entrevista

O Estado de S. Paulo: Réu na linha sucessória não é 'o melhor para o País', afirma Fux

Presidente do Supremo Tribunal Federal fala sobre situação de Arthur Lira e diz que impeachment de Bolsonaro seria um 'desastre' para o Brasil

Rafael Moraes Moura e Andreza Matais, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, avalia que não é o "melhor quadro para o Brasil" ter um réu na linha sucessória da Presidência da República. Em entrevista ao Estadão, Fux foi questionado sobre a situação do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que responde a denúncias na Corte por corrupção passiva e organização criminosa – ainda em análise de recursos.

"Eu acho que realmente uma pessoa denunciada assumir a Presidência da República, seja ela qual for, é algo que até no plano internacional não é o melhor quadro para o Brasil", afirmou o ministro.

Segundo na linha sucessória, Lira pode ser impedido de substituir o presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão. Um precedente do tribunal já impediu o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), de ocupar interinamente a cadeira no Planalto por ser réu na época.

Em sua primeira entrevista após a abertura do Ano Judiciário, Fux disse que o impeachment de Bolsonaro seria "um desastre" para o País.

O deputado Arthur Lira pode, eventualmente, substituir Bolsonaro e Mourão, mesmo com denúncias já recebidas pelo STF?

Nessas questões limítrofes, você tem duas posições. Uma que entende que, se já teve a denúncia recebida, e a nossa Constituição elege a moralidade no âmbito da política e das eleições como um valor principal, ele não possa assumir. E tem outro aspecto importante, a ação penal não teve ainda a eficácia de torná-lo réu porque há (em análise) embargos de declaração (um tipo de recurso) que impedem que a decisão (de tornar Lira réu) seja considerada definitiva.

E qual a opinião do senhor?

Eu falo em geral, abstrato. Pelo princípio da moralidade, eu entendo que os partícipes da vida pública brasileira devem ter ficha limpa. Sou muito exigente com relação aos requisitos que um homem público deve cumprir para a assunção de cargos de relevância, como a substituição do presidente. Eu acho que, realmente, uma pessoa denunciada assumir a Presidência da República, seja ela qual for, é algo que até no plano internacional não é o melhor quadro para o Brasil.

O STF tem tido um papel fundamental no sistema de freios e contrapesos. Com dois aliados de Bolsonaro no comando do Congresso, o protagonismo da Corte vai ser ainda maior?

É preciso que o Parlamento se autovalorize e saiba exercer as suas competências, em vez de empurrar para o Supremo uma função que não é dele. O Parlamento tem de procurar resolver os seus problemas.

Mas um Congresso alinhado a Bolsonaro não pode obrigar o Supremo a exercer ainda mais esse papel de contraponto?

Bem ou mal, o presidente foi eleito com 60 milhões de votos. Por que não se permitiu a reeleição (na cúpula do Congresso) agora, muito embora tanto Davi Alcolumbre quanto Rodrigo Maia tenham sido bons na função que exerceram? Porque, se o STF abrir a brecha da violação da Constituição, realmente nós perdemos todos os critérios. Aquela ação não deveria nem ter chegado ao Supremo.

A atuação do governo na pandemia reforçou o discurso a favor do impeachment de Bolsonaro. Qual a opinião do senhor?

O impeachment é um processo político que o Supremo não pode nem se intrometer no mérito. Mas, em uma pós-pandemia, em que o País precisa se reerguer economicamente, atrair investidores e consolidar a nossa democracia, eu acho que seria um desastre para o País. O Brasil não aguenta três impeachments. O Brasil tem de ouvir o povo e o povo é ouvido através de seus representantes que estão no Parlamento. Acho que o impeachment seria desastroso.

O senhor vê mobilização popular para o impeachment?

Pela leitura acadêmica e histórica que a gente faz, você verifica que o impeachment é uma situação política que também depende muito da mobilização social. 

Bolsonaro já disse que, sem voto impresso, “nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, em referência à invasão do Capitólio. No Brasil, as instituições serão fortes para evitar qualquer tipo de golpe?

Não tenho a menor dúvida. Eu não acredito que ocorra 10% do que aconteceu nos Estados Unidos. Uma minoria inexpressiva não vai ter apoio. Absolutamente, não. Em conversas espontâneas, os generais têm uma posição muito firme de que a democracia brasileira não pode sofrer nenhum tipo de moléstia. Todos eles. Eu acho o voto impresso uma coisa muito antiquada, completamente desnecessária, porque as urnas são superseguras. E o voto impresso gera uma despesa bilionária para o Brasil. A palavra do Supremo está dada (contra o voto impresso). Uma despesa bilionária, depois da decisão do Supremo, é inaceitável. Não tem sentido.

Bolsonaro repete que não pode fazer nada para enfrentar a pandemia porque foi impedido pelo STF. Não é um equívoco?

O que o STF disse foi o seguinte: todas as Unidades da Federação têm responsabilidade em relação à pandemia. É uma gestão compartilhada, mas tem um aspecto maior, porque a Constituição atribui à União uma competência de coordenação nos casos de calamidade pública. O STF nunca eximiu o governo federal, absolutamente. Ninguém exonerou ninguém de responsabilidade.

O STF virou uma espécie de bode expiatório dos negacionistas, que tentam culpar a Corte pelos efeitos da pandemia?

Houve má interpretação da decisão judicial por parte do estafe do governo. O Supremo tem função precípua de esclarecer aquilo que efetivamente julgou. A decisão ficou tão clara que não houve embargos de declaração do aparato jurídico do governo, que é muito bom. Foi uma decisão claríssima.

O senhor enxerga má-fé ou uma tentativa de usar isso politicamente?

Enxergo como uma percepção alternativa de uma ciência que foi preconizada até alhures pelo (então) presidente dos Estados Unidos (Donald Trump), alguns líderes mundiais também. Em um primeiro momento, eram contra o lockdown, contra o isolamento, e pagaram preço caro por isso. 

É preciso uma apuração rápida no inquérito que investiga se houve omissão do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no colapso da rede pública de Manaus?

É preciso deixar bem claro que o Supremo absolve inocentes e condena culpados. Não se tem ainda elemento para se formar uma convicção. O que houve, no meu modo de ver, foi o fator-surpresa, porque alguns países também foram surpreendidos com falta de oxigênio.

Esse inquérito deveria ser prioridade?

A prioridade no momento é decidirmos tudo que possa influir na questão da saúde. Saúde primeiro, e depois a verificação de fatos ilícitos que ocorreram de maneira despudorada. Na verdade, era inimaginável, num momento de pandemia, que os homens públicos ainda tivessem a ousadia de cometer ilícitos diante dessa dor e desse flagelo da população.

Um dos pontos destacados para investigar Pazuello é a distribuição de hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada. Isso não pode ser crime?

A grande verdade é que autoridades médicas do País, até médicos famosos, disseram que passaram pela doença e tomaram hidroxicloroquina. Eu fiquei doente e não tomei. Tive uma covid caprichada. Levei três, quatro meses para voltar a me exercitar, e ainda não estou no auge, não.

O senhor defende a volta do auxílio emergencial?

Tem de haver uma Justiça caridosa, e uma caridade justa. Nós hoje estamos pagando o preço de termos deixado 50 milhões de brasileiros à deriva. Isso era para ter sido visto há muito tempo. Não dá para ser feliz sem pensar no outro. Foi o consumo dessa gente que recebeu o auxílio emergencial que movimentou a economia. Se eu pudesse imaginar a possibilidade de o Brasil continuar com esse auxílio, eu seria superfavorável. É temerário nesse momento deixar essas pessoas à deriva. Nós já as deixamos há muito tempo.

Os escândalos de corrupção não cessam no País. Não é frustrante?

Quando terminou o julgamento do mensalão, eu dizia ‘o Brasil nunca mais vai voltar a ser o que era’. Depois da Lava Jato, eu falei, ‘bom, agora realmente o Brasil nunca mais vai voltar a ser o que era’. Agora, esse flagelo da corrupção, que desmoraliza o Brasil, parece que está introjetado na cultura de determinadas pessoas, porque a falta de amor à coisa pública é aberrante. É inaceitável que uma pessoa queira maximizar suas rendas através do desvio de bens públicos.

A Lava Jato nunca foi tão atacada quanto agora. Teme pelos resultados obtidos na investigação?

A Lava Jato trouxe transformações sem precedentes para o Brasil, que passou a ser respeitado internacionalmente pela atuação contra desvio de dinheiro público. É verdade que, ao longo dos últimos anos, esse movimento teve perdas. Mas o País já mudou. E, na minha avaliação, o combate à corrupção não vai retroceder.

O Judiciário acaba sendo um grupo privilegiado perante o País. O senhor defende uma reforma administrativa que também envolva a magistratura?

Tem de haver uma reforma com relação ao tamanho do Estado. O Estado é muito grande e as despesas públicas são muito grandes. Eu acho que a reforma administrativa tem de obedecer ao princípio da igualdade, tem de obedecer ao princípio da isonomia. O que é ruim para o Brasil tem de afastar para todo mundo também.

O que o senhor acha da ideia do presidente Jair Bolsonaro de escolher um nome “terrivelmente evangélico” para o STF?

Isso é uma prerrogativa do presidente da República. Agora, o Supremo é um tribunal pluri-religioso, tem gente de todas as religiões aqui. O que faria um juiz, terrivelmente evangélico, num colegiado de dez não evangélicos? É preciso ter em mente que, depois da assunção ao cargo, a independência jurídica do membro do Supremo é absolutamente olímpica.


Folha de S. Paulo: Acordo com centrão não é sólido, diz Santos Cruz

Para Santos Cruz, falta um plano de ação que dê sentido à aliança com o bloco no Congresso

Ricardo Balthazar, Folha de S. Paulo

Ex-ministro de Jair Bolsonaro, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz acha que a aliança construída pelo Palácio do Planalto com os partidos políticos que dão as cartas no Congresso terá vida breve se não houver mudanças no governo e no comportamento do presidente.

Para Santos Cruz, que chefiou a Secretaria de Governo por seis meses e foi demitido após sofrer críticas do escritor Olavo de Carvalho e dos filhos de Bolsonaro, falta um plano de ação que dê substância aos acertos feitos com os políticos do centrão que passaram a comandar a Câmara dos Deputados e o Senado.

"Se a motivação principal [do acordo com o centrão] é a reeleição do presidente, o pessoal vai ter que pensar mais no Brasil", diz o ex-ministro. "O governo precisa mostrar uma capacidade de organização e planejamento que até hoje não demonstrou, e oferecer tranquilidade ao país."

Santos Cruz tornou-se um crítico ácido do governo Bolsonaro após sua demissão, mas acha que não existem condições para viabilizar um processo de impeachment e afastá-lo do cargo. "O melhor para o país é o presidente eleito governar", afirma o general. "Mas ele também tem que entender isso."

Desde o início da pandemia do coronavírus, o ex-ministro tem passado a maior parte do tempo recolhido numa chácara a 40 quilômetros de Brasília, indo até a capital apenas para compromissos eventuais. Fez melhorias na estrada que leva à propriedade, na cerca e no galpão. "Trabalho não falta", diz.

Como o sr. viu a aliança do presidente Bolsonaro com o centrão? 

Na época em que buscava cativar os eleitores, ele falava barbaridades do centrão. Tratava o grupo como uma aglomeração de pessoas que não tinham compromisso nenhum e só se preocupavam em preservar a própria impunidade. Agora, ele faz uma virada como essa aí. Há uma incoerência, e fica difícil estabelecer uma relação de confiança quando você faz esse tipo de coisa.

A verdade é que o governo não se preparou para fazer alianças. Negociação política não é crime. Mas você tem que negociar políticas públicas, não benefícios particulares. Na realidade, o que houve foi uma compra. Vão gastar bilhões de reais com as emendas dos parlamentares. Então não me parece uma coisa consistente, porque a influência do dinheiro é muito pesada. Uma negociação política desse tipo, para gerar confiança, precisa se sustentar em outros princípios, para produzir algo mais sólido.

O que acha que Bolsonaro fará com a base de apoio formada no Congresso? 

Um alinhamento maior entre o Executivo e o Legislativo obviamente traz vantagens e pode viabilizar algumas coisas, mas vamos ter que esperar para ver. Falta pouco mais de um ano e dez meses para o governo acabar. Se a motivação principal é a reeleição do presidente, o pessoal vai ter que pensar mais no Brasil. Precisa mostrar uma capacidade de organização e planejamento que até hoje não demonstrou, e oferecer tranquilidade ao país.

A pandemia ainda não acabou. Há muita coisa a fazer, mas a gente fica até hoje escutando mensagens contra a vacinação, como se tudo se transformasse numa disputa política. Essas coisas têm que parar. [O presidente] tem que saber falar com a população, e não só com os extremistas à sua volta. Ele não soube conduzir o processo. Agora tem que ajustar tudo isso se quiser a reeleição.

O acordo com o centrão garante proteção contra o avanço dos pedidos de impeachment que se acumulam contra Bolsonaro? 

Se o objetivo é esse, pode ser que tenha conseguido alguma proteção, temporariamente. Esse tipo de aliança, quando depende de um fluxo de recursos desse porte, como se falou nesses dias, não sei até onde é confiável. Infelizmente, tem gente que daqui a pouco vai querer mais e mais e mais. O modelo não é baseado em fidelidade e harmonia de objetivos, mas no dinheiro. Então, não sei até onde vai essa garantia.

Existem condições para abertura de um processo de impeachment agora? Precisa ter base jurídica, embasamento contra a autoridade. Há vários pedidos na Câmara dos Deputados. Não li, mas imagino que sejam sustentados por considerações nesse sentido. Você tem uma perda de apoio popular do presidente, mas não tão significativa que leve a essa situação. As condições não existem neste momento.

O afastamento do presidente seria desejável? 

Nunca é desejável. Até pode ser, se você tiver uma pessoa desequilibrada no cargo. Aí tem que impedir que prossiga, por uma questão de saúde mental. Mas no geral não. Temos eleições a cada quatro anos, e dá para corrigir qualquer coisa no voto.

O melhor para o país é o presidente eleito governar. Mas ele também tem que entender isso. Se está fazendo alguma coisa errada, dá uma corrigida. Se está falando demais, fala menos. Se está se comunicando de forma belicosa, baixa a bola.

Agora, se [o presidente] faltar, não tem segredo. A linha sucessória está prevista em lei, tem gente responsável por tocar para frente. Não vejo problema nenhum se ele ficar, ou se ele sair. O país não vai parar por causa disso. Passa por aquele trauma e vai em frente. Já tivemos duas vezes essa situação, e o Brasil andou.

O general Luiz Eduardo Ramos, que assumiu a Secretaria de Governo após sua saída, teve papel destacado nas articulações com o centrão. Que consequências terá para o país a volta dos militares à política? 

A população vê os ministros que são generais como generais, não como ministros. Isso não é bom, porque compromete a imagem institucional das Forças Armadas. No Exército, a gente sabe que não tem ninguém envolvido com a negociação com o centrão. Mas, para a população, parece que tem. A quantidade de militares no governo é muito grande e alimenta essa percepção.

O Ramos fazer essa articulação está na função dele. Eu não gosto desse tipo de articulação. Gosto de articulação política, mas não dessa qualidade, baseada em recursos financeiros, e principalmente com um grupo que o próprio governo criminalizava. Seria desconfortável para mim.

Quando a imagem da instituição é comprometida, ela se torna responsável pelos erros e pelos acertos, e muito mais pelos erros. As Forças Armadas são instituições de Estado. Podem dar suporte a políticas públicas, levar oxigênio para Manaus, completar a estrada onde a ponte caiu, mas não participam da rotina política. Ainda mais essa, baseada em bate-boca, extremismo, discursos na churrascaria.

Acha que o prestígio das Forças Armadas junto à população será abalado? 

Não. A queda de popularidade do presidente resulta do seu comportamento político e do mau desempenho. Pode haver algum reflexo, mas a instituição militar é tão sólida que acho que não foi arranhada.

Nem pelo mau desempenho do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde? 

Ele deve ser avaliado como ministro, não como general. Ele não exerce função militar. Pegou o bonde andando, assumindo uma estrutura que já vinha funcionando mal. A administração da pandemia é falha desde o início, porque o governo não assumiu a liderança do processo.

De vez em quando o pessoal fala que está cumprindo uma missão. Missão coisa nenhuma. Você só está cumprindo uma missão quando as Forças Armadas te dão uma tarefa. Quando é como foi no meu caso, ou no dele, ou qualquer outro que foi convidado para participar do governo e aceitou, o problema é seu. Não tem nada a ver com a instituição.

Quando Pazuello assumiu o cargo e foi criticado por sua inexperiência na área, seus defensores justificaram a escolha apontando a formação militar e sua especialidade, logística. 

É verdade, mas a logística militar é completamente diferente da logística civil. E ali o problema não era esse. A questão é de política pública de saúde. Ele podia ter segurado a parte logística se continuasse como secretário executivo do ministério, mas ao se tornar ministro passou a ser o responsável pela política de saúde. Aí é que a coisa dá zebra.

O que justificou a reaproximação da cúpula das Forças Armadas com Bolsonaro durante a campanha eleitoral, após décadas de desconfiança por causa do seu histórico de indisciplina? 

O presidente Bolsonaro percebeu ali que estávamos no fim de um ciclo iniciado pelos governos do PT e investiu nisso. A aproximação não foi só com as Forças Armadas. Foi com os eleitores, a sociedade. Ele falou tudo que a população queria ouvir, trouxe esperança, criou boa expectativa. Mas seu comportamento no governo tem sido lastimável. Ele não tinha ideia de como fazer, e por isso a prática é diferente do discurso.

Foi mesmo uma surpresa? Na campanha eleitoral, ele nunca escondeu o que era. 

Sem dúvida. Mas uma coisa é levar as coisas na brincadeira e fazer grosserias para capturar a atenção do eleitor numa campanha. Quando você ganha e assume a função, você tem responsabilidade num nível muito maior e tem que dar o exemplo.

Você pode emocionar uma parte do eleitorado quando diz que bandido bom é bandido morto. Quando assume, tem que ter um plano de segurança pública. Tem que seguir a lei, verificar o orçamento, aperfeiçoar as instituições, mesmo que sua política seja para valorizar o policial e aumentar sua proteção.

Por que, apesar de tudo isso, a oposição continua tão desarticulada? 

O PT se manteve na liderança por muito tempo e só tinha um líder, o ex-presidente Lula. Na hora que ele caiu, ficou sem liderança. Quem ainda fala no PT e em Lula todo dia são os bolsonaristas. O PT tem até que agradecer a propaganda. Mas o partido perdeu a eleição e não consegue mais se organizar como centro da oposição. O que não é bom, porque precisamos de uma oposição ativa, que faça o contraponto [ao governo]. Sem isso, e com todo esse dinheiro, vão passar o trator por cima. Foi o que ocorreu agora na Câmara e no Senado.

No início da pandemia, quando Bolsonaro fez ameaças aos outros Poderes e disse que tinha os militares a seu lado, havia algum risco de ruptura institucional? 

De jeito nenhum. Alguns parlamentares, o pessoal civil, a imprensa e parte da população podem ter essa sensação, vendo que tentaram arrastar o Exército como arma para ameaçar. Mas foi puro blefe. Não tem nada disso.

Teve até jurista defendendo a tese de que o Exército podia ser o moderador dos Poderes. Invenção pura. O que existe é a Constituição, e a obrigação que os Poderes têm de se ajustar. Fechem a porta e discutam até chegar a um acordo. As Forças Armadas não têm nada a ver com isso.

RAIO-X

Carlos Alberto dos Santos Cruz, 68
General da reserva do Exército, foi ministro da Secretaria de Governo de janeiro a junho de 2019. No governo Michel Temer, foi secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Comandou tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) em missões para estabilização do Haiti e do Congo


BBC Brasil: Ditadura brasileira usou Itamaraty para apoiar repressão de Pinochet no Chile, diz autor de livro sobre golpe chileno

Sete anos de pesquisa em milhares de documentos oficiais e dezenas de entrevistas no Brasil, Chile e Estados Unidos desafiam uma série de noções históricas — à direita e à esquerda — sobre como o regime militar brasileiro se envolveu no golpe de Estado que retirou do governo chileno o socialista Salvador Allende e colocou em seu lugar uma junta militar comandada por Augusto Pinochet

Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington

Em O Brasil Contra a Democracia, lançado no país em 8/2 pela Companhia das Letras, o jornalista Roberto Simon revela o papel consistente do Brasil no desfecho de 11 de setembro de 1973, no Palácio de La Moneda, sede do poder federal chileno. Naquele dia, quando Allende apontou o fuzil AK-47, presente de Fidel Castro, contra o próprio queixo, o tiro abateu a democracia mais longeva da região naquele momento.

Mas as ações brasileiras começariam muitos anos antes do tiro, logo após a vitória nas urnas do socialista, em 1970, quando coube ao Itamaraty mapear os militares chilenos que poderiam levar a cabo uma ruptura democrática. O Brasil apoiou os conspiradores, isolou o Chile de Allende internacionalmente, propalou a ideia nunca comprovada de que havia no país campos de guerrilheiros, e, depois do golpe, ajudou na construção do aparato de repressão de Pinochet.

Ao agir dessa forma, de acordo com Simon, o regime anti-comunista do Brasil perseguia seus próprios interesses. Para o Conselho de Segurança Nacional, o Chile de Allende era a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional", potencialmente muito mais perigosa ao Brasil do que Cuba, por sua proximidade geográfica e pelo grande número de exilados brasileiros no país.

E nesse intento, um dos órgãos da burocracia brasileira teve especial importância: o Itamaraty. Simon desmonta a noção de que durante o regime ditatorial brasileiro, os diplomatas se encastelaram em assuntos de interesse permanente do país, distantes das atrocidades do governo corrente. Ao contrário, nas páginas de O Brasil Contra a Democracia o Itamaraty se revela peça fundamental da repressão do Estado brasileiro.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - De que maneira a ditadura militar brasileira atuou para destruir a democracia e consolidar um regime autoritário no Chile?

Roberto Simon - De várias formas. O Brasil apoiou atores que estavam conspirando contra a democracia no Chile, atuou para isolar diplomaticamente o Chile e identificar militares que poderiam se aventurar num golpe de Estado contra Allende. Apoiou grupos de extrema direita, como o neofascista Patria y Libertad e, no momento do golpe, o Brasil deu enorme apoio. Foi o primeiro país a reconhecer a junta militar liderada por Augusto Pinochet e ajudou na montagem do aparato de repressão do governo Pinochet. O país garantiu apoio político, diplomático e econômico ao governo Pinochet.

E ao mesmo tempo em que tomava ações diretas, o Brasil também desempenhava um papel de modelo para o Chile: o golpe de 1964 contra João Goulart era visto pelos algozes do governo Allende como um exemplo. Na visão dos que derrubaram o governo Allende, o Brasil tinha, com sucesso, derrotado um governo de esquerda populista para criar um regime autoritário que promovia um crescimento ordenado. Nos anos 1970, o Brasil era o país que mais crescia no mundo percentualmente e os chilenos olhavam aquilo como uma grande lição. A ideia de você ter um regime anti-comunista que colocasse ordem no país e que eliminasse o risco de uma revolução socialista era algo que eles buscavam.

BBC News Brasil - E do lado do Brasil, qual era o interesse do governo brasileiro em ter Pinochet no poder?

Simon - Quando Allende é eleito, em 1970, o Brasil toma um grande susto. O Brasil acreditava que o candidato de direita, (o conservador Jorge) Alessandri ganharia. É importante dizer que Allende era um revolucionário de fato, não era como a centro-esquerda europeia da época, não era um reformista. Ele tinha uma proposta de acabar com o capitalismo no Chile e impor uma economia socialista, mas o faria não por meio de uma revolução armada, mas pelas urnas, o caminho eleitoral que os chilenos chamavam de uma "revolução a empanadas e vinho tinto", em vez de fuzis e paredões.

Os documentos brasileiros da época começam a se referir ao Chile como a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional." Parte da imprensa brasileira daquela época chama o país de "Nova Cuba na América Latina", só que muito mais preocupante para o Brasil porque o país não estava no Caribe, mas estava aqui do lado na América do Sul. E é bom lembrar que naquele momento do golpe havia milhares de exilados brasileiros vivendo em Santiago.

Então, dentro desse contexto a da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura, o Chile desponta como a maior ameaça regional ao Brasil. E é aí que os militares brasileiros se debruçam sobre várias maneiras de lidar com essa ameaça. Não só os militares como também o Itamaraty.

BBC News Brasil - O regime de Pinochet é considerado um dos mais violentos do mundo, enquanto que a ditadura brasileira é citada por alguns como supostamente (e comparativamente) mais branda na repressão. De que maneira as descobertas do livro desafiam essas noções ao entrelaçar a história dos dois regimes?

Simon - O aparato de repressão no Chile foi construído com enorme apoio do Brasil. Vários agentes da Dina, a polícia secreta do Pinochet, receberam treinamento do SNI (Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem brasileiro) no Brasil. Um dos líderes da inteligência chilena no final dos anos 1970 era adido militar no Brasil, em 1974 — e mais tarde foi condenado pela Justiça chilena (por crimes da ditadura).

Então, é difícil separar onde começa a repressão brasileira e termina a repressão chilena até porque após o golpe os dois países começaram a compartilhar informações sobre exilados. O Brasil queria muito saber sobre o destino de exilados brasileiros que viviam no Chile, e isso ia desde pessoas que haviam sido banidas do Brasil, trocadas por diplomatas sequestrados no Brasil, guerrilheiros etc, até intelectuais de esquerda, professores, que não tinham nenhum vínculo com a luta armada mas a ditadura decidiu cassá-los e tentar rastreá-los.

O Brasil enviou agentes ao Estádio Nacional, o principal estádio do Chile que se converteu num grande campo de prisioneiros no imediato pós-golpe (estimados 40 mil prisioneiros passaram por lá). O Chile não tinha a capacidade de prender tanta gente, então eles usaram o estádio e foi um dos grandes antros da tortura e das mais bárbaras violações de direitos humanos no Chile. E o Brasil enviou uma missão de agentes da repressão para o estádio para ajudar no interrogatório de brasileiros.

Aí há duas narrativas: eu entrevistei um capitão da Força Aérea Brasileira que esteve dentro do Estádio Nacional e admite que viu cenas de violência muito fortes, mas disse que os brasileiros não torturaram. Mas ao falar com alguns dos cerca de 50 brasileiros que ficaram presos por várias semanas ou meses no Estádio Nacional, eles dizem que foram torturados por agentes da repressão do Brasil. E chilenos presos também dizem ter sofrido tortura de agentes brasileiros.

É um momento que, por exemplo, a palavra "pau de arara" entra nesse vernáculo da repressão chilena, uma palavra completamente vinda do português brasileiro, do nada ela aparece no Chile. Então você vê todas essas conexões acontecendo muito rapidamente no imediato pós-golpe.

BBC News Brasil - Qual foi o papel do Brasil na organização da Operação Condor?

Simon - De acordo os documentos da inteligência americana, o Brasil primeiro tenta controlar a Operação Condor e depois meio que pula fora preferindo uma colaboração bilateral entre agências de repressão que havia sido a colaboração que a ditadura sempre preferiu e sempre operou. A ditadura (brasileira) colaborou com os uruguaios, nos anos 1960, quando parte da cúpula do governo Jango foi para Montevidéu. Havia colaborado e já vinha colaborando com Argentina muito antes do golpe na Argentina, incluindo um sequestro de brasileiros em Buenos Aires, e era esse tipo de colaboração, um a um, que o governo militar realmente queria em vez de um grande consórcio regional na luta contra a oposição.

O Brasil se via como um país muito mais importante que o Chile, como uma potência regional e não estava disposto a seguir ordens ou a liderança do Pinochet, sem algum controle direto (das ações). Em um dado momento da Operação Condor, os chilenos e os argentinos, no pós-golpe na Argentina, decidem lançar uma missão para assassinar opositores sul-americanos na Europa, e o Brasil se opõe a isso, de acordo com os documentos da inteligência americana.

O Brasil não queria esse tipo de coisa, isso já no governo Geisel. Então, está claro que o Brasil espionava seus opositores na Europa e usava agentes de repressão dentro do Itamaraty para mapeá-los, mas assassinar brasileiros exilados na Europa era um rubicão que a ditadura não cruzaria.

O Brasil era um protagonista (na Operação Condor) porque era do ponto de vista geopolítico o país mais importante da região. Era um protagonista importante, mas não compartilhava os objetivos máximos que os argentinos os chilenos e os uruguaios tinham. E em março de 1974, seis meses depois do golpe no Chile, começa o governo Geisel no Brasil, com a proposta de iniciar uma lenta, gradual e segura transição rumo a um governo civil e de levar os os militares de volta à caserna, partir para essa fase de descompressão política. Então, na verdade, o Brasil estava numa trajetória quase oposta à Argentina e ao Chile nesses meados dos anos 1970.

BBC News Brasil - Um grande número de brasileiros se exilou no Chile em um dado período. Existe alguma evidência de que o Chile sob Salvador Allende tivesse se convertido em campo de treinamento para guerrilheiros socialistasinclusive brasileiros?

Simon - Santiago se tornou a capital do exílio brasileiro no final dos anos 1960, antes mesmo da vitória do Allende, em 1970. E muitos brasileiros entraram na vida política chilena, se a gente parar para pensar no establishment da nova república brasileira, há Fernando Henrique Cardoso, Marco Aurélio Garcia, José Serra, César Maia Paulo Renato Souza. Todos eles estiveram no Chile e ocuparam postos no PT, PSDB, PMDB, DEM, todos esses partidos tinham figuras que passaram pelo Chile.

Mas em relação à luta armada, o Chile nunca foi um lugar de luta armada. A revolução chilena era uma revolução, usando a linguagem da extrema esquerda da época, pra ser feita por meio do Estado burguês. Eles elegeriam uma grande coalizão de esquerda, de socialistas, comunistas e outros marxistas e, uma vez no poder, eles converteriam o Estado na grande máquina revolucionária.

Mas, de acordo com o que dizia Allende, isso seria feito respeitando as regras do jogo democrático. De fato, Allende nunca rompeu com isso, nunca tentou censurar a imprensa, nunca tentou fazer esse tipo de coisa de subverter a ordem democrática. E o que é principal, e os documentos da CIA dizem isso explicitamente, Allende entendia que era fundamental ter boas relações (com países) e conter essa campanha internacional contra o Chile para conseguir fazer as transformações internas.

Então, por exemplo, ele começou a controlar o número de asilos diplomáticos, asilos territoriais, que o Chile concedia a esquerdistas brasileiros. Se tivesse uma pessoa que tivesse cometido um crime de sangue ou que houvesse suspeita que fosse um infiltrado, não poderia ir para o Chile. Então, as aulas de guerrilha continuaram a ser em Cuba, alguns foram para a China, outros para a Coreia do Norte, mas não há absolutamente nenhuma evidência de que havia campos de guerrilheiros no Chile, que o Chile tivesse cursos de guerrilha.

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já disse a ex-presidente chilena Michelle Bachelet que se o regime de Pinochet não tivesse matado gente como o pai dela (um militar morto na repressão), o Chile hoje seria uma Cuba. Faz sentido?

Simon - Essa apropriação histórica do Chile estava fora do horizonte quando o livro começou a ser escrito em 2013. Era impensável que um presidente do Brasil ou grandes figuras da política brasileira idolatrassem Pinochet ou falassem que a tortura não era um problema ou mesmo que o ministro da Economia se declarasse um Chicago boy (em referência ao grupo de economistas da Universidade de Chicago que adotaram medidas liberais na economia chilena durante a ditadura). Esse tipo de coisa era impensável, basta lembrar onde estávamos em 2013 (governo Dilma Rousseff, vítima de tortura da ditadura brasileira, com o desenvolvimentista Guido Mantega no controle da economia).

E também tem grandes contradições aí porque hoje se sabe que Pinochet tinha fortunas escondidas em offshores internacionais, uma investigação do Senado americano revelou. Ele era um grande corrupto. Sabemos que a polícia secreta dele estava envolvida diretamente com o narcotráfico, além das maiores barbáries e violações de direitos humanos. Foi o Pinochet que ordenou um atentado terrorista no centro de Washington. O governo (americano de Ronald) Reagan tinha péssimas relações com Pinochet.

Então, há uma mitologia do Chile importada ao Brasil e é completamente distorcida e descolada da realidade.

E também há hoje no Brasil outros aspectos que se conectam com o passado. O modo como o Ministério das Relações Exteriores naquela época reagia à campanha internacional de denunciar a tortura no país, que tem alguns traços semelhantes, guardadas as proporções, com o que a gente está vendo agora com a campanha internacional pela defesa do meio ambiente no Brasil, como o Brasil rapidamente pode se tornar um pária internacional.

E muito como a ditadura naquele momento, parece que o atual governo brasileiro entende que se trata de uma batalha de propaganda. Que bastava responder naquela época à Anistia Internacional, e agora ao GreenPeace. Ou mandar os embaixadores escreverem cartas para o (jornal francês) Le Monde, para o (diário americano) The New York Times, como também fazem hoje. Ou ainda a noção de que vai combater isso agora mostrando o verdadeiro exemplo de cidadãos brasileiros, algo muito parecido com a retórica da ditadura de que as denúncias de tortura eram coisa de brasileiros que odiavam seu próprio país.

A lição que a gente vê dos anos 1970 é que a ditadura nunca conseguiu baixar essa pressão internacional só com propaganda. Isso só parou quando, de fato, o governo parou de torturar seus opositores, já no final dos anos 1970, começo dos anos 1980. E do mesmo modo, a pressão internacional em relação ao meio ambiente no Brasil só vai parar quando o Brasil tiver uma política séria para o meio ambiente.

Então, eu vejo que há uma linha de continuidade nas mentes conspiratórias de governos brasileiros em achar que a representação do fato pode ser mais importante do que o fato em si.

BBC News Brasil - Seu livro mostra que o Itamaraty tinha atuação consistente no aparato de repressão e que não se tratava de um ato isolado de um ou outro diplomata mais simpático à ditadura. Isso desafia a imagem que se tinha de um Itamaraty técnico, não?

Simon - Geralmente, a história oficialista trata esse episódio no Chile como algo de figuras isoladas: o embaixador anticomunista, algumas pessoas da linha-dura do regime militar que por lá se aventuraram. E o livro mostra que na verdade foi o oposto. Havia uma política de Estado para o Chile, que envolvia instituições, agências especializadas dentro do Itamaraty, como o Centro de Informações do Exterior, o Ciex, e a Divisão Segurança Institucional do Itamaraty, a DSI. Aliás, todos os órgãos do governo brasileiro tinham uma DSI, sempre chefiadas por militares, e a do Itamaraty era a única comandada por um civil.

E essas entidades tinham por objetivo espionar brasileiros no exterior, conter campanhas de denúncias dos direitos humanos e, em última análise, se você olhar o que aconteceu com os brasileiros presos no Estádio Nacional, vários deles sob tortura, as decisões de não solicitar salvo conduto a essas pessoas, de não facilitar qualquer tipo de proteção consular, foram tomadas dentro do gabinete do ministro das Relações Exteriores. E todas as informações dessas agências de espionagem do Itamaraty alimentavam o SNI e as agências de inteligência das Forças Armadas. Então, o Itamaraty era parte essencial da repressão a brasileiros fora das fronteiras nacionais. E era essa a cadeia de comando, que ia do Palácio Planalto, Itamaraty, SNI e descia até os porões do regime, onde o Chile era visto como a grande fronteira na luta contra a subversão brasileira.

Houve diplomatas que se rebelaram contra isso, alguns chegaram a transportar listas de torturadores brasileiros em malas diplomáticas, mas o livro mostra que eles foram a exceção que confirma a regra desse colaboracionismo total da instituição. A noção de que o Itamaraty de alguma forma se descolou da ditadura para se ater aos interesses permanentes do Estado brasileiro é um mito, que serviu para proteger o Itamaraty. E é um mito que deve ser desfeito para o bem da política externa brasileira e da democracia. É preciso entender como dinâmicas internas têm um impacto decisivo na relação do Brasil com o mundo.

Capa do livro lançado por Roberto Simon contém o título e uma imagem de um garoto com uniforme e capacete, em preto e branco

BBC News Brasil - E isso também desbanca uma outra noção muito presente nas esquerdas brasileira e latino-americanas de que a ditadura brasileira seria um mero ferramental para os americanos exercerem seus interesses na região?

Simon - Na verdade, o Brasil se via como um dos grandes, ou talvez, o principal ator nesse jogo da Guerra Fria regional. Por isso, acabou intervindo em vários países do seu entorno.

O golpe contra Allende foi uma derrota fragorosa da esquerda chilena e da esquerda latino-americana. Naquele imediato pós-golpe, pessoas de esquerda tentaram encontrar explicações. Tem um texto do (autor colombiano) Gabriel García Márquez que diz que os Estados Unidos não precisavam mandar mais seus marines (à América Latina) porque tinha o Brasil para agir por eles. E a imprensa cubana naquela época falava de um eixo Brasília-Washington contra a esquerda latino-americana. Então começa a se criar aquela caricatura de gorilas do Brasil marionetes do Tio Sam.

E é uma visão empobrecedora porque ela afasta essa discussão sobre as motivações geopolíticas, econômicas e diplomáticas que levaram a ditadura brasileira a atuar no Chile. E revendo toda a documentação, uma das minhas conclusões é que de fato houve uma troca significativa de informações entre o Brasil e os EUA no sentido de se opor a Allende e eventualmente apoiar um golpe no Chile.

Há uma reunião importante, em 1971, entre os presidentes Médici e Nixon na qual Médici explicitamente fala ao colega americano que o Brasil estava em contato com militares chilenos e que Allende cairia. Mas depois de revisar milhares de documentos de três países diretamente envolvidos nessa história, eu não achei absolutamente nenhuma evidência de que houve alguma operação conjunta brasileira e americana para derrubar Allende. Havia uma vontade de trabalhar junto e de alinhar visões, mas não houve uma operação da CIA e do SNI para derrubá-lo. Claro que você tem um alinhamento dos dois regimes anticomunistas, o governo Nixon tinha uma enorme simpatia pelo governo Médici. O próprio Nixon dizia para os brasileiros que "somos os maiores aliados que o Brasil já teve na Casa Branca" e também dizia que "o Brasil é o nosso maior investimento na América Latina". Mas no nível operacional, de agentes dos dois países, no Chile, não há nenhuma evidência de que houve uma colaboração direta.


Roberto Freire: ‘Vitória de Lira atrapalha a frente de centro’

Para Roberto Freire, eleição na Câmara 'desarranjou' articulações para candidatura única de centro, gerando problemas para PSDB, DEM e Huck, mas deputado reitera hipótese de apresentador disputar eleição

Paula Reverbel, O Estado de S. Paulo

Presidente do Cidadania, o ex-deputado Roberto Freire disse que a vitória de Arthur Lira (Progressistas-AL) na Câmara – em uma derrota do ex-presidente da Casa Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não conseguiu eleger sucessor –, causou um “desarranjo” na construção de uma frente de centro e afetou a articulação do apresentador Luciano Huck, cotado como presidenciável em 2022.

“Esse processo que estava existindo do ponto de vista de 2022, discussões sobre alternativas, que tipo de articulação e de aliança que estava surgindo, isso mudou, sofreu um retrocesso, claro. O que ocorreu com o DEM e com o PSDB gerou problemas para o PSDB, para o DEM, para a articulação do Huck e para setores da esquerda”, afirmou Freire em entrevista ao Estadão.

Como o sr. avalia o resultado das eleições no Congresso?

O episódio dessa eleição foi superdimensionado, com uma certa razão, porque se assumiu uma disputa da oposição com o (presidente Jair) Bolsonaro. Muda uma correlação de forças do Congresso. Dá uma sinalização de que o Executivo e o presidente rearticularam forças políticas. Mas não tem o dom de mudar a realidade e o processo que estamos vivenciando. Continuamos tendo um presidente negacionista na pandemia. Temos um presidente e um ministro da Fazenda ineptos no enfrentamento da crise econômica. E não muda a expectativa que começa a surgir na sociedade de que talvez seja melhor um impeachment.

Como o sr. vê as manifestações pró-impeachment?

O problema é que aqueles que são a favor (do impeachment) ficam achando que tem que fazer aqui e agora. Tem que ter calma. Ninguém sabe como vai acontecer esse processo, mas que ele está sendo discutido, não tenha dúvida. Grande parte dessa articulação que Bolsonaro fez, com esse toma lá, da cá absurdo de R$ 3 bilhões prometidos para ganhar a presidência da Câmara e do Senado, foi um ensaio para quando ele for impedir que um impeachment ocorra, mesmo com a sociedade se manifestando. Ele está na luta.

O Cidadania aguarda a filiação de Luciano Huck?

Esse processo que estava existindo do ponto de vista de 2022, discussões sobre alternativas, que tipo de articulação e de aliança que estava surgindo, isso mudou, sofreu um retrocesso, claro. O que ocorreu com o DEM e com o PSDB gerou problemas para o PSDB, para o DEM, para a articulação do Huck, para setores da esquerda. Alguns partidos com dissidências internas (na eleição da Câmara), tudo isso. Foi desconstruído um pouco do que você já tinha acumulado, vai ter que ser retomado. Precisa ver o rescaldo desse episódio para começar a saber como você vai retomar. Há algumas questões complicadas, inclusive no DEM, com o processo que você teve de um certo constrangimento em relação a Rodrigo Maia, que era um dos líderes dessa articulação.

Qual será o caminho?

Tem que dar tempo ao tempo para ver. Vai ter que refazer contatos, articulações. Mas não vamos ficar imaginando que seja bicho de sete cabeças e que acabou. Agora a oposição a Bolsonaro tem que dizer: “Temos que continuar a luta pelo impeachment”.

E qual a expectativa sobre uma candidatura de Huck?

A luta para construir essa alternativa para 2022 é paralela. Não se luta em uma frente só, são várias: crise econômica, pessoas contra a vacina. Junta a isso a luta de discutir candidaturas e a do impeachment.

Mas Huck não tem um prazo para dizer se vai ser candidato?

Ele tem tempo para analisar tudo isso, depois desse desarranjo ocorrido. Ele vai decidir se é agora, se é mais adiante. Houve um certo desarranjo. Mas o processo continua nessa hipótese da candidatura do Luciano Huck e o Cidadania continua firme imaginando que essa pode vir a ser a grande alternativa para derrotar tanto Bolsonaro quanto qualquer retrocesso de uma volta ao lulismo.

Uma filiação de Luciano Huck ao DEM se tornou mais remota depois da eleição no Congresso?

Olha, nem se falava (disso) antes, foi pura especulação. Com o que ocorreu com o DEM (na eleição na Câmara), tem que reavaliar qual é a posição dele. O DEM, com essa postura que adotou, você pode até admitir que ele tenha uma relação com Bolsonaro. E nós somos oposição a Bolsonaro. Huck é. Não vamos ficar pensando que o episódio tenha apenas efeito interno (do partido), não. Tem impacto na política em geral.

Como vê o papel de Rodrigo Maia na articulação para 2022?

Não tenho dúvida de que ele vai estar nessa articulação. Não será aliado nem do bolsonarismo nem do lulismo. Vai estar no campo que se opõe a esses dois polos, criando um outro polo que agregue forças, social-democrata, de esquerda democrática, liberal e direita democrática, que diminuiu de tamanho com essa desorganização que aconteceu no DEM.

Paulo Hartung afirma que Luciano Huck é de centro-esquerda. O sr. concorda?

Eu digo que Huck é uma pessoa que está olhando para o futuro. Ele pensa em uma sociedade em que o Brasil precisa voltar a ter relevância no mundo globalizado, digital, do futuro. Não pode ser candidato pensando em relações do passado, em ser esquerda ou direita do passado. Ele tem que ser um progressista.

Huck está no campo progressista, então?

Claro. Por isso que estamos com ele. Hoje, se fizermos o que fazíamos no passado ou pensarmos como pensávamos no passado, somos reacionários. Esse entendimento Huck tem por causa de sua geração e sua compreensão de mundo.

Há espaço para Sérgio Moro e João Doria nessa alternativa de centro?

Tem. Como tem espaço para a esquerda democrática. Não tenho dúvidas de que, qualquer um desses que chegar ao segundo turno (na eleição presidencial de 2022) contra o bolsonarismo e o lulismo, você terá todos eles juntos.


Metrópoles: “Minha independência em relação a Bolsonaro é nítida”, diz Baleia Rossi

Emedebista afirma que é independente, critica o presidente Jair Bolsonaro e defende a reforma tributária como medida social

Marcelo Montanini, Metrópoles

Candidato à presidência da Câmara dos Deputados, Baleia Rossi (MDB-SP) busca demarcar a distância entre ele e o presidente Jair Bolsonaro, reforçando que, apesar de ter votado com o governo nas pautas econômicas, é independente – “mas não oposição”, sustenta. O emedebista destaca que seu adversário, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo Palácio do Planalto, tenta criar a narrativa de que ambos são governistas para igualá-lo. “Minha independência é nítida”, frisa.

Em entrevista por escrito ao Metrópoles, Rossi, que é apoiado pelo atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-SP), diz, ao ser questionado sobre ter coragem de abrir um processo de impeachment contra Bolsonaro, que “já passou da hora de acreditar em super-homem” e que é preciso respeitar e seguir a Constituição. “Todos sabemos que o presidente [Jair Bolsonaro] errou”, afirma.

Metrópoles também tentou entrevista com o deputado Arthur Lira, mesmo que por escrito, mas ele recusou. A eleição da Câmara ocorre nesta segunda-feira (1°/2).

O senhor diz que sua candidatura é independente, mas o MDB é alinhado ao governo – com líderes do governo no Senado e no Congresso – e, até pouco tempo atrás, vocês estavam juntos com diversos partidos que estão no bloco do seu principal adversário. Como exercer essa independência tendo tal relação com o governo?

Com todo respeito, você está enganado. O MDB não é alinhado ao governo. Na convenção em que fui eleito presidente nacional do partido, ficou decidido que o MDB ficaria na posição de independência. Em segundo lugar, não sou candidato apenas do MDB. Represento uma frente, que conta com partidos de oposição. Minha independência é nítida. É o meu adversário que tenta nos igualar.

Diante das semelhanças de postura e votações alinhadas ao governo federal, qual é a diferença da sua candidatura para a do seu adversário?

Perdoe, mas está enganado de novo. Em abril do ano passado, meu adversário fez indicações de cargos de alto escalão no governo. Para comemorar, chegou a fazer uma selfie com o presidente da República. Eu também fui chamado pelo presidente, mas não aceitei cargos em troca de apoio. Fizemos questão de conceder uma entrevista coletiva anunciando isso, no Palácio do Planalto. Mesmo assim, insistiram que o MDB seria contemplado com cargos, o que não ocorreu. Nossa postura sempre foi de independência. Independência não é oposição. Nos projetos que tivemos concordância, como a pauta econômica, votamos a favor.

Alguns deputados de partidos que estão no seu bloco, como DEM, Solidariedade e até do seu partido, MDB, declararam votos em Arthur Lira. Isso não enfraquece sua candidatura? Como reverter isso?

Vamos ter maioria absoluta em todas essas bancadas. No MDB, há um voto anunciado para meu adversário. O MDB é um partido democrático, e respeita a decisão da deputada.

A questão de um possível impeachment é recorrente em torno da sua candidatura por causa da aliança com partidos da oposição – sobretudo, do PT – e devido às recentes declarações do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ). Sabemos que é prerrogativa do presidente da Câmara analisar abertura de processo de impeachment, mas o senhor terá coragem de fato de abrir um processo de impedimento de Bolsonaro, caso seja necessário?

Já passou da hora de a gente [parar de] acreditar em super-homem. O que é preciso é respeitar e seguir a Constituição. É isso que farei. É função do presidente analisar pedidos de impeachment. Não abrirei mão desta função. A análise precisa ser em cima do que está escrito na Constituição, e assim o farei.

O presidente Jair Bolsonaro negou a existência da pandemia, estimulou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada e incentivou atos antidemocráticos contra o Congresso e o STF, entre outros atos. Para o senhor, nenhum desses atos contém crime de responsabilidade?

Todos sabemos que o presidente errou. Em alguns momentos, ele até modulou o seu discurso. No caso da pandemia, parece que finalmente resolveu tomar medidas para conseguirmos a vacina.

O senhor defendeu o retorno do auxílio emergencial ou o aumento do Bolsa Família. Avalia que é possível fazer isso já no início dos trabalhos? E de onde sairiam esses recursos?

Quero fazer uma retificação. Fui eu quem introduziu o debate sobre o apoio aos desvalidos agora que o auxílio emergencial acabou. Falei disso pela primeira vez no lançamento da minha candidatura, em 6 de janeiro. Desde aquele dia, digo que é preciso amparar os mais pobres, mas de olho na responsabilidade fiscal. Já se discutiu muito sobre as fontes de recursos. Em outras oportunidades, o Ministério da Economia já apontou fontes possíveis de remanejamento de recursos. Cabe a ele apontar de novo, sem comprometer as contas públicas.

O senhor já disse ser a favor de manter o teto de gastos, mas caberia uma flexibilização da regra para bancar a prorrogação do auxílio neste momento em que a população passa dificuldades?

Temos de diminuir outras despesas. Fazer um esforço muito grande para isso. O teto de gastos foi essencial para que o Brasil atravessasse a maior crise econômica da sua história, e continua importante.

O senhor disse que suas prioridades serão a PEC Emergencial e a reforma tributária para melhorar a economia, mas o que pretende fazer na área social?

Gerar emprego e renda com a reforma tributária é questão social. É melhorar a vida dos mais pobres, ofertar mais oportunidades e diminuir os gastos das famílias. Além disso, temos de defender o SUS e uma educação de qualidade, por isso lutamos tanto por recursos para o Fundeb.

O presidente Jair Bolsonaro atacou diversas vezes o sistema eleitoral brasileiro e disse que, sem voto impresso, em 2022, o Brasil teria problema maior do que nos Estados Unidos. Qual é a sua opinião sobre essa declaração? Pautaria esse projeto?

Nosso sistema é um dos mais seguros do mundo. Respeito quem pensa diferente. Eu mesmo já pensei que o voto impresso poderia, em alguma medida, deixar mais seguro quem tem dúvida. Mas, pessoalmente, não tenho dúvida nenhuma sobre nosso sistema eleitoral, e acho errado pautar esse tipo de matéria nesse contexto em que se tenta desqualificar nosso sistema.

Essa eleição da Câmara está muito polarizada e, em determinados momentos, agressiva. Se eleito, o que pretende fazer para conseguir aprovar reformas que dependem do centrão, que está com o seu adversário?

Concordo. Está agressiva em vários aspectos, inclusive pela ação desmedida do governo em favor do meu adversário. Mas acredito que bons projetos sempre têm adesão. Foi assim nos últimos anos. Precisamos ter boas propostas para fazer o convencimento da Casa. O que qualquer deputado quer é ser respeitado, valorizado e ouvido. O processo de convencimento ocorre assim. Com bons projetos e muita conversa.


José Murilo de Carvalho: ‘Bolsonaro faz bravata perigosa e se dirige a escalões inferiores e às PMs’

Historiador diz que declaração do presidente sobre democracia e Forças Armadas ‘é veneno para as corporações militares’ e que ele ‘não se dará bem’ se desafiar hierarquia militar

 Wilson Tosta, O Estado de S. Paulo

RIO – Uma bravata perigosa. Assim o historiador José Murilo de Carvalho classifica a declaração do presidente Jair Bolsonaro apontando nas Forças Armadas o poder de determinar se o Brasil é uma democracia ou uma ditadura. Embora admita que o que mandatário afirmou é em parte verdadeiro – considera que a República brasileira é tutelada pelos quartéis –, o pesquisador avalia que ele não fala pelos altos comandos de Marinha, do Exército e da Aeronáutica. E aponta um risco nas atitudes do presidente. Ele, afirma, se dirige aos escalões inferiores da hierarquia castrense e às polícias militares. Para o professor, trata-se de uma “violação da hierarquia”.

“É veneno para as corporações militares”, preocupa-se. “Para o historiador, Bolsonaro “fracassou” na “guerra da vacina” e tenta retomar protagonismo”. Mas não conseguirá bom resultado se tentar envolver os fardados e desafiar a sua hierarquia, adverte José Murilo, que diz que na pandemia Bolsonaro “lutou do lado errado”.

A seguir, os principais trechos da entrevista de José Murilo ao Estadão.

Onde o presidente Bolsonaro quer chegar quando diz que depende das Forças Armadas se o Brasil vai ser uma democracia ou uma ditadura?

A declaração é contraditória. Dizer que a democracia depende das Forças Armadas é dizer que já não há democracia, o que em parte é verdade na medida em que temos uma república tutelada. Só teremos uma república democrática quando ela não depender de apoio militar. A república norte-americana passou por uma crise séria, sem que os militares se manifestassem. 

Essa declaração é apenas uma bravata ou há uma ameaça real de golpe, com possibilidade de se concretizar?

É uma bravata perigosa. Ele fala em “nós militares”,  colocando-se como porta-voz do grupo, o que ele certamente não é. Pela lei, quem fala pelos militares são seus comandantes. Se falasse como presidente, chefe das Forças Armadas seria ainda pior, porque estaria colocando a presidência como defensora de um grupo social. A bravata é perigosa para ele por estar usurpando a autoridade dos comandantes das três forças. 

Em sua avaliação, Bolsonaro tem apoio das Forças Armadas, no seu todo ou em parte, para esse tipo de declaração?

Como já indicou o comandante do Exército, general (Edson) Pujol, aliás colega dele na AMAN, quando condenou a politização das Forças Armadas, ele (Bolsonaro) não fala em nome delas. O presidente tem feito um jogo perigoso ao se dirigir a escalões inferiores da hierarquia militar e às polícias militares. Essa violação da hierarquia é veneno para as corporações militares.

Bolsonaro tenta usar as Forças Armadas como “espantalho” contra um eventual processo de impeachment?

Se for o caso, acho que será mais um erro político, um tiro que poderá sair pela culatra por estar comprometendo as Forças Armadas com seu projeto político pessoal. Esse envolvimento não interessa às Forças Armadas que vêm tentando fugir à acusação de que estamos diante de um  governo militar e não apenas de um governo com militares. 

O que explica que Bolsonaro sempre volte à temática e ao imaginário da ditadura, já que ela é passado distante e ele, que ainda não era militar profissional no período mais duro do autoritarismo, deve à democracia a eleição para a Presidência?

O cadete Bolsonaro, número 531, cujo apelido era Cavalão, frequentou a AMAN de 1974 a 1977, em plena ditadura. Teve como instrutores oficiais que lutaram contra a guerrilha do Araguaia montada por militantes do PCdoB, chamados por Bolsonaro em 2009 de “cambada comunista”. Está no livro de Luiz Maklouf Carvalho sobre ele, página 34. A paranoia anticomunista dele nasceu ali e no caso dele, como no de muitos outros militares, continua viva, agora talvez mais como jogada política. 

Declarações desse tipo seriam uma tática do presidente, lançando uma polêmica quando está em desvantagem na opinião pública para desviar a atenção e ocupar o noticiário, como agora, com os problemas que cercam a pandemia, a tragédia de Manaus e ameaça de impeachment? 

É certamente tática de despistamento. A obsessão dele, como era a de Trump, é a reeleição. Ele vai inventar tudo que possa compensar as perdas. 

Diante dessas novas declarações, podemos esperar uma nova fase de radicalização, por parte do presidente?

Ele fracassou redondamente na guerra da vacina e procura voltar à tona. Mas não se dará bem se quiser envolver as corporações militares desafiando sua hierarquia.

Poderemos voltar a 2020, com manifestações apoiadas por Bolsonaro pedindo fechamento do Congresso e do STF?

Se tentar, terá o destino de seu líder norte-americano, sobretudo se os outros dois poderes da República se comportarem com maior responsabilidade. As pessoas estão cansadas da luta contra a pandemia, em que ele lutou do lado errado. 


O Globo: Para Jungmann, projeto que limita controle sobre as polícias permite 'poder paralelo'

Para ex-ministro da Defesa, textos em tramitação na Câmara que diminuem o poder de governadores sobre as polícias Militar e Civil ferem o pacto federativo

João Paulo Saconi, O Globo

RIO - Alterar as leis orgânicas das polícias Civil e Militar, aproximando-as do governo federal, é, na opinião de Raul Jungmann, um movimento inconstitucional que fere o pacto federativo do país.

Em entrevista ao GLOBO, o ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública — durante o governo de Michel Temer — criticou duas propostas articuladas pelo governo e pela bancada da bala na Câmara para restringir o poder dos governadores sobre as corporações e afirmou que pode existir risco de “aventuras autoritárias” em patentes iniciais.

Governadores têm criticado os projetos sobre as polícias que tramitam na Câmara. Eles perderão poder em caso de aprovação?

Não há dúvida de que precisamos atualizar o funcionamento das nossas polícias, sobretudo a militar, que se organiza por um decreto-lei de 1969, do regime militar. Essas propostas, no entanto, são inconstitucionais, porque ferem o pacto federativo, na medida em que reduzem o poder dos governadores.

Elas não vão passar no Congresso Nacional. Eu tenho conversado com parlamentares de diversos partidos. Caso viessem a passar, seriam derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Caso válidas, as medidas obrigariam governadores a escolher comandantes-gerais em lista tríplice e dificultariam exonerações. Há outros pontos críticos?

Não faz sentido um policial militar que sai da corporação, perde uma eleição e depois retorna com direito às suas promoções. Outra emenda permite que os praças ascendam na carreira sem precisar prestar concurso para sargento. É ruim para a profissionalização das polícias. A criação de três escalas de generais eleva os níveis hierárquicos da PM para 19. Seria uma burocratização negativa para a integração e a agilidade.

Os projetos também criam colegiados de comandantes das corporações e os insere nas pastas da Defesa e Justiça. O poder federal avança sobre as polícias?

A nacionalização delas e a criação desse conselho com assento na Defesa e na Justiça fere o pacto federativo e coloca para os governos, não só para o atual, um instrumento que eles podem lançar mão, independentemente do Congresso e dos governadores. As polícias, via nova lei orgânica, podem constituir um poder paralelo às Forças Armadas a serviço do chefe do Executivo.

Há ainda a previsão de que policiais réus em processos possam ser promovidos e de que a PM credencie e fiscalize empresas de segurança privada. O combate às milícias pode ficar mais difícil?

O Rio vive uma metástase de relações espúrias entre policiais e milícias. A grande maioria dos policiais não compactua com isso e trabalha duramente. Essas medidas propostas não vão permitir um maior combate às milícias. Pelo contrário, esses pontos citados favorecem o crescimento delas.

Críticos do presidente Bolsonaro temem que ele use o laço com os militares e as polícias para quebrar a ordem democrática. Há motivo para preocupação?

Conheço o presidente dos 12 anos em que convivemos na Câmara. (O laço) não é novidade. Ele era um parlamentar de nicho e tinha um papel sindical, defendendo os interesses das corporações.

Não há nenhuma disposição dos militares, como foi dito pelo próprio comandante do Exército (general Edson Leal Pujol), de desrespeitar a Constituição. Do ponto de vista policial, os projetos de lei visam atender politicamente os anseios de maneira inadequada, despertando essas suspeitas.

Bolsonaro frequenta formaturas de jovens militares e policiais. Soldados e praças não podem agir contra a democracia, apesar dos veteranos?

Nas Forças Armadas, não vejo riscos. Escalões superiores do oficialato estão no controle e não apoiam aventuras autoritárias. Nas polícias, dada a sua politização, o quadro pode ser potencialmente diverso em parte delas e, sim, existirem riscos.

A imparcialidade do Exército não pode soar dúbia, dada a presença de militares no governo?

Todos os governos tiveram militares no Executivo. É um equívoco achar que as Forças Armadas estão no governo. O que existe são militares em cargos do Executivo. É preciso deixar bem claro que o Congresso tem a responsabilidade de regulamentar essa presença, mas não exerce os seus poderes e se aliena do seu papel.


Bob Woodward: 'A democracia resistiu, o fracasso foi Trump'

Legendário jornalista, duas vezes ganhador do Pulitzer, considera que o presidente falhou em proteger os norte-americanos

Amanda Mars, El País

Há cerca de seis meses, quando faltava meio ano para o primeiro mandato de Donald Trump terminar, o legendário repórter Bob Woodward (Geneva, Illinois, 77 anos) acreditava que “qualquer coisa”, ou pelo menos “quase qualquer coisa”, ainda poderia ocorrer no restante da presidência do republicano. Chegava a essa conclusão no seu último livro, Raiva (editora Todavia), segundo volume dele sobre a era Trump. Mas também fazia a seguinte avaliação:

“Trump fala com muita dureza, às vezes de um modo que incomoda os seus próprios seguidores. Mas não impôs a lei marcial nem suspendeu a Constituição, apesar das previsões de seus adversários. Ele e seu secretário de Justiça, William Barr, desafiaram várias vezes o tradicional Estado de direito. Desnecessariamente, na minha opinião. Usar o sistema judicial para favorecer a amigos e punir inimigos é ruim e nixoniano. O sistema constitucional pode ter parecido eventualmente cambaleante, que podia mudar da noite para o dia. Mesmo assim, a democracia resistiu. A liderança falhou.”

O que pensará agora o famoso farejador de notícias? Uma semana depois do violento ataque ao Congresso por uma turba trumpista, um dia depois de aprovação da abertura de um segundo processo de destituição (impeachment) contra o mandatário por “incitação à insurreição”, e quase três meses depois de uma dura campanha de boatos sobre uma suposta fraude eleitoral para tentar reverter a vitória do democrata Joe Biden... Woodward espera que o sistema resista? Na manhã desta quinta-feira, do outro lado do telefone, o veterano repórter, duas vezes ganhador do prêmio Pulitzer, reflete um pouco antes de responder. “É uma grande pergunta. Acho que reafirmo o que escrevi. A democracia nos Estados Unidos resistiu, embora tenha sofrido abalos. O fracasso foi Trump, fracassou em entender a responsabilidade de sua presidência, fracassou em liderar”, diz ao EL PAÍS.

Woodward, que saltou para a fama ainda muito jovem ao revelar junto com Carl Bernstein o caso Watergate, escândalo que levou o presidente Richard Nixon a renunciar em 1974, é um dos grandes cronistas das presidências norte-americanas do último meio século. No primeiro livro sobre o Trump (Medo), não conseguiu entrevistar o republicano. Para o segundo, manteve quase 20 conversas com Trump ―além de dezenas de colaboradores dele― ao longo de 2020, um total de nove horas. No livro, traça o retrato de um Governo febril e errático, semelhante à sua conta do Twitter, e após estes últimos meses não tira conclusões muito diferentes do ocorrido na semana passada em Washington.

“Trump age controlado por seus próprios impulsos, não planeja, não pensa as coisas, de um modo muito alarmante falhou na hora de proteger as pessoas deste país, tanto do vírus como da violência que ocorreu na semana passada quando o Capitólio foi atacado por seus seguidores”, opina. Embora a Justiça tenha arquivado todas as ações judiciais movidas pela campanha de Trump para tentar reverter o resultado do pleito presidencial e as autoridades eleitorais tenham confirmado a validade da votação, mais da metade dos eleitores republicanos continua achando que Biden ganhou de forma fraudulenta. A mídia também parece ter fracassado na hora de combater os boatos.

Para Woodward, a imprensa vive uma era em que “a impaciência, a velocidade e o resumo” dominam tudo, e Trump “é algo muito difícil de cobrir, porque os jornalistas precisam lutar com fatos”, enquanto o magnata é “um especialista em dizer coisas que não são verdade”. Ele discorda, no entanto, da decisão de vários canais de TV ―inclusive a conservadora Fox News― de suspender a exibição das coletivas do mandatário quando ele lançava sua ladainha de acusações infundadas de fraude.

Primeira Emenda

“Acho que deveríamos deixar que as pessoas digam o que quiserem dizer, incluindo os presidentes. O problema são a internet e as redes sociais, que se guiam pela impaciência e a velocidade, e acho que precisamos desacelerar isso, por isso dedico meu tempo a escrever livros”, afirma. Também é cético quanto às decisões tomadas nos últimos dias pelos poderosos executivos de grandes empresas tecnológicas que fecharam as contas de Trump no Facebook e Twitter, junto com as de milhares de trumpistas radicais. “Sou jornalista há 50 anos e acredito na Primeira Emenda, que permite a liberdade de expressão. Muita gente diz coisas falsas ou revoltantes, é muito difícil estabelecer uma norma. Acredito que o mercado de ideias e expressões deveria ser o mais livre possível”, afirma. Considera que o furor midiático em torno de Trump começará a diminuir depois de 20 de janeiro, quando Biden tomar posse. “Há indicações de que ele pode se candidatar em 2024, mas a ênfase então estará em Biden, porque será o presidente, assumirá um poder extraordinário e terá que lutar com problemas extraordinariamente difíceis. Trump sempre será pauta, mas espero que isto diminua e vire uma pauta secundária, não a principal pauta dos EUA”. E o assalto ao Capitólio pode acabar com essas aspirações do republicano? “Pode ser que sim, ou que simplesmente ele perceba que é uma montanha alta demais para escalar com as coisas que deixou para trás, um sistema sanitário saturado, com mais de 300.000 mortos.”

A pandemia

Woodward não se interessa pelos rankings de quem foi o pior presidente da história recente e, embora admita a gravidade da invasão do Capitólio, não deixa de pôr o foco na gestão da pandemia. “As coisas pelas quais Trump foi submetido ao impeachment ―incitar uma revolta no Capitólio― são horríveis, e algumas pessoas morreram ali. Mas o vírus matou mais de 300.000 pessoas. Não digo que ele poderia evitar todas elas, mas muitas sim, simplesmente pedindo às pessoas que usassem máscara, que mantivessem a distância de segurança, que lavassem as mãos. Se tivesse feito isso em fevereiro, talvez o vírus estivesse sob controle neste país”, salienta.

O assunto leva diretamente à própria polêmica gerada pelo novo livro do jornalista. Raiva revelava que Trump sabia que o coronavírus era mortal e, durante meses, confundiu deliberadamente a opinião pública sobre sua letalidade. Enquanto nas entrevistas coletivas ele dizia ao público que “praticamente o paramos” (em 2 de fevereiro) ou que “um dia desaparecerá, como por milagre” (27 de fevereiro), a Woodward, em 7 de fevereiro do ano passado, ele declarou: “Você simplesmente respira e se contagia”. “E isso é muito complicado. É muito delicado. É mais mortal inclusive que uma gripe intensa. É algo mortal”, admitiu. Em 19 de março, reconheceu em outra conversa com Woodward: “Eu sempre quis minimizar a importância [da pandemia]. Ainda gosto de minimizar sua importância, porque não quero criar pânico”.

Quando o livro saiu, em setembro, Woodward foi bastante criticado porque, enquanto pessoas morriam, se calou durante meses sobre essas discrepâncias, até que o livro saísse. O repórter protesta: “Qualquer um que tiver lido o livro percebe que isso não é verdade. Ele me disse em fevereiro que o vírus era transmitido pelo ar e que era pior que a gripe, e em fevereiro eu achava ―e o mundo achava― que o vírus estava na China. Não achei que estivesse falando dos Estados Unidos. Só em maio fiquei sabendo daquela reunião que ele manteve em janeiro e na qual recebeu um alerta detalhado, mas em maio todo mundo já sabia do vírus, e o vírus estava dizimando as pessoas, não ia dizer às pessoas coisas que não sabia. Pude fazer isso no livro, que saiu antes das eleições”.


Octavio Amorim Neto: 'Militarização distorce processo político'

Retomada do poder de militares na América Latina, em especial no Brasil, traz sérias consequências para democracias, alerta cientista político

Por Malu Delgado, Valor Econômico

SÃO PAULO - Quais são as consequências, para a democracia, quando as Forças Armadas estão no centro da arena política, como no caso brasileiro? A pergunta mobiliza há dois anos o cientista político Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Em novembro passado, ele publicou um artigo intitulado De volta ao centro da Arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro, no “Journal of Democracy”, publicação que é referência mundial sobre o tema. Em parceria com Igor Acácio, Amorim Neto reflete sobre as dificuldades atuais. E não é só o Brasil. Também a América Latina vivencia esse fenômeno, enfatiza.

Em entrevista ao Valor, por videoconferência, Amorim Neto ressalta o problema de termos em órgãos de comando os militares, “organização opaca e radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência”. Ao formar um ministério com quase 40% de militares e espalhar profissionais das Forças Armadas em mais de seis mil postos do governo, Jair Bolsonaro revela que sabe exatamente o que faz, pois consegue dissuadir o Congresso e a oposição de qualquer tentativa de impedimento. A incerteza sobre o grau de adesão da cúpula militar a um eventual golpe de Bolsonaro numa eventual tentativa de reeleição em 2022 é um ativo que o presidente explora para se manter forte no poder. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: A América Latina já é vista por acadêmicos como a “terra das democracias militarizadas”. Quais indícios temos sobre isso?

Octavio Amorim Neto: A pandemia de covid-19 reforçou essa tendência, mas os problemas já estavam ficando patentes antes de 2020. O melhor exemplo é o México, que teve longo período de regime autoritário, com o PRI. O país se democratizou na década de 90, e militares tinham papel muito pequeno no governo. No começo do século 21, por conta do narcotráfico, vem uma reversão de um processo histórico de quase meio século, com a entrada de militares na arena política. Veio a eleição de [Andrés Manuel] López Obrador e a presença de militares aumentou mais ainda. O caso mexicano, junto com o brasileiro, são os dois mais chocantes de militarização recente. Houve, também, o golpe na Bolívia, por conta da última tentativa de reeleição do Evo Morales. Equador Peru e Colômbia sempre tiveram presença muito forte das Forças Armadas, seja para combater o crime ou para lidar com desastres naturais, ou reprimir protestos, como o que vimos no Chile, um país que era tido como democracia exemplar. Mas no Chile os militares viram as péssimas consequências e saíram. Esses são grandes casos que trouxeram a atenção da academia latino-americana e internacional.

Valor: O senhor aponta o governo Bolsonaro como sui generis, com 39% do ministério ocupado por militares, e 6 mil deles no governo. Quais as consequências disso?

Amorim Neto: Em primeiro lugar, Bolsonaro conseguiu criar um fator de dissuasão de tentativas de destituição. A entrada dos militares ajuda a evitar a repetição de um cenário como [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff]. A experiência recente do Brasil com o regime militar ainda está viva na memória da classe política. O Brasil tem memória curta, mas de vez em quando esses fantasmas do passado renascem abruptamente. Os militares, desde 1989, são um dos principais atores políticos domésticos do país. Houve a ilusão, na comunidade acadêmica, de que o assunto foi resolvido no começo do século 21. Olha a surpresa que tivemos, a partir de 2018, e não apenas com a eleição de Bolsonaro. Em fevereiro de 2018 que tivemos o primeiro ministro da Defesa, militar, em quase 20 anos, o general [Joaquim Silva e] Luna, nomeado por Michel Temer. Em segundo lugar, Bolsonaro, apesar de estar nas política há três décadas, não tinha quadros. E onde presidentes buscam quadros? Em organizações e instituições em que confiam. Desde janeiro de 2019 eu denuncio as possíveis consequências negativas dessa militarização do governo. O melhor exemplo agora é o general [Eduardo] Pazuello. No regime democrático, a lealdade ao presidente da República tem que ser limitada. Um ministro de Estado não pode ser absolutamente leal ao presidente, tem que falar o que pensa. Se o presidente discorda, ele pede demissão e não acontece nada. No governo Bolsonaro, é totalmente diferente. Discordou, imediatamente vem o ataque da militância digital, e, em seguida, a demissão. Ou se subordina, como o Pazuello.

Valor: E esses que se subordinam inevitavelmente são os militares.

Amorim Neto: Para os militares isso esta entranhado na pele deles, porque presidente da República é o comandante chefe das Forças Armadas. Eles se sentem, mesmo na reserva, obrigados a ser absolutamente deferentes ao chefe supremo. Bolsonaro foi muito hábil neste sentido. A questão são as consequências para a democracia, para as Forças Armadas e para a Defesa Nacional de se colocar no centro da arena política uma organização como essa, opaca, radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência. No regime democrático, hierarquia tem limite. Para os militares, não.

Valor: A falta de transparência militar é um dos obstáculos mais delicados em democracias?

Amorim Neto: Sim. Partidos políticos, por exemplo, podem ser centralizados, dominados por um chefe, ter uma série de problemas, mas eles votam semanalmente. As preferências dos deputados estão lá, as reuniões de comissões são abertas ao público, as brigas são visíveis. Isso facilita o papel da imprensa e da cidadania, do ponto de vista da informação. Não existe isso nas Forças Armadas. Por dever de ofício, vivem sobre segredo de Estado. E trazem essa cultura para dentro do governo federal, o que o governo Bolsonaro fez massivamente. Isso que é sui generis. Não digo que essa massiva militarização acabou com a democracia, mas distorceu completamente o processo político, e criou ambiguidade enorme em relação ao papel das Forças Armadas. O papel delas não é governar o país.

Valor: O papel dos militares deveria estar circunscrito a postos de Defesa, não sendo recomendável que ocupem postos de governo?

Amorim Neto: Se militares começam a ocupar cargos de civis, o poder político deles aumenta. E ao verem seu poder político maximizado, a tarefa fundamental da democracia, que é o controle civil dos militares, torna-se muito mais difícil. Essa circunscrição é por razões políticas absolutamente fundamentais, e não apenas porque eles conhecem o “métier” militar. É porque se eles extrapolarem da área da Defesa, ou da Segurança Nacional, cria-se um problemão político, como estamos vendo hoje. A definição de carreira militar, dada pelo Comando do Exército Brasileiro é: “A farda não é uma veste da qual se despe com facilidade, até com indiferença, mas uma outra pele que adere à própria alma, irreversivelmente, para sempre”. Quando os militares dizem que militar da reserva é civil, estão negando o que diz o Comando.

Valor: A forma como o Brasil está enfrentando a covid-19 pode alertar o país e o mundo sobre esse risco de militarização na democracia?

Amorim Neto: Sem dúvida nenhuma o fato de termos um general da ativa comandando a Saúde é a expressão suprema das consequências negativas da militarização. Pazuello começou a fazer movimentos em direção à vacina, a falar publicamente. Bolsonaro foi diretamente a ele, subordiná-lo e submetê-lo. E o que ele fez? Aceitou. Isso tem a ver com o “ethos” militar, a cultura da obediência. Essa ficha não vai cair agora, mas no médio prazo, depois dessa tragédia que é a pandemia, vamos começar a ter o que havia nas décadas de 70 e 80, que é uma desconfiança enorme das Forças Armadas pelos quadros civis do país. E isso é péssimo para a democracia e é péssimo para a Defesa Nacional. Acho muito difícil voltarmos a ter um regime militar. Vamos ter sempre algo muito próximo de uma democracia, em que o Congresso terá um papel fundamental na aprovação do orçamento, na determinação de diretrizes básicas da defesa nacional. Como é que vai ser isso no pós-pandemia, no pós-Bolsonaro, depois da experiência de Pazuello e outros ministros fazendo aquilo que não lhes cabe fazer?

Valor: Bolsonaro é a expressão máxima dessa militarização, mas isso já não ocorria gradualmente no pós-impeachment de Dilma?

Amorim Neto: O problema da presença excessiva de militares no governo federal não começa no governo Temer, começa no governo Dilma. Eles foram chamados para o centro do Executivo federal por conta de grandes eventos, Copa, Olimpíadas, mas também pelo uso excessivo de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), para ajudar aos governadores diante de greves das polícias estaduais. Dilma os chamou para uma série de tarefas civis - o Exército foi chamado até para recapear pista do aeroporto de Guarulhos. Esse é o tipo de irresponsabilidade absurda das lideranças civis. E os militares passam a gostar disso. Eles dizem que é desvio de função, mas gostam de ter mais poder político, como qualquer organização. O governo do PT trouxe excessivamente os militares para dentro do governo e, ao mesmo tempo, brigou com eles via Comissão da Verdade. Tragicamente, se repetiram, com a organização militar, os problemas que Dilma teve com as organizações partidárias. Ela chamou 10 partidos para governar e brigou com quase todos. Fez a mesma coisa com militares.

Valor: Dilma foi torturada na ditadura. A esquerda foi consciente ao estimular a militarização?

Amorim Neto: Não, eles não tinham noção do que estavam fazendo. Isso tem a ver com um problema mais amplo: não há, na classe política brasileira, ao centro, à esquerda e à direita, uma reflexão sólida sobre o que fazer com as Forças Armadas. Houve um pragmatismo enorme de usar as Forças Armadas como ‘Bombril’, serve pra tudo. Tem problema na polícia do Maranhão? Manda o Exército. Tem desabamento no Espírito Santo? Manda o Exército. Não consegue recapear o aeroporto em São Paulo? Manda o Exército. Na Paraíba falta água? Manda o Exército. O que é isso! É uma irresponsabilidade. As Forças Armadas não são para isso. Qualquer problema que existe no Brasil e que tem a ver com a fraqueza das nossas capacidades estatais são chamadas as Forças Armadas. Resultado: as Forças Armadas voltaram a ser uma organização política fundamental para o regime democrático brasileiro, e isso veio concomitantemente ao colapso das organizações partidárias. Não houve reflexão nenhuma pelas grandes lideranças políticas civis do Brasil quando passaram a utilizar as Forças Armadas para tudo. Elas também são responsáveis pelo imbróglio que vivemos.

Valor: Cometemos erros na nossa transição democrática?

Amorim Neto: A transição brasileira foi bem-sucedida em vários aspectos, mas precisou de um grande pacto entre civis e militares, que implicou a anistia àqueles que perpetraram violações de direitos humanos. As Forças Armadas Brasileiras deixaram o poder em 1985 relativamente fortes, enquanto que na Argentina estavam totalmente desmoralizadas. A correlação de forças aqui era relativamente boa para os militares. Para mudar isso, precisaria de muita habilidade política, o que fizemos sob Fernando Henrique e Lula. A outra alternativa seria ser muito afirmativo em relação à necessidade da supremacia civil. Isso nossas lideranças partidárias nunca se empenharam para fazer. Por que as elites civis brasileiras têm tamanho desinteresse sobre o papel das Forças Armadas? É uma reflexão escassa. E o Itamaraty é parte deste problema, porque nossos diplomatas são alérgicos a qualquer discussão sobre a presença maior das Forças Armadas na política externa.

Valor: E os militares deveriam estar incluídos neste debate de política externa, democraticamente?

Amorim Neto: Sim, eles têm muito o que dizer. Hoje há problemas na América do Sul que exigem Forças Armadas preparadas. Temos o problemão da Venezuela, o êxodo venezuelano. Qual teria sido a melhor maneira de manejar os militares nos últimos 25 anos? Era ativar arenas institucionais em que eles têm um papel determinado pela lei. Exemplo: a convocação do Conselho de Defesa Nacional. Jamais foi convocado. Se fosse, nossos líderes conheceriam melhor a cabeça dos militares, e os militares conheceriam melhor a cabeça de nossos líderes. Nossos líderes políticos se tornaram alérgicos à questão militar. Se quisermos colocar os militares para fora da política depois de Bolsonaro, tudo terá que ser matéria de reflexão.

Valor: A falência da segurança pública fortaleceu a entrada dos militares na política pelo voto, e temos ainda as milícias. Essa conjuntura não vai interditar esse debate?

Amorim Neto: Não tenha dúvida disso. O debate vai ser dificílimo. Por isso tem que ser tema da campanha presidencial de 2022. Que poder político terá um presidente da República e seus aliados no Congresso para reverterem essa situação de militarização da política num regime democrático como o Brasil? É fundamental essa discussão pública, isso tem que chegar às lideranças políticas. Qualquer um que queira disputar com Bolsonaro, [João] Doria, [Luciano] Huck, Lula, tem que discutir isso. Se optarem por não discutir, pela estratégia de baixo custo, que é a padrão dos civis brasileiros para lidarem com questões militares, vamos continuar convivendo com os fantasmas do pretorianismo.

Valor: A invasão do Capitólio nos EUA suscitou um debate mundial. Há risco de Bolsonaro dar golpe com o aval militar?

Amorim Neto: Em dezembro de 2020, o general [Edson Leal] Pujol participou de teleconferência para discutir os planos do Exército para os próximos 10, 20 anos. Falou, de forma muito suave, que a política não deve entrar nos quartéis. Foi a mensagem mais clara que uma liderança institucional das Forças Armadas deu de que o Alto Comando do Exército não vai se associar a aventuras golpistas. Mas resta a questão dos subordinados. Minha interpretação é que o Exército é radicalmente profissional, e a disciplina vai prevalecer. Se o Alto Comando não quer aventura, os escalões intermediários e inferiores não vão entrar nessa. Essa mensagem foi captada pelo bolsonarismo e não à toa passaram a testar outra instituição. Estamos vendo agora o debate sobre a perda de controle das Polícias Militares pelos governadores. O populismo autoritário de extrema direita, a la Trump, vai testando todas as instituições, Congresso, Judiciário, Forças Armadas, polícia... Se perde aqui, tenta acolá. Se a proposta de maior autonomia das polícias militares é aprovada no Congresso, Bolsonaro e o bolsonarismo ganham. Se é derrotada, ele vai dizer: ‘eu tentei, estou sempre junto dos meus seguidores, quem me derrotou foi a velha política, as elites’. Acho que via militar está bem estreita e fechada agora, depois do pronunciamento do general Pujol. E soube que a Marinha mandou informar a lideranças do Congresso que também está fora disso.

Valor: Há chances de esses projetos das polícias prosperarem ou vai depender da eleição no Congresso?

Amorim Neto: Dificilmente passará, inclusive porque o Exército não gostou da ideia. É um desafio ao monopólio e autoridade, sobretudo do Exército, no que diz respeito ao uso da força legítima dentro do território nacional. Para Bolsonaro ser derrotado não é um problema. O fundamental é marcar posição perante o seu eleitorado radical. E tem o segundo benefício: desvia a atenção da má-gestão do governo na pandemia, educação, etc.

Valor: Parte da cúpula militar está ao lado de Bolsonaro. Como ter tanta certeza sobre o que farão?

Amorim Neto: Essa incerteza persistirá até o final do governo. Isso é um grande ativo na mão do Bolsonaro, a incerteza permanente da classe política, do jornalismo, da academia a respeito de para onde vão as Forças Armadas.

Valor: Por que os militares foram para o governo Bolsonaro?

Amorim Neto: Há décadas os militares reclamam de salários baixos e parcos investimentos, além de instabilidade nos gastos de Defesa. Quase todo o orçamento da Defesa vai para custeio, salários. É papel deles reduzir o gasto com pensões e salários, e o que vimos no governo Bolsonaro foi justamente o contrário. E a questão do anticomunismo sempre esteve presente no coração e nas mentes das Forças Armadas, desde a década de 30. Bolsonaro foi hábil ao pegar essa força subconsciente do anticomunismo militar brasileiro e adequá-la ao século 21, chamando-a de antipetismo. E a corrupção sempre foi o catalisador desse anticomunismo e salvacionismo militar.

Valor: Não há chance de impeachment com a militarização?

Amorim Neto: Vai depender muito do resultado da eleição da Câmara em fevereiro. Se o Arthur Lira (PP-AL) vencer, não teremos impeachment. Bolsonaro continua competitivo, mesmo com as perspectivas negativas da economia em 2021 e 2022. Isso porque a oposição continua muito fragmentada, a esquerda continua brigando entre si. A esquerda, se quiser derrotar Bolsonaro em 2022, terá que se unir para apoiar um candidato de centro. Isso é simples e óbvio, mas essa discussão ainda está muito atrasada.


Lorena Barberia: 'Bolsonaro e Obrador expõem vidas para dizer que não têm medo'

Coordenadora da rede que monitora dados da covid-19 no Brasil, Lorena Barberia aponta falta de transparência e afirma que Estados baseiam suas ações em informações incompletas

Daniela Mercier, El País

Passados 10 meses do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil, o país ainda enfrenta a pandemia no escuro. Sem conseguir fazer testagens em massa que forneçam uma dimensão real do número de doentes em fase de contágio —e não somente as infecções acumuladas, que no país já se aproximam de oito milhões— e com problemas na coleta, organização e divulgação de dados que permitam tomar as medidas necessárias na velocidade do avanço do vírus, Governos de Estados e municípios trabalham com estatísticas incompletas para definir suas ações, não convencem a população da importância de aderir a elas e deixam suas medidas vulneráveis a pressões políticas e econômicas. O diagnóstico é da pesquisadora Lorena Guadalupe Barberia (Cidade do México, 49 anos), coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, uma coalizão de especialistas que monitoram e avaliam as políticas públicas de combate à covid-19 em todo o Brasil.

falta de transparência, a existência de bases de dados divergentes e o pouco detalhamento de informações foram obstáculos encontrados logo de início e orientaram o foco de trabalho do grupo, que passou a ser conhecido como caçadores de dados da pandemia. Pesquisadores distribuídos pelos Estados cobram de suas gestões, das capitais e do Governo federal informações sobre questões como número e tipo de testes realizados, fiscalização de medidas de distanciamento e ações para garantir o ensino a distância. Esbarram, novamente, no descaso com as informações. “É uma tragédia. Estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então a falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás”, afirma.

Professora de ciência política da USP, a mexicana que é filha de argentinos, graduada em economia pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, mestra em políticas públicas por Harvard e doutora em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV) compara a gestão do presidente Jair Bolsonaro com exemplos internacionais e analisa que a pandemia escancarou o machismo de governantes como o brasileiro e o mexicano Andrés Manuel López Obrador. “Confundem o enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física e colocam em risco a vida da população para mostrar que não têm medo do vírus”, afirma ela, que além da USP, é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp), da FGV. A seguir os principais trechos da entrevista.

Pergunta. Como foi a criação da Rede de Pesquisa Solidária e como tem sido o trabalho até agora?

Resposta. A Rede começou primeiramente por uma questão pessoal. Eu tenho um grupo de pesquisa voltado para a avaliação qualitativa de políticas públicas. Quando começou a pandemia, em uma reunião do grupo, uma aluna perguntou: “Professora, estamos em uma pandemia. Não vamos fazer nada?”. E isso me despertou para a questão de que, realmente, na área das ciências sociais e de monitoramento de políticas públicas, a gente poderia dar uma contribuição relevante. Com o professor Glauco Arbix, da sociologia [da USP], e o José Eduardo Krieger [InCor-Faculdade de Medicina da USP], pensamos em como criar uma rede multidisciplinar de especialistas conversando sobre a pandemia.

Ficou visível desde o início que existiam pouquíssimos dados para que a gente soubesse a situação real da pandemia. Então uma das nossas primeiras missões foi pensar em como coletar informações para produzir nossos próprios dados, e, assim, avaliar as políticas públicas, colocar isso mais visível para a sociedade e debater soluções com os gestores. E para isso seria preciso produzir dados na velocidade da pandemia.

P. Seu grupo foi apelidado de caçadores de dados, pelo esforço em driblar a falta de transparência e organização dos Governos. Como fazem essa busca?

R. Para avaliar uma política pública, precisamos buscar decretos, portarias e indicadores transparentes disponibilizados pelos Governos. Parte da Rede é formada por advogados que trabalham muito ativamente protocolando pedidos de informação junto aos Estados via lei de transparência [Lei de Acesso à Informação]. Uma área específica em que isso ocorre é a fiscalização das restrições. Os Governos dizem que fiscalizam as medidas de distanciamento físico, então nós queremos saber quais são os dados por bairro, por tipo de infração, ou seja, ter evidências de que essa fiscalização está sendo realmente feita.

Ficamos com essa fama de caçadores de dados da pandemia porque logo no início vimos que para áreas muito importantes há diferentes bancos de dados e eles não estão integrados. Por exemplo, os casos confirmados de covid-19: hoje a gente tem pelo menos três diferentes bancos de dados oficiais —um para buscar informações sobre casos leves, outro para casos graves e hospitalizações, outro para casos em geral... Se você tenta cruzá-los, não há uma correspondência. Descobrir isso foi muito assustador para nós.

P. E em quais tipos de informação esse problema foi encontrado?

R. Ao longo da pandemia, martelamos na defesa de que os Governos precisam produzir dados transparentes e que esses dados precisam ser públicos. E essa discussão tem sido feita principalmente na área de testagem. A gente deveria saber qual é a taxa de positividade por tipo de teste. É um indicador fundamental, mas se a gente acessar hoje, em dezembro, o site do Ministério da Saúde, não encontraremos dados satisfatórios. Então o que fizemos? Criamos um grupo de trabalho em cada Estado e estamos protocolando via lei de transparência pedidos de informação sobre testagem. A nossa preocupação são os testes de casos ativos, que permitem fazer isolamento e rastreamento de contágios. Para reduzir a transmissão, precisamos saber os resultados dos exames RT-PCR. Os testes sorológicos [que buscam saber se o paciente já possui anticorpos contra o vírus, ou seja, se ele já se infectou no passado] e os PCR [que detectam o material genético do vírus naquele momento, portanto, as infecções ainda ativas] não dizem a mesma informação, precisam estar separados. Mas ainda hoje não existe essa informação sistematizada, abrangente, que permita um monitoramento.

Lugares que foram bem-sucedidos no mundo no controle da pandemia, como a Coreia do Sul, investiram em testagem. E é exatamente nessa área que temos falhado muito. Mesmo hoje, em que falamos de vacina, de uma nova esperança, precisamos nos preocupar em fazer mais testes.

P. Qual é o tamanho dessa equipe envolvida nos pedidos de informação junto aos Estados e como tem sido a resposta dos Governos?

R. À medida que o trabalho foi crescendo, a rede começou a fazer parcerias —a gente trabalha muito com o Observatório Covid-19 BR e com várias redes locais nos Estados. Hoje a Rede de Pesquisa Solidária faz parte de uma outra grande rede, uma rede de redes de pesquisadores engajados em buscar e compartilhar informação sobre a pandemia, com a consciência de que precisamos trabalhar colaborativamente para salvar vidas. Temos um trabalho muito abrangente pelo país graças a essas parcerias. Só na área de testagem são mais de 100 pesquisadores, em todos os Estados, trabalhando com a gente.

Infelizmente, a parte mais difícil do trabalho é que não temos visto interesse dos Governos em dar um retorno com rapidez e transparência. Muitas vezes eles demoram a responder, depois os dados não vêm na forma que a lei exige, aí recorremos, eles mandam de novo e ficamos meses nessa negociação. É uma tragédia, porque nós, pesquisadores, estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então essa falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás.

O caso do Governo federal é mais grave porque ele poderia ser uma liderança nessa questão de padronizar os dados e disponibilizá-los facilmente, mas o que acontece no Brasil é justamente o oposto. Muitas vezes, o Governo retira dados da plataforma, demora a fornecer informações muito básicas, de forma que estamos muito aquém dos padrões internacionais. E somos um país que já possui um sistema de saúde pública, que tem muita infraestrutura que poderia ter sido alavancada e utilizada na questão da informação.

P. E em quais países essa informação foi disponibilizada de forma melhor?

R. Um lugar em que isso funcionou melhor foi na Argentina. Lá tanto o Governo federal quanto os locais foram muito transparentes desde o início para divulgar os dados da pandemia. Há informações muito específicas, por bairro, por tipo de surto, mapeando grupos vulneráveis. E o que é muito importante é que esses dados estão disponíveis em um arquivo CSV [formato que possibilita a leitura por diversos programas, como o Microsoft Excel], não é uma página na Internet em que você leva uma hora para baixar os dados de que você precisa ou em que se você clica de um gente dá certo, se você clica de outro vai para outro lugar. A Argentina permite que você baixe os dados e já comece a analisá-los. No Brasil, nós temos que passar mais tempo não analisando os dados, mas tentando coletá-los.

Isso tem começado a melhorar em algumas localidades —o Espírito Santo e o Ceará são bons exemplos de transparência dos dados de testagem desde o início do enfrentamento da pandemia. Mas não em São Paulo, que foi o epicentro, o Estado mais rico do país, onde isso poderia ter funcionado melhor logo no início e ainda permanecem grandes lacunas em várias questões.

P. No plano nacional, tivemos ao menos dois grandes apagões de dados sobre a covid-19, um em junho, com uma mudança na plataforma do Ministério da Saúde, e outro em novembro, com a instabilidade do sistema que impediu alguns Estados de atualizarem as suas estatísticas. Quais foram as consequências desses problemas?

R. Hoje tudo o que sabemos da pandemia depende dos dados de notificação de casos e óbitos. Dez meses após o início da pandemia, quando a gente fala que o Brasil registrou 1.000 óbitos em um dia, ainda estamos falando de mortes que foram notificadas agora mas que podem ter ocorrido em qualquer momento ao longo desses meses, enquanto que em outros países conseguimos acompanhar as mortes pela data em que ocorreram. Isso é um problema básico. Com isso, quando temos alguma pane como essa dos Estados e não é possível alimentar algum dado, depois vamos ver um pico [nas estatísticas]. A confusão nos números da pandemia é tão grande que esse dado não tem uma utilidade real para o gestor. Como os Governos podem justificar suas medidas de flexibilização usando esse tipo de dado?

E esse problema leva para outra questão, que são os dados sobre leitos. Um dos principais critérios que os Governos usam em seus planos de reabertura é a taxa de ocupação de leitos de UTI [para pacientes com covid-19]. Porque como não há dados confiáveis sobre testagem e sobre casos e óbitos, dependemos de relatórios hospitalares para saber como está a situação. Mas aí já é tarde. Ter uma UTI lotada significa que houve uma transmissão descontrolada nesse local semanas ou meses antes e que não agimos no momento em que precisávamos ter agido para poupar vidas.

P. No início da pandemia, a senhora chegou a elogiar a iniciativa de Governos locais de, à frente do Governo federal, implantar suas próprias medidas de distanciamento. Qual é a análise que faz dessas medidas agora e dos processos de reabertura?

R. Um dos nossos principais estudos hoje é o mapeamento dos planos de flexibilização de cada Estado. No início falamos: “Os Governos reagiram”. Essa corrida foi de fato importante, mas não quer dizer que não teria sido melhor com um esforço nacional mais coordenado. Por exemplo: se logo no início da pandemia tivéssemos determinado que pessoas que chegassem do exterior em todo o país fizessem quarentena por 14 dias, isso teria sido muito mais inteligente do que fechar todas as escolas no Maranhão. Então os Estados deram uma resposta fragmentada e não necessariamente coerente com a situação na pandemia naquele lugar.

Uma outra questão que chama muito a atenção nos planos de flexibilização é a divisão do Estado em regiões. Da mesma forma que falamos que o vírus não respeita fronteiras, ele também não vê que determinada região de São Paulo é vermelha e outra é laranja. Essa classificação cria uma confusão muito grande. Tem Estado com 12 fases de flexibilização, outros têm três... Passa a impressão de que a pandemia é algo muito gradual, que você pode ir fechando e abrindo [as atividades] aos pouquinhos, e não comunica corretamente qual é o nível de risco. O que a população precisa saber é: a situação é grave ou não? Qual é a conduta adequada? Mas em vez de discutir qual deveria ser a conduta mínima de segurança para os moradores de todo o Estado, ficamos discutindo que em tal lugar pode abrir até as 18h e em outro pode abrir até as 22h... Isso significou muita confusão e prejudicou a adesão às medidas.

Especialistas defendem que uma resposta radical e severa por duas semanas você conseguiria um controle muito mais eficiente do que fazer uma quarentena prolongada, mal fiscalizada e que não prática não está limitando nada.

P. Como avalia o Plano São Paulo, de restrições no Estado?

R. Em São Paulo, além da questão da divisão do Estado, os pesos dos indicadores [usados para nortear a reabertura] foram mudando ao longo da pandemia [em julho, por exemplo, o Governo flexibilizou de 60% para 75% o limite de leitos de UTIs ocupados com pacientes de covid-19 necessário para uma região passar da fase amarela para a verde, mais branda]. As estratégias foram mudando para ceder a pressões políticas. Vimos isso em dezembro: o governador [João Doria, PSDB] tentou proibir a venda de bebidas alcoólicas depois das 20h. A associação de bares e restaurantes contestou e venceu na Justiça. Por que isso aconteceu? Porque os Governos estão em uma saia-justa: têm que decidir entre serem muito rígidos, fechando tudo, ou deixarem tudo aberto e perderem o controle. O meio-termo não existe, porque eles precisam negociar com cada setor. E também não há fiscalização.

P. Ao longo desses 10 meses, passamos pela negação da gravidade da pandemia pelo Governo Bolsonaro, por duas trocas de ministros, pelo apagão de dados do Ministério da Saúde e agora por um impasse na elaboração do plano de vacinação. A senhora ainda se surpreende com a gestão brasileira da pandemia? Qual é o saldo?

R. Já temos amplas evidências para falar que é uma conduta irresponsável e criminosa, porque custa vidas. Mas minha leitura de cientista política é que essa é uma estratégia pensada de não se responsabilizar pela pandemia. Parte do diagnóstico de quem sabe que vai perder se decidir responder e enfrentar a pandemia. Coordenar um enfrentamento traria mais responsabilidade e julgamento sobre as ações do Governo Federal. Então a única chance que Bolsonaro tem de ser competitivo em 2022 é se distanciando do problema e colocando a culpa da crise nos governadores e prefeitos. Por isso ele não conseguiu realmente apoiar prefeitos nessas eleições. Ele não poderia se alinhar.

P. No México, a gestão de López Obrador também tem sido criticada e marcada pelo negacionismo. Como compará-la ao Governo Bolsonaro?

R. São dois casos importantes para discutir o machismo de presidentes na pandemia. Tanto Bolsonaro quanto Obrador fazem questão de mostrar que são machos de verdade, e por isso colocam em risco a vida da população e a deles, se expondo sem máscara, para dizerem que não têm medo do vírus. Confundem a capacidade de enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física, com sua masculinidade. Quando você vê o discurso de mulheres, como a Merkel na Alemanha ou a primeira-ministra da Nova Zelândia [Jacinda Ardern], elas não fazem questão de trazer a pandemia para um nível tão pessoal. Alguns presidentes buscam manter essa imagem de homem forte: Brasil, México, Venezuela [com Nicolás Maduro]. Mas essa postura não foi adotada no Uruguai [governado por Luis Lacalle Pou. Então não é uma questão de como partidos de direita ou Governos populistas reagem, é mais uma questão de característica pessoal.

P. O que esperar da pandemia no Brasil em 2021?

R. Sendo realista, acredito que 2021 vai ter uma cena muito parecida com a que o país enfrentou em 2020, só que com a economia muito mais frágil, uma sociedade muito polarizada e com essas lacunas de infraestrutura no combate da pandemia que a gente não arrumou. Vamos ter uma situação muito complicada, porque a população está imaginando que vai chegar logo uma vacina, mas vacinar o Brasil inteiro vai ser um processo complexo, e a gente ainda vai precisar fazer muito distanciamento físico, ainda vai precisar fazer muita testagem. Estamos entrando em um momento grave, e o que me preocupa é: ou os Governos adotam medidas mais severas, entendendo que precisam atuar agora, ou estaremos no caminho de virar os Estados Unidos ou pior.


Folha de S. Paulo: Pandemia deixou óbvio que vivemos em um país desgovernado, diz Frei Betto

Em novo livro, frade dominicano e escritor faz reflexões sobre Covid-19, memória e política

Fernanda Canofre, Folha de S. Paulo

Os meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido de isolamento para Frei Betto, 76. Dividindo-se entre o convento dominicano, em São Paulo, e um sítio, entre palestras virtuais e a escrita, ele conta que sai apenas esporadicamente para ir a consultas médicas de rotina.

As reflexões sobre os primeiros três meses deste período foram reunidas recentemente em “Diário de Quarentena – 90 dias em Fragmentos Evocativos”, publicado pela editora Rocco.

Este é o mais recente da lista de 69 livros assinados pelo frade dominicano, reunião de ensaios, artigos, registros de notícias sobre o avanço da Covid-19, poemas, memórias da ditadura e de pessoas próximas, como frei Tito, amigo que foi torturado pelo regime.

“Colocar no papel ou computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz ele, em um dos trechos, onde sugere escrever um diário entre as dicas de como enfrentar a reclusão forçada, lembrando os dias em que foi mantido em solitárias nos Dops (Departamento de Ordem Político Social) de Porto Alegre e de São Paulo.

Apenas no estado de São Paulo, ele conta que ainda foi mantido no quartel-general da Polícia Militar, no Batalhão da Rota, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.

A lista de dicas é endereçada a um homem, casado há mais de 20 anos, hipertenso, e que resiste a ficar em casa, para angústia da mulher. Os dois aparecem em entradas variadas pelo diário, e ele acaba contraindo o vírus no decorrer do primeiro mês de uma quarentena que ainda teria muito tempo pela frente.

Ao pedido de entrevista da Folha, Frei Betto preferiu que a conversa fosse por email, pelo qual respondeu sobre a pandemia e questões políticas do cenário nacional, como as eleições municipais e o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de BolsoNero, em referência ao imperador de Roma.

Frei Betto, que foi assessor especial da Presidência da República em 2003 e 2004, no governo Lula, diz no "Diário" que a mineirice o preservou de ambições políticas e que o maior erro da esquerda foi o abandono do trabalho de base.

“Lembre-se de que jamais fui militante de qualquer partido político. A meu respeito correm duas lendas sem respaldo na verdade e na realidade: a de que sou sacerdote (sou apenas um religioso leigo) e militante partidário”, ressaltou ele durante a correspondência virtual com a reportagem.

O seu livro mais recente, de um total de 69 publicados, traz textos que o senhor escreveu num período de três meses de quarentena. O senhor acha que alguma lição foi tirada da pandemia? Ficou óbvio que vivemos num país desgovernado, cujos quase 200 mil mortos pela pandemia foram vítimas de um presidente que sofre de tanatomania.

O Brasil voltou a registrar mais de mil mortos em um único dia em decorrência do novo coronavírus. Como estamos encarando essas mortes? Parece que a nossa população sofre também de isolamento psicológico. Esse genocídio, causado pelo descaso do governo, bem como as tragédias de Mariana Brumadinho, deveriam suscitar grandes mobilizações populares, como ocorreu nos casos George Floyd e, aqui, João Alberto. Perdemos a empatia. O sofrimento do outro não dói em nós. Mas devemos guardar o pessimismo para dias melhores.

O senhor se considera otimista, então, hoje? Tudo que os demolidores, como BolsoNero, querem é que percamos o ânimo e fiquemos à mercê de seus arroubos autoritários. Quando constato que, numa cidade conservadora como São Paulo, Guilherme Boulos passou para o segundo turno e teve mais de 2 milhões de votos, a esperança renasce. O bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições municipais, como será varrido do mapa em 2022.

Em entrevista recente ao jornal argentino Página 12, o senhor disse que as eleições deste ano seriam um termômetro interessante para avaliar o olhar do população. Pela primeira vez desde 1985, o PT ficou sem governo nas capitais. Qual a leitura o senhor faz desse resultado? Enquanto os partidos progressistas não tiverem consenso em torno de um Projeto Brasil, continuarão sem condições de produzir uma alternativa de poder. E precisam retomar o trabalho de base popular. A cabeça pensa onde os pés pisam. ​

Qual foi o erro que levou a esse resultado em 2020? Em 2018, a direita soube manipular muito bem, em especial pelas redes digitais, o antipetismo alimentado pelas tramoias da Lava Jato que fomentaram uma narrativa moralista capaz de induzir muitos a esquecerem os avanços, sobretudo na área social, dos 13 anos de governo do PT. Já em 2020 PT, PSOL e PC do B deveriam ter feito mais alianças. Agora, é hora de retomar o trabalho de base popular e definir estratégias na guerra digital.

O que o PT precisa fazer para reverter isso em 2022? E como o senhor vê a figura do ex-presidente Lula nesse contexto? Lula é o mais importante líder popular do Brasil. Tem o papel fundamental de articular esse Projeto Brasil criando, agora, um fórum de partidos e movimentos sociais progressistas.

Lula deveria articular esse projeto em torno de si ou com um novo nome? Quem o senhor vê hoje como sucessor dele? Para 2022 a oposição, se lograr unidade, conta com ótimos candidatos: Lula, Boulos e Flávio Dino são três exemplos. Considero Lula um ótimo candidato a presidente em 2022 [o ex-presidente, porém, hoje está barrado pela Lei da Ficha Limpa]. Quanto ao Projeto Brasil, deverá resultar da articulação entre os partidos progressistas e os movimentos sociais.

Em 2021, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) completa cinco anos. O senhor chegou a dizer que Lula devia estar arrependido por não ter sido ele o candidato em 2014. Continua pensando assim? Sim, Lula deveria ter sido candidato em 2014. Com o patrimônio de dois mandatos presidenciais e 87% de aprovação, o PT não teria que, de novo, começar do zero. Dilma foi bem no primeiro mandato, mas perdeu o rumo no segundo.

Quais lições ficaram destes últimos cinco anos? Fora do povão não há salvação. O afastamento dos partidos progressistas das periferias, favelas e zonas rurais pobres, o refluxo das comunidades eclesiais de base, devido aos pontificados conservadores de João Paulo 2º e Bento 16, abriram espaço, no universo dos marginalizados e excluídos, ao fundamentalismo religioso que alavancou a eleição de BolsoNero.

Temos que fortalecer os movimentos sociais e começar a sinalizar que é uma falácia candidaturas de centro à Presidência da República.

Todos que, agora, se fantasiam de centro são, na verdade, convictos defensores das pautas políticas e econômicas da direita, como a prevalência da apropriação privada da riqueza sobre os direitos coletivos e o 'direito' de as empresas brasileiras sonegarem mais de R$ 400 bilhões por ano. Nenhum deles aprovará uma reforma tributária progressiva, que afete a fortuna dos mais ricos e favoreça os mais pobres.

Bolsonaro sempre tentou se aproximar do voto cristão, de católicos e evangélicos. Como um religioso, o que o senhor acha dessa postura? Ele usa e abusa do nome de Deus em vão. Um presidente que libera armas, que matam, e trava vacinas, que salvam vidas, se compara àqueles que Jesus qualificou de 'sepulcros caiados'.

Em um discurso deste ano na ONU, ele falou sobre "combate à cristofobia". Existe cristofobia no Brasil? Só na cabeça dele, que ainda procura assustar o povo com o fantasma do comunismo, mantém um ministro que passa a boiada por cima de todos os princípios de preservação ambiental e um outro que isola o Brasil, agora órfão da tutela da Casa Branca.

O senhor viveu a repressão da ditadura militar e teve pessoas próximas mortas pelo regime. Como encarou a eleição de Bolsonaro? Como uma tragédia consentida pelo Judiciário, pois como apologista da tortura, da ditadura, do racismo, da misoginia e do golpismo, deveria ter sido impedido de se candidatar.

No último texto que publicou nesta Folha, em outubro deste ano, o senhor critica a decisão judicial que proibia o uso de "católicas" no nome do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. O senhor também publicou aqui uma carta de uma neocristã que fez um aborto. Qual a posição do senhor sobre o tema? Aprovo o sistema francês, no qual tudo se faz para evitá-lo mas, em última instância, a decisão é da mulher. Já propus a várias jovens que, surpreendidas com uma gravidez inesperada, vieram ao convento com seu drama de consciência: tenham o filho e tragam aqui que eu crio. Nenhuma, que eu saiba, abortou. E ganhei um monte de afilhados...

O senhor também fez parte do Fome Zero. Como vê a questão do enfrentamento à fome hoje? Um dos escândalos da atualidade é o fato de a Covid-19 já ter matado quase 1,7 milhão de pessoas no mundo, o que provoca fantástica mobilização em busca da erradicação do vírus, enquanto a fome mata cerca de 24 mil pessoas por dia, 9 milhões por ano, e quase ninguém se mobiliza. Por quê? Porque a fome faz distinção de classe, a Covid não.

O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 e, agora, corre o risco de retornar. Segundo a Oxfam, 5,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, sem contar os que não ingerem os nutrientes essenciais, como proteínas e vitaminas.

A fome é o retrato mais cruel da desigualdade social no Brasil. E, apesar disso, o governo Bolsonaro erradicou o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e mantém total indiferença à questão da segurança alimentar, embora o nosso país seja considerado 'celeiro do mundo'.

RAIO-X

Frei Betto, 76
Frade dominicano e escritor, nasceu em Belo Horizonte. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 69 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional


Folha de S. Paulo: Bloco de sucessão na Câmara é sinal forte sobre aliança para 2022, diz Maia

Presidente da Casa reclama de condução do governo Bolsonaro na pandemia e diz que marca de sua gestão foi recuperar 'protagonismo' do Parlamento

Danielle Brant  e Julia Chaib, Folha de S. Paulo

 BRASÍLIA - O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), encerra em fevereiro de 2021 o último de três mandatos seguidos à frente da Casa.

Em entrevista à Folha, ele avalia que a marca de sua gestão foi recuperar o protagonismo do Parlamento, além de ressaltar o papel do Congresso no combate à pandemia.star

Nos últimos dias, Maia anunciou a formação de um bloco para a disputa da sua sucessão que reúne 280 deputados, de partidos de centro-direita e direita (DEM, MDB, PSDB e PSL) e de oposição, como PT, PC do B, PDT e PSB.

O candidato é Baleia Rossi (MDB-SP), que vai disputar o cargo com Arthur Lira (PP-AL), líder do chamado bloco do centrão e apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O seu grupo na disputa, avalia Maia, é um ensaio para a eleição presidencial de 2022 e "um grande passo" para diminuir as radicalizações no país.

Como o senhor avalia a sua gestão? 

Nós tivemos durante um longo período do ano passado e até o meio da pandemia o entorno das redes sociais do governo, do presidente, com muita agressão ao Parlamento, ao Supremo e às instituições democráticas.

Na pandemia, se não fosse o Congresso, a maioria dos projetos mais importantes não teria andado. Acho que foram dois anos de uma experiência muito interessante e perigosa nesse enfrentamento, que chegou até a se jogar fogos em direção ao Supremo Tribunal Federal.

A experiência adquirida anteriormente me ajudou a manter o equilíbrio, manter o diálogo institucional e, principalmente, com os ministros técnicos do governo, para que a Câmara pudesse ter um protagonismo importante [após a entrevista, acrescentou, em mensagem, que seu maior arrependimento foi ter 'levado o Paulo Guedes a sério'].

O sr. teve uma trégua no relacionamento com o Paulo Guedes, mas depois desandou. O sr. conversou com ele no último mês? 

Não estou rompido com ele não. Mas eu não preciso [dialogar com ele]. Votamos tudo sem a gente precisar ter um diálogo.

Algumas votações defendidas pelo sr. não ocorreram. Por exemplo, a PEC Emergencial, que poderia abrir espaço para ampliar o Bolsa Família. 

Do meu ponto de vista, foi um erro [deixar para 2021]. A gente deveria ter avançado, com toda polêmica. Porque era um desgaste menor abrir espaço no Orçamento e garantir a ampliação do Bolsa Família do que deixar milhões de brasileiros sem nenhum tipo de proteção, mesmo que a proteção fosse um valor menor que o valor do auxílio emergencial.

Por isso que eu sempre defendi que a reforma mais importante naqueles últimos meses era a PEC Emergencial. Por isso defendi a não entrada em recesso por parte do Congresso, mas o governo interpretou isso como uma tentativa de usar o plenário da Câmara na minha sucessão.

O sr. chegou a dizer que havia maioria para aprovar a reforma tributária. Por que não pautou? 

Não votar a reforma tributária foi, do meu ponto de vista, um erro grave do governo. A gente não está aqui só para dizer que aprovou coisa, estamos aqui para aprovar com diálogo, e a tributária precisa do diálogo com o governo.

Mexer nos tributos sem estar organizado com a Receita, com os técnicos do governo... seria um capricho meu tentar avançar sem isso estar bem organizado. Voto tem, e tenho certeza de que no início do ano vai ser votado, mas a questão política prevaleceu em detrimento da sociedade brasileira.

Nessas semanas foram muitos projetos obstruídos pelos partidos da base do governo. O senhor viu uma tentativa do governo de tentar minar o final de sua gestão? 

Eu acho que sim, mas acho que erraram, né? A última semana de trabalho mostrou que a Câmara tem uma maioria que quer aprovar projetos. A equipe política, no final, fez política populista. Deixou a pauta em aberto para eu pautar. Mas tenho responsabilidade. E de nenhuma forma tento aprovar projetos que não sejam dialogados com os quadros técnicos de cada uma das áreas das matérias.

Ter conseguido vencer a obstrução pode ser encarado como um fator positivo? 

Acho que é uma sinalização forte que a base que o governo construiu na Câmara não é majoritária. Mostra que o que foi vendido ao presidente, que teria uma base majoritária na Câmara, não é um dado da realidade. Não significa que ele não tenha apoio para aprovar reformas que modernizem o Estado brasileiro, isso ele tem. Agora, ele não tem uma maioria política no plenário da Câmara dos Deputados.

Supondo que o Baleia [Rossi, candidato do bloco de Maia] vença as eleições, o senhor acha que ele pode enfrentar obstrução no início dos trabalhos? 

Não, porque a base do governo acabou sendo usada pelo interesse do candidato do presidente Bolsonaro. Acabada a eleição, acabou essa disputa.

Mas o seu grupo construiu uma candidatura de oposição ao governo. O que faz o senhor acreditar que esse diálogo com o Executivo vai se dar de forma harmônica? 

Não estamos em oposição a ninguém, estamos a favor da democracia, da liberdade, do meio ambiente. O nosso campo vota majoritariamente a favor da agenda econômica do governo. Após a sucessão, é óbvio que a agenda econômica vai continuar sendo liberal. Eu sempre disse que o perfil que eu acredito vencedor da Câmara vai ser alguém que seja independente.

O senhor acha que o Arthur Lira não é um candidato que garante independência à Câmara? 

Eu não vou tratar do candidato do Bolsonaro. Eu trato da candidatura que nós defendemos. O governo muitas vezes defende pautas que geram o conflito, o ódio na sociedade, como na pauta ambiental e de costumes.

Quando você transfere para o Congresso essas pautas, você transfere, primeiro para a Câmara, essa polarização que não tem sido boa para a sociedade. Temos convicção que esse bloco que nós representamos afirma a importância e defende a independência da Câmara.

A gente passou o ano na expectativa de uma definição no Supremo ou no Congresso sobre a possibilidade de reeleição. O sr. se arrepende de não ter deixado claro que não seria candidato? 

No meio do julgamento não ia dar a minha opinião. Mas antes disso todo mundo sabia. Eu disse claramente a alguns ministros do Supremo com quem conversei que não seria candidato. Mas eu não vou entrar nessa especulação, é besteira. Imagina se alguém tem poder de influenciar o plenário do Supremo. É diminuir e minimizar a importância de 11 ministros.

O sr. conversou com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, desde a decisão do Supremo? A decisão pelo nome do Baleia também passou pelo Senado? 

Não, não conversei, mas eu estou tratando da Câmara e ele do Senado. Não conversei com ninguém do Senado, nenhum senador, nenhum senador do MDB, do DEM.

O PT fez uma reunião no dia do anúncio em que colocou ressalvas a Baleia. Por que o Baleia, se o maior partido de oposição tem resistência a ele? 

Esse é um processo de construção política. E temos um bloco que representa 280 parlamentares. E a representação dos 280 de forma majoritária compreendeu que o melhor caminho seria pelo Baleia, que começaria unificando o MDB e, dali para frente, unificaria toda a base. E ele tem toda a condição, como o Aguinaldo [Ribeiro, do PP] tinha, de construir uma relação com o PT, com o PSB, PDT e PC do B para que a gente tenha todos os votos unidos da esquerda.

Há o compromisso com a oposição de não pautar privatizações? 

Não. Não há compromisso de deixar de pautar matéria alguma.

Esse bloco que o senhor formou pode ser um ensaio para 2022? 

A nossa demonstração é que a gente pode dialogar, que a gente pode sentar numa mesa, divergir, mas construir consensos, construir projetos que, de fato, caminhem no interesse da sociedade brasileira. Acho que isso é o que esse bloco mostra, que a gente é capaz, mesmo tendo muitas diferenças em muitos temas, de sentar numa mesa e discutir a nossa democracia e o interesse do Brasil. Eu acho que é um sinal forte de que parte desse bloco pode estar junto em 2022. Nós demos o grande passo para reduzir de vez a radicalização da política brasileira. O [Winston] Churchill tem uma frase muito interessante: 'Aqueles que nunca mudam de ideia nunca mudam nada'.

E, nesse sentido, o senhor acha que é difícil ter uma chapa com a oposição...

Olha, nós temos uma grande dificuldade na pauta econômica, mas nada que não possa ser pactuado para uma eleição em 2022 e parte desse bloco possa estar junto.

E quem se encaixa melhor nesse perfil pensando em 2022? O Luciano Huck ou o João Doria? 

Acho que são dois ótimos nomes. Tem o próprio ACM Neto [presidente do DEM] que é um ótimo nome, tem o Ciro Gomes [PDT] que é um ótimo nome, o Paulo Câmara [PSB] está terminando o governo [de Pernambuco], quem sabe ele também queira participar. Então acho que a gente tem que dialogar.

Qual vai ser a atuação do senhor nisso? 

Sou um deputado do DEM. Estou à disposição do DEM para ajudar na construção de uma chapa, que possa ser a mais ampla possível e que possa ter um projeto de nação. Hoje nós infelizmente não sabemos qual o projeto desse governo.

Vários países começaram a vacinar, e o Brasil mal tem um plano de vacinação. Como o sr. vê o enfrentamento do governo nessa questão? 

A vacina é o único caminho para que o Brasil retome a sua normalidade e a gente garanta vidas. É lastimável a posição do governo negando a vacina, não tendo um plano, não organizando e vendo os outros países inclusive da própria região começando a vacinar. E a cada dia de atraso na vacina são mil mortos no Brasil, vidas que a gente perde pela incompetência e falta de responsabilidade do governo.