as discussões. E eu tinha influência com o presidente Itamar (Franco), ele me deu esse poder e eu o usei falando com o povo. Minha função no Plano Real foi muito mais a de um comunicador. E a população confiava. Você não sai de uma entalada como a que temos hoje, como tínhamos naquela época, sem que transmita confiança. Se você erra o caminho, apanha. Se acerta, fica glorioso. Eu fui eleito presidente por causa disso. 

O sr. escolheu ser sociólogo, sinal de que presta atenção no outro, né? 

Eu fui sociólogo sobre o negro no Brasil, andei muito em favelas. Aprendi muito com o professor Roger Bastide, que era francês. Ele vivia num favelão que tinha aqui em frente ao meu trabalho, chamava-se Buraco Quente. Nós íamos lá, ele mascando charuto, parecia que não entendia nada, mas entendia tudo. Quando eu era presidente, para não ficar perdido, o que eu fazia? Falava com o cara que limpava a piscina, com o garçom do palácio (do Alvorada), com uma empregada chamada Dalina. E um dos motoristas também. Porque se você não sente a população... A gente que vai falar com o presidente vai por um interesse, e não fala necessariamente a verdade. Ou fala de modo que o outro lado não fique melindrado...

O sr. conseguia detectar quando alguém mentia?

Eu percebia. Veja, eu tive um amigo na Escola Politécnica, oCamargão, ele dizia uma coisa que me marcou: “Olha, o problema não são os burros, o problema são os malandros. Porque eles não são malandros o tempo todo”. Isso ficou na minha cabeça. Às vezes, o malandro diz uma coisa verdadeira e é importante você dar atenção. Não sei como são os poderosos de hoje, mas a sensação que transmitem é que eles não são capazes de ouvir. O presidente principalmente, né? Tem verdades absolutas, vai para ideologia. Acho isso perigoso.

Acredita que a gente sofre o perigo de partir para um outro tipo de regime?

Perigo de reversão sempre existe, mas não creio que estejamos na iminência de uma coisa desse tipo. Temos os tribunais, o Congresso, a mídia, o clima é de liberdade. O que eu acho é que ele não tem muita noção, não sabe lidar com aquilo lá. Mas não há projeto autoritário.

Muita gente diz que o povo brasileiro é amável, criativo, e também que é preguiçoso, que não tem senso de coletividade. O que o sociólogo FHC diz disso?

Não compartilho dessas ideias. Aqui o povo é trabalhador, sofre muito, trabalha muito. Não pense que é só em São Paulo, no Brasil todo é assim. Morei na França, nos Estados Unidos, vejo que o Brasil é muito mais americano que europeu. Não temos o sentimento de hierarquia que têm os franceses, por exemplo.

Acha que a desigualdade social aqui é maior que em outros países? Ela foi produzida por um sistema que não conseguiu diminuí-la?

Comparativamente, aqui tivemos a escravidão, né? A minha babá era filha do escravo do meu bisavô. E isso, enfim, é tido como natural. Você vê a desigualdade, a pobreza, você naturaliza. Esse é o problema mais grave que temos, é você não perceber. O brasileiro não percebe a existência de tanta diferenciação, tanta desigualdade.

Na pandemia ele percebeu, não?

Se a pandemia deixar uma lição positiva, é essa. Ela pega todo mundo.

Por toda sua vivência pessoal, acha que capitalismo com democracia é uma receita que deu certo?

Veja, onde foi que deu mais certo do que capitalismo com democracia? É difícil. Então tem de dizer que sim, que deu certo. Até por causa dessa nossa desigualdade, que vai ser prejudicial não só para um ou outro, mas para todas as pessoas. Nos Estados Unidos, ao contrário, existe um sentimento de igualdade. Eles conseguiram avançar mais, generalizaram o capitalismo mais do que nós. Aqui existe ainda a mentalidade de que cada um faz por si e Deus por todos. Aqui o sujeito sempre pensa em um pedido, um favor, uma proteção, coisa que não contribui para um sentimento igualitário. E o capitalismo precisa de igualdade, tem de ter programas que visem aos mais pobres. O capitalismo sozinho não resolve isso. 

Estamos indo para um final de ano atípico, que mensagem o sr. deixaria nessa virada?

O que acho importante é preservar a liberdade e a democracia. E emprego também, pois ninguém vive só do ideal. Tem de fazer andar a economia, produzindo integração social. Fácil de falar, sabemos, e difícil de fazer. 

E desejar que todos consigam ser mais humanos e menos tecnológicos, né? Olhar para o outro...

Eu sou pouco tecnológico, então quanto menos, para mim, melhor – mas acho que o mundo vai ser mais tecnológico e tem de ser humano a despeito disso. É outro tipo de humanidade, mas precisamos manter essa humanidade. 

*Sociólogo e professor pela USP, exilado (1964 a 1968), Senador, ministro do Exterior e da Fazenda, presidente da República (1994-2002). Autor de 29 livros, é presidente honorário do PSDB e imortal pela Academia Brasileira de Letras. 


IHU Online: Para superação das crises, Brasil precisa abandonar o liberalismo econômico, diz Bresser-Pereira

Para economista, com pensamento liberal não pode haver crescimento. Por isso, reedita sua tese novo-desenvolvimentista e assegura que imprimir moeda não é sinônimo de inflação descontrolada

João Vitor Santos, IHU Online

crise econômica que temos vivido em decorrência da pandemia de covid-19 parece ter pego o Brasil de cheio. Segundo o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, é preciso compreender que essa crise é nova, mas que vem no bojo de grandes crises nunca realmente superadas e que têm origem no projeto liberalBresser defende que o Estado não pode se retirar do jogo. “O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva”, alerta. E, por isso, “os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente, tudo isso depende da intervenção do Estado”. “Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial”, dispara.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o economista recupera a tese de que o Brasil vem sofrendo um processo de desindustrialização. Sem confiança para investir, as indústrias são sucateadas ou vão embora enquanto a ‘poupança pública’ míngua. É aí que entra sua Teoria do Novo-Desenvolvimentismo. Mas, como investir em desenvolvimento no meio da crise? Para ele, o governo precisa criar condições, especialmente manter o câmbio mais depreciado e a taxa de juros baixa. “Tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico”, aponta.

E uma das vertentes dessa intervenção estatal moderada, para ele, é a emissão de moeda. “É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez”, endossa. Sua defesa está na experiência de outros países que fizeram a manobra para conter, por exemplo, a crise de 2008. Além disso, Bresser destaca que essa operação tem sido retomada por muitos justamente para custear os gastos decorrentes da pandemia. “São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira”, acrescenta.

No fim da entrevista, o economista ainda avalia as políticas econômicas do atual governo, que define como “o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe”. E conta ‘um causo’: elementos da teoria novo-desenvolvimentista foram apresentados – e muito bem aceitos – pessoalmente por ele a Ciro Gomes e Fernando Haddad, nomes que considera muito preparados para assumir a Presidência em 2022. Além disso, olha para a experiência chinesa e destaca que o país resolveu seus problemas desde a realidade local, sem se abraçar a cânones do pensamento econômico. “Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta”, resume.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, atuou como professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris I (1978), de teoria da democracia no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo - USP (2002/03), e de Novo-Desenvolvimentismo na École d’Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre outras universidades pelo mundo. Também foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia no governo Fernando Henrique Cardoso. Bacharel em Direito pela USP, é mestre em Administração de Empresas pela Michigan State University, doutor e livre docente em Economia pela USP. Entre os livros publicados destacamos A construção política do Brasil: Sociedade, economia e Estado desde a Independência (São Paulo: Editora 34, 2016),Desenvolvimento e Crise no Brasil (1968/2003), Construindo o Estado Republicano (2004), Macroeconomia da Estagnação (São Paulo: Editora 34, 2007) e Globalização e Competição (Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor defende que é preciso abandonar a ortodoxia econômica. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Sou um crítico da Teoria Econômica Neoclássica ou Ortodoxa, que é a Teoria ensinada principalmente nas universidades americanas e inglesas. Entendo que essa teoria é essencialmente errada porque ela utiliza o método hipotético dedutivo ao invés de adotar um método empírico, histórico. Ao invés de ela observar a realidade e tentar generalizar a partir dessa realidade, o que os economistas neoclássicos ortodoxos fazem é partir de dois axiomas, como se faz em Matemática.

É o axioma do homem econômico, sempre racional e portanto seu comportamento é totalmente previsível, e a ideia das expectativas passionais, pois os agentes econômicos além de serem racionais e oniscientes, conhecem os modelos certos de economia e se comportam de acordo com isso. É um absurdo que resultou na crise de 1929, pois essa teoria foi dominante no mundo desde o final do século XIX até 1929. Mas que teoria é essa? É o liberalismo radical que voltou a ser dominante no mundo rico a partir de 1980 com a virada neoliberal de Thatcher e Reagan, e agora desde 2008, quando houve novamente uma grande crise provocada por essas ideias, chegando até o momento atual, em que estamos em profunda crise.

Sou um economista heterodoxo e, entre os economistas ortodoxos, venho desenvolvendo desde 2001 uma teoria chamada de Novo-Desenvolvimentismo. Essa teoria novo-desenvolvimentista tem origem em Keynes e nos desenvolvimentistas estruturalistas como Celso Furtado e Raul Prebisch.

IHU On-Line – Que respostas o Novo-Desenvolvimentismo pode trazer a essa crise que vivemos?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O Brasil vive uma crise econômica muito grande desde 2014, que foi agravada por um impeachment em 2016 e agora ainda mais por uma pandemia terrível. Diante disso, o governo precisa reagir e as medidas que defende são de austeridade, ou seja, de reduzir o gasto público em toda parte e de manter a taxa de câmbio elevada (com elevada quero dizer não competitiva). E isso, evidentemente, é incorreto.

A tese de que nos momentos de crise o Estado precisa aumentar sua despesa contraciclicamente é uma coisa que foi originalmente desenvolvida por Keynes nos anos 30 do século XX e está mais que comprovado que é a forma correta de se fazer a política macroeconômica. Uma coisa curiosa é que, embora o governo seja contra esse tipo de política, ele, pressionado pelo Congresso, criou um auxílio emergencial muito grande. Foi voltado mais para os pobres, mas que, de alguma forma, sustentou a demanda neste ano e impediu que a crise econômica fosse mais forte ainda. Estava se prevendo uma queda no PIB de 9% e hoje a queda esperada é de 5%.

IHU On-Line – Então, o senhor considera já termos aí uma prova de que o Estado tem de gastar mais em situações de crise?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A prova disso existe em toda parte, em mil casos. Em 2008 nós só não tivemos uma crise monumental porque todos os governos, tanto americano quanto chinês, também o brasileiro e os europeus, imediatamente fizeram elevadíssimos gastos fiscais. Além de irem correndo salvar os bancos que tinham quebrado. E isso deu certo, caso contrário a crise teria sido tão grave quanto foi a crise de 1929 e a grande depressão nos anos 1930. Assim, reitero, isso está mais do que claro.

O problema é que, além de termos de enfrentar essa crise de curto prazo, nós precisamos pensar que o Brasil vive um regime de quase estagnação há 40 anos. Isso é muito sério. O Brasil, entre 1950 e 1980, crescia a uma taxa per capita de 4,5% ao ano. Era uma taxa muito elevada, a segunda maior do mundo; só o Japão tinha uma taxa um pouco maior do que a do Brasil. Desde 1980 e, principalmente, desde 1990, quando o Brasil resolveu adotar o regime de política econômica liberal ortodoxa ao invés de desenvolvimentista, a taxa de desenvolvimento do país tem sido de 0,8% ao ano. Veja: de 4,5% para 0,8% é uma diferença brutal.

E se nesse mesmo período compararmos esses 0,8% do Brasil com os países ricos, que nós deveríamos estar alcançando, veremos que eles cresceram 1,5% ao ano, ou seja, o dobro do Brasil. E os demais países em desenvolvimento cresceram 3% ao ano, quatro vezes mais do que nós. O Brasil está quase estagnado desde 1980 e nada é feito sobre isso. Nada é feito tanto pela direita, que está hoje no governo – aliás, desde 2016 –, quanto pela esquerda, que no Governo Lula tentou fazer alguma coisa, mas infelizmente no Governo Dilma tudo desmoronou. E uma das causas que se desencadeou em 2014 para a queda do governo, não foi a principal, mas uma delas, foi a má gestão econômica da Dilma.

IHU On-Line – Gostaria que recuperasse seus argumentos para a ‘semiestagnação’ que o senhor coloca.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Para isso é importante lembrarmos que o desenvolvimento econômico depende fundamentalmente da taxa de investimento do país. Quanto maior for a relação do investimento em capital e o PIB, mais alta tende a ser a taxa de crescimento. Os países do Leste asiático tinham, normalmente, 35% de taxa de investimento. A China, que nos últimos 40 anos apresentou o mais extraordinário crescimento – na história do mundo nunca houve nada semelhante –, cresceu durante esse tempo cerca de 7,5% ao ano.

estratégia de desenvolvimento usada pela China sempre foi desenvolvimentista e não liberal. Enquanto isso, em 1980 o mundo fazia uma virada neoliberal. É uma virada de um regime de política econômica desenvolvimentista – que pressupõe uma intervenção moderada do Estado na economia, com exceção dos setores não competitivos, com uma perspectiva de nação, em defesa do interesse nacional – para uma virada neoliberal com Thatcher e Reagan, na qual se espera que o mercado seja um ente ou um mecanismo milagroso capaz de coordenar tudo. Ora, isso é algo profundamente equivocado. O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva. Aliás, o mercado funciona bem com competição, senão, não existe mercado.

Os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente (mecanismos para frear aquecimento global etc.), tudo isso depende da intervenção do Estado. Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial. Abertura essa que fez com que as tarifas aduaneiras caíssem de 45% para 12%, além da eliminação de subsídios à exportação de manufaturados que eram também de 45% e foram zerados.

Desde então, a economia brasileira cresce muito pouco, porque a taxa de investimento é muito baixa. Isso ocorre porque, devido a essa mudança de regime para o modelo liberal, os investidores foram desestimulados a investir. O investimento acontece quando o empresário tem uma boa expectativa de lucro e sua taxa de juros, o seu custo do capital, é baixo. É uma lei geral e óbvia, ninguém vai investir sem esperar lucro e esse lucro tem que ser maior do que a taxa de juros.

Perda de competitividade

O que houve foi que as políticas adotadas pelo Brasil, a começar pela liberalização comercial e em seguida financeira, que foram adotadas ainda no Governo Collor e depois mantidas e aprofundadas no Governo Fernando Henrique, tonaram as indústrias brasileiras não competitivas. Mesmo as muito bem geridas que usavam a melhor tecnologia do mundo passaram a ter uma enorme desvantagem competitiva em relação às empresas do resto do mundo. Não apenas as empresas nacionais, mas também as multinacionais. E isso fez com que muita empresa falisse e também levou muitas multinacionais a irem embora.

Quando se tem uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo e uma taxa de juros muito alta, se é completamente desestimulado a investir. E isso aconteceu desde 1990 até recentemente, porque veio a crise de 2014 em cima dessa semiestagnação. Essa crise foi desencadeada pelo preço da queda das commodities. Na medida em que o Brasil passou a ter uma taxa de câmbio muito apreciada, entrou num processo de violenta desindustrialização, justamente pela apreciação da taxa de câmbio e porque a “doença holandesa” que existe no Brasil deixou de ser neutralizada – a doença holandesa é uma apreciação de longo prazo da taxa de câmbio de um país que exporta commodities, pois essa taxa é determinada pelas commodities. Essa taxa de câmbio deve cobrir o custo com lucro satisfatório das empresas produtoras de commodities, que são as dominantes. E quando há a doença holandesa, a taxa de câmbio corrente é substancialmente mais apreciada do que a taxa de câmbio das empresas industriais do país. Eu chamo isso de equilíbrio industrial, ou seja, tem o equilíbrio corrente dado pelas commodities que equilibra a conta corrente do país, que é conta comercial mais os serviços. A diferença entre o equilíbrio da taxa corrente e essas que as empresas industriais precisam para serem competitivas é a doença holandesa.

Desindustrialização e os efeitos do câmbio

doença holandesa era neutralizada até 1990 com tarifas aduaneiras muito altas, aqueles 45% que referi anteriormente. E, desde 1967, também por subsídios elevados à exportação de manufaturados. Tudo isso foi desmontado em 1990 de acordo com a lógica neoliberal e foi um desastre. A desindustrialização foi brutal e a taxa de crescimento também caiu brutalmente. Para se ter ideia, o investimento no Brasil representava 26% do PIB nos anos 1980, em média, e hoje representa 10%.

Isso aconteceu por causa da taxa de câmbio muito apreciada e por causa dos juros muito altos que atraíam capitais. Ou seja, havia duas causas para essa apreciação de longo prazo da taxa de câmbio que tornava as boas empresas não competitivas. Uma causa era a doença holandesa não neutralizada e a outra era a intenção de crescer não com endividamento externo, o que significaria que se está importando pouco de outros países e aumentando a sua capacidade de investimento. Isso é um enorme equívoco que a teoria novo-desenvolvimentista critica de maneira muito firme. Os brasileiros, não só os economistas ortodoxos neoclássicos, mas também os demais desenvolvimentistas e pós-keynesianos, acreditam que se o Brasil tiver um déficit de conta corrente de cerca de 3% do PIB e se esse déficit for principalmente financiado por empresas multinacionais, então estamos nos melhores dos mundos possíveis. Estaremos aumentando nossa capacidade de investimento, porque esse dinheiro que vem de fora trazido pelas multinacionais vai aumentar a taxa de investimento e em seguida a taxa de crescimento do país.

Só que isso é completamente falso. Na verdade, quando se aprecia o câmbio, se resolve crescer com endividamento externo, entra-se em déficit em conta corrente, e quando entra nesse déficit é preciso que haja mais entrada do que saída de capitais no Brasil. Devido a isso, a taxa de câmbio se aprecia, pois também é determinada pela oferta e procura de moeda estrangeira. E quando isso ocorre, o poder aquisitivo não apenas dos trabalhadores, mas também as rendas dos rentistas (os juros, os dividendos e os aluguéis que recebem) aumentam, de forma que todo mundo fica feliz.

Mais consumo e menos investimento

E o que fazem com esse dinheiro? Consomem mais. Não investem porque na hora em que se tornou a taxa de câmbio apreciada, as boas empresas perderam competitividade, tornando-se mais barato importar aqueles produtos que antes se produzia localmente. Assim, evidentemente elas não investem, são desencorajadas a investir. Tudo isso explica uma parte fundamental dessa quase estagnação da economia brasileira desde 1990 até hoje.

Poupança pública

Há, ainda, uma segunda causa para a semiestagnação, que está relacionada à poupança pública. A poupança pública (toda a receita do Estado menos a despesa corrente ou de consumo) deve existir para financiar os investimentos públicos, que são sempre muito importantes. Uma economia que cresce bastante geralmente tem uma taxa de investimentos públicos de 20 a 25% do PIB.

poupança pública brasileira era, na última década em que o Brasil cresceu fortemente, nos anos 1970, de cerca de 4 a 5% do PIB. Isso fazia com que o investimento público fosse perto de 7% do PIB, porque o governo também usava um pouco de endividamento público. Mas desde os anos 1980 a poupança pública se tornou negativa e os investimentos públicos caíram fortemente, passando de 7% para 2% mais ou menos. Isso é uma segunda causa dessa quase estagnação.

IHU On-Line – O que muda com a crise de 2014 e com o cenário que ela traz?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Isso que destaquei acima vinha acontecendo no Brasil até 2014. No ano de 2014 veio essa grande crise, semelhante à ocorrida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso entre 1998 e 2002.

Agora, é importante perceber que a crise de 2014 começa ainda no governo do PT, de Dilma, e depois continua em tempos de Bolsonaro, até agora quando temos uma crise econômica nova. Essa crise nova teve uma consequência interessante: a taxa de juros caiu fortemente pela primeira vez. Eu venho criticando a taxa de juros muito alta desde 2001 e sempre dizendo que é absurda, a mais alta do mundo e, na verdade, essa taxa de juros era uma captura do patrimônio público pelos rentistas e financistas, que assumiram muito poder no governo desde 1990, enquanto os empresários industriais perdiam poder.

Essa taxa de juros tão alta vinha caindo aos poucos, tendo já estado muito alta em 1992, quando houve a abertura financeira, mas em 2014, com a enorme recessão, a taxa de juros teve realmente uma queda. O Banco Central foi obrigado a baixar a taxa porque a inflação quase desapareceu, havia falta de demanda, e a justificativa que o Banco Central usava para manter aquelas taxas de juros altíssimas (que era de combater a inflação) já não se sustentava mais. Na verdade, a taxa de juros vinha alta para atrair os capitais e levar adiante aquela perspectiva de crescimento com endividamento externo.

A consequência dessa queda da taxa de juros, mais a crise que o Brasil vive hoje e a perda de confiança dos credores lá fora, foi uma depreciação da taxa de câmbio. Acredito que uma taxa de câmbio competitiva no Brasil hoje deve estar em torno de 4,80 Reais por dólar. E a taxa de câmbio está a 5,50 Reais, ou seja, está depreciada. Então, ótimo. A economia brasileira estava numa armadilha de juros altos e câmbio apreciável. Essa armadilha não existe mais neste momento.

IHU On-Line – Mas o crescimento não veio. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Não veio porque continuamos em crise. Quando se está em crise, quer dizer que não se tem confiança de que a demanda será mantida – como a demanda criada agora pelo auxílio emergencial –, que a taxa de juros será mantida baixa e que a taxa de câmbio continuará competitiva. Vendo como reagem as elites brasileiras e seus economistas, vai-se achar que isso não dura. E, ainda, a confiança dos mercados financeiros internacionais no Brasil hoje está baixíssima. O resultado é que começa a entrar capital financeiro no Brasil, que novamente vai fazer com que a taxa de câmbio volte a se apreciar. Os empresários não investem por isso, porque não têm confiança.

IHU On-Line – O que fazer para reverter esse quadro?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O que o governo deveria fazer é não apenas ter uma meta de inflação, mas além disso deveria assegurar que a taxa de câmbio será mantida basicamente nesse nível. Em segundo lugar, assegurar que a taxa de juros permanecerá baixa. Pode ser aumentada quando houver um pouco de inflação, mas o nível da taxa de juros será civilizado, semelhante à taxa de outros países do mundo. Se o governo desse essas garantias para os empresários e se recuperasse a sua capacidade de poupança, então nós poderíamos voltar a crescer. Agora, para voltar a crescer não basta sair da armadilha da taxa de juros, é preciso que o governo também volte a investir.

IHU On-Line – Qual a solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A mais óbvia é a austeridade. Mas, ora, a austeridade é um desastre. Porque austeridade quer dizer reduzir a demanda, causar desemprego, diminuir salário e isso não resolve o nosso problema de jeito nenhum. É preciso recuperar as finanças públicas e voltar a ter uma poupança pública, mas isso só pode ser feito gradualmente, com muito cuidado e muita firmeza.

Agora, há uma coisa nova que surgiu no mundo e que promoveu uma revolução completa na macroeconomia mundial: a emissão de moeda pelos Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais. A emissão de moeda foi sempre considerada o pecado máximo. Aqui no Brasil se explicava a inflação com emissão de moeda; no exterior os monetaristas explicavam a inflação com aumento de moeda.

IHU On-Line – Justamente, e como responder a esses economistas sobre essa perspectiva de emissão de moeda ser sinônimo de inflação descontrolada?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – No começo dos anos 1980, eu e [YoshiakiNakano desenvolvemos toda uma teoria de inflação inercial, o livro principal é “Inflação e Recessão” (São Paulo: Brasiliense, 1984) [a versão PDF da obra pode ser acessada aqui], e nesse livro demonstramos com muita clareza que o aumento de moeda não causava inflação. Já num artigo de 1983, intitulado “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, dizíamos que o fator acelerador da inflação – por exemplo, uma inflação de 1% ao ano subir para 2% – é o excesso de demanda, segundo explicação keynesiana.

O fator que mantém a taxa de câmbio num valor elevado, o fator inercial, é a indexação. O que mantém a inflação mesmo quando há recessão é o fato de que os agentes econômicos no Brasil, especialmente na época da alta inflação, indexavam formal (com base na lei) ou informalmente (segundo o costume) todos os preços de modo que a inflação só subia e não caía.

Em terceiro vem o fator sancionador, ou validador, que era o dinheiro. O dinheiro é consequência, endógena, do processo de crescimento. O dinheiro aumenta ou diminui numa economia na medida em que o crédito e as despesas do governo aumentam ou diminuem. Se tivesse uma inflação muito alta – durante anos a nossa inflação foi mais de 1.000% ao ano, mas vamos considerar uma inflação de 100% ao ano –, se o governo conseguisse impedir que a quantidade de moeda, que nasce do mercado, não aumentasse em nada, ficasse nominalmente exatamente igual ao começo do ano, tendo havido uma inflação de 100% nesse ano, isso causaria uma crise enorme, uma crise de liquidez.

É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez. Isso estava lá em nossa teoria, que não era só nossa porque havia alguns economistas que afirmavam coisas semelhantes, mas o grosso dos economistas ignorava isso, tanto alguns ortodoxos quanto heterodoxos. Aí veio a crise de 2008 no Norte e primeiro houve uma reação muito correta, que já citei, keynesiana, e grandes aumentos de gastos. Mas isso foi em 2009.

Quando chegou em meados de 2010, definiram que deveriam voltar à austeridade. E de fato voltaram para a austeridade fiscal, mas os bancos centrais ignoraram esse fato e, vendo que a economia não se recuperava, começaram a fazer as políticas de afrouxamento quantitativo. Isso consiste em o banco central do país comprar títulos do governo ou das empresas em grande quantidade e, ao fazer isso, acelerar o processo endógeno de criação de moeda. Isso foi feito em volumes absolutamente extraordinários, principalmente no Japão, também nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em países menores como a Holanda. Só não aconteceu nos países das zonas do Euro porque eles não têm um banco central para cada país para que seja feito o processo.

O funcionamento dessa operação

Nesse processo, quando se aumenta a quantidade de moeda e se compram títulos do Tesouro, e títulos novos ao invés de comprar títulos velhos ou títulos de empresas, se está emitindo moeda direta para financiar. Como a despesa pública estava muito baixa, esse dinheiro servia para reduzir a dívida pública. Para se ter ideia da importância disso, no caso do Japão, que foi o que mais fez isso, calculei que a dívida pública japonesa, que era de 260% do PIB, caiu em termos reais em 77%.

As estatísticas do Japão mantêm o mesmo nível de dívida porque não consideram essa operação. O Banco Central comprou do Tesouro, e a contabilidade pública deles define que quando o Tesouro deve para o Banco Central isso é dívida pública, o que é ridículo. A dívida pública é a dívida do Estado; o Tesouro e o Banco Central estão dentro do Estado. O Tesouro pode dever, mas o Estado não deve.

Emitindo moeda e financiando despesas da covid-19

Mas aí veio a inflação? Não, não veio inflação nenhuma, absolutamente nenhuma. O tempo todo havia o medo da deflação e não da inflação. Podem dizer que essa revolução morreu aí, mas não morreu, porque neste ano de 2020, o ano da pandemia, esses mesmos países que têm seus bancos centrais e são ricos voltaram a emitir dinheiro enormemente. O Tesouro, então, está vendendo títulos novos para o Banco Central para financiar as despesas da covid-19.

São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira. Isso é uma forma muito heterodoxa e correta de fazer, desde que realizada com cuidado. Nós aqui no Brasil não fizemos. Isso chegou a ser discutido, eu fiz minha briga pessoal nos artigos que publiquei, mas não adiantou. O medo da inflação ainda é muito grande, esse medo de que a emissão de moeda causa inflação está muito no fundo da alma brasileira. O resultado é que a dívida pública brasileira estava em 80% do PIB e está subindo para 100%, o que é péssimo. Depois será preciso pagar isso.

IHU On-Line – Diante do atual cenário e das estratégias adotadas pela equipe econômica do atual governo, como o senhor vê o Brasil dos próximos anos? Como esse cenário deve impactar 2022, o ano eleitoral?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – As perspectivas para a economia brasileira são muito ruins. Em princípio, continuaremos nessa crise. Em 2021 certamente, porque a pandemia ainda não está resolvida e seus efeitos negativos estão aí. Agora, a partir do final do ano que vem, a confiança poderia voltar. E não só a confiança dos empresários e dos credores estrangeiros, o que não me importa, pois o crescimento não deve ser feito com endividamento externo. Mas se os empresários brasileiros e as multinacionais existentes aqui no Brasil voltarem a ter confiança, e vendo a taxa de juros baixa e a taxa de câmbio competitiva, poderão voltar a investir.

Agora, será que isso vai acontecer? Será que vai voltar a confiança com o governo que está aí? É impossível ao meu ver. Esse é o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe. O que temos aí é gente absolutamente incapacitada para governar e está nos governando, ou desgovernando. São políticas econômicas contraditórias e realmente ineficientes. Acho que as eleições de 2022 ainda vão ser tomadas nesse quadro de baixíssimo crescimentodesemprego elevado; acho que não muda não.

IHU On-Line – Mas realmente não tem solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É claro que tem. Não é fácil, mas tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico, ou seja, pensar que o Brasil é um Estado-Nação que compete com todos os demais Estados-Nação do mundo. Não só as empresas que competem, são os Estados-Nação também. E para o Brasil poder competir, precisa ter um projeto nacional de desenvolvimento.

IHU On-Line – Em que consistiria esse projeto, dada a atual conjuntura?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Contaria com uma garantia de manter a taxa de juros num nível baixo, em torno do qual o Banco Central faz a sua política monetária. Significa, portanto, ter uma taxa de câmbio competitiva e uma taxa de inflação baixa. Para isso o governo precisa dar garantias de que agirá nesse sentido ao mesmo tempo que vai fazendo gradualmente o ajuste fiscal para recuperar a poupança pública. E é preciso que o governo também passe a ser autorizado a emitir moeda para financiar até 5% do PIB para investimentos públicos. Isso, desde que não haja excesso de demanda.

Uma reforma constitucional autorizaria Banco Central e Tesouro a fazerem essa emissão ao limite de 5%. E o Conselho Monetário Nacional, a cada três meses, se reuniria para, entre outras coisas, decidir se essa transferência de fundos produzidos por emissão de moeda pode continuar a financiar os investimentos ou se a demanda começou a ficar alta e a inflação começou a subir, sendo então preciso parar com esse processo por algum tempo. Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta.

capitalismo lá do Norte anda muito mal, não tão mal quanto o brasileiro, mas anda muito mal. Quem anda bem sempre são os países do Leste da Ásia, que são desenvolvimentistas. A China, que é quem anda melhor, é claramente um país estadista, mas que fez sua transição para o capitalismo a partir de 1980 e fez uma transição desenvolvimentista. Lá, o Estado intervém moderadamente na economia, controla os bancos, investe na infraestrutura e nos insumos básicos e deixa que o mercado funcione de maneira mais livre possível no setor competitivo da economia. São duas políticas: para os setores não competitivos, macroeconomia, administração do Estado, política econômica, e, para o resto da economia competitiva, dá-lhe mercado. Essa é a lógica chinesa, a lógica novo-desenvolvimentista, e é isso que nós deveríamos fazer.

IHU On-Line – Para além desse grupo econômico que está no governo, o senhor encontra ecos tanto à esquerda como à direita? Suas sugestões são aceitas para que se construa uma alternativa visando as eleições de 2022?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Vou responder contando uma historinha. Em dezembro de 2017, um ano antes da eleição de 2018, eu telefonei para o Ciro Gomes e para o Fernando Haddad. Disse para eles o seguinte:

olha, vocês são, provavelmente, candidatos a presidente e a vice-presidente – eu já tinha na minha cabeça a minha chapa, mas isso era irrelevante; minha chapa era Ciro Gomes para presidente e Fernando Haddad para vice-presidente –, ou, de qualquer forma, vocês vão se candidatar e serão importantes, e estou desenvolvendo uma teoria nova e essa teoria deveria fazer parte das ideias que vocês vão defender caso eleitos. Então, proponho que no mês seguinte – estávamos no fim de dezembro – nós marquemos um dia e vocês reservem a tarde toda desse dia para eu dar para vocês uma aula de Teoria Novo-Desenvolvimentista e depois minha mulher oferece um jantar para vocês”.

Eles vieram os dois juntos, dei minha aula, ficaram muito interessados e, depois, infelizmente, a chapa não aconteceu. Deveria ter acontecido, o PT não pensou bem, mas nos programas dos dois estavam presentes várias coisas que fazem parte da Teoria Novo-Desenvolvimentista e das políticas dela. Isso pode acontecer novamente. O Ciro Gomes vai ser novamente candidato a presidente, acabou de publicar um livro que é ótimo [o livro é Projeto Nacional: O dever da esperança (São Paulo: Leya, 2020)]. Esse livro mostra que o Ciro está mais do que preparado para ser presidente da República. O Haddad é capaz de ser o candidato pelo PT, ele também está preparado. Isso pode acontecer, mas não há nenhuma garantia.

Políticas erradas

As políticas erradas estão do lado liberal e são, obviamente, erradas. O Brasil não poderá crescer num regime político liberal, porque os liberais só defendem uma coisa: ajuste fiscal e reformas, mais nada. E nós fazemos sempre muitas reformas e eles sempre dizem que é preciso mais. Para manter a taxa de juros e a taxa de câmbio no lugar certo, não se pode adotar políticas neoliberais. Para ter uma poupança pública, não se pode ser liberal.

Eles dizem defender responsabilidade fiscal, mas eu também defendo responsabilidade fiscal. Só que eles não querem poupança pública, querem reduzir a despesa do Estado para reduzir a carga tributária e os ricos pagarem menos impostos. Os liberais não têm a menor possibilidade de promover o desenvolvimento do Brasil, e os desenvolvimentistas, alguns têm, mas não todos. Ainda há muito populismo e ideias antigas entre desenvolvimentistas e pós-keynesianos.

IHU On-Line – Em uma das suas reflexões, que reproduzimos no sítio do IHU, o senhor diz que, em nossa sociedade, a “ideia de solidariedade perdeu espaço” e isso nos deixou doentes. Que solidariedade é essa e como reaver essa ideia?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Em primeiro lugar, o capitalismo é uma forma de organização social, um modo de produção, se quisermos usar a expressão marxista, que leva a muita injustiça e tende, naturalmente, ao individualismo. O liberalismo político tem uma parte boa que é a defesa dos direitos civis, o Estado de Direito, mas tem uma coisa horrível que é o individualismo feroz. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, como o país, sendo liberal do ponto de vista político, conseguiu se desenvolver tanto?

A resposta é muito simples: é que nos Estados Unidos havia uma ideologia que neutralizava em boa parte esse individualismo liberal. Isso através de uma coisa chamada republicanismo, uma ideologia clássica que vem de Aristóteles e de Cícero na Grécia e a Filosofia Política que diz que ‘você só é livre quando está disposto a defender o interesse público. E, em certos pontos, está disposto a sacrificar seu próprio interesse para defender o interesse público’. O republicanismo é o oposto do liberalismo, porque este diz que se é livre para fazer tudo que se quer desde que não seja ilegal. Desse jeito não se constrói sociedade nenhuma, para construir uma sociedade é preciso saber que existe algo que se chama bem comum e esse bem comum precisa ser defendido por cidadãos com espírito republicano.

Isso nos Estados Unidos, onde o republicanismo teve uma influência muito grande. Vários daqueles que fizeram a independência tinham uma mistura, um pouco de liberalismo e um pouco, se não bastante, de republicanismo. O republicanismo que domava o capitalismo neoliberal nos Estados Unidos. Na Europa é a solidariedade, pois sabemos que lá o movimento socialista foi muito grande. E se pode pensar o socialismo como modo de produção em que se extingue a propriedade privada, mas se pode pensar o socialismo como a ideologia da igualdade social, da justiça social e da solidariedade.

Essas ideias socialistas foram muito fortes na Europa. E são até hoje, porque os governos social-democratas refletiam essas ideias de solidariedade. Assim, na Europa foi a solidariedade que domou o capitalismo. Então, o capitalismo neoliberal só funciona bem se for domado pelo republicanismo e pelo socialismo, pela solidariedade e a ideia do espírito público ou do bem comum. O neoliberalismo foi um retrocesso muito forte, porque essas duas ideologias que domam o capitalismo individualista foram muito enfraquecidas.

Leia mais


O Estado de S. Paulo: ‘Demora da vacina é maior erro político de Bolsonaro’, diz Rodrigo Maia

Em entrevista ao ‘Estadão’, Maia diz que governo tenta comprar votos na Câmara para eleger seu sucessor

Andreza Matais, Felipe Frazão e Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O presidente da CâmaraRodrigo Maia (DEM-RJ), disse que o maior erro político cometido pelo governo até agora foi não se preparar para comprar a vacina contra o novo coronavírus. “Isso pode impactar o projeto de reeleição”, afirmou ele, numa referência aos planos do presidente Jair Bolsonaro para 2022. “Esse é o tema que pode gerar o maior dano de imagem. As pessoas estão começando a entrar em pânico, em desespero”.

Prestes a terminar seu mandato como presidente da Câmara, Maia disse ao Estadão que o governo está criando um “balcão” de negócios na Câmara para eleger o seu sucessor. Na sua avaliação, o ministro da Economia, Paulo Guedes, se engana ao imaginar que Bolsonaro interfere na disputa no Congresso, marcada para fevereiro de 2021, porque quer tocar as reformas. “Bolsonaro quer tocar a agenda ideológica”, observou.

O deputado contou ter ouvido o rival Arthur Lira (Progressistas-AL) chamar Guedes de “vendedor de redes” – alguém que fala muito, mas entrega pouco. Líder do Centrão, Lira é candidato ao comando da Câmara com apoio do Palácio do Planalto. “Uma vitória do candidato do Bolsonaro o recoloca no processo político”, afirmou Maia.

O senhor teve covid-19, pode contar como foi?

Passei alguns dias muito difíceis, com pulmão bastante contaminado, com muito cansaço. Fiz fisioterapia pulmonar todos os dias. Quase fui internado. Para quem tem sintomas, não é uma doença simples. E eu tive o atendimento de hospital privado, talvez da melhor médica do Brasil nessa área. Mas a maioria da população não tem a mesma estrutura. Por isso que todos os procedimentos de máscara, de álcool em gel, de algum isolamento em algum momento é importante para que a gente não tenha a rede pública de saúde sem estrutura.

O País assiste a uma briga política em torno da vacina e o governo não comprou uma seringa até agora. Como sair disso?

A vacina é o ponto mais crítico do governo, o mais grave até hoje na sua relação com a sociedade. A demora na compra da vacina é o maior erro político de Bolsonaro. Esse é o tema que pode gerar o maior dano de imagem para o presidente. Faz voltar na memória das pessoas todos os erros do governo, desde o início da pandemia. Isso pode impactar o projeto de reeleição. Certamente, ele (Bolsonaro) tem pesquisa. E, se ele tem, está com essa mesma informação. As pessoas estão começando a entrar em pânico, em desespero. E aí ele isenta a importação de armas. Precisa tratar sem paixão, sem ideologia, esquecer o conflito com o governador de São Paulo.

A Câmara pode assumir esse papel, como fez no início da pandemia, com relação aos recursos emergenciais?

Eu disse ao presidente que o Congresso e o governo deveriam construir um caminho sobre a questão da vacina. Não é possível que daqui a pouco vai ter brasileiro viajando ao exterior para tomar a vacina, e a maior parte da população aqui sem vacina, com os leitos lotados, com a taxa de letalidade aumentando por falta de leitos. Precisa de uma solução imediata, que o governo recupere os meses perdidos.

O senhor entende que será necessário algum tipo de lockdown nas festas de fim de ano?

Quando começar a crescer muito o número de internados na UTI, você tem que ter ações por parte dos municípios, estados e da União, para evitar a circulação. Reduzindo o número de pessoas nos hospitais, você pode reabrir. Eu não falo de lockdown, eu falo: se no Rio de Janeiro tem 99% dos leitos ocupados, você tem que ter uma ação do prefeito e do governador de mais restrições.

Mas aí o presidente da República diz que as pessoas são “maricas” porque elas se protegem. Como fazer com esse discurso negacionista da doença?

Você pode ter certeza que o que o Pazuello (o ministro foi contaminado pela covid) passou foi mais grave do que ele deve estar falando. As pessoas vão tendo, as famílias vão pegando, perdendo seus parentes. E ao longo do tempo, as pessoas vão vendo que o presidente tá errado. Tá errado desde o início, quando ele disse era uma gripezinha.

O presidente pode ser processado por crime de responsabilidade por causa das ações na pandemia?

Que ele pode ter influenciado um menor isolamento em momentos importantes, isso pode. Mas é uma questão muito técnica. Alguém vai ter que vincular o discurso dele as pessoas irem às ruas e isso ter gerado mais mortes. Não é uma coisa fácil de pegar.

O senhor deixará mais de quarenta pedidos de impeachment não analisados. Eles são mesmo improcedentes?

De forma nenhuma iria usar o poder do impeachment se não fosse um caso gravíssimo, ainda mais no meio de uma quarentena.

É a pandemia que impede um processo de impeachment?

Eu acho que, com a crise que nós já temos, se a gente fosse entrar pra esse tipo de conflito… E o impeachment é um julgamento político. Não é um julgamento jurídico. Querendo ou não, é a realidade. Ele não pode ser um instrumento para estar na gaveta e ser utilizado em cada conflito do presidente da Câmara com o presidente do governo.

O senhor externou temor de que uma vitória de Arthur Lira signifique uma agenda ideológica no País nos próximos dois anos. Faz parte do jogo político fazer esses alertas?

É muito óbvio que não é a pauta econômica que faz o presidente rasgar o que falou ao longo da campanha: que não iria interferir no outro Poder, que o Brasil foi destruído pelo toma-lá-dá-cá, pela troca de cargos, pelas as emendas, que isso levava à corrupção. Se você olhar os candidatos à presidência da Câmara, todos pelo menos votaram a pauta mais liberal na economia. Se todos dariam conforto ao governo em relação à pauta econômica, por que o presidente da República quer interferir? O governo deixa claro qual é sua prioridade, que não é a pauta econômica. Ele quer a pauta de costumes, do voto impresso, para desqualificar o TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Ele quer essa pauta que foi travada nos últimos dois anos pela minha presidência e pelo apoio que eu tenho.

Como o plenário reagiria se o presidente da Câmara tentasse impor essa agenda?

Sempre há um limite para aquelas agendas que o governo quer e, às vezes, radicaliza no texto. A pauta de armas ele não tem voto, educação ele não tem voto, a regularização fundiária, o texto inicial do governo não passaria. Da forma como Bolsonaro está entrando, com o Palácio recebendo parlamentares, oferecendo emendas, dessa forma muito escrachada, ele vai acabar tendo, no pós-eleição, uma Câmara muito mais dividida do que ele tem hoje. Corre o risco de ter um ambiente muito menos confortável para as pautas que, de fato, são relevantes.

O que leva o senhor a crer que os deputados vão abrir mão de tantas benesses em nome de um discurso de independência?

A maioria dos parlamentares não quer voltar a um jogo do passado, onde a troca prevalecia à pauta. Tenho certeza que a maioria na Câmara entende que a valorização vale muito mais do que achar que parlamentares estão à venda. Porque essa deve ser a intenção. Se eles liberam emendas e acham que com isso o candidato do governo ganha, eles diminuem a importância dos parlamentares. Esse troca-troca tão criticado pelo Bolsonaro é um atraso.

O senhor entende que isso é uma tentativa de compra dos parlamentares?

Do ponto de vista do deputado, tenho certeza que não. Cada deputado tem o direito de ir atrás, de defender seus municípios. Do ponto de vista do governo, dá impressão que eles acham que, criando um balcão, vão conseguir eleger o presidente da Câmara. Se essas práticas prevalecerem – e tenho certeza que não vão prevalecer –, você terá um governo pressionado e chantageado de forma permanente, por trocas.

A eleição da Câmara, apesar de indireta, não é mais um teste da capacidade de união de uma frente da centro-direita à centro-esquerda, para o enfrentamento eleitoral ao Palácio do Planalto, em 2022?

Uma vitória do candidato do Bolsonaro o recoloca no processo político. A principal derrota dele, pra mim, foi a ruptura dessa rede populista nacionalista internacional com a derrota do Trump. Depois, a sinalização, das eleições municipais. E agora tem eleição da Câmara. O resultado vai ter um simbolismo, porque ele está inferindo mais do que a presidente Dilma Rousseff quando tentou eleger o deputado Arlindo (Chinaglia, PT) contra o deputado Eduardo Cunha (em 2015).

O governo entende que quem eleger o presidente da Câmara se fortalece para a eleição presidencial de 2022.

O que vai pesar em 2022 é a pauta do governo nos próximos seis meses. O governo é que vai ditar, porque ele é o incumbente, se quer ser popular ou populista. Faz mais de um ano que o governo anunciou que votaria a PEC Emergencial no Senado, decisiva para a manutenção da política de equilíbrio fiscal. Não é só política do teto de gastos. É isso que vai organizar os adversários do governo.

A sua relação com o ministro Paulo Guedes foi tensa nesses dois anos. O ministro agora aposta no deputado Arthur Lira, candidato do governo para sucedê-lo, para tocar sua agenda econômica. Acredita que será diferente com Lira?

Quem me deu a melhor frase sobre o ministro da Economia foi o próprio Arthur Lira. No início do governo a gente teve uma conversa e o candidato do Bolsonaro disse para mim: “Rodrigo, esquece o Paulo Guedes, o Paulo é um vendedor de redes.” De fato, tem que admitir que o candidato do Bolsonaro tem alguma visão de futuro. Parece que é um vendedor de redes mesmo, né? Nada acontece. O Paulo Guedes está errado. O Paulo Guedes está sendo ingênuo. O governo quer outro presidente da Câmara para interferir na pauta de costumes. Na pauta econômica não precisa interferir de forma nenhuma.

A reforma tributária foi para as calendas?

A pauta está atrasada pelo próprio governo. Tirando a Eletrobrás, que houve um problema grave com a nova proposta de modelagem do governo, as outras três privatizações devem estar no sonho do Paulo Guedes, porque até agora nenhuma delas chegou na Câmara. Ele deve sonhar dizendo que chegou na Câmara, que encaminhou, deve ser um sonho.

A esquerda será decisiva mais uma vez na eleição da Câmara?

A esquerda vai ficar contra o Bolsonaro por causa da pauta de costumes. Vai prevalecer a política.

O senhor pretende continuar no Legislativo ou experimentar o Executivo?

Eu posso participar de um governo em que eu confie e que eu participe do processo de construção, no ministério, numa coordenação, na articulação de alguma área. A Câmara me deu, e eu me dediquei a isso, a capacidade de conhecer muita coisa, muitos temas, muitas realidades. Em um país parlamentarista eu teria uma função muito forte.

Com quem que o senhor poderia se juntar?

Temos que juntar o Doria, o Huck, o Ciro Gomes, o PSB do Paulo Câmara, do Renato Casagrande. Todos os partidos queiram estar aqui nesse campo de centro. Até o PT.

E o senhor seria um bom vice?

Eu poderia coordenar essa articulação. O grande desafio desse campo de centro é o denominador da agenda econômica. Se a gente conseguir construir um denominador, a gente consegue fazer uma candidatura de centro que eu acho que vai mudar o Brasil. Muita gente fala: “Eu sou de centro”. Centro não é um ponto entre o número 10 e o número 1. Não é um ponto entre a esquerda e a direita. É um ambiente diferente, onde você tenta trazer pra política uma nova composição, uma nova realidade, onde segmentos que conversam pouco tenham a capacidade de construir em conjunto esse país que a gente espera.


Murillo de Aragão: ‘O maior rival do presidente é o governo dele’

Paula Bonelli, do Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro não saiu enfraquecido do último pleito com a derrota dos candidatos que apoiou – discretamente – como Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio. A opinião é de Murillo de Aragão, mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Leciona ainda na Columbia University como professor adjunto, em Nova York. “Nesta eleição muita gente correu pra dizer que o Bolsonaro perdeu. Acho que houve exagero em relação a isso”, diz o cientista político.

No seu ver, há outro termômetro político para se fazer este tipo de avaliação: partidos do “centrão bolsonarista”, como Republicanos, PP e PSD, tiveram bom desempenho na conquista de prefeituras. “Hoje, o maior rival do presidente é o próprio governo dele. Se Bolsonaro organizar direitinho, é o grande favorito para ganhar a eleição”, acredita. Afirma que o presidente é bem avaliado pela população. “Ele tem quase 70% de aprovação entre ótimo, bom e regular. Ninguém leva pau na faculdade por tirar regular. É importante reconhecer que o presidente atravessou esse ano e manteve um nível elevado de popularidade.”

As candidaturas alternativas a de Bolsonaro, com chances de vitória, ainda são incertas, de acordo com o consultor político que enxerga João Doria com potencial, depois da vitória de Bruno Covas, e Guilherme Boulos se consagrando como liderança da esquerda. A seguir, os principais trechos da entrevista de Aragão concedida à repórter Paula Bonelli.

Nesta eleição, quem saiu fortalecido e quem perdeu?
Tiveram claramente alguns vencedores. O Doria é um porque fez o Bruno Covas que se elegeu. O PSDB conquistou 179 prefeituras em São Paulo. Já o Republicanos teve um aumento extraordinário de prefeitos eleitos, mas perdeu na capital paulista e no Rio de Janeiro. O PP e PSD, do centrão bolsonarista, também venceram várias prefeituras. Outro que ganhou duplamente foi o Boulos.

Ele venceu?
Boulos sai de um papel periférico para o estrelato. E perdeu a eleição o que é bom para ele, se ganhasse era uma roubada. Teria que lidar com essa caminhada que está fazendo da esquerda radical para esquerda racional e administrar invasão de prédio. Isso ia destruir toda a narrativa de ser um prefeito confiável ou teria que renegar o seu passado muito cedo. O Rodrigo Maia é outro que venceu porque se engajou na campanha do Eduardo Paes, no Rio; fez um gesto muito emblemático de visitar o Ciro Gomes em Fortaleza e Doria em São Paulo. Sai fortalecido principalmente tendo em vista sua campanha ou do seu candidato à sucessão da Câmara. Agora, vou falar do Bolsonaro. Dentro desse negócio que eu chamo de “bolsocentrismo” no Brasil, que fica todo mundo olhando para ele. Nesta eleição muita gente correu pra dizer que o Bolsonaro perdeu. Acho que há um exagero em relação a isso. Ele apoiou quase que discretamente o Russomanno e o Marcelo Crivella que perderam. Agora, perderam por causa do Bolsonaro?

O índice de abstenção nesta eleição foi de 29,5%.
A abstenção tem várias razões. A pandemia afetou a presença dos eleitores isso é inquestionável. Além disso, a eleição municipal traz uma agenda que é meio de síndico de prédio. Não foi polarizada como vimos em 2018. E o outro ponto central é que sem a Lava Jato marcando presença forte na mídia, acusando o centro político, desinflamou a polarização que existia. Também houve um certo continuísmo em muitas capitais importantes.

Como avalia os cotados para concorrer à Presidência da República em 2022?
Tem o Lula que juridicamente não pode ser candidato. Consideram que o Fernando Haddad saiu queimado da eleição porque de certa forma se omitiu não sendo candidato. O Ciro Gomes em Fortaleza foi feliz, seu candidato ganhou, o PDT cresceu. Então, são quatro nomes na esquerda: Lula, Haddad, Ciro e Boulos. No centro há dois nomes: Luciano Huck e Doria. O Sergio Moro desagrada os partidos PSDB, PT, o MDB, o DEM por causa da Lava Jato e os bolsonaristas devido a sua passagem pelo governo. O ACM Neto talvez seja um nome para concorrer pela experiência e o recall por causa do avô. Ele sai de Salvador, que é uma prefeitura grande, com uma aprovação incrível. E é do DEM, não tem mandato, pode passar dois anos aí visitando o Brasil.

Acha que Luciano Huck é um bom nome?
As celebridades às vezes não viram votos. O Luciano Huck tem que sustentar politicamente a popularidade dele. Doria, como disse o Fernando Henrique Cardoso, precisa nacionalizar a sua campanha. A do Fernando Henrique foi nacionalizada pelo Plano Real. Ninguém o conhecia. Ele autografava nota de um real a pedido das pessoas nas ruas.

O que vai pesar na decisão dos partidos para definir candidatos?
Essas candidaturas também dependem de como o Bolsonaro vai desempenhar. Vamos imaginar que consiga fazer o PIB crescer 2,5% ao ano e não se meta em nenhuma confusão nova – as confusões que ele tem são as que já estão aí sendo digeridas pelo noticiário – ele pode aglutinar forças em torno da sua reeleição. Hoje, tem quase 70% de aprovação entre ótimo, bom e regular. Ninguém leva pau na faculdade por tirar regular. É importante reconhecer que o presidente atravessou esse ano e manteve um nível elevado de popularidade. Então, se o Bolsonaro vai mal, aí aparece um monte de candidato, se vai muito bem, esse centrão aí, que na verdade são vários partidos que se aglutinam, pensará duas vezes antes de sair contra ele. Será que vale a pena eu ir lá pra ser rabo de tubarão na chapa do Doria, se eu posso ter um lugar vip aqui com o Bolsonaro? Eles são muito pragmáticos. A política no Brasil é muito regionalizada, cada um pensa sobretudo no seu feudo político.

Então, a candidatura alternativa ao presidente ainda é incerta?
Ela ainda não apareceu e vai depender muito do espaço que o Bolsonaro vai dar. Hoje o maior rival do Bolsonaro é o próprio governo dele. Se o presidente organizar direitinho é o grande favorito para ganhar a eleição.

Pela lógica do continuísmo…
É, mas um continuísmo com sucesso. Porque muita gente atribui o continuísmo ao controle da máquina. E não é bem assim. No dia que o Brasil elegeu o Lula pela primeira vez provou que ninguém manda no eleitorado brasileiro.

Acha que as pautas de costume perderam espaço nesta eleição de algum modo?
As pautas de costume continuam sendo apoiada por quase 30% da população brasileira, não são respaldadas pela maioria. O Bolsonaro virou presidente não foi por causa dessa turma, mas em razão do centro, que não queria o PT. Quem elegeu o presidente foram os eleitores de centro. O Brasil é arbitrado pelo centro. Não existe uma cultura partidária no País. A maioria vota no menos pior.

Covas no discurso da vitória falou que a era do negacionismo e do obscurantismo tinha acabado. O que achou?
A política é palco. Covas era um vice-prefeito que virou prefeito, enfrentou uma grave doença e a pandemia. E é eleito. Ele se sente um super-homem e ele é.

Há uma corrida pela vacina contra covid-19 entre Bolsonaro e Doria.
É evidente que há uma preocupação política. Houve aquele momento em que o governo federal ia assinar um protocolo com o Instituto Butantan para comprar a vacina Coronavac, aí Bolsonaro desautoriza o ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Ele pensou que poderia se enfraquecer. Foi uma reação mais intempestiva dele naquele momento, e que ficou ruim. Mas um dia os governos federal e estaduais proporcionarão a vacina para quem quiser, já que o próprio Supremo Tribunal Federal arbitrou que saúde pública é também competência de estados e municípios. Isso dá grande autonomia.

Vetada pela Constituição, a reeleição dos presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre está sendo julgada no STF. É tapetão?
Claro que é um tapetão, mas a judicialização da política está colocada. Não podemos criticá-la quando é contra o nosso pensamento. Esse chamamento à Justiça para interferir e interpretar medidas que poderiam ser decididas no âmbito legislativo, se transformou em uma realidade no Brasil por conta da fragmentação partidária que dificulta o consenso.

Quais são s pontos negativos do governo Bolsonaro?
As narrativas de meio ambiente, das minorias, equívoco na política externa, mas na economia eles vão bem. E as brigas internas que vazam periodicamente comprometem um pouco a imagem do governo.


Luciano Huck & Anne Applebaum: 'Forças democráticas precisam se juntar e criar uma contranarrativa à política do ódio'

Para estudiosa em autoritarismo premiada com o Pulitzer, pós-pandemia exige refundar partidos e explicar como as instituições importam para a vida real das pessoas

Texto: Luciano Huck, especial para o Estado de S. Paulo

Anne Applebaum observou de perto, reportou e analisou o colapso dos regimes totalitários comunistas do Leste europeu na virada dos anos 1980/1990. E tem observado de perto, reportado e analisado com argúcia a recente ascensão de governos de extrema-direita na Europa, especialmente na Polônia, onde passou a viver. A historiadora, que foi editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, é uma referência em estudos sobre o autoritarismo contemporâneo no Ocidente.

Por dois motivos, eu fui atrás de Applebaum, que hoje dirige um projeto de pesquisa sobre propaganda e desinformação na Universidade Johns Hopkins (Washington DC). Primeiro, porque ela lançou um dos livros mais cirúrgicos de 2020: O Crepúsculo da Democracia, em que ela traça o perfil de personagens europeus e norte-americanos que desembarcaram do projeto humanista lançado no fim da Guerra Fria e que aderiram à nova geração de ideologias iliberais. Segundo, porque parecem voltar a soprar no Ocidente as brisas de uma correção democrática. A vitória estrondosa de Joe Biden sobre Donald Trump, o maior símbolo do que eu chamo de tecnopopulismo, não é trivial e precisa ser entendida – até para ser emulada.

Essa norte-americana de 56 anos, ganhadora do prestigioso Prêmio Pulitzer, foi uma das primeiras a alertar para a transformação de conservadores que diziam acreditar na democracia liberal, no livre mercado e nos pesos e contrapesos do Estado de direito em um monstro indomável que se alimenta do nacionalismo econômico, da tentativa constante de controle sobre a mídia, a polícia e o Judiciário, do isolacionismo, da negação à ciência, dos ataques às minorias e do exercício constante do ódio.

Para Applebaum, não cabe chorar o leite derramado, mas se empenhar em identificar tais forças e rapidamente criar um movimento capaz de brecá-las. Movimento esse que, segundo ela, deveria nascer da refundação dos partidos e, sobretudo, da busca de sensos comuns. É sobre esse irresistível chamado para um reagrupamento político e para a instalação de uma contranarrativa a fim de deter os extremos antidemocráticos que converso a seguir com essa corajosa mulher.

Applebaum se junta, hoje, a outras figuras da vanguarda do pensamento nesta série de entrevistas do Estadão. Notáveis como a economista Esther Duflo (Nobel de 2019), o filósofo Yuval Harari, o guru digital Nandan Nilekani, entre outros, todos eles iluminadores do mundo pós-pandemia, capazes de nos fazer refletir – e, por que não, agir.


VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :


Luciano Huck: Você era aclamada como uma respeitada intelectual conservadora, de inclinação liberal, mas passou a ser vista como “persona non grata” por boa parte da direita na Europa e nos EUA. O que aconteceu?

Anne Applebaum: O movimento conservador se dividiu em dois nos últimos 10, 15 anos. Ainda existe uma centro-direita, a depender do país. Mas uma parte da direita se tornou muito mais radical. E, ao se radicalizar e se tornar dependente de novas formas de comunicação, ela me perdeu. E perdeu muitas outras pessoas também, embora tenha ganho novos seguidores. Na maioria dos países ocidentais, a direita, tal qual a esquerda, sempre foi uma espécie de coalizão, com diferentes correntes dentro dela. O que aconteceu na última década é que a ala radical tomou conta dessa coalizão. E isso ocorreu de várias formas em muitos países.

Luciano Huck: Está cada vez mais difícil pensar sobre direita e esquerda nesse quadro de radicalização extrema. Mesmo que tenhamos 50 ideias alinhadas, uma única ideia dissonante vira pretexto para pedir cancelamento. Lendo sua obra, você já flertou com diferentes vertentes de pensamento. Como você enxerga essa questão hoje em dia?

Anne Applebaum: Os dois lados operam de formas diferentes, usando táticas diferentes, mas ambos buscam cancelar, desmerecer e descartar seus oponentes. Veja a forma como Donald Trump se livrou de tantos republicanos moderados, de qualquer pessoa que fosse mais centrista e que não concordasse com ele. Ele os atacava no Twitter, para depois seus seguidores os atacarem no Twitter. De certa forma, é a versão direitista iliberal do que tem sido feito pela esquerda no meio acadêmico. Ambos os lados políticos se tornaram mais radicais, parcialmente pelo fato de que agora as pessoas estão performando umas para as outras nas mídias sociais. As discussões que antes aconteciam em quartos pequenos agora acontecem na frente de todos. Isso fez com que se tornassem caricaturas ou cartuns.

“A grande ameaça às democracias é o tecnopopulismo, cujos líderes atuam para corroer o Estado por dentro, como cupins, tão logo chegam ao poder”Luciano Huck

Luciano Huck: A grande ameaça às democracias, a meu ver, não se dará por meio de tanques de guerra e de soldados. Estamos vivendo o perigo dos golpes “botox”. Governos eleitos democraticamente, em sua maioria com uma narrativa populista, usando as falhas disfuncionais das redes sociais para amplificar suas mensagens e corroer o Estado por dentro, como cupins. Tome o caso da Polônia. Em 2010, era um dos países mais promissores da União Europeia – uma ilha de inovação, educação e empreendedorismo. Hoje, dez anos depois, temos um governo xenófobo, antidemocrático, antissemita, ultraconservador, extremista. Qual o aprendizado para o Brasil não seguir a mesma perversa trilha?

Anne Applebaum:  Bom, o primeiro passo é identificá-los e não elegê-los. Porque, assim que eles ganham a eleição, eles começam a mudar as instituições. O partido que governa a Polônia nem sempre foi radical e extremista. Durante muito tempo, ele pareceu um partido conservador normal, com base ampla e ambições “mainstream”. Foi desse modo que ele ganhou a primeira eleição, em 2015, aliás. O problema foi que, assim que ele tomou o poder, ele começou, como você disse, a alterar o sistema. Ele assumiu o controle da televisão estatal, que era neutra e um tanto tediosa, e a transformou em uma plataforma de campanhas de difamação contra seus oponentes, de forma bastante unilateral e tendenciosa. Ele dominou o tribunal constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar como a Justiça funciona. E está tentando levar isso ainda mais longe, depois da reeleição.

Para o Brasil, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, eu diria para que não os deixem dominar a mídia. E, sobretudo, que não os deixem alterar o sistema judicial. Mas o fundamental é tentar convencer as pessoas o quanto antes de que essas coisas que parecem um tanto abstratas importam. Juízes em suas togas, em algum lugar distante, em um tribunal… o que isso tem a ver comigo? Isso pareceu muito remoto para as pessoas na Polônia. Só mais recentemente, quando esse tribunal ilegítimo começou a tomar decisões controversas, como mudar a lei do aborto, é que muitos jovens perceberam que “opa, isso me afeta”. Logo, convencer pessoas rapidamente de que todo tipo de mudança institucional as impacta é muito importante. Na Polônia, a oposição falhou em fazê-lo.

Luciano Huck: O salto qualitativo da Polônia comunista para a Polônia livre e democrática foi gigante, potente a olhos vistos. Agora o país vive um retrocesso também gigante. Difícil de entender. No Brasil, a sociedade é muito desigual, principalmente a desigualdade de oportunidades, que, somada à corrupção endêmica e à falta de um projeto de país, justifica o descontentamento da maioria da população em relação à política e aos políticos. Isso torna o terreno fértil para o nascimento de narrativas antiestablishment, tecnopopulistas. As narrativas populistas vão sempre no caminho mais fácil: “Tem muito crime? Então, vamos armar a população”. O que justificou o surgimento e a eleição de extremistas na Polônia?

Anne Applebaum: Na Polônia, não temos uma sociedade muito desigual. E temos também uma sociedade em que todo mundo, todo mundo mesmo, dos pobres à classe média, às classes mais ricas, está melhor hoje do que há 20 anos. No entanto, os poloneses não estão melhores do que os europeus ocidentais, como os alemães. A raiva aqui é uma raiva com a desigualdade comparativa frente aos países vizinhos. Muitos poloneses passaram a questionar o fato de continuar “atrás” na Europa mesmo após 20 anos de capitalismo e democracia. Essa é uma coisa. Em segundo lugar, e isso é muito diferente do Brasil, é que temos um problema de emigração, não de imigração. Após a queda do comunismo, em 1989, e após a entrada da Polônia na União Europeia, em 2005, muitas oportunidades de trabalho se abriram em outros países. Muitos poloneses foram embora para trabalhar na Inglaterra, na Suécia, na Alemanha. A percepção para muitas pessoas, particularmente para as parcelas mais pobres do país, é a de que nossos filhos estão desaparecendo e o interior do país foi se esvaziando. Em muitos casos, tradições foram perdidas. Isso deu a sensação de que algo essencial sobre o país se perdeu. Isso costuma ocorrer em países durante o processo de modernização. Quando as coisas mudam muito rapidamente, algumas formas de viver de 10, 20 ou 30 anos deixam de existir. Aquela infância de que as pessoas se lembram já se foi. O jeito que elas cresceram já não é o mesmo jeito que seus filhos estão crescendo.

Então, o sentimento de inferioridade comparado ao Ocidente e essa sensação de que os filhos estão sumindo e as coisas estão ficando irreconhecíveis levaram as pessoas na direção de uma política nacionalista, raivosa e emocional. Como a política se moveu de discussões e debates no mundo real para o mundo online, a qualidade e a natureza do debate político mudaram e simplesmente favorecem pessoas raivosas, emocionais e que conseguem falar em frases curtas. E isso aconteceu em todo lugar. O tipo de campanha política conduzida nas redes sociais na Polônia é o mesmo do que foi feito no Brasil e é o mesmo tipo de campanha que Donald Trump conduziu nos EUA. A política mudou de algo que acontece na vida real para algo que acontece na internet – e isso é uma grande oportunidade para, como você disse, tecnopopulistas.

Luciano Huck: Seja a União Europeia, que hoje exige da Polônia e da Hungria que garantam o estado democrático de direito para ter acesso a recursos emergenciais pós-pandemia. Sejam as grandes potências mundiais engajadas na construção de uma economia mais limpa, que hoje pressionam o Brasil por um compromisso de fato com a preservação ambiental. Como você avalia essa atuação internacional de defesa da democracia, esse exercício global de pesos e contrapesos?

Anne Applebaum: Eu acho que algumas pressões são úteis, mas outras, não. A União Europeia teve muitos problemas em entender como reagir à Polônia e à Hungria, porque ela não foi estabelecida para punir seus próprios membros. Um dos grandes erros que o mundo liberal cometeu, sejam partidos políticos, jornalistas e, em alguns casos, chefes de Estado, como Angela Merkel e outros líderes da Europa, foi o de não pensar mais a fundo sobre como criar uma contranarrativa. Essa nova extrema-direita, tecnopopulista como você citou, trabalha junta, conectada, e compartilha táticas, consultorias, ideias de propaganda. Aqui na Polônia temos quatro partidos de oposição que não se unem em torno de uma mensagem comum. Mesmo o Partido Democrata nos EUA tem duas ou três diferentes facções, com dificuldade de se unir. Criar uma mensagem única em torno dessas grandes ameaças à democracia e encontrar formas de trabalhar juntos, além das fronteiras, para ajudar uns aos outros, é algo que ainda não foi feito. As forças democráticas ainda encaram a política como algo doméstico, nacional, feito apenas dentro das fronteiras. Mas a extrema-direita não pensa assim: ela atua internacionalmente, o que é estranho e paradoxal, já que é nacionalista. Até os trolls online da direita fazem as mesmas coisas em diferentes países. O centro, a centro-direita, a centro-esquerda, os liberais, os movimentos verdes, eles não entenderam que precisam trabalhar juntos, contra-atacar juntos

Luciano Huck: A eleição de Joe Biden, nos EUA, tem qual efeito nessas democracias iliberais e populistas que se multiplicaram mundo afora?

Anne Applebaum: Ela é relevante, mesmo que apenas simbolicamente. O simples fato de termos Trump como líder dos EUA era uma inspiração para a extrema-direita em todo o mundo. Seria mais importante se, como parte de sua política externa, Biden começasse a juntar líderes de democracias ao redor do mundo para ajudar a criar uma nova narrativa para promover a democracia e os valores liberais. Seria mais do que um projeto de mídia ou de diplomacia. É profundo. O que as nossas democracias podem fazer juntas? Podemos reformar a internet juntos? Podemos constranger as plataformas de internet juntos? Podemos juntos parar a lavagem de dinheiro internacional e o dinheiro sujo que distorcem toda a nossa democracia? Dizer que somos todos uma democracia não é o bastante. Precisamos de novos grandes projetos que mudem a forma como a política e a sociedade funcionam e com os quais as pessoas se identifiquem. Biden terá de confrontar a maior crise econômica na história americana recente, a maior crise de saúde pública da história americana recente, terríveis e maculadas relações ao redor do mundo, graças à desastrosa administração de Donald Trump. Ou seja, terá um problema atrás do outro. Mas parece que está surgindo o entendimento em Washington de que acabou a ideia de que os EUA, sozinhos, podem liderar o mundo democrático. Os EUA precisam trabalhar juntos com aliados e parceiros, talvez até com grupos de oposição, no Brasil, na Rússia ou em outros lugares, para atingir os objetivos que pretende.

“Temos uma relação exageradamente passional com os políticos. Deveríamos estimular a capacidade de análise de ideias e projetos, como clientes-cidadãos”Luciano Huck

Luciano Huck: Enxergo alguns desses governos tecnopopulistas, mesmo sendo de extrema-direita, voltando os olhos para Vladimir Putin. Não me assustaria o atual governo brasileiro migrar de uma narrativa de subserviência a Trump para Putin.

Anne Applebaum: É possível. Certamente é o que vai acontecer na Hungria e em alguns outros países na Europa Oriental. Não na Polônia, que continua a ter medo de Putin. Mas, sim, é possível.

Luciano Huck: A pandemia trouxe para o centro do debate temas muito importantes que não tinham o devido protagonismo. Combate às desigualdades, racismo, antirracismo, feminicídios, igualdade de gênero. Aliás, as melhores gestões da crise sanitária e econômica da covid-19 foram lideradas por mulheres, casos de Angela Merkel e Jacinda Ardern. Como você, como uma mulher de voz potente e ouvida ao redor do planeta, enxerga essa questão?

Anne Applebaum: Na minha visão, você deveria fazer a pergunta ao contrário. A pergunta deveria ser “Os países que estão preparados para eleger mulheres a posições de poder se saíram melhor na pandemia?”. Em outras palavras, não acho que foi o fato de as líderes serem mulheres, mas o fato de que esses países estavam maduros para ter mulheres em cargos de liderança. O que ficou claro na pandemia é que os países que se saíram melhor foram aqueles com maiores índices de confiança no poder público e na ciência. Olhando apenas para democracias: Nova Zelândia, Alemanha, Coreia do Sul, Taiwan, em todos esses casos havia uma questão de crença, de fé na burocracia pública, nos serviços e servidores públicos.

Luciano Huck: Estar no debate público exige um grande estoque pessoal de felicidade. É preciso ter muita energia para gastar e não se deixar derrubar. Você está nessa arena há um bom tempo, se envolvendo em temas espinhosos. Como é isso para você?

Anne Applebaum: Essa é uma pergunta interessante, porque é algo que mudou muito. Se você é político, jornalista ou alguém com esse tipo de atuação, sempre foi normal encontrar pessoas que discordam de você, algumas delas desagradáveis. Mas até uns dez anos atrás você não era o foco da raiva, do ódio dessas pessoas. Hoje, se você está na vida pública, em qualquer posição, se você for uma celebridade, um popstar, um atleta, tendo ou não a ver com política, você terá de se acostumar com a existência de campanhas negativas nas redes sociais, desse lado feio da natureza humana, que vem à tona especialmente quando as pessoas conseguem ser anônimas. Você precisa aprender a lidar com isso. A minha forma é simplesmente ignorar os ataques, mas é muito difícil as pessoas aprenderem isso. Você deve ter o mesmo problema, não? Espero que algum dia encontremos uma maneira de regular as plataformas sociais, não censurá-las, mas de encontrar alguma forma, algum algoritmo, que favoreça o discurso construtivo e um melhor diálogo. Esse é o meu grande desejo para a próxima década. Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio. E me preocupa que a qualidade da vida pública sofra por causa disso, especialmente em democracias.

“A política permite reagrupamentos, e devemos tirar proveito disso. Pense não somente em quem são seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado.”Anne Applebaum

Luciano Huck: Ultimamente, as pessoas têm criado relação exageradamente passionais com os partidos e os políticos. Em vez de uma relação de noivado, deveríamos construir uma relação de clientes-cidadãos, com uma melhor capacidade de análise de ideias e projetos. Como se estivéssemos contratando um serviço, e não fazendo um pedido de casamento. Como você enxerga a formação de novas lideranças e o futuro da política partidária?

Anne Applebaum: Concordo com você. Estamos desesperadamente necessitados de um novo modelo de partido político. A social-democracia na Europa nasceu de sindicatos e grêmios, de pessoas reais se encontrando no trabalho. A democracia cristã, que compõe os principais partidos de direita e centro-direita na Europa, surgiu de movimentos baseados na igreja, não na religião, mas em grupos religiosos, pessoas reais que se conheciam em clubes da juventude católica e fóruns assim. Hoje, não está mais clara a conexão dos partidos com as pessoas. Eles perderam sua raiz e seu propósito. E, nesse sentido, não surpreende que as pessoas estejam começando novos movimentos políticos na internet. As pessoas agora experimentam a política de forma online e procuram pessoas online com quem possuam coisas em comum. Há um partido político na Europa que nasceu de um fórum de discussão na internet, o Movimento 5 Estrelas, da Itália. Infelizmente, nunca teve políticas muito claras e atraiu pessoas aleatórias e líderes iliberais. Mas é uma experiência interessante: uma forma de juntar pessoas em torno de um determinado conjunto de problemas, discutir esses temas online e criar um movimento político significativo. Suspeito que vamos ver mais casos desse tipo. Se você conseguir fazer com que as pessoas se motivem a trabalhar em suas comunidades, focando em problemas reais em vez de problemas de guerra cultural, que só fazem as pessoas sentirem raiva, isso pode fazer com que novas pessoas entrem na política. Ainda precisamos de partidos, do contrário nossos sistemas parlamentares não funcionam muito bem. Mas concordo com você de que os partidos modernos, como eles existem hoje, não refletem mais uma visão coerente de mundo.

Luciano Huck: Além de perder a capacidade de liderar qualquer agenda global, durante a pandemia o Brasil tornou-se um país a ser evitado. Nosso fracasso no combate à doença, impulsionado pelo negativismo do governo, que também atropelou nossa cultura, nosso patrimônio histórico, somado à destruição da Amazônia e a uma não política de defesa da floresta, o que afasta investidores relevantes, nos isolou do mundo e nos colocou nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica. Como você avalia a situação do Brasil?

Anne Applebaum: Eu não sou uma expert sobre o Brasil, embora já tenha estado aí e adoraria voltar. Mas a lição para o Brasil é a mesma para tantos outros países. É ridícula a ideia de que o Brasil conseguirá prosperar, se desenvolver e melhorar a vida de seus cidadãos ao se descolar do resto do mundo. Nenhum de nós consegue viver sozinho. A pandemia nos ensinou que estamos todos conectados. A começar pela rapidez do contágio, causada pelo fluxo global de viagens. Do mesmo modo, as vacinas e os remédios para a doença são soluções globais, serão distribuídas graças a instituições internacionais. São farmacêuticas americanas trabalhando junto a empresas alemãs; uma das principais empresas alemãs é liderada por um casal turco-alemão, que é imigrante; a testagem dessas novas vacinas e tratamentos foi realizada ao redor de todo o mundo, África do Sul, Brasil, EUA, Grã-Bretanha... Todos nós estamos absolutamente integrados no mundo, querendo ou não. Assim, se o Brasil deseja prosperar e os brasileiros querem que o seu país seja mais feliz e mais habitável, eles precisam estar integrados ao resto do mundo e precisam se perguntar se possuem um governo que os sirva nesse sentido. A Amazônia é o seu grande tesouro internacional. É o que vocês possuem que os distingue. Cuidar dela e investir nela, preservando-a para futuras gerações, é uma das maiores coisas que o Brasil pode fazer para se tornar uma grande nação. Imaginar que queimá-la vai contribuir de alguma forma para o bem-estar dos brasileiros é estranho e errado.

“Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio.”Anne Applebaum

Luciano Huck: No seu livro, você lembra uma passagem interessante da “sua turma de 1999”, usando uma festa de réveillon na sua casa como pano de fundo. Aquele grupo hoje em dia nem se cumprimenta em razão de divergências políticas e visões distintas sobre a democracia. Se você fizesse uma festa hoje na sua casa, qual seria o assunto? E como você imagina esse grupo daqui a 20 anos?

Anne Applebaum: A política promove reagrupamentos. Pessoas que antigamente eu considerava esquerdistas demais para conversar hoje são meus amigos. Pessoas que eram meus amigos agora estão em algum outro lugar. Esses reagrupamentos políticos acontecem periodicamente. Não há nada de estranho nisso. Na verdade, deveríamos tirar proveito disso. Acho que a lição da minha festa de 1999 é “tenha certeza que você terá sempre a capacidade de fazer novos amigos”. Ou, colocando de outra forma, “pense sempre em quem são os seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado”. Se o projeto é proteger a Amazônia, por exemplo, ou transformar a economia brasileira, observe ao redor para entender quais grupos sociais, quais pessoas, quais partidos políticos poderão ser os seus aliados, mesmo que você ainda não os conheça. Encontre novos aliados, faça novas coalizões. As velhas coalizões podem não ser mais as corretas.

Luciano Huck: Muito obrigado.


Fernando Abrucio: "Eleitor evangélico mostrou que não é voto de cabresto"

Para cientista político, PT ampliou o isolamento e bolsonarismo terá dificuldades em 2022. “Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou”

Aiuri Rebello, El País

Atuando como consultor na construção de candidaturas para as eleições de 2022 e com acesso a diversas pesquisas qualitativas junto a eleitores encomendadas por partidos, o cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, está confiante em dizer que o tempo do bolsonarismo acabou, apesar de ainda haver mais dois anos de mandato para o presidente Jair Bolsonaro. Mais que isso, ele observa que a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais e que essa pauta definirá o próximo pleito presidencial e para governador nos Estados. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, resume. Nessa entrevista ao EL PAÍS onde analisa o cenário político brasileiro com o resultado das eleições municipais de 2020, Abrucio fala ainda do isolamento do PT e da confirmação de que os eleitores evangélicos na enorme maioria dos casos não coloca a pauta dos costumes acima de questões concretas como emprego, saúde e educação. Leia abaixo.

Pergunta. O que chama atenção nos resultados das eleições municipais deste ano? Existe um padrão no segundo turno?

Resposta. Não só no segundo turno, também no primeiro, nas principais cidades do país vemos uma derrota muito forte do bolsonarismo. Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o clima de humor, os assuntos, o clima de opinião. O clima de opinião que vimos em 2018 já estava colocado nas eleições de 2016. O candidato antissistema já estava lá. Pensemos no Doria quando dizia “eu sou gestor, não sou político”. Nessa campanha nenhum dos vencedores falou eu não sou político. Bruno Covas fez uma campanha muito certinha, quadradinha, e explorou o oposto. Dizia na TV, “eu sou político”.

Fora que a imagem do Bolsonaro está muito desgastada. Se pensarmos que o presidente da República e os filhos fizeram campanha pessoalmente para a Wal do Açaí ao cargo de vereadora em Angra dos Reis e ela não se elegeu... Ele teve um nível de superexposição nestes dois anos, lives no Facebook toda semana, tempo todo nas redes sociais. Para o eleitorado mediano em um contexto de crise, afetou ele fortemente, fica se oferecendo como alvo para a frustração das pessoas com a situação.

P. Bruno Covas se distanciou da imagem e discurso do padrinho político dele, no caso o governador João Doria.

R. Não foi só em São Paulo que isso aconteceu. Em todos os lugares o discurso de valorização da política, um discurso mais orgânico, de ativação com a sociedade, isso tudo veio muito forte. Na verdade é o contrário de tudo que foi o bolsonarismo em 2018, uma candidatura antissistema, polarizadora, baseada em chavões e não em discussão de programas. Ele fez uma campanha inteirinha sem falar em questões sociais em um país tão desigual e carente de soluções na área como o Brasil. Se pegarmos as campanhas a prefeito nas capitais agora, olha em Salvador e Rio o DEM, em São Paulo o Bruno Covas e o Guilherme Boulos, as principais candidaturas foram todas muito parecidas em suas temáticas. Especificamente as questões sociais, esse é o tema. E esse vai ser o tema de 2022. É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018. Eu pego muitas pesquisas qualitativas constantemente e uma coisa está muito clara: o grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo. Hoje não temos um ministro da Educação e nem da Saúde dignos do nome do cargo. Se você fizer uma enquete na rua ninguém vai saber quem são os dois, não conseguem nem gastar o pouco dinheiro que tem.

Na área social o Governo é uma nulidade e a agenda bolsonarista foi enterrada pela pandemia e pelas eleições municipais. Ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição do Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui. A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia e as eleições municipais que fazem com que aquela agenda e clima de opinião que imperou em 2018 acabou já era.

P. O bolsonarismo está morrendo?

R. Não, mas vai diminuir progressivamente e chegar em 2022 bem menor. Em 23 das 26 capitais, aumentou muito a rejeição ao Bolsonaro nas últimas duas semanas. Isso é impressionante. Em São Paulo, tem pesquisa colocando ele com 17% de bom e ótimo... nunca teve isso e a tendência é piorar, não é melhorar. Não vai ter muito dinheiro para o ano que vem, os partidos do Centrão ali vão se afastar completamente do bolsonarismo para compor a eleição da presidência da Câmara e continuarem firmes, toda a oposição a ele vai começar a bater cada vez mais forte. É todo mundo contra ele. Vendeu-se uma ilusão de que seria um governo que antissistema, que derrubaria o sistema por completo, que acabaria com a corrupção, e essa bandeira o Bolsonaro não tem mais condições de carregar, não consegue mais se colocar como um arauto anticorrupção.

P. O peso do voto evangélico nesse cenário diminuiu?

R. Se você pegar no Rio de Janeiro, grande parte dos evangélicos votou no Eduardo Paes. Por que os evangélicos votaram nele? Em 2018, grande parte dos evangélicos foi nesse discurso bolsonarista de ser contra a corrupção, pela pátria e a família. Passados dois anos, boa parte desse grupo percebeu que precisa de mais alguma coisa. Não adianta ficar falando de pátria, família e religião se não tiver emprego, renda, escola, se parentes estiverem ficando doentes e morrendo de covid-19. Quem é o evangélico com perfil mais padrão na Baixada Fluminense, por exemplo? Homens e mulheres negros ou pardos, é o primeiro dado demográfico. Aí vem o presidente e o vice-presidente dizer que não existe racismo no Brasil? O cara já está sem emprego, vivendo da economia informal, o auxílio emergencial está acabando, percebe que seu filho está sem aula e tem algum parente ou amigo que morreu de covid? Esse cara não está para brincadeira nesse momento.

Para completar, sente-se uma inflação nessa mesma ponta. Embora esteja começando a se alastrar agora e o tamanho disso ainda tem de ser mesurado e vermos se o efeito será duradouro, até agora é principalmente uma inflação acelerada de alimentos. E quem é que sente mais isso? As famílias de baixa renda, boa parte delas evangélicas. A imagem do Bolsonaro está bastante desgastada inclusive dentre os evangélicos, não adianta tentar se desvincular de todos os problemas, as pessoas precisam de soluções. Ele tem um erro de estratégia e comunicação de privilegiar essa coisa ideológica ao invés de políticas públicas. Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou. Neste ano, o eleitor evangélico não é um voto de cabresto, que não obedece cegamente as orientações das lideranças das igrejas. No Rio e em São Paulo, para ficarmos só nesses exemplos, os candidatos da Igreja Universal e do bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella e Celso Russomanno, perderam inclusive entre os evangélicos, mostram as sondagens.

P. É possível falar em um renascimento da esquerda, mesmo que incipiente?

R. Não sei. Na verdade o que a gente vê é que a agenda social tornou-se muito forte e não foi exclusividade da esquerda. Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social se deram bem. Mais importante que falar no fortalecimento da esquerda é falar no fortalecimento da pauta social, que sempre foi prioritária da esquerda e agora foi incorporada por outros atores políticos. Se pegarmos a situação de Porto Alegre, por exemplo, tirando as fake news contra a Manuela D’Ávila que tiveram um peso importante na derrota dela, o Sebastião Melo começou a falar da questão social o tempo todo. Teve o bárbaro assassinato no Carrefour e ele rapidamente entrou no Twitter e já se posicionou, estava antenado com isso. Os conservadores mais empedernidos que insistem em não legitimar questões como o enfrentamento ao racismo estão de fora dessa nova onda. Isso mostra que apesar de resultados importantes em alguns lugares, mais do que o renascimento da esquerda é a ascensão da questão social, essa é a nova questão central.

P. O presidente e o bolsonarismo de uma maneira geral conseguem se reposicionar e entrar nessa onda?

R. Não, ficou muito ruim para o presidente, porque ele não está preparado para lidar com a questão social. Não tem essa agenda, não se preparou para isso. Não tem técnicos capazes de dar essas respostas, não tem gente que pensa a questão social no Governo federal. Para fazer isso tem de haver vínculos com a sociedade civil, de diversas formas, e o que o Bolsonaro fez desde que assumiu foi cortar essa ligação do Governo com o resto do país, ele está completamente desarticulado com a sociedade. Ele acha que fazer política é fazer live na Internet. Fechou conselhos de participação social, não conversa com ninguém. O retorno que a gente tem de empresários, políticos, representantes de entidades e organizações civis de reunião com o Paulo Guedes e com o Bolsonaro é de que eles não são ouvidos. Então essa ascensão da questão social, que vai se tornar mais forte em 2022, pegou o bolsonarismo de calça curta. Eles não contavam no meio do caminho com a pandemia. O auxílio emergencial é um acidente. Não existia no programa de governo do Bolsonaro nenhuma previsão de transferência de renda. Eles não tem como transformar isso em uma pauta social porque nunca tiveram essa preocupação, não sabem nem por onde começar.

O próprio entendimento sobre a segurança pública pública está mudando. Em 2022 vai ter muito candidato defendendo que a criminalidade é uma questão social. Aquele discurso linha dura do Doria, do Wilson Witzel, caiu. Em 2022 quem vier com esse papo de que bandido bom é bandido morto vai ter ali 15%, 20% dos votos e não passa disso, vai ser massacrado. Nessa campanha a gente viu policial para tudo quanto é lado nas candidaturas e, se olharmos os resultados com calma, não teve a mesma onda que rolou em 2018. Os caras pensaram que iam surfar. Em São Paulo elegeram dois vereadores da segurança pública e um deles foi eleito com a defesa dos cães e gatos. É uma piada. A questão social ganhou uma dimensão que não vai dar em 2022 para falar de segurança pública sem um ponto de vista mais amplo. Teve esse assassinato covarde em Porto Alegre que gerou uma onda forte de revolta ao redor do país, a questão racial está na pauta do dia no cenário externo. A morte do George Floyd nos EUA foi um divisor de águas nesse sentido. É uma onda muito forte essa, igual foi a Operação Lava Jato, o combate à corrupção e a linha dura na segurança pública em 2018. À direita e à esquerda, quem quiser ir bem nas eleições vai ter que modular o discurso e as ações de acordo com essa conjuntura toda que é uma novidade.

P. Qual o perfil do candidato “ideal”, de acordo com esse clima político?

R. Não existe um perfil ideal. Tanto Bruno Covas quanto Guilherme Boulos, por exemplo, com perfis completamente diferentes, foram bem em São Paulo. No caso do Covas, o que ainda prejudicou a imagem dele foi a associação com o vice e o governador João Doria. Não fosse isso ia ser mais parecido ainda. Do ponto de vista programático, não há nenhuma diferença frontal entre as propostas dos dois. Ninguém discorda das questões sociais e identitárias. Essa é uma onda que eu acho que vai vir avassaladora nas próximas eleições.

P. O que podemos dizer da situação do PT? Sai da eleição politicamente enterrado e sem nenhuma capital?

R. No cenário nacional, o que vemos é que o PT ficou mais isolado ainda no cenário político. O eleitor que tradicionalmente votava no PT preferiu o Boulos, o candidato do Ciro e em 2022 pode fazer mesmo ao invés de votar no Lula ou seu indicado novamente. Eu não diria que é um grande perdedor, por que na verdade quem já estava por baixo não tem como ser o grande perdedor. Grande perdedor é quem estava forte e perdeu espaço. Ele não sai maior ou menor, sai mais isolado.

P. E o papel do Novo nesse ciclo político que se inicia agora?

R. Qual é a grande marca do Novo em meio a pandemia? Processo seletivo para lançar candidatos. Não conseguiu oferecer nada de concreto para o país. Eles parecem completamente descolados da realidade brasileira. O resultado eleitoral é esse aí, pífio. A principal liderança eleita deles, que é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vai ter problemas para conseguir se reeleger. É engraçado como eclodiu uma nova agenda e muitos não se prepararam, incluindo o Novo. Eles não conseguiram entender até agora o que é fazer política pública. E fora isso perderam identidade. Eles eram a favor do Sergio Moro, da Lava Jato. O Moro saiu do jeito que saiu do Governo e o que eles fizeram? Nada. Estão completamente perdidos. Se você olhar as redes sociais, muito mais que o Novo quem tem ocupado o lugar de um partido liberal na economia e costumes é o Livres. O Novo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Não precisava de um partido novo para isso. Tem vários na praça com essa proposta. Talvez fosse em uma campanha em outro país, um muito rico. Eles perderam o bonde da história.

P. Com o resultado do Bruno Covas em São Paulo, o governador João Doria obteve uma vitória importante para lançar seu nome à presidência?

R. Eu vejo o Doria enfrentando muita dificuldade. Ele foi muito longe no discurso bolsonarista e agora está com problemas para voltar atrás. Você a aprovação do Doria e do Bolsonaro em São Paulo nessas últimas pesquisas, é ruim igual. É um negócio assustador ali na casa dos 15% de bom e ótimo. Disseram que a campanha em São Paulo ia ser uma prévia do embate entre Doria e Bolsonaro, e o Covas tem o dobro de popularidade dos dois. O eleitorado identificou nele sensibilidade social. O Doria vai ter muita dificuldade de fazer essa volta no discurso. As pessoas não perdoam ele em São Paulo. Se chegar em 2022 com essa rejeição em São Paulo, o PSDB não vai querer dar a cabeça de chapa presidencial para ele e, se fizerem isso, vão começar a ter problemas para eleger bancada legislativa. O Doria tem o ano que vem para mostrar que se redimiu e está dentro da nova agenda da sociedade brasileira. Nesse quadro, a vacinação prometida pode virar o jogo para ele.

P. O ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, fica onde nesse xadrez político e eleitoral?

R. Esse impulso de novas temáticas pode ser aproveitado pela centro direita e pela esquerda. A direita mais ligada ao bolsonarismo e a Lava Jato está muito distante dessa pauta. O Moro não entendeu em que país estamos. Não tem a menor ideia do que fazer em educação, saúde, combate à desigualdade, não sabia nem o que fazer na segurança pública. A única agenda dele é o combate à corrupção. O discurso de que isso vai salvar o país não cola mais. As pessoas continuam achando importante, mas perceberam que sem um conjunto de medidas mais amplo não resolve nada. Essa agenda específica hoje está lá embaixo na lista de prioridades. Então vejo muita dificuldade eleitoral para os dois salvadores da pátria, Bolsonaro e Moro, que brigaram e querem disputar entre si. Mesmo o eleitorado de classe média, mais conservador, percebeu que precisa de mais que isso. A situação social piorou demais no país, e todo mundo vê isso.


Valor: “Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau

Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor

Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico

SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.

Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.

Essas legendas viram a redução de seus exércitos de vereadores, com os quais contam para sua recondução. Nas contas de Nicolau, 15 partidos não chegaram a 2% dos votos para vereador em 15 de novembro. É esta a cláusula de desempenho para 2022. Com isso, o tema já entrou na barganha dos pequenos partidos na disputa pela Mesa da Câmara. Em alguns deles a discussão já é aberta - o apoio estará condicionado ao compromisso dos candidatos à Mesa com a flexibilização das regras. Não é um acordo fácil de ser operacionalizado. Até porque os partidos com mais chances de levar a presidência da Câmara estão entre aqueles mais beneficiados pelo fim das novas regras: PP, DEM, MDB e Republicanos.

Jairo Nicolau vê com ceticismo a proposta da federação de partidos como alternativa à coligação. Ao contrário desta, a federação vai além da conjuntura eleitoral e prevê a atuação conjunta dos partidos também ao longo da legislatura. O dispositivo já foi derrotado na Câmara. Para não ser uma burla à coligação, diz Nicolau, teria que ser uma federação nacional, de canto a canto do país, o que confronta as contingências regionais dos partidos.

O fim das coligações não é o único retrocesso que pode advir das eleições municipais. O atraso na contagem dos votos, amplificado pela militância de extrema direita, deu asas a teorias conspiratórias de fraude eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro retomou a defesa do voto impresso e encontrou guarida em parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nicolau acompanhou de perto o tema quando o TSE, na gestão Gilmar Mendes, promoveu debates sobre o aprimoramento do processo eleitoral. Os engenheiros presentes alertaram para a inviabilidade técnica da alternativa pelo potencial de problemas que as impressoras podem causar. No limite, diz, o TSE poderia fazer a impressão do voto por amostragem.

Outra mudança aventada que Nicolau teme é a do voto pelo aplicativo. A questão chegou a ser levantada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, antes dos problemas com a apuração. Animado com a boa aceitação do registro da ausência no local de votação pelo aplicativo do TSE, ao qual se atribui, somado à pandemia, o aumento na abstenção, o ministro foi adiante e disse que o Brasil, um dia, também poderia votar pelo aplicativo. A mudança, diz o professor, não poderá ser feita sem anuência legislativa, uma vez que abre portas para a adoção paulatina do voto facultativo. E não apenas. Ameaça o sigilo do voto. “Não é fantasioso imaginar que se formem filas nos currais eleitorais para se ‘ensinar’ o eleitor a votar”, diz. É a volta - ou a modernização - do voto de cabresto.


Folha de S. Paulo: O Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica, diz Obama

Em entrevista à Folha, ex-presidente americano afirma esperar que trauma eleitoral recente leve a uma política diferente

Sérgio Dávila, Folha de S. Paulo

Dez dias depois de Joe Biden ver seu nome confirmado como o próximo presidente dos EUA, é a vez de seu ex-chefe, Barack Obama, roubar a cena. Nesta terça (17), dia do lançamento mundial de “Uma Terra Prometida” (Companhia das Letras), detalhes do primeiro volume de suas memórias na Casa Branca tomaram o mundo.

Folha enviou nove blocos de perguntas (com 12 questões no total) por escrito ao democrata no dia 5 de novembro. Ele se comprometeu a responder ao menos cinco delas e pediu que todas fossem ancoradas no livro, condições aceitas pelo jornal.

Na segunda (16) à noite, chegaram suas respostas.

O sr. escreve na apresentação de seu livro que a democracia em seu país parece estar à beira do precipício uma crise enraizada no embate entre duas visões opostas do que são os EUA e do que deveriam ser. O sr. acha que, pelos acontecimentos de hoje [5/11], com a vitória de seu ex-vice-presidente, o precipício fica mais longe? Você tem razão: a divisão entre o que a América é e o que a América deveria ser é um tema importante no livro, mas também existe outro conjunto concorrente de visões para nosso país. Há uma visão mais inclusiva e uma visão mais tribal. As duas interagem constantemente, e assistimos a essa interação acontecendo não apenas nos últimos quatro anos, nem nos oito anos que os antecederam, mas ao longo de nossa história. A pergunta permanece: quem vai vencer essa disputa de ideias?

Tenho fé em que a visão generosa e acolhedora do nosso país sairá por cima. E conservei meu otimismo, mesmo ao longo dos últimos quatro anos. Porque, ao mesmo tempo em que vimos nossos piores impulsos revelados, também testemunhamos o que podemos ser quando mostramos nosso lado melhor, quando americanos saíram às ruas em número sem precedente para protestar contra a separação de famílias, a violência armada, a brutalidade policial e mais.

É isso que me dá esperança especial em relação à próxima geração. Sua convicção do valor igual de todas as pessoas é inata, natural. Para Malia, Sasha [suas filhas de 22 e 19 anos, respectivamente], e seus amigos, nossas diferenças são algo a ser festejado. Para eles, isso é evidente.

Este livro é sobretudo para esses jovens. É um convite para mais uma vez reformarem o mundo e, com trabalho árduo, determinação e uma grande dose de imaginação, criarem uma América que finalmente se alinhe com o que existe de melhor dentro de nós.

O sr. descreve com detalhes o processo que o levou a escolher Joe Biden para ser seu vice-presidente. Dezenove anos mais velho que o sr., não parecia um candidato natural a concorrer a sua sucessão em 2016, tanto que não foi Hillary Clinton foi a escolhida. O sr. antevia então, no momento de sua escolha para vice, que ele um dia viria a ser presidente dos EUA? Admito: quando comecei minha busca por um vice-presidente, eu não fazia ideia que acabaria por encontrar um irmão. Joe e eu não temos muito em comum, à primeira vista. Temos origens diferentes, somos de gerações distintas. Mas em muito pouco tempo comecei a admirar sua resiliência, sua empatia e seu engajamento em tratar cada pessoa que ele encontra com respeito e dignidade. Joe vive segundo o preceito que seus pais lhe ensinaram: “Ninguém é melhor que você, Joe, mas você não é melhor que ninguém”.

Essa empatia, essa honradez, a crença de que todos têm valor —isso é quem Joe é. E foi por isso que durante oito anos eu quis que ele fosse o último na sala comigo sempre que eu precisava tomar uma decisão importante.

Ele me fez um presidente melhor. E sei que ele nos tornará um país melhor.

Numa passagem interessante, o sr. descreve o efeito do envolvimento da ex-primeira-dama Michelle Obama numa escola de ensino médio para meninas em Londres. Segundo estudos de um economista, após as visitas, as meninas melhoraram seu desempenho escolar. O sr. nunca a encorajou a seguir carreira política? Nunca discutiram isso a sério, como uma possibilidade de segundo ato para ela? Bem, não, porque isso não vai acontecer. Michelle já deixou isso muito claro. Mas não direi que me surpreendi ao ver que um estudo confirma a ideia de que a presença dela inspira as pessoas a realizar seu potencial. Porque convivo com os benefícios disso desde que ela e eu nos conhecemos, mais de três décadas atrás.

Como mostra o livro, não há dúvida de que Michelle não apenas me fez um presidente melhor, mas também uma pessoa melhor. Não há ninguém mais brilhante que ela, ninguém mais divertido, ninguém mais sábio. Há uma razão por que tantas pessoas gravitam em direção a Michelle. (E há uma razão por que, não importa quantas vezes ela diga não, as pessoas não param de perguntar se ela vai se candidatar a um cargo político algum dia!)

O sr. narra uma visita a uma das favelas no Rio de Janeiro e conjectura sobre o efeito que pode ter tido nos meninos e meninas negras que o observavam de suas casas num país de racismo profundamente enraizado, ainda que com frequência negado. Não muitos anos depois, o movimento Black Lives Matter explodiu nos EUA, com reflexos no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O sr. anteviu que a tensão racial desaguaria num movimento desse tipo? Teria feito algo diferente nesta questão durante seu mandato? O racismo está entre nós desde muito antes mesmo de sermos um país, e nunca tive qualquer ilusão de que minha Presidência pudesse de alguma maneira tornar nosso país pós-racista. Eu esperava que ela pudesse inspirar crianças, quer fossem crianças das favelas na periferia do Rio ou crianças do South Side de Chicago, mas também sabia que elas precisavam de mais do que apenas inspiração. Elas precisam de escolas e habitação de boa qualidade, ar e água limpos, empregos quando se formam, e mais.

E, embora tenhamos feito progresso sobre muitos desses pontos, também é fato que, se você analisar a luta pela justiça ao longo de nossa história, ela tende a avançar dois passos e então retroceder um, algo que vivenciamos mais uma vez nos últimos anos.

Mas acredito que estamos indo no rumo certo. E sei que a resposta vai vir desses jovens, cujo ativismo no verão deste ano não poderia ter sido mais importante.

Sinto orgulho enorme do engajamento deles com a desobediência civil. Porque, ao longo de nossa história, o protesto pacífico e o ativismo resoluto têm sido a única maneira de fazer o sistema político prestar atenção às comunidades marginalizadas. E espero que elas usem esta oportunidade, com os olhos do mundo voltados a elas, para traduzir seu ativismo em leis e política públicas que precisamos para construir um país mais inclusivo.1 21

O sr. descreve seu encontro com o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, dizendo que a visita dele ao Salão Oval causou boa impressão. Depois, ao falar dos Brics numa reunião do G20 em Londres, o sr. o elogia e a seus programas sociais, mas escreve: “Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão de Tammany Hall [uma organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a corrupção e abuso do poder], e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”. Qual Lula sobreviveu em sua memória? Aquele que o sr. um dia disse “Ele é o cara!” ou o “chefão”? Minhas interações com Lula aconteceram na maioria anos antes de seus problemas com a Justiça, de modo que minhas recordações dele são moldadas pelo tempo em que ele era uma presença dominante na política brasileira e uma figura influente no palco mundial.

O que ficou claro para mim era que ele e Dilma simbolizavam algo importante para muitos brasileiros —a ideia de que eles estavam representados nos mais altos níveis do governo e que o governo seguia políticas que beneficiavam as massas maiores de pessoas. Não há como negar o dom que Lula possuía de se conectar com as pessoas e o progresso que foi feito nesse período para tirar pessoas da pobreza.

Mas, como escrevi, sempre havia rumores girando em torno dele sobre clientelismo, e está claro que o Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica.

Minha esperança é que o trauma político recente possa levar a um tipo diferente de política e que uma nova geração de brasileiros possa liderar nesse caminho.


IHU Online: Eleições municipais não trataram do fundamental, diz Luiz Werneck Vianna

“Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano”, constata o sociólogo

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos, IHU Online

Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade “hedonista e consumista”, cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a “sobrevivência material do cotidiano”, não é de se surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.

Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está".

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".

Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignadaDiálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos?

Luiz Werneck Vianna – As eleições foram um banho de saúde na política brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no nosso mundo político; o que também não é nada de espetacular. Num país conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em 2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está. Há uma esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.

No Rio de Janeiro, se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a divisão entre PTPDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto, passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.

Ela também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A remoção [de Trump], que ocorrerá em breve, abre uma bela janela de oportunidades.

IHU On-Line – O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?

Luiz Werneck Vianna – Abre uma janela de oportunidades imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que ocorre em matéria de saneamento básico.

Os partidos brasileiros ambientalistas se dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante. A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda está completamente defasada.

Vamos ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora. Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.

Apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Luiz Werneck Vianna – Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará – que também é relevante –, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.

IHU On-Line - A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?

Luiz Werneck Vianna – Esses debates se fizeram presentes, mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.

IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?

Luiz Werneck Vianna – A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica.

Houve um avanço em relação à última eleição, que foi dominada pelo atraso e pela grosseria, pela “arminha” e esses símbolos idiotas que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.

Há candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [d’Ávila], no Rio Grande do Sul. Mas a ver; tem que esperar. Não sei o que vai se passar.

Não há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno; falta muito. Faltam personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.

solução americana adotou uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levaram à vitória, em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [JoeBiden a vitória. Aqui, quem aparece com esse papel?

No Rio de Janeiro, três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a experiência do socialismo real, por exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.

A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Luiz Werneck Vianna –Se essa mudança está ocorrendo, não estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano. Não tem portador para uma visão profética, por ora.

IHU On-Line – Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?

Luiz Werneck Vianna – Ah, seria. Claro que seria, mas aí veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela se retirou da política e da Teologia da Libertação – deu um fim nisso – e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade. De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com uma mensagem desse tipo? Nenhum. É “aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella”. Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.

IHU On-Line – O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?

Luiz Werneck Vianna – A Igreja tinha instrumentos na Teologia da Libertação, mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses cultos de fundo materialista preponderassem.

IHU On-Line – Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?

Luiz Werneck Vianna – Isso depende das lideranças, das personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.

IHU On-Line – Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?

Luiz Werneck Vianna – Precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU é um exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito embrionário, um novo despertar.

Essas eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de paciência também e de trabalho diário, cotidiano.

IHU On-Line – A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?

Luiz Werneck Vianna – Ela tem produzido intervenções interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer. Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso da Marielle Franco. Ela era socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.

A minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera pública. Marielle é um caso de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha do PDT [Anderson Quack] é uma liderança da Central Única das Favelas - Cufa. É por aí que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.


Política Democrática Online destaca coalizão para reforma estrutural nas polícias

Com análises sobre política, economia e cultura, edição de novembro foi lançada nesta quinta-feira (12)

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Necessidade de coalizão para se enfrentar a questão da governança das polícias, embate entre favoráveis e contrários à volta às aulas presenciais e a união de forças progressistas e de centro que levaram à derrota da Donald Trump são os principais destaques da revista Política Democrática Online de novembro. Lançada nesta quinta-feira (12), a publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos em seu site, gratuitamente.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

No editorial, a publicação diz que “o país ingressou na reta final de uma campanha eleitoral atípica”. Segundo o texto, tudo indica que prevaleceu no eleitorado a tendência ao pragmatismo, à separação prudente das esferas nacional e municipal da política. “Nessa conjuntura, cabe às forças de oposição prosseguir na convergência programática, no fortalecimento de um amplo leque de alianças para o segundo turno das eleições, em torno do eixo político hoje fundamental: defesa da saúde, da vida e da democracia”, afirma, em um trecho.

Na entrevista exclusiva concedida à Política Democrática Online, o antropólogo e filósofo Luiz Eduardo Soares, defensor da desmilitarização das polícias militares, avalia que somente uma coalizão pode dar ao país as condições políticas para que se faça uma reforma estrutural nessas corporações policiais. "Só uma coalizão pode proteger os governos que se disponham a agir, e não adianta pensar nas forças armadas como uma solução mágica, porque se não o Rio já teria resolvido, por exemplo, o problema com as milícias", diz.

A reportagem especial destaca os efeitos da segunda onda da Covid-19 na Europa sobre a decisão de governadores para retorno, ou não, às aulas presenciais nas redes públicas de ensino no país. Oito meses após o fechamento das escolas por causa da pandemia do coronavírus, em março deste ano, 16 redes públicas estaduais de ensino retomaram parte das aulas presenciais ou têm previsão de retorno às salas de aula, ainda em 2020. Em outros oito Estados, governadores já se posicionaram pela volta dessas atividades somente no ano que vem, diante do risco de a nova onda do coronavírus na Europa aumentar ainda mais o número de casos no Brasil.

Em seu artigo, o diplomata aposentado Rubens Ricupero aponta os principais reflexos das eleições nos Estados Unidos. “Na esfera interna, não será fácil, sem controlar o Senado, aumentar impostos das corporações, aprovar pacote trilionário de estímulo, alterar a ideologia da Suprema Corte”, diz. “Já na área externa, Biden terá mais latitude para voltar ao Acordo de Paris, converter o meio ambiente em prioridade central, liderar a busca de vacina na OMS, convocar a prometida Cúpula em favor da Democracia, restituir à diplomacia e ao multilateral o papel central na política externa. Se não fizer mais nada, já terá transformado a agenda mundial de modo decisivo”.

Além desses assuntos, a revista Política Democrática Online também tem análises sobre economia, cultura e nova composição do STF (Supremo Tribunal Federal). A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


O Globo: 'Em 2022 devemos ter alternativas não polarizadas', diz Sergio Moro

Ex-ministro da Justiça diz que todo mundo está conversando sobre a sucessão presidencial, sem citar o próprio nome como possível candidato de centro

Bela Megale, o Globo

BRASÍLIA — Ao GLOBO, Sergio Moro critica o ambiente de polarização entre esquerda e direita e admite que tem conversado com nomes que buscam construir uma alternativa. Reconhece que esteve, em outubro, com o apresentador Luciano Huck, como informou o jornal 'Folha de S.Paulo', para “conversar sobre o Brasil”, mas nega que, neste momento, seja candidato ao lado de Huck. “A construção disso é importante, e não necessariamente passa por mim. Não existe nada pré-determinado”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Estamos a dois anos das eleições presidenciais. O senhor está se articulando com lideranças para construir uma terceira via de candidatura?

Eu ficaria bastante desapontado se chegássemos em 2022 e tivéssemos apenas, como perspectivas eleitorais, dois extremos polarizados, a esquerda e a direita. O brasileiro tem um perfil mais moderado, e essa moderação favorece comportamentos de tolerância, que é o que nós precisamos, e o fim desse ciclo de ódio, que envolve principalmente as figuras do presidente (Bolsonaro) e igualmente do PT, especialmente o ex-presidente Lula. A construção disso é uma coisa importante, e não necessariamente passa por mim. Existem várias pessoas.

O senhor teve uma conversa com o apresentador Luciano Huck sobre as eleições. Trabalha na construção de uma chapa com ele?

Existe muita especulação sobre 2022. O que posso dizer é que há uma movimentação de pessoas com perfil de centro que têm conversado. Várias pessoas podem ser bons candidatos de centro, como o próprio Luciano Huck, o (governador) João Doria, o ex-ministro Mandetta, o João Amoêdo ou mesmo o vice Hamilton Mourão. São conversas, mas isso não quer dizer que exista algo preestabelecido.

Mas saiu algum compromisso dessa conversa com Huck?

Foi só uma conversa. Eu já conhecia o Luciano faz um tempo. Nós nos encontramos e conversamos apenas sobre o Brasil, o cenário, mas não existe nada pré-determinado.

O senhor tem falado com outros nomes?

Todo mundo está conversando, mas isso não significa que vou ser candidato. Minha preocupação é com o momento atual. Essas questões eleitorais sobre o que irei fazer no futuro são meramente especulativas. O que penso é que essa polarização de hoje obscurece os debates reais que temos que realizar. É meu desejo, como o de muita gente, que, em 2022, tenhamos alternativas não polarizadas. Qualquer candidato que apele para o discurso de ódio não é um bom candidato.

O senhor e o ex-ministro Mandetta mantêm conversas desde que deixaram o governo. Essa é mais uma alternativa para 2022?

Mandetta teve um papel relevante no início da pandemia, porque precisava manter as convicções dele baseadas em evidências, em contrariedade ao próprio presidente. Ele se destacou bastante.

O senhor diz que está preocupado com 2020, e não com 2022. O que isso significa?

Eu saí da vida pública, da magistratura, e depois do cargo de ministro. Hoje, meu plano é continuar sendo uma voz ativa em prol dos princípios e bandeiras nas quais acredito. Temos um Brasil cada vez mais isolado na perspectiva internacional. Isso tem consequências para o desenvolvimento. Temos questões na área ambiental, urgências na economia. Há muita coisa para acontecer até 2022 e o foco não pode ser esse (a eleição).

O que significa a vitória de Joe Biden nos EUA?

O resultado nos Estados Unidos mostra que o país continua uma democracia forte. Um dos significados da democracia é permitir essa alternância de poder. O presidente eleito acenou para a união de todos americanos, esse é o espírito que deve prevalecer. Biden tem o histórico de ser um político moderado. As relações entre Brasil e Estados Unidos, que são boas, devem ser trabalhadas para ficarem melhores ainda.

O presidente Bolsonaro já disse que não tem corrupção no seu governo. Dias depois, um aliado do governo apareceu com dinheiro na cueca. O que pensa disso?

Não temos ouvido notícias a respeito de escândalos de corrupção como tínhamos no passado, mas têm surgido casos pontuais que precisariam ter uma resposta dos órgão de controle. Temos tido retrocessos sim, infelizmente. E isso acontece desde o ano passado, não só por decisões de outros poderes, mas também por uma certa inação do Poder Executivo.

Quais retrocessos?

Vejo a omissão do governo em apoiar a retomada do restabelecimento da prisão após a condenação na segunda instância. Isso é injustificável e contraria, inclusive, as promessas de campanha feitas em 2018. Da mesma forma, havia uma expectativa de que poderíamos caminhar para a redução do foro privilegiado. O governo tem se mantido inerte em relação a esses temas. Então, a afirmação de que não existe corrupção, em primeiro lugar, não é absolutamente consistente com os fatos. Segundo, se não trabalharmos em um sistema de controle e prevenção, a corrupção vai voltar e, talvez, mais intensa do que foi no passado.

O senhor vê uma mudança de postura do governo sobre esse tema?

O governo tinha uma posição bastante rígida no início, em relação ao não loteamento político-partidário dos cargos públicos, por exemplo. Parece que essa política mudou sensivelmente no decorrer deste ano. Isso também acaba sendo uma possível fonte de oportunidades de práticas de corrupção. Se diminui o risco para o criminoso e aumenta a oportunidade, a prática é previsível.

O envolvimento do senador Flávio Bolsonaro em investigação criminal tem contribuído para esses retrocessos?

O governo federal tem falhado, principalmente por sua postura omissa em relação ao restabelecimento da prisão em segunda instância, por PEC ou por projeto de lei. Também senti isso na falta de apoio a várias medidas do projeto de lei anticrime. Os motivos dessa omissão devem ser indagados ao próprio governo. Não tenho condições de responder por ele.

Algumas leis de combate à corrupção são alvos de propostas que enfraquecem, por exemplo, ações contra lavagem de dinheiro? Como vê esse movimento?

Ainda não existe um texto final desse projeto de lei que está no Congresso, mas a minha impressão é que estamos brincando com fogo. Ao mudarmos a nossa legislação sem tomar cuidado com nossos parâmetros internacionais de combate à corrupção e lavagem, corremos o risco de sermos expulsos do Gafi/FATF (Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo, entidade intergovernamental que trata do tema). Além do risco de nos tornarmos paraíso para lavagem de dinheiro de crimes como tráfico de drogas, ainda podemos prejudicar nossa economia. É preciso ficar muito atento para verificar se esse projeto, no final, não vai afetar nossa posição na comunidade internacional.

Que tipo de medida, na prática, pode ser prejudicial?

Se a nova lei proibir, por exemplo, o compartilhamento de relatórios de inteligência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) com órgãos de investigação, estaremos na direção errada. Corremos um sério risco de o Brasil se tornar um párea internacional no âmbito da lavagem de dinheiro, embora tenha gente que não veja problema nisso. Não faço juízo definitivo sobre esse projeto e o que trata da lei geral de proteção de dados, porque ambos estão em andamento, mas temos que olhar para frente, não para trás.

O governo alimenta o plano internacional de entrar na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Essas eventuais mudanças ameaçam esse projeto?

Elas não só comprometem nosso ingresso na OCDE, como podem afetar nossa reputação, com risco de sermos expulsos de certos órgãos internacionais. Fazer parte desses órgãos não é só uma questão de prestígio internacional, mas algo que tem reflexos reais na economia. Temos um exemplo que aconteceu em julho do ano passado. Na época, foi concedida uma liminar pelo ministro Dias Toffoli, que suspendeu um processo de investigação por lavagem de dinheiro (Moro se refere ao caso sobre o pagamento de rachadinhas que envolve Flávio Bolsonaro, quando foi deputado estadual no Rio). Como esse processo tinha uma repercussão geral, afetou todas as investigações em curso no país baseadas em dados sigilosos compartilhados pela Coaf sem prévia autorização judicial.

E qual foi a consequência dessa liminar?

Aquilo gerou um risco de suspensão do Brasil no Gafi/FATF. Foi enviada uma comissão antissuborno da OCDE para o Brasil, com observadores. Visitaram várias autoridades, houve envio de cartas do presidente do Gafi, externando essa preocupação. Posteriormente, o próprio STF, inclusive o ministro Toffoli, acabou revendo a liminar. Se não tivesse havido essa revisão, seríamos expulsos do Gafi, e isso teria consequências terríveis para a economia. Tanto é assim que quem capitaneou o convencimento com os ministros do Supremo para evitar essa expulsão foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Eu vi as propostas de mudança na lei de lavagem. É cedo para avaliações, mas uma crítica que já pode ser feita à Comissão que debate o assunto é a pouca participação de órgãos do Poder Executivo.

Quais órgãos?

Não constam representantes da PF, do Conselho de Atividades Financeiras, da CGU. Há uma predominância de advogados. Isso não tem nada de negativo, em princípio, mas seria interessante que houvesse representantes desses órgãos para ter uma visão especifica, já que eles estão encarregados, muitas vezes, do combate à lavagem.

O senhor mencionou que o governo também enfrenta questões na área ambiental.

Nessa área, o governo peca, essencialmente, pelo discurso. Tem feito operações importantes, como a Verde Brasil, capitaneada pelo vice Hamilton Mourão. Esses esforços, porém, ficam prejudicados, quando há um discurso equivocado da parte da nossa liderança maior, porque isso acaba comprometendo o próprio efeito preventivo dessas ações contra o desmatamento. O discurso dessa liderança nega qualquer problema e invoca, a meu ver, com cálculo eleitoral, a questão da Amazônia com perspectiva ufanista, de que é nossa e que, por isso, podemos fazer o que quisermos.

O senhor se refere ao presidente Jair Bolsonaro.

É… o presidente da República tem um grande poder. Ele ensina as pessoas, ao dar exemplo. As palavras são muito fortes. Quando uma ação é prejudicada pelo discurso equivocado da liderança maior, seu efeito diminui, até porque a comunidade internacional ouve muito a palavra dessa liderança.

Sobre o STF, o senhor avalia que o perfil garantista de Kassio Marques foi essencial para que ele fosse indicado pelo presidente?

Não conheço pessoalmente o ministro Kassio e espero que ele tenha sorte e sucesso na carreira. Ele se autoafirmou como garantista. Acho que esses rótulos não se justificam, porque todo magistrado tem preocupação com os direitos do investigado. Isso não significa defender um sistema judicial que não seja efetivo contra os culpados. Estamos vendo vários episódios nos últimos meses em que lamentamos não ter um sistema mais efetivo. Tivemos recentemente a soltura de um grande traficante (André do Rap, líder do PCC). Vamos ver a atuação dele no STF e não julgar o ministro antes mesmo dele exercer o cargo.

Bolsonaro mudou o perfil da escolha que previa para o Supremo?

De certa forma, o presidente, quando foi eleito, tinha o discurso um pouco diferente em relação ao perfil dos magistrados que iria indicar ao Supremo. Isso não é uma crítica ao indicado, mas uma ponderação em relação à posição do presidente. No cenário atual, parece difícil que ele indique pessoas com um perfil mais linha dura no trato da questão criminal, haja visto o discurso que ele vem adotando em relação a essa temática. Assim como o governo deixou de lado a execução da prisão após a segunda instancia, parece que hoje essa não é mais uma preocupação.

Acredita que o STF vai se posicionar pela depoimento presencial do presidente Bolsonaro e dar o mesmo tratamento que o senhor teve no inquérito que os envolve? Que desfecho espera dessa investigação?

Esse inquérito foi aberto e isso até me surpreende. A minha intenção não era essa, mas sim esclarecer por que eu estava saindo do governo, além de buscar alguma proteção para a PF. Houve uma iniciativa do procurador-geral (Augusto Aras) de instaurar o inquérito, inclusive, me colocando como um dos investigados. Eu não tenho interesse pessoal nesse inquérito. O que o STF decidir sobre o depoimento do presidente e o que for concluído, não dou muita importância. Para mim, é irrelevante.

O senhor se posiciona com frequência nas redes sociais sobre diversos temas. Como lida com o ambiente de ódio?

Tenho tido muito cuidado nas minhas postagens, para evitar qualquer tipo de fomento a esse discurso de ódio. Até me penitencio por uma ou outra postagem em que posso ter sido mais veemente, mas hoje tenho esse compromisso comigo de evitar qualquer espécie de agressão em rede social. Não podemos combater fogo com fogo.

O que achou da atuação da Justiça no caso do estupro de Mariana Ferrer?

Vi o vídeo que circulou na internet. Fica claro que o advogado errou ao tratar, na audiência, a pessoa que denunciou um estupro com aquela agressividade. Sinceramente, penso que o advogado deveria, pelo menos, pedir desculpas públicas e, quem sabe, até mesmo indenizar a ofendida. Digo isso independentemente da questão do estupro, já que cabe aos tribunais julgar a acusação. Pelo menos o vídeo teve o efeito positivo de chamar a atenção de todos, para que ajam com maior cuidado e respeito às vítimas em processos por crimes sexuais. Não raramente, a prática é de tentar desconstruir a vítima, o que é reprovável e significa submetê-la a novo padecimento moral.

A sua quarentena de ministro acabou em outubro. Quais os planos agora?

Acredito muito no potencial do setor privado para implementar políticas anticorrupção. Minha pretensão, no momento, além de participar do debate público, é fomentar, no setor privado, esse processo para que as próprias empresas tomem iniciativas para adotarem políticas de conformidade com a lei. Vou fazer o que eu acredito no âmbito do setor privado, sem prejudicar outras atuações.

Como enxerga o presidente Bolsonaro hoje?

Não tenho nenhum sentimento de animosidade. O que eu vejo, a distância, e ainda quando estava no governo, é que falta um ímpeto mais reformista.

O que o senhor quer dizer com isso?

Tivemos uma reforma importante, que foi a da previdência, no ano passado, mas existem várias reformas na agenda, mais ambiciosas ou microrreformas, que podem fazer diferença. A própria agenda anticorrupção aparenta ter sido abandonada. Não podemos esperar um eventual segundo mandato, um próximo presidente. Temos que trabalhar nas reformas desde já.

Neste mês, faz dois anos que o senhor aceitou integrar o governo Bolsonaro. Está arrependido?

Eu aceitei ir para o governo diante de circunstâncias muito específicas. Tinha a ambição, não no sentido pessoal, de que poderia implementar políticas públicas consistentes com o que acredito. Em certa parte, isso foi bem-sucedido, especialmente no combate ao crime organizado. Agora, em relação à agenda anticorrupção, não pude avançar, em parte, pela falta de um apoio maior do Planalto. Senti que era o momento de sair. Agora, olhando para 2018, vejo que a minha decisão de entrar no governo foi racional e apoiada, até por pesquisas da época, por grande parte da população. Não me arrependo por ter tentado fazer o que acredito.


Folha de S. Paulo: Juventude vive crise voraz com inserção precária no mercado de trabalho, diz Ricardo Henriques

Na avaliação de economista, o Ministério da Educação se eximiu de coordenar a política educacional ao longo do pandêmico 2020

Érica Fraga, da Folha de S. Paulo

O Ministério da Educação se eximiu de seu papel de coordenar iniciativas que pudessem mitigar os efeitos negativos da crise atual, como um possível aumento na evasão escolar de jovens em consequência do isolamento social.

Essa é a opinião do economista Ricardo Henriques, 60, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, instituição que apoia governos estaduais e municipais em projetos principalmente para melhorar a gestão educacional.

“A economia das instituições nos ensinou há décadas que, nas crises, você precisa de mais coordenação. No caso da educação no Brasil, ocorreu o contrário disso. O MEC saiu de cena”, disse Henriques à Folha.

Uma retomada desse papel de coordenação das políticas educacionais seria crucial para melhorar as perspectivas futuras dos jovens brasileiros que estão prestes a deixar a escola, segundo o economista, que coordenou a implementação do Bolsa Família, de 2003 a 2004, quando foi secretário-executivo do Ministério de Assistência Social.

Ele defende uma agenda que combine o combate à evasão com uma oferta relâmpago de cursos profissionalizantes no curto prazo. Sem isso, há o risco de aumento do desemprego estrutural dos jovens, segundo Henriques, que, no entanto, não é otimista em relação a ações do governo federal nessa direção.

Por que os jovens sofrem mais do que outras faixas etárias nas crises?
A primeira razão é que, em períodos de crise, o mercado de trabalho tende a buscar pessoas com mais experiência. A segunda que, na crise, você diminui o investimento em treinamento, que é muito importante para uma maior mobilidade futura dos jovens dentro das empresas.

O não engajamento no mercado de trabalho assim que você se torna disponível, seja saindo do ensino médio seja no pós-universidade, tende em geral a criar mais vínculos informais. Isso te distancia do mercado mais estruturado e dificulta o desenvolvimento tanto de competências específicas a certas ocupações quanto de práticas gerais associadas ao mundo do trabalho. Isso não é uma exclusividade do Brasil, acontece no mundo todo.

A juventude que vive crises muito vorazes tem inserções mais precárias do que as juventudes anteriores e posteriores.

Há características estruturais do Brasil que aumentem os impactos nocivos dos períodos de crise para os jovens? 
O fato de que o Brasil não criou, sobretudo nos últimos 30 anos, uma formação técnica em larga escala para a juventude diminui ainda mais as oportunidades para os jovens. Essa é uma diferença importante nossa em relação a alguns outros países. Desenvolvemos um traço estrutural binário de ou concluir o ensino médio tradicional ou ir para a universidade.

A reforma do ensino médio busca endereçar isso ao criar a opção de itinerários, que incluem a possibilidade de uma formação técnica. Mas não deu tempo ainda dessas mudanças começarem a sair do papel. Se elas começarem, como o esperado, no próximo ano e mantiverem um ritmo razoável, teremos uma quantidade maior de jovens entrando na rota do ensino profissionalizante por volta de 2023.

Que política pública existente pode ajudar a mitigar os efeitos desses anos de crise sobre a geração jovem atual? 
Há muito pouco. A política de cotas e de financiamento privado aumentou o contingente de 18 a 24 anos que vai para a universidade, mas o patamar é ainda muito inferior ao que gostaríamos. E, para alguns, que não vão para o ensino superior, há a possibilidade de uma formação técnica, pós-ensino médio, sobretudo no sistema S, mas concentrada no Senai.

A situação é ainda mais grave quando percebemos que a crise atual também implicará uma reconfiguração do mundo do trabalho, já que ela impulsionou ainda mais as empresas mais intensivas em tecnologia, que demandarão mão de obra técnica em uma escala muito maior do que a gente tem.

Ou seja, se não investirmos em uma formação técnica e profissionalizante intensa, o caráter estrutural do desemprego desses jovens vai aumentar.

O que pode ser feito, principalmente em relação aos jovens mais vulneráveis, no curtíssimo prazo? 
Neste ano e no próximo, é fundamental uma política de busca ativa e intensa dos jovens que estão na iminência de abandonar a escola. Seria importante ter apoio do governo federal para isso, mas os governos estaduais precisam de uma política muito intensa de manutenção e regresso para a escola, porque o tamanho do buraco pode ser maior do que estamos prevendo.

Dado o tamanho da crise, é importante também começarmos a pensar em programas específicos de renda e de formação pós-ensino médio. Poderia ocorrer uma parceria mais estruturada do governo federal com o sistema S e os governos estaduais para oferecer aos jovens mais vulneráveis bolsas de estudo para uma formação pós-ensino médio. Precisaríamos de uma blitz para esse período de 2021 a 2023. Acho que isso deveria ser feito, mas não sou muito otimista de que esse governo venha a fazer isso.

Por que o sr. não é otimista? 
Não parece ter muitos vetores nessa direção. Mas a ideia de alguns estados de ofertar o quarto ano do ensino médio para os jovens que podem continuar estudando é uma possibilidade interessante. Para quem não tiver essa chance, é melhor se formar em 2020 do que abandonar os estudos. Mas aqueles que puderem ficar mais um ano estudando terão perspectivas melhores.

Como o Instituto Unibanco adaptou seus programas, como o Jovem de Futuro, neste ano? 
Como a gente tem muita metodologia de gestão da escola, ainda em março fizemos uma adaptação para práticas mais ágeis, instituindo gabinetes de crise com as secretarias das quais somos parceiros e criando várias adaptações, por um lado, para o ensino remoto e, por outro, para essa retomada do ensino híbrido.

Como o sr. avalia a resposta das diferentes redes de ensino do país à pandemia? 
Houve heterogeneidade, mas acho que o copo cheio dessa história é que houve uma grande adaptação tanto de estados como de municípios, sobretudo os grandes, correlata à ausência do Ministério da Educação. O ministério se eximiu de ser um ator que tivesse relevância para os contornos da política educacional ao longo de 2020.

Mas os estados e os municípios assumiram a responsabilidade sobre isso e criaram desenhos adequados cada um à sua realidade, garantindo desde a segurança alimentar —que é um baita desafio fora do contexto das aulas presenciais— até a provisão das mais variadas formas de aulas.

E isso aconteceu sem coordenação alguma do Ministério da Educação, que não instituiu um gabinete de crise, não aproveitou para coletar informações dos estados e municípios e, com isso, gerar conhecimento novo.

Esse empoderamento dos estados e municípios aumenta sua capacidade de instituir a agenda de reformas prevista para os próximos anos? 
Acho que sim, tomara que sim. Mas temos que tomar cuidado porque não podemos prescindir da ideia de um sistema nacional de educação. Até porque redes estaduais mais empoderadas solicitariam incidências mais finas, sutis e sofisticadas do Ministério da Educação.

É um regime federativo. É cada vez mais necessário um sistema integrado e articulado.

Que risco corremos se essa articulação não ocorrer? 
Menor geração de conhecimento, menor troca de boas práticas, criação de obstáculos desnecessários. Você vai ficar ao bel prazer do secretário do Pará querer conversar com o secretário do Paraná para saber o que aconteceu. Já um sistema que funcione bem gera um repositório de práticas, gera análise sobre isso, produz protocolos, dissemina conhecimento.

A economia das instituições nos ensinou há décadas que, nas crises, você precisa de mais coordenação. No caso da educação no Brasil, ocorreu o contrário disso. O MEC saiu de cena.

Há motivo para otimismo em relação a uma mudança desse cenário? 
Não tenho bola de cristal. Mas não há nenhum sinal de o MEC caminhar nessa direção. O cenário não é otimista. Eu espero que caia a ficha e que o ministério se recomponha rapidamente. Mas, até agora, passados oito meses de crise, o MEC segue distante de ocupar esse papel tão necessário.