entrevista
Jorge Caldeira e os 199 anos da Independência do Brasil
Escritor analisa as conquistas históricas da Declaração de Independência e defende a economia sustentável para o futuro do país
João Rodrugues, da equipe da FAP
O Brasil completa hoje 199 anos da Independência, marcada pelo grito Dom Pedro I, às margens do Rio Ipiranga, em 7 de setembro de 1822. Neste episódio extra, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) conversa com o escritor Jorge Caldeira. Ele analisa as conquistas desses 199 anos da Declaração de Independência, os fatos históricos do período e o que esperar para os próximos anos do nosso país. Além de escritor, Jorge Caldeira é historiador, jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).
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As lições da colônia, império, ditadura militar e o negacionismo do atual governo brasileiro também estão entre os temas do podcast. O episódio conta com áudios da telenovela Novo Mundo, da TV Globo, programa Roda, UOL (entrevista de Natalia Pasternak) e do site História em Meia Hora.
Além de eventuais edições extras, o Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
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O que está em jogo no Brasil é ruptura do pacto civilizatório de 1988
Constante deslegitimação das instituições democráticas colocam em xeque a possibilidade de um país menos desigual
Ricardo Machado / IHU Online
O clima de sucessão presidencial no Brasil está posto. Mas a tensão comum desses períodos, apesar de o debate estar bastante adiantado, com mais de um ano de antecedência em relação ao pleito, mostra que a escalada da violência política subiu mais alguns degraus. “Não há dúvida nenhuma de que temos uma combinação bastante perigosa, com uma militância extremista radicalizada e uma liderança disposta a tumultuar e melar o processo. Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política, pior ainda do que aquela ocorrida durante a campanha das eleições de 2018”, pontua o professor e pesquisador Luis Felipe Miguel, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Embora em várias pesquisas Lula apareça como líder das intenções de voto, as condições de um possível retorno e de governo do ex-presidente são bastante diferentes de 20 anos atrás. “Lula chegou à presidência nas eleições de 2002 com o compromisso de se manter em um programa de extrema moderação para não assustar a burguesia e a promessa de pacificar o país, por meio da inclusão social, sem afetar os privilégios dos grupos minoritários”, explica.
No entanto, explica o professor, a margem de manobra para que um hipotético governo Lula promova políticas compensatórias de combate à pobreza é bastante adversa. “O estado brasileiro foi severamente atingido pelas medidas de redução da sua capacidade de ação tomadas a partir do governo Michel Temer e porque existiu nesse período um processo de retirada brutal de direitos”. A instabilidade democrática não somente coloca em risco o futuro do Brasil, como compromete o pacto firmado com a Constituição de 1988, que, segundo o entrevistado, “apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil”.
Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília - UnB e graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Leciona no Instituto de Ciência Política da UnB, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Publicou, entre outros, os livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2017) e Dominação e resistência (Boitempo, 2018).
Confira a entrevista.
IHU – Como o senhor avalia o atual cenário político brasileiro, com ameaças de golpe, tentativas de deslegitimação das urnas eletrônicas e um processo constante de questionamento e tensionamento entre as instituições?
Luis Felipe Miguel – Bolsonaro é um político de baixa competência, que não sabe negociar, que não tem capacidade de agregar e não sabe trabalhar coletivamente, como prova, aliás, sua incapacidade de formar um partido. Toda sua estratégia consiste em manter elevado o nível da tensão política. Graças a isso sua base fica mobilizada agressivamente e mantém os adversários na defensiva. No momento em que as chances eleitorais dele estão claramente se reduzindo para 2022, ele está optando por aumentar ainda mais o nível desta tensão que já foi mantida alta durante todo o mandato. Claramente está apostando em uma virada de mesa, ou seja, um novo golpe, a contestação do resultado das eleições de 2022 ou mesmo a tentativa de impedir a realização das próximas eleições. Ou está apostando em garantir que após a sua provável derrota nas urnas ele terá uma base militante minoritária, mas muito aguerrida, capaz de garantir que ele e seus familiares não sejam atingidos pelas medidas punitivas às quais certamente fazem jus, dadas todas as evidências recolhidas até aqui.
Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política – Luis Felipe Miguel Tweet
IHU – Estando a mais de um ano das eleições, o que é possível projetar sobre o próximo pleito, senão do resultado, ao menos de suas condições de realização?
Luis Felipe Miguel – Sobre as eleições do próximo ano, creio que a única coisa que se pode dizer com algum grau de certeza é que, infelizmente, serão realizadas em um contexto de muita tensão. O bolsonarismo tem trabalhado para que não tenhamos uma campanha eleitoral com o mínimo de civilidade, de discussão sobre as alternativas para o país, sobre o significado das candidaturas. O que ele está fazendo é, deliberadamente, produzir suspeitas infundadas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que insufla sua base – composta por uma parte importante de homens armados – contra as candidaturas alternativas à dele, em particular aquela que é favorita neste momento, a do ex-presidente Lula.
Não há dúvida nenhuma de que temos uma combinação bastante perigosa, com uma militância extremista radicalizada e uma liderança disposta a tumultuar e melar o processo. Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política, pior ainda do que aquela ocorrida durante a campanha das eleições de 2018.
Sobre as eleições do próximo ano, creio que a única coisa que se pode dizer com algum grau de certeza é que, infelizmente, serão realizadas em um contexto de muita tensão – Luis Felipe Miguel. Tweet
IHU – A pesquisa da XP/Ipespe divulgada no dia 17/8 indica que, no primeiro turno, Lula tem vantagem sobre todos candidatos e que, no segundo turno, tanto Lula quanto Ciro são capazes de vencer Bolsonaro. O que essa pesquisa sugere sobre o atual contexto político?
Luis Felipe Miguel – Este cenário tem reaparecido em todas as pesquisas mais recentes. Não há dúvidas de que há hoje um claro favoritismo do ex-presidente Lula, não apenas pontuando com larga vantagem sobre os adversários, particularmente sobre Bolsonaro no primeiro turno, ganhando com larga vantagem no segundo turno, como também existe uma tendência de queda da rejeição ao nome do ex-presidente Lula. Parece que o fantasma do antipetismo, que foi muito importante para garantir a vitória da extrema direita em 2018, e que ainda é apresentado por alguns candidatos que tentam se viabilizar como sendo um fator determinante na eleição, começa a ser superado.
Creio que vários fatores contribuíram para isso e gostaria de citar três em particular.
1) O primeiro, claro, é o desastre absoluto do governo resultante da campanha antipetista, que é o governo Bolsonaro. Um governo que trouxe ao país um rastro de destruição e demolição do Estado brasileiro, das instituições democráticas, além, é claro, da nossa contagem de centenas de milhares de mortos, em grande medida resultado da condução absolutamente irresponsável da pandemia.
2) O outro fator é a desmoralização da Operação Lava Jato. Desde sempre pesavam suspeitas mais do que sérias sobre a condução da Lava Jato por Sergio Moro e Deltan Dallagnol, além de outros participantes da força-tarefa. A partir sobretudo das revelações feitas pelo The Intercept Brasil, ficou mais do que evidente que a operação foi uma conspiração contra a democracia brasileira, e o ex-presidente Lula foi o principal alvo desta conspiração. Isso claramente pode reverter uma parte da antipatia construída contra ele.
3) O terceiro motivo se liga a quando Lula é finalmente solto de sua prisão política e arbitrária e, depois de recuperar os seus direitos políticos, consegue, rapidamente, se colocar diante do país como sendo a grande esperança de superação da situação em que nos encontramos. Naquele momento o Brasil testemunhava o pior momento da pandemia, e isso em uma situação em que as outras lideranças da oposição, particularmente as de direita, que o governador (João) Doria buscou encarnar em primeiro lugar, mostraram-se pouco capazes de conter o desastre que o bolsonarismo representava. Naquele momento Lula se tornou capaz de ser, tal como havia sido nas eleições de 2002, uma esperança de salvação para o país. Isso está se refletindo nas pesquisas de opinião.
Claramente é impossível fazer previsões faltando mais de um ano para o pleito de 2022, mas Lula entra na campanha eleitoral com essa bagagem de simpatia, novamente portador da esperança popular e isso, sem dúvida nenhuma, faz com que o favoritismo dele tenha um certo grau de solidez.
Acredito ser improvável que um terceiro nome alce voo, exceto na hipótese, infelizmente remota, do impedimento de Bolsonaro
Luis Felipe Miguel
IHU – Aliás, como o senhor avalia a possibilidade de uma terceira via? Quais são as condições hoje e quais as possibilidades de mudança até as eleições?
Luis Felipe Miguel – Acredito ser improvável que um terceiro nome alce voo, exceto na hipótese, infelizmente remota, do impedimento de Bolsonaro. Ou seja, de que ele não possa apresentar sua candidatura, quando, aí sim, há a possibilidade de um outro nome à direita se colocar. Mas, mantida a candidatura de Bolsonaro, parece pouco provável que a direita tradicional consiga colocar outro nome forte na disputa. Existem nomes que têm estrutura, que estão há muito tempo presentes e têm ativos a seu favor, como é o caso do governador Doria, que dirige o estado mais rico do Brasil, se projetou como o pai da vacina brasileira e tem a simpatia da mídia corporativa e de parte do empresariado, mas, apesar disso, continua patinando em torno dos 5% das intenções de voto. É muito improvável que um candidato como Doria aumente sua aceitação, pois mesmo com todos esses recursos não consegue ultrapassar a linha em que está.
Por outro lado, a tentativa de lançar um outsider como foi tentado com Luciano Huck, que acabou retirando sua candidatura da disputa – e, às vezes, aparecem nomes de outros apresentadores de televisão –, é um caminho muito mais difícil quando o país vive a ressaca da antipolítica. Quando os candidatos que procuravam representar um rechaço à classe política foram testados, deu no que deu. Desse ponto de vista, a possibilidade de que surja um nome surpresa me parece bem pouco auspiciosa.
Sobra o caso do candidato Ciro Gomes, que tenta se colocar como o nome da terceira via, inclusive se colocando de uma maneira bastante agressiva e buscando se distanciar da esquerda representada pelo PT e por Lula. A questão é que Ciro, além das dificuldades já conhecidas por quem acompanhou todas suas outras tentativas de chegar à presidência da República, enfrenta hoje o fato de que se descredenciou da esquerda, exatamente por não ter se engajado no segundo turno contra Jair Bolsonaro, como todos nós sabemos, e preferiu ir a Paris. Ao mesmo tempo a direita mantém uma desconfiança de que ele, embora tenha tido sua origem política na Arena, há muito tempo buscou se colocar como um político com perfil à esquerda. As pesquisas não indicam somente um movimento momentâneo, mas algo que está se cristalizando no cenário político eleitoral. Isso tudo nos leva a crer que a tendência é Ciro ficar abaixo do seu teto histórico que é de 12% dos votos, o que é insuficiente, portanto, para ele chegar ao segundo turno.
A questão é que Ciro, além das dificuldades já conhecidas por quem acompanhou todas suas outras tentativas de chegar à presidência da República, enfrenta hoje o fato de que se descredenciou da esquerda
Luis Felipe Miguel
IHU – Quais são as diferenças entre as atuais condições político-eleitorais de Lula para o pleito de 2022 em comparação com 2002? Em suma, qual o clima político que vivemos em relação a Lula?
Luis Felipe Miguel – Lula chegou à presidência nas eleições de 2002 com o compromisso de se manter em um programa de extrema moderação para não assustar a burguesia e a promessa de pacificar o país, por meio da inclusão social, sem afetar os privilégios dos grupos minoritários. Foi o que ele tentou fazer. Foi esse o grande programa do lulismo no poder. No entanto, apesar de toda essa prudência, com reformas tímidas, controladas, autolimitadas, que Lula e depois a Dilma introduziram, acabaram se desencadeando processos na sociedade brasileira que incomodaram os grupos dominantes.
A redução da vulnerabilidade dos mais pobres, dos trabalhadores, necessariamente aumenta a sua capacidade de barganha diante dos grupos sociais dominantes. Foi contra isso que foi desferido o golpe de 2016, que teve o claro sentido de devolver o país às condições ainda mais gritantes de desigualdade social que vigoravam antes dos governos petistas. No momento o presidente Lula recupera a interlocução com vários dos grupos que foram responsáveis pelo golpe que retirou o PT do poder. Ele parece querer reconstruir as condições de governabilidade que lhe permitiram exercer o mandato após a vitória em 2002.
A redução da vulnerabilidade dos mais pobres, dos trabalhadores, necessariamente aumenta a sua capacidade de barganha diante dos grupos sociais dominantes. Foi contra isso que foi desferido o golpe de 2016 – Luis Felipe Miguel Tweet
No entanto, a margem de manobra para que ele promova políticas compensatórias de combate à pobreza extrema está muito diminuída. O estado brasileiro foi severamente atingido pelas medidas de redução da sua capacidade de ação tomadas a partir do governo Michel Temer e também porque existiu nesse período um processo de retirada brutal de direitos. Em suma, o pacto que Lula fez em 2002, caso seja refeito agora, precisará ser feito em condições muito mais precárias. A estratégia de nenhum enfrentamento que o PT adotou nos governos Lula e Dilma parece, neste momento, estar fadada ao fracasso. As classes dominantes brasileiras mostraram que estão dispostas a aproveitar a correlação de forças favorável a elas e romper com os acordos que foram feitos com os representantes das classes dominadas. Tendo a acreditar que se um novo governo de centro-esquerda no Brasil não investir mais na mobilização de suas bases para garantir melhor correlação de forças para o progresso social, nós teremos uma reedição muito aviltada do lulismo que imperou a partir da vitória nas eleições de 2002.
IHU - Em seu texto publicado na FSP – Favorito em 2022, Lula pode normalizar desmonte do país se ceder demais – o senhor afirma que “Lula é a melhor promessa de pacificação do país”. Por quê?
Luis Felipe Miguel – Creio que são dois os motivos. Primeiro, por causa do perfil de Lula, que é um político voltado à negociação, à produção de consensos, um político que faz questão de manter abertas as portas do diálogo com todas as forças. Essa é uma característica que Lula traz desde o sindicalismo e que faz dele a pessoa, certamente, com as maiores condições e com a maior habilidade para conduzir o país a um cenário de disputa política mais civilizado. Mas, também, pelo fato de que Lula, como líder do PT e líder popular, que foi e é, foi o principal alvo dos retrocessos que o Brasil sofreu nos últimos tempos. Quer dizer, se quisermos simbolizar em uma pessoa a destruição da ordem regida pela Constituição de 88, essa pessoa é o Lula: foi ele quem se tornou um preso político por mais de um ano; ele foi o principal alvo da conspiração contra a democracia, representada pela Lava Jato; ele que foi impedido de disputar as eleições de 2018. Então, simbolicamente, Lula representa uma tentativa de retomada do caminho de construção democrática que foi interrompido com o golpe de 2016.
O pacto que permitiu os governos do PT, o pacto que Lula firmou ao longo de 2002, era um pacto de buscar um caminho de enfrentamento das premências dos mais pobres, mas que evitasse tocar nas vantagens dos privilegiados
Luis Felipe Miguel
IHU - Em contrapartida, o senhor adverte sobre os perigos de a esquerda ceder em nome da “governabilidade”. Quais são os riscos principais?
Luis Felipe Miguel – Creio que este é o risco principal embutido num eventual retorno de Lula à presidência. O pacto que permitiu os governos do PT, o pacto que Lula firmou ao longo de 2002, cujo maior emblema, certamente, é a Carta ao Povo Brasileiro, era um pacto de buscar um caminho de enfrentamento das premências dos mais pobres, mas que, ao mesmo tempo, evitasse tocar nas vantagens dos grupos privilegiados na sociedade. Nós vimos que, mesmo com toda essa prudência, esses mesmos grupos privilegiados se viram atingidos por mudanças que a melhoria das condições dos mais pobres gerou na dinâmica social, a tal ponto que optaram por romper com a ordem democrática, que ocorreu com o golpe de 2016, e esse rompimento foi aprofundado com as sucessivas manobras de exceção e apoio ao bolsonarismo.
No entanto, o pacto que foi feito no início do século não tem como ser recuperado agora; as condições mudaram. O espaço de manobra para um governo democrático, com manifestação popular, está muito reduzido porque o Estado brasileiro tem sido demolido. Todos os nossos instrumentos de intervenção no social, a fim de minorar as desigualdades, foram agredidos pelo subfinanciamento e pela campanha agressiva contra essas políticas, porque a Constituição está funcionando de uma maneira muito precária e porque muitos dos direitos conquistados pelo povo brasileiro foram retirados. Então, nessas circunstâncias, a possibilidade de um governo, por mais bem-intencionado que venha a ser, produzir políticas compensatórias se torna muito menor.
Se não for adotado algum tipo de estratégia que permita o enfrentamento das negociações políticas no Brasil, ou seja, que trabalhe para mudar a correlação de forças e permita que o campo popular se robusteça para os enfrentamentos que serão necessários, o caminho da retomada da democracia no Brasil será um caminho de acomodação a situações ainda piores de desigualdade social. A governabilidade pensada na maneira tradicional se limita à aceitação das barganhas impostas seja pela burguesia, seja pela elite política tradicional. É necessário buscar uma nova forma de ação que combine a busca da negociação nos espaços institucionais com a mobilização das forças sociais que estão interessadas na produção de um país menos desigual, menos injusto e menos violento.
O espaço de manobra para um governo democrático, com manifestação popular, está muito reduzido porque o Estado brasileiro tem sido demolido
Luis Felipe Miguel
IHU - Qual tipo de pacto civilizatório é possível fazer com as elites brasileiras que, sem cerimônias, romperam com o horizonte normativo estabelecido pela Constituição de 1988?
Luis Felipe Miguel – Qualquer pacto com as elites brasileiras tem que estar respaldado na capacidade de mobilização do campo popular. Se não houver capacidade de pressão, se não houver forças organizadas em defesa da igualdade, da democracia, qualquer avanço sempre será frágil e revogável a qualquer momento. É bom lembrar que a democracia não é simplesmente um sistema de regras que resume o sistema político a determinados espaços; é próprio da democracia que as diferentes forças sociais se mobilizem em defesa de seus projetos. A classe dominante nunca deixou de se mobilizar e utilizar recursos extrainstitucionais para fazer valer seus interesses. Ela usa o financiamento privado de campanha, a sua capacidade de definir o investimento. Acontece que o tipo de barganha que foi feito para permitir os governos de centro-esquerda a partir de 2003 contava com o silenciamento da pressão do campo popular. Ficou claro que não é possível aceitar esse silenciamento, porque os grupos dominantes no Brasil não têm nenhum tipo de compromisso com a ordem democrática, não têm nenhum tipo de projeto nacional de desenvolvimento, não têm nenhum tipo de solidariedade com as classes populares. Então, é um pacto que tem de ser baseado numa correlação de forças que seja, desta vez, ao menos, um pouco mais favorável ao campo popular.
Qualquer pacto com as elites brasileiras tem que estar respaldado na capacidade de mobilização do campo popular – Luis Felipe Miguel Tweet
IHU - Aliás, uma eventual vitória de Lula poderia levar o país a um estado de convulsão social? O que é possível vislumbrar sobre uma possível reação dos setores armados da sociedade (polícias, forças armadas e sociedade civil)?
Luis Felipe Miguel – Até o momento, creio que os grupos armados operam muito mais no caminho da ameaça do que, de fato, na busca de um enfrentamento. As Forças Armadas, sobretudo, não têm liderança, não têm unidade para desferir o golpe que vem sendo anunciado ou insinuado há tanto tempo. São Forças Armadas que, por erros na condução da questão militar ao longo de todo o processo de democratização, continuam profundamente antidemocráticas e antipovo, mas elas não têm essa capacidade de ação coordenada, inclusive porque estão divididas em muitos grupos internos e também porque hoje são, em grande medida, motivadas pela vontade de ocupar espaços do Estado brasileiro e se apropriar de vantagens e benesses que a presença nesses cargos proporciona.
Não acredito, no momento, que uma eventual vitória eleitoral de Lula vá levar a esse tipo de reação. Isso é muito mais um fantasma que é utilizado com o objetivo de obter concessões, moderação e uma autocensura das forças populares na elaboração de seu programa, do que propriamente um risco efetivo. O que não quer dizer que as condições para essa ação golpista aberta não possam ser construídas. Então, é necessário, neste momento, muita inteligência por parte dos operadores políticos do campo popular, dos partidos políticos da esquerda e da centro-esquerda, porque é necessário não aceitar as chantagens que essas ameaças colocam e, ao mesmo tempo, não dar gás para que elas, de fato, se tornem uma operação golpista efetiva. A resposta está em organizar na sociedade mobilização suficiente e eficiente para que uma intentona golpista tenha custos elevados para aqueles que tentem deflagrá-la.
As Forças Armadas, sobretudo, não têm liderança, não têm unidade para desferir o golpe que vem sendo anunciado ou insinuado há tanto tempo
Luis Felipe Miguel
IHU - Por fim, de que ordem é o desafio de reverter os desmontes social e de políticas públicas – incluindo o teto de gastos – empreendidos nos últimos anos, desde o governo Temer, no Brasil?
Luis Felipe Miguel – Medidas como o teto de gastos foram uma tentativa dos golpistas vitoriosos de inibir qualquer ação de um eventual novo governo democrático no país. É absolutamente impossível que um governo no Brasil cumpra seus compromissos com a população se ele tem sua ação tão severamente contida por medidas arbitrárias como a Emenda Constitucional que liquidou a possibilidade do investimento público e que, na verdade, reduziu a quase zero a margem para a implementação de políticas sociais. Da mesma maneira, a destruição da estrutura do Estado brasileiro e a privatização irresponsável de muitos órgãos absolutamente estratégicos apresentam o mesmo resultado. Quer dizer, se inviabiliza a possibilidade de que um novo governo aja em favor de prioridades diferentes daquelas do golpismo triunfante que foram, como sabemos, a garantia dos ganhos dos especuladores financeiros em primeiro lugar. A chamada autonomia do Banco Central, a autonomia em relação à vontade popular, com uma submissão explícita ao sistema financeiro, é outra medida. E, por fim, a retirada dos direitos trabalhistas, que torna muito mais difícil para o Estado regular as relações capital-trabalho de uma maneira que proteja, minimamente, a classe trabalhadora. Então, é absolutamente imperativo desfazer esse conjunto de medidas a fim de retomar o caminho de construção de um Brasil mais democrático e menos injusto. Quando eu falo em retomada do pacto constitucional de 88, isso tudo está incluído, porque o pacto apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil.
Quando eu falo em retomada do pacto constitucional de 88, isso tudo está incluído, porque o pacto apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil – Luis Felipe Miguel Tweet
Agora, vemos, claramente, uma tentativa de blindar essas políticas, de retirar do debate público a necessidade de desfazê-las; elas são apresentadas sistematicamente como artigos da lei, quer dizer, algo que é um pecado até mesmo questionar. Vemos isso claramente em muitos formadores de opinião, nos editoriais e colunistas da imprensa burguesa: tudo bem ser oposição ao governo Bolsonaro, porque é difícil não ser oposição quando se tem o mínimo de racionalidade, mas essa oposição não pode ir ao ponto de questionar o desmonte do Estado, das políticas sociais, dos direitos. Então, a primeira coisa que tem de ser feita é recolocar no debate público essa questão e mostrar que existe uma relação necessária entre os ataques à democracia e os ataques aos direitos, que existe uma linha de continuidade entre impedir a expressão da vontade popular e impedir que os interesses populares sejam levados em conta no processo de tomada de decisão. É claro que não é uma tarefa fácil, mas um governo que chegue ao poder legitimado pela necessidade de superar o desastre do bolsonarismo, legitimado por uma vitória eleitoral, tem força para colocar isso na pauta, para exigir que esses malfeitos sejam revertidos.
É por isso que eu digo: neste momento, a centro-esquerda e, particularmente, o ex-presidente Lula, têm condições de negociar numa posição que é também uma posição de força, porque eles são necessários a fim de pacificar o país, retomar uma convivência minimamente civilizada no Brasil. No caminho que estamos indo, estamos vendo o colapso do Brasil como nação. É para isso que o projeto de Bolsonaro e Guedes aponta. Então, todos aqueles que não apostam no colapso, incluindo setores das classes dominantes e da elite política tradicional, têm interesse numa recomposição. Essa recomposição passa, necessariamente, pelo PT e por Lula. O que o PT e Lula podem exigir? O compromisso com a revogação da agenda de desmonte do Estado social que foi colocada em prática nos últimos cinco anos.
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Ao Globo, Chefe do Congresso diz que anseio por ruptura há de ser coibido, e revela contato com as Forças Armadas
Julia Lindner, Paulo Cappelli e Thiago Bronzatto / O Globo
BRASÍLIA - O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), cancelou a participação em um evento em Viena, na Áustria, para monitorar em Brasília as manifestações de 7 de setembro, insufladas pelo presidente Jair Bolsonaro. Caso seja necessário, ele vai se pronunciar em defesa das instituições, em uma prática que já virou rotina. Pacheco, que na semana passada arquivou um pedido de impeachment apresentado pelo chefe do Executivo contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), também virou alvo de críticas, mas prefere não apresentar resposta.
Ameaças à democracia: Em novo discurso com ataque a instituições, Bolsonaro diz que 'tudo tem limite'
Em entrevista ao GLOBO, ele afirma que não admitirá qualquer retrocesso no sistema democrático e acrescenta que esse também será o papel das Forças Armadas, com as quais tem mantido contato.
O senhor disse que a rejeição do pedido de impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes seria um “marco do restabelecimento da relação entre os Poderes”. No dia seguinte, Bolsonaro criticou a sua decisão e atacou Moraes. Como será possível retomar a harmonia?
São duas situações. Primeiro, a crítica do presidente da República à decisão de arquivamento do processo de impeachment é natural. Ele teve uma pretensão resistida e indeferida. A segunda parte, que é a manutenção de críticas muito ostensivas à Suprema Corte e aos seus integrantes, realmente não contribuem. Isso dificulta o processo de pacificação institucional que buscamos.
Acha que está isolado ao insistir em uma nova reunião entre os Poderes?
Não. Tenho absoluta certeza de que o pensamento do deputado Arthur Lira (presidente da Câmara) é o mesmo, de apaziguar. Sei também da disposição do ministro Luiz Fux (presidente do STF) de fazer o mesmo. Há uma comunhão de vontades nesse sentido.
Por que não citou o presidente Bolsonaro entre as autoridades dispostas ao diálogo?
O presidente Bolsonaro tem falado e agido no sentido de afirmar suas próprias convicções. Espero que ele possa contribuir para esse processo de pacificação, porque há inimigos batendo à nossa porta, que não somos nós mesmos, mas a inflação, o aumento do dólar, o desemprego, o aumento da taxa de juros e a crise hídrica e energética, que pode ser avassaladora. É importante que tenhamos um freio naquilo que não interessa para cuidar do que importa ao Brasil.
Quando falou com o presidente pela última vez?
Estive com ele (Bolsonaro) muito rapidamente no Dia do Soldado, em um evento no Exército. Falei com ele na véspera do dia do desfile das viaturas e dos tanques. Pessoalmente, foi um pouco antes disso. Então, já há algum tempo que não sentamos à mesa para tratar dos problemas do país. Acho até que isso precisa acontecer mais rapidamente.
O senhor teme que as manifestações de 7 de setembro saiam do controle?
Manifestações são próprias da democracia. Temos que respeitá-las, mas manifestações que tenham como objetivo retroceder a democracia, pretender intervenção militar ou a ruptura institucional ferindo a Constituição devem ser repelidas no campo das ideias.
Como vê a mobilização de PMs em torno das manifestações pró-Bolsonaro?
Se eu disser que conheço todas as Polícias Militares, vou estar mentindo, mas conheço algumas, em especial a de Minas Gerais e a de São Paulo. Sei que são corporações absolutamente conscientes, muito respeitadas pela sociedade, cumpridoras dos seus deveres e defensoras da democracia.
Há algum risco de ruptura institucional por parte de militares? Qual é a sua percepção dos encontros que teve com integrantes das Forças Armadas?
São instituições maduras, com um patriotismo muito forte e com obediência absoluta ao estado democrático de direito. Nesta semana, estarei no comando da Aeronáutica novamente para conversar com os brigadeiros, a convite do Alto Comando da Aeronáutica. Tenho mantido esse contato constante com essas instituições e vejo nelas uma obrigação de defesa do Brasil. Nós não admitiremos qualquer retrocesso e tenho certeza que também esse será o papel das Forças Armadas.
A participação do presidente em um desfile de blindados em frente à Praça dos Três Poderes não gera ruídos?
São episódios desnecessários, que deveriam ser evitados, especialmente neste momento em que há esses rumores. Mas não faço deles algo mais importante do que verdadeiramente são. O que vale é que temos as Forças Armadas conscientes do seu papel e muito bem comandadas por pessoas que têm esse compromisso com o país e que não se aventurarão em disputas ideológica e política.
Os ataques constantes do presidente ao sistema eleitoral podem colocar as eleições em 2022 sob algum risco?
Os ataques ao sistema eleitoral, sem fundamentos, são muito ruins, porque jogam em descrédito um sistema que, até pouco tempo atrás, era dado por nós como um orgulho nacional. Mas não considero que isso seja capaz de deslegitimar o resultado eleitoral. As eleições de 2022 vão acontecer, porque elas são fundamentais para a democracia.
Quais são as pautas prioritárias no Senado até o fim deste ano?
Todas são prioritárias. Nesta próxima segunda-feira, terei uma reunião com o ministro Paulo Guedes. Quero fazer uma conversa de compreensão sobre o que são as prioridades do governo como alguém que possa ser colaborativo e, ao mesmo tempo, crítico daquilo que não se deva ter. Por exemplo, eu não posso permitir que haja, a pretexto de uma reforma tributária, um projeto que pura e simplesmente aumente impostos para o contribuinte. Isso é muito ruim. Devemos evitar isso. Na próxima semana, terei uma conversa com o ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, sobre um problema gravíssimo que nós temos: precisamos de um planejamento para as crises hídrica e energética. O que nós não podemos definitivamente fazer é interromper o diálogo. Se isso ocorrer, vai ser muito nocivo para o Brasil.
Como avalia a retomada das coligações partidárias nas eleições proporcionais, aprovada pela Câmara?
Sou a favor do sistema proporcional sem coligações partidárias e com imposição da cláusula de desempenho. Vamos submeter ao Senado para que a maioria decida, mas a volta ao modelo anterior é um retrocesso.
O senhor defende que o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) paute a sabatina de André Mendonça, ex-chefe da AGU, para o STF?
É importante que o Senado dê uma resposta e que haja sabatina, a submissão do nome ao plenário do Senado para o escrutínio dos senadores. Não só no caso do ex-ministro André Mendonça mas também em todas as demais indicações.
Como o senhor vê a iniciativa do governo Bolsonaro de turbinar o Bolsa Família?
O programa social é uma prioridade. É inegável que ele tem que existir, em razão da pobreza que temos. Ressinto a falta de um Ministério do Planejamento independente da Economia, para termos um planejamento nacional de políticas dos ministérios, políticas públicas. Política econômica é algo muito amplo, que deve ser feito por especialistas, mas que não possam ser despidas de sensibilidade social.
As pesquisas apontam uma polarização entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula. É possível emergir desse cenário um candidato de centro?
Várias hipóteses podem acontecer, mas considero que vai depender muito do andamento do Brasil nos próximos meses. O cenário eleitoral vai ser definido em 2022. Neste momento, o Brasil não precisa de candidatos à Presidência. O Brasil precisa do presidente buscando unificar o país para os problemas imediatos que nós temos.
O senhor se vê como potencial candidato do centro?
Não considero essa hipótese de candidatura neste instante em que se recomenda ter um presidente do Senado que possa enfrentar os problemas. Disputa eleitoral é inoportuna no momento, em especial para o presidente do Senado.
O senhor dizia ser contra a abertura da CPI da Covid. Agora, avalia que a comissão tem desempenhado um papel importante?
Temos que avaliar o retrato do momento em que decidi não abrir a CPI. Naquele momento, tínhamos mais de 4.000 mil brasileiros morrendo todos os dias só pela Covid-19. Era um momento muito crítico, de muita desunião. Não tínhamos uma escala de vacinas. Eu achava que a CPI, naquele momento, poderia ser um fator de desagregação maior e de insegurança jurídica para a estabilização do combate à doença. Mas eu não nunca desvalorizei a CPI e o seu papel. Nem nunca disse que ela não seria aberta. Eu apenas discuti o momento da abertura. A minha esperança é que a CPI possa cumprir o seu papel de apurar responsabilidades, autoria, materialidade, tipicidade de fatos e que aqueles que tenham praticado qualquer tipo de ação antijurídica possam ser responsabilizados.
O presidente da Câmara criticou o andamento de algumas pautas no Senado como a privatização dos Correios e o licenciamento ambiental. O senhor acredita que Arthur Lira espera que o Senado passe a aceitar decisões da Câmara, sem alterações?
Eu não recebo essa ponderação do presidente Arthur Lira como uma crítica ao Senado, mas apenas como um exercício de pretensão de que aquilo que foi aprovado na Câmara também o seja no Senado Federal. Nós também temos um uma porção de projetos aprovados no Senado que, ao longo de anos, estão na Câmara aguardando uma definição. Nem por isso eu digo que a Câmara está deixando de cumprir o seu papel. O que temos no Senado é a preocupação de aprofundar as matérias, de não ter açodamento, de termos a reflexão necessária por meio das comissões e do plenário. Cada um tem o seu perfil. Eu tenho um aspecto mais moderado. Não significa que eu seja lento. Mas eu gosto de refletir, de aprofundar, de submeter aos pares uma discussão realmente mais duradoura dos projetos de lei. Cada um tem o seu perfil e ambos se complementam e prestam um bom papel de unificação no Congresso Nacional.
*Título do texto original alterado para publicação no portal da FAP
Brasil vive 'mistura de pandemia com pandemônio', diz Gonzalo Vecina
Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, classificar como crime o que está acontecendo no Brasil durante os meses de pandemia não é nenhum tabu
André Biernath / BBC News Brasil
Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e do mestrado profissional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Vecina Neto ainda é presidente do Conselho Consultivo do Instituto Horas da Vida e traz no currículo o fato de ser fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.
Numa entrevista exclusiva à BBC News Brasil, o médico avaliou o ritmo da vacinação contra a Covid-19, a ameaça das novas variantes do coronavírus e as perspectivas para o fim da pandemia.
Confira os principais trechos a seguir.
BBC News Brasil - Como o senhor vê o avanço da campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil? No que poderíamos estar melhor ou pior?
Gonzalo Vecina Neto - Bom, em primeiro lugar, nós temos uma falta de coordenação. O Ministério da Saúde já passou por várias gestões nesses meses e isso gera uma descontinuidade administrativa e um clima ruim.
Nós estamos fazendo uma vacinação sem uma campanha. Isso é impressionante. É a primeira vez que isso acontece na história do Programa Nacional de Imunizações, o PNI.
O PNI foi fundado em 1973 e, desde então, está bem claro o papel do Ministério da Saúde na definição de muitas questões relacionadas à vacinação. Agora, os Estados e os municípios fazem o que podem, mas sem uma coordenação do Governo Federal. Não há campanha alguma, no sentido de existir a comunicação, a convocação dos grupos, dos dias que as pessoas devem ir aos postos ou quando voltar para a segunda dose.
Veja bem, nós estamos em meio às campanhas de vacinação contra a Covid-19 e contra a gripe. Nós temos cerca de 80 milhões de doses de vacina contra a gripe e só usamos 40% desse total. E qual o motivo? As pessoas não foram convocadas para irem tomar a vacina.
No caso da Covid-19, além da ausência de uma campanha, há todo o despreparo da rede de vacinação. Nós temos 38 mil salas de vacinação no Brasil, com uma capacidade de imunizar 70 milhões de pessoas por mês sem estresse, só aproveitando o horário comercial e os dias úteis. No entanto, estamos com dificuldade em vacinar 15 ou 20 milhões de pessoas por mês.
Isso é causado pela descoordenação e pelo fato de não termos doses suficientes. A compra dos lotes foi tardia demais. Somente em março deste ano o [ex-ministro da Saúde e general Eduardo] Pazuello fechou alguns contratos, no que foi seguido pelo [atual ministro Marcelo] Queiroga.
Nós estamos desde o início do ano com uma lentidão na vacinação justamente pela falta de doses e pelo desarranjo estrutural do governo.
BBC News Brasil - Nos últimos dias, diversas cidades brasileiras alcançaram a marca de quase 100% da população acima de 18 anos vacinada com a primeira dose. Como isso deve ser encarado? Há motivo para comemorar e celebrar o feito?
Vecina Neto - A primeira dose ajuda a proteger, mas a proteção de verdade só é obtida após a segunda dose. Eu acho auspicioso qualquer tipo de conquista que tivermos no meio dessa desgraça. Afinal, o Brasil vive a mistura de pandemia com pandemônio.
Mas, infelizmente, os nossos problemas vão muito além disso. Nós ainda temos que vacinar toda a população adulta com as duas doses. Falamos de cerca de 160 milhões de brasileiros. Logo, são 320 milhões de vacinas.
Se o Brasil tivesse vacinado 70 milhões de pessoas por mês a partir de janeiro, pois tínhamos essa capacidade, teríamos terminado essa primeira etapa no mês de maio. Nós estamos em agosto e só agora chegamos a essa marca.
É auspicioso aplicar a primeira dose em toda a população adulta? Claro que é. Mas é pouco pra quem podia fazer muito mais.
BBC News Brasil - Com todos os adultos vacinados com a primeira dose, temos agora três possíveis frentes. Um, garantir a segundo dose a esse monte de gente. Dois, aplicar uma terceira dose em grupos vulneráveis, como idosos e profissionais da saúde. E três, começar a imunizar os adolescentes. Na visão do senhor, a quais dessas frentes precisamos dar prioridade?
Vecina Neto - Bom, a primeira questão que devemos focar é na segunda dose. E necessitamos pensar nos casos específicos, como as gestantes que tomaram a primeira dose da AstraZeneca e agora precisarão tomar a da Pfizer. Outro ponto é avaliar a intercambialidade de vacinas. Alguns países europeus deram a primeira dose da AstraZeneca e a segunda da Pfizer e viram que a mistura traz um aumento da eficácia e uma proteção melhor.
Ainda nessa seara, precisamos definir melhor os intervalos. Na vacina da Pfizer, o tempo entre a primeira e a segunda dose é de 21 dias, e nós no Brasil recomendamos 90 dias, até para conseguirmos vacinar mais gente.
Agora está na hora de voltar atrás dessa política. Já no caso da AstraZeneca, o ideal é manter mesmo essa espera de 90 dias. Em relação à segunda dose, apesar dos pequenos ajustes, o que precisamos é vacinar e pronto.
Já no caso dos menores de 18 anos, penso que vamos vaciná-los assim que todos os grupos de maior risco estiverem protegidos. Mas é óbvio que precisamos proteger também os adolescentes, e a vacina que temos aprovada no Brasil para essa faixa etária, de 12 a 17 anos, é a da Pfizer.
Mas, mesmo nesse grupo, temos que pensar também em priorizar os jovens com comorbidades, porque eles têm um risco maior. Por isso, indivíduos com síndrome de Down, doenças raras, câncer, obesidade e asma deveriam ser vacinados antes.
Já sobre a terceira dose, me parece estar claro para o mundo inteiro que precisaremos disso. É lógico, vamos começar com os grupos de maior risco, como os mais idosos.
Mas eu acredito que essa dose de reforço deveria ser dada só depois de terminarmos a vacinação dos outros grupos. Não adianta deixar tudo pela metade, pelo meio do caminho. Daqui a pouco isso vai ser ruim para nós mesmos.
Temos que terminar a vacinação com a primeira dose, convocar as pessoas para a segunda dose e aí iniciar a revacinação pelos grupos prioritários. Muito provavelmente teremos a terceira e até a quarta dose da vacina contra a Covid-19, inclusive.
O grande problema é que o mundo está produzindo pouco em relação à demanda que temos. Precisaríamos de 14 bilhões de doses de vacina agora. Se pensarmos em terceira dose, são 21 bilhões. No entanto, estamos produzindo entre 3 e 4 bilhões neste ano.
Como sempre diz o Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, se nós não vacinarmos os países pobres da África e do Sudeste Asiático, o vírus vai continuar circulando. E, enquanto o vírus circula, aparecerão mutações que podem ser resistentes às vacinas já disponíveis.
Nós temos que deixar esse egoísmo de lado, essa história do "eu primeiro e depois o resto". A prioridade deveria ser vacinar toda a população mundial. Mas os países mais desenvolvidos, e mesmo aqueles em desenvolvimento, como o Brasil, estão mais preocupados com o próprio umbigo. Como se a pandemia começasse e terminasse em seus próprios territórios.
BBC News Brasil - E o que justificaria a necessidade de uma terceira dose agora? A queda dos anticorpos? A circulação de variantes de preocupação, como a Delta? Ou uma mistura desses fatores?
Vecina Neto - O primeiro ponto é que temos vacinas diferentes, com eficácias variáveis. A CoronaVac tem 50%, a Pfizer chega a 95% e por aí vai. Se eu pudesse priorizar uma vacina, é claro que eu escolheria a de maior eficácia para toda a população. Mas o problema é que a demanda está muito mais alta que a oferta. Com isso, eu tenho que usar todas as opções disponíveis.
Isso não significa que eu não usaria a CoronaVac, até porque ela tem uma grande serventia. Falamos de uma vacina que é menos eficaz, mas que, mesmo assim, derruba o risco de mortalidade por Covid-19 em mais de 90%.
A terceira dose deveria começar pelas pessoas mais idosas. Nas idades mais avançadas, nós sabemos que existe um fenômeno chamado imunossenescência. É o envelhecimento do próprio sistema imunológico, que não funciona como anteriormente.
O segundo ponto que justificaria a terceira dose é a queda na produção de anticorpos com o passar dos meses.
Não temos muitos estudos sobre isso, mas, no caso da vacina da Pfizer, verificou-se uma diminuição após algum tempo. Até quando essa proteção cai? Não sabemos, até porque não tivemos tempo suficiente para aprender isso.
De uma forma ou de outra, o vírus vai continuar circulando pela falta de uma imunidade coletiva, até porque os países estão com taxas de vacinação muito diferentes. E é normal que precisemos de reforços de tempos em tempos.
Veja o caso da febre amarela. Há alguns anos, a recomendação era que se tomasse uma nova dose a cada dez anos. De repente, diante de um surto e de uma escassez, os cientistas estudaram melhor o assunto e descobriram que não havia essa necessidade de reforço. Houve também um fracionamento das doses, o que permitiu levar a proteção a um maior número de pessoas.
Isso também está acontecendo com os imunizantes contra a Covid-19. Uma cidade do Espírito Santo está estudando a aplicação de meia dose da AstraZeneca, para ver se ela confere uma boa proteção. Se isso der certo, nossa capacidade de vacinação duplicaria.
Essa pandemia está nos mostrando que é preciso ter um pouco de humildade e aceitar os aprendizados que aparecem pelo caminho.
BBC News Brasil - Ainda sobre as variantes, já está provado que a Delta circula pelo Brasil e dados da vigilância genômica do Rio de Janeiro mostram que ela representa mais da metade das amostras analisadas no Estado recentemente. Como o senhor vê o avanço dessa linhagem no país? O que poderíamos ter feito para evitar isso e o que deveríamos fazer agora?
Vecina Neto - Primeiro, me parece que a Delta está evoluindo aparentemente mais devagar no Brasil do que ela fez na Europa e na Ásia.
Quando você analisa o que aconteceu nessas duas regiões, é algo muito surpreendente. Essa variante dominou a cena com muita rapidez. Em países com 80% de cobertura vacinal, como Israel, foi necessário fazer lockdown de novo.
Aqui no Brasil, nós tivemos notícias sobre a chegada dela já faz um bom tempo. E, claro, o que nós temos de informação pode ser muito menos do que aquilo que está ocorrendo de fato. Até porque não tivemos controle nenhum.
Parece que nós desaprendemos totalmente a lição milenar de que o isolamento é uma das melhores estratégias para lidar com uma doença infectocontagiosa. Mesmo quando a humanidade não sabia o que provocar a peste bubônica, a varíola e a sífilis, o isolamento sempre fez o número de casos diminuir.
E nós aqui no Brasil não usamos esse conhecimento milenar. Não fizemos nada daquilo que o mundo apontava que era necessário. As pessoas vinham de outros países para cá, estavam com febre, tinham o teste PCR positivo e, mesmo assim, saíam livres, leves e soltas para contaminar todo mundo.
Isso é uma coisa impensável. Nós ignoramos toda a verdade epidemiológica que já conhecíamos.
O que deveríamos fazer com uma pessoa com um PCR positivo? Isolá-la por 14 dias. Por que? Para que ela não espalhe o vírus e produza novos casos. E por que isso é necessário? Para evitarmos as mortes.
O comportamento da vigilância epidemiológica brasileira foi criminoso. Se havia alguma dúvida se podíamos chamar alguém de genocida, isso não existe mais.
Não compramos vacinas. E estamos chegando ao número de 600 mil mortos, com grandes possibilidades de chegarmos aos 800 mil até o final do ano. Isso é criminoso.
Nós permitimos que a variante Delta se espalhasse por aí. E nós temos agora as subvariantes derivadas da Gama, como a Gama Plus, que aparentemente tem mutações semelhantes à Delta e pode ser mais infectante.
Então essa interação das linhagens de coronavírus é algo que precisamos aprender um pouco mais. Será que a Gama e a Gama Plus estão segurando a entrada da Delta?
Essa coisa das mutações é algo muito inteligente. A natureza produz essas modificações que são melhores, ao menos do ponto de vista do vírus. E o uso da palavra melhores aqui não significa que elas são mais mortais, até porque, se o vírus mata o seu hospedeiro muito rápido, ele não consegue se espalhar com tanta rapidez.
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Essa capacidade das variantes do coronavírus de se espalharem com mais facilidade abre até a possibilidade de ele conviver conosco por muito tempo. É provável que ele se transforme num vírus sazonal, como outros que causam gripes e resfriados.
Especificamente sobre a Delta, o que está acontecendo no Rio de Janeiro vai nos mostrar se teremos uma terceira onda e todas as consequências relacionadas a ela.
Até porque estamos agora com uma diminuição do número de casos e óbitos, mas eles ainda estão muito próximos ao que vimos na primeira onda. Ou seja, estamos num platô elevado de 900 mortes por dia.
Na segunda onda, nós chegamos a 4 mil mortes por dia. Depois, tivemos a diminuição em que estamos agora.
Resta saber se as variantes Gama Plus ou Delta levarão a uma nova subida e até que ponto a cobertura vacinal que já temos será capaz de segurar a doença e diminuir os casos graves ou as mortes por covid-19. Sem dúvida, estamos numa situação sanitária perigosa.
BBC News Brasil - De um lado, temos o otimismo pelo avanço da vacinação. Do outro, a apreensão com a variante Delta. No meio, prefeitos e governadores anunciam o relaxamento das medidas, a liberação de público nos estádios de futebol e a realização de festas populares, como o carnaval. Como o senhor vê as políticas públicas em relação ao atual estágio da pandemia no Brasil?
Vecina Neto - O Brasil é muito desigual. Talvez esse seja o principal problema de nosso país. Mas existem outros problemas tão graves quanto. Um deles é a impunidade.
Aqui, as pessoas podem cometer as maiores barbaridades sem sofrer consequências. O presidente [Jair Bolsonaro] fala para as pessoas não usarem máscaras. Daí vem alguém do Ministério Público e diz que as máscaras não estão comprovadas cientificamente, quando temos milhares de trabalhos mostrando a necessidade do uso delas.
O Ministério Público é o guardião das leis. E a lei é um arranjo escrito que permite a conformação da vida em sociedade.
Agora, se o guardião deste código tão importante vem e me diz que as máscaras nem são tão importantes assim, que elas são secundárias, mesmo quando há leis determinando seu uso, isso só reforça o clima de impunidade.
Enquanto isso, os prefeitos e governadores estão prestando atenção nas eleições de 2022. Eles acham que o povo vai esquecer as milhares de mortes, até porque estamos nesse clima de oba-oba da reabertura geral.
Talvez um outro grande problema que nós temos, junto da desigualdade e da impunidade, seja o esquecimento. E muitos apostam que esse clima de otimismo atual fará o povo não lembrar de tudo que aconteceu e não chorar mais as mortes.
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BBC News Brasil - E como essa falta de coordenação entre municípios, Estados e Governo Federal contribuiu para que a pandemia tivesse números tão expressivos em nosso país?
Vecina Neto - Veja os exemplos que temos na Europa. A Alemanha talvez seja o melhor modelo de como um líder faz a diferença.
Na Inglaterra, o primeiro-ministro Boris Johnson começou a crise sanitária da pior maneira possível, no mesmo estilo de Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos Estados Unidos. Mas aí ele teve a doença, foi tratado pelo serviço de saúde pública, o NHS, e pediu desculpas. Em Israel foi a mesma coisa.
Nessas horas, ter um líder é fundamental. É preciso que alguém governe o país. Veja o que aconteceu na Nova Zelândia. Eles tiveram um número de mortes que dá pra contar nos dedos da mão. Por que? Porque tinham um governo com projeto, que fez as intervenções sanitárias.
Temos no Brasil um presidente ensandecido e mal informado, que ainda vê a imunidade de rebanho como a solução.
Ele acredita nisso até hoje. Outro dia fez um discurso reclamando da crise econômica, da inflação, do aumento no preço da gasolina… E botou a culpa nos governadores e prefeitos.
E nós tivemos governadores muito irresponsáveis também, especialmente no Norte.
Os Estados dessa região são aqueles que possuem a maior desigualdade social. A pobreza de uma cidade como Manaus é assustadora. Dentro da exuberância da floresta, com tanta fruta, peixe, água e calor, a pobreza é terrível.
A pandemia foi muito mal administrada por falta de um alinhamento entre os gestores públicos. Eles deveriam estar alinhados com o conhecimento científico e as melhores práticas para diminuir o impacto da pandemia.
A História vai contar tudo o que passamos e colocará no devido lugar todos os patrocinadores do genocídio
BBC News Brasil - Um exemplo recente de briga entre os poderes aconteceu entre o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, por uma discordância no envio de doses das vacinas. Como o senhor vê essa discussão em particular?
Vecina Neto - Doria é candidato à Presidência da República. Então ele está fazendo seu teatro para isso.
Mas, nesse caso em particular, ele até tinha razão, pois o Ministério da Saúde mandou uma quantidade menor de doses de vacina para São Paulo.
Agora, não dá pra saber se esse envio reduzido foi por lapso ou má vontade. Acho que as duas coisas são possíveis.
O Ministério da Saúde errar já é algo absolutamente comum, porque eles são muito incompetentes. Vimos recentemente o próprio ministro, Marcelo Queiroga, falar que as máscaras são apenas um detalhe. E ele é médico!
O fato é que o Ministério da Saúde está acéfalo, assim como o PNI. Não há coordenação do programa de imunizações brasileiro. Um dos últimos coordenadores foi demitido porque se envolveu nessa lambança da compra de vacinas da Índia, com distribuição de dinheiro para corrupção.
BBC News Brasil - Mesmo com a necessidade de manter as medidas restritivas, não podemos ignorar o fato de estarmos há um ano e meio na pandemia e as pessoas estão cansadas. Como manter a população engajada num cenário desses?
Vecina Neto - Essa é uma das questões mais complexas. Realmente as pessoas estão cansadas de usar máscara e manter o distanciamento social. Temos um ano e meio de tensão e todos estamos sofridos. Mas qual o caminho?
Não temos muita saída: precisamos continuar vacinando e exigir o uso de máscaras em ambientes públicos, especialmente nos locais fechados.
O duro é você explicar para as pessoas os detalhes e as particularidades de cada situação. Falamos em aglomeração, mas como definir isso? Três pessoas já formam uma aglomeração? Ou dez?
Diante de todas as dificuldades, eu acho que precisamos continuar a dizer que as máscaras são necessárias em qualquer circunstância. Precisamos tomar muito cuidado com lugares fechados, como cinemas e teatros. É necessário pensar na taxa de ocupação e na circulação do ar nesses ambientes.
E no campo de futebol, pode haver aglomeração? Não pode. Mas e se todo mundo estiver vacinado? Talvez.
Nós estamos nesse momento de tensão. Eu acho que podemos pensar em flexibilizações, mas precisamos deixar claro que, se piorar, vamos fechar tudo de novo. Nossa prioridade é ter um sistema de saúde com capacidade de atender os casos que surgirem. Foi isso que fizemos na primeira onda e acabou sendo um fracasso na segunda.
BBC News Brasil - Para a maioria da população mundial, a atual pandemia é inédita em escala e impacto. Mas como sairemos dela? Como acaba uma pandemia? E o senhor já vê perspectivas de isso acontecer em algum momento?
Vecina Neto - A gente pensava que a pandemia acabava quando não tivéssemos mais pessoas suscetíveis. Mas nós aprendemos que, com a Covid-19, isso nunca vai acontecer, já que as pessoas podem se reinfectar pelas novas variantes.
Se o coronavírus que saiu de Wuhan, na China, fosse o mesmo hoje em dia, com certeza poderíamos pensar em imunidade de rebanho assim que acabassem as pessoas suscetíveis. Mas daí vieram as variantes Alfa, Beta, Gama e Delta e acabaram com isso.
Bom, se não será pela imunidade de rebanho, é difícil pensar que a pandemia acabará pela vacinação. As vacinas não são 100% eficazes e eventualmente o vírus poderá driblar as doses disponíveis hoje.
Me parece, então, que essa pandemia não vai acabar. Ela será substituída por uma doença que vai conviver conosco a partir de um ou dois anos, ou quando tivermos toda a população vacinada, inclusive jovens e crianças, com a garantia de uma proteção contra os casos mais graves e as mortes.
Isso significa que a Covid-19 se tornará uma doença endêmica e continuará conosco. E talvez precisaremos de novas campanhas de vacinação no futuro para manter a letalidade dessa doença bem baixa.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58276775
Raul Jungmann: 'Não vai ter golpe'
Titular da pasta da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, o ex-ministro descarta ruptura democrática, mas diz haver riscos de conflitos em 2022
Victor Irajá / Revista Veja
Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo de Michel Temer, Raul Jungmann tornou-se uma das principais vozes nas questões mais candentes às Forças Armadas. No comando do ministério entre maio de 2016 e janeiro de 2019, ele defende a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita a atuação de militares da ativa no Executivo, assunto que volta à tona com a polêmica participação de oficiais de alta patente no governo de Jair Bolsonaro. Jungmann externa preocupação com a presença de coronéis e generais à frente de cargos importantes para os quais não foram preparados, como o de ministro da Saúde, em plena pandemia.
Familiarizado com os bastidores do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele refuta a possibilidade de militares embarcarem em uma potencial aventura golpista do presidente Jair Bolsonaro. Mas, nesta entrevista concedida a VEJA, não descarta um cenário de ameaçadora instabilidade para o ano que vem e conta uma versão bastante preocupante para a saída dos comandantes das Forças Armadas em março.
Qual o impacto da crise institucional entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal do ponto de vista das Forças Armadas?
Infelizmente, existe no alto oficialato uma visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. Os militares têm uma leitura de que o STF não está deixando o presidente Bolsonaro governar, algo do que obviamente discordo. A Corte, na maioria de suas decisões, tem contido o presidente em seus limites constitucionais. Mas algumas decisões polêmicas embasaram essa imagem que se formou nas Forças Armadas. Existe também a leitura equivocada de que o Supremo teria destruído a Operação Lava-Jato. É algo preocupante.
Mas cabe aos militares esse tipo de posicionamento sobre o STF?
Como instituição, as Forças Armadas não se pronunciam e não têm posição a esse respeito. Refiro-me a militares como indivíduos. Essa visão é, sobretudo, presente entre os oficiais da reserva, mais do que entre militares da ativa. Tenho conversado com ministros do Supremo sobre isso e chegou-se a se cogitar uma conversa entre dois ou três deles com os comandantes das três Forças, mas com essa última crise isso não aconteceu. É importante que esses esclarecimentos sejam feitos.
O desfile de blindados da Marinha no última dia 10 foi algo inédito. Como avaliou a parada?
Desfile de tropas e blindados nas cercanias dos poderes só é aceitável em datas comemorativas nacionais. Fora disso, é ameaça real ou simbólica — e algo inaceitável. Simbolicamente, dá sequência à série de atos de constrangimento do presidente da República aos demais poderes. Em termos de balanço, o desfile revelou-se uma ópera-bufa. O efeito foi extremamente negativo e, ainda, ocorreu a derrota do voto impresso.
Virou piada a situação dos blindados durante o desfile. Os armamentos brasileiros estão de fato sucateados?
O Exército brasileiro tem um conjunto de tanques de alta qualidade, aproximadamente 250 deles estacionados em Santa Maria (RS). Já a Marinha, obviamente, tem seu melhor equipamento nos navios. Aquilo não reflete a realidade das Forças Armadas. Se outros materiais fossem levados a Brasília, a impressão seria outra.
“Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, de igrejas, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para isso”
O senhor é um firme defensor da Proposta de Emenda Constitucional que limita a atuação de militares da ativa no governo. Como se daria esse controle?
Em democracias consolidadas é o Congresso Nacional que faz a supervisão e a fiscalização das Forças Armadas e fixa o rumo da Defesa nacional, definindo quais políticas o país necessita. No Brasil, o Congresso Nacional se alienou desse papel. Os militares precisam ser liderados pelo poder político representativo. Os civis, por sua vez, não apresentaram nenhum projeto para os militares.
Pelo seu raciocínio, os militares ocupam um vazio deixado pelos civis. Mas não há interesse exacerbado dos generais por cargos na administração pública?
Por que o militar recusaria convite para ganhar mais? Eles não são os culpados por quererem ganhar mais. Por isso acredito que quem deve limitar essa atuação é o Congresso, para que não haja politização das Forças Armadas.
Quais cargos são legítimos de ser ocupados por militares?
Órgãos como o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Defesa, cargos em áreas nuclear e espacial, que são áreas afins às atividades deles. Hoje, existe uma situação de acusações mútuas. A PEC sai das discussões vazias e traz constitucionalidade para o debate, deixando claro quais os limites da atuação no governo.
Como avalia a não punição do ex-ministro Eduardo Pazuello por participar de uma manifestação governista?
A decisão de não puni-lo foi indefensável. Assim como a manifestação tosca do chefe da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, de que “homem armado não ameaça”. Até então, eu vinha defendendo os generais em cargo político e na reserva. Os comandantes militares estavam mantendo-se enquadrados pelas linhas constitucionais. O que o Baptista fez é muito grave. São dois casos de punição, e foi um erro não puni-los.
O presidente Jair Bolsonaro repete o termo “meu Exército”. Como vê essa reiteração contínua de sua ascendência sobre as Forças Armadas?
Existe uma constante atuação de constrangimento por parte do presidente da República, para forçar as Forças Armadas a endossar os atos e as falas dele. Foi por não endossar os achaques ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e aos governadores, pelas políticas engendradas na pandemia, que, pela primeira vez, os chefes da Aeronáutica, Marinha e Exército foram demitidos. Eles não se dobraram. Os três foram demitidos porque se recusaram a envolver as Forças Armadas nas declarações e nos atos do presidente da República. Toda vez que ele se sente ameaçado, sobe o tom e desrespeita os outros poderes, constrangendo as Forças Armadas a endossar esse discurso.
A saída dos três comandantes das Forças Armadas, em março, foi, de fato, algo inédito. O que motivou a demissão?
O respeito à Constituição. Ele chamou um comandante militar e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso, tenho um depoimento em relação a isso. Ao confrontá-lo com o absurdo de ações desse tipo, eles foram demitidos.
Há risco de ruptura democrática nas eleições de 2022?
As Forças Armadas não estão disponíveis para nenhuma aventura ou golpe. Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, da Igreja, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para um golpe de Estado. Não tem nenhuma força política a favor disso, muito pelo contrário. Seria um raio em céu azul.
Mas o próprio presidente trata de manifestar sua intenção de não aceitar o resultado das eleições sem o voto impresso. Não é preocupante?
Existem riscos. A campanha de Bolsonaro para desmoralizar o voto eletrônico envolve, no fundo, retirar credibilidade do Tribunal Superior Eleitoral, sem apresentar nenhuma prova.
Quais os riscos dessa campanha, já que as Forças Armadas não endossariam uma possível tentativa de golpe?
Bolsonaro corteja as polícias e afrouxa o controle das armas. Ele é o único presidente da República que vai a cerimônias de formação de policiais. Quando propõe que o povo se arme, ele quebra o monopólio da violência legal por parte do Estado. É grave. Só o Estado tem a prerrogativa legal para o uso da força. Ele propõe jogar brasileiros contra brasileiros. No limite, isso tem o nome de guerra civil. Vamos ter problemas em 2022, não sei em qual nível. Quando o presidente diz que não teremos eleições se não forem eleições limpas, ele prepara o terreno para que vivamos o que os Estados Unidos passaram na invasão do Capitólio, só que de maneira ampliada.
Como?
A situação que mais me preocupa é esta: imagine um cenário de motins policiais no ano que vem e suponha que um governador peça ao presidente da República a presença das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem e ele não o faça. Este governador, então, recorre ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso Nacional. Chegamos a um impasse institucional. Só o presidente da República pode colocar tropas nas ruas, mais ninguém. Nunca vivemos isso. Ele é o comandante em chefe.
Qual o impacto para as Forças Armadas do envolvimento de coronéis na suposta corrupção na compra de vacinas?
É preciso que seja investigado. Sendo militar ou civil, incorrendo em crime, tem de ser punido. Não faz sentido em um país com sanitaristas de renome internacional e qualidade comprovada em políticas sanitárias ter militares ocupando cargos no Ministério da Saúde. Cria-se um desgaste de imagem, embora eles não representem as Forças Armadas. A gestão do Eduardo Pazuello não teria acontecido se houvesse limites à atuação de militares em cargos políticos.
“Ele chamou um comandante e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som”
Mais de 74% dos gastos militares são com pessoal e pensões. Trata-se de um gasto sustentável?
O Orçamento do Brasil com Defesa está abaixo da média global, não é exorbitante, mas o gasto com pessoal é demasiado. Desde o Império, adotamos uma estratégia de ocupação de território. As Forças Armadas de países desenvolvidos têm estratégias diferentes, com investimento tecnológico e profissionalização das tropas. Uma grande quantidade de recursos humanos pressiona o Orçamento, que comprime os aportes essenciais. Precisamos de uma Força com alta capacidade de mobilidade e letalidade, tecnológica.
A saída do general Luiz Eduardo Ramos representa uma perda de influência dos militares no governo?
É uma disputa por espaço. O Centrão deseja mais cargos, alguns detidos por militares. Até aqui, a batalha tem sido vencida pelo Centrão. Esse governo é frágil e precisa, desesperadamente, de uma blindagem. Bolsonaro viu crescer o risco de um remoto impedimento com as falhas no combate à pandemia e recorreu ao velho presidencialismo de coalização.
Numa possível vitória do ex-presidente Lula, como o senhor acha que o Exército se comportará?
Cumprirá a Constituição e baterá continência para o comandante em chefe das Forças Armadas.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752
Confira a publicação original da Revista Veja:
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/raul-jungmann-nao-vai-ter-golpe/
Ayres Brito: ‘Só se passa o Brasil a limpo observando a Constituição’
Ana Dubeux / Correio Braziliense
Há um ano e cinco meses, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, segue rigorosa quarentena. Só sai de 15 em 15 dias para uma volta de carro, com máscara e sem descer do carro. “Pra isso é que serve o dever da responsabilidade individual e coletiva. Se, em tema de saúde pública, a Constituição brasileira é de primeira qualidade, por que eu vou ser de quinta?”, compara, nesta entrevista ao Correio.
De casa, o magistrado, poeta, árduo defensor da Constituição, Ayres Britto continua a refletir sobre o país e acompanhar os desdobramentos de uma crise sem precedentes na história do Brasil.
“Há muitas lições a colher de uma crise que, no fundo, é de quatro conteúdos: o sanitário, o político, o econômico e o social. Tudo imbricado. E quando os problemas são assim tão graves quanto imbricados, é necessário recorrer à única lei que tem resposta de qualidade para tudo. É a Constituição. Que governa quem governa. Que governa permanentemente quem governa transitoriamente”, explica.
Para ele, a Constituição é o que faz da democracia o “princípio dos princípios”, o que faz a vida coletiva gravitar em torno de instituições, e não de pessoas. “Por isso que, entre nós, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Judiciário de falar por último. Por isso, se cuida de único regime a nos aquinhoar com uma antecipada certeza: nenhum eventual governante central subjetivamente autoritário vai conseguir nos impor um governo objetivamente autoritário”, defende.
Ayres Britto defende que é preciso fazer da Constituição mesa redonda para, em torno dela, buscar a saída da crise que já se aproxima de 570 mil mortes. Diz que a cidadania tem sido objeto de boicote e que a “Administração Pública não tem seguido uma trilha virtuosa” ao observar o tema saúde da população na Constituição.
“Mais uma vez, o que é preciso enfatizar é isto: somente se passa o Brasil juridicamente a limpo com a irrestrita observância da Constituição”, conclui.
Como a Justiça e o Direito se adaptaram às novas demandas da sociedade brasileira diante da pandemia?
O Direito está a serviço da vida, assim como a Justiça está a serviço do Direito. Por isso que, diante da emergência de uma vida coletiva sob gravíssima crise sanitária, ele, Direito, passou a se traduzir em leis declaratórias de um estado de emergência em todas as unidades da Federação brasileira. Estado de emergência, a seu turno, justificador de medidas administrativas de vacinação em massa, lockdown, distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo. Com um mais expressivo financiamento público em toda a rede hospitalar do País e como pronto-socorro financeiro à população mais economicamente débil. Tudo, por sinal, conforme o disposto no art. 196 da Constituição, que impõe ao Estado a adoção das políticas econômicas e sociais que se fizerem necessárias à administração da saúde como direito de todos e dever do Estado mesmo. Já a Justiça, como termo sinônimo de Poder Judiciário, ela cuidou de otimizar as dimensões do real e do virtual da nossa vida em sociedade, com ênfase para esta última dimensão. Com o que está dando conta da efetivação da regra igualmente constitucional de que o acesso à jurisdição é o maior dos direitos adjetivos ou instrumentais brasileiros. Donde ela, Constituição, sentando praça do dever estatal de não-negação de justiça, enunciar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art. 5º).
Por que a pandemia, aqui no Brasil, se faz acompanhar de uma crise política do mais forte acirramento de ânimos?
Bem, é que vivemos numa democracia, e o fato é que democracia é o regime de ativação da cidadania. Cidadania que é fundamento do nosso Estado Democrático de Direito – nos termos do inciso II do art. 1º da Constituição de 1988 — e que se traduz em espírito público. Abertura para o coletivo. Interesse por tudo que é de todos. Cidadania é isso. O que faz da democracia a ambiência ou atmosfera ideal para um intercâmbio de ideias que tanto leva à formação de consensos quanto de dissensos. Tudo civilizada ou respeitosamente, porque o campo das ideias é totalmente objetivo. Tão objetivo em si quanto racionalmente fundamentado. O problema é que essa ambiência cidadã tem sido objeto de boicote. De turbação por grupos de interesses que intencionalmente confundem um objetivo dissenso com um subjetivo confronto. Com uma queda-de-braço ou um cabo de guerra, já sabendo da impossível conciliação de posicionamentos. Esta a crise política, porquanto ocorrente do lado de fora das ideias e das instituições, mesmo as partidárias. Reino da mais sectária e até caricata fulanização das coisas, enfim.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Há muitas lições a colher de uma crise que, no fundo, é de quatro conteúdos: o sanitário, o político, o econômico e o social. Tudo imbricado. E quando os problemas são assim tão graves quanto imbricados, é necessário recorrer à única lei que tem resposta de qualidade para tudo, praticamente. Essa lei é a Constituição, aqui no Brasil. Que governa quem governa. Que governa permanentemente quem governa transitoriamente. Uma Constituição que faz da democracia aquele princípio-continente de que tudo o mais é conteúdo. O princípio dos princípios, então. O que mais favorece a formação de consensos e dissensos em clima político-social tão objetivo quanto civilizado. Além de fazer a vida coletiva gravitar muito mais em torno de instituições que de pessoas. Por isso que, entre nós, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Judiciário de falar por último. Por isso que se cuida de único regime a nos aquinhoar com uma antecipada certeza: nenhum eventual governante central subjetivamente autoritário vai conseguir nos impor um governo objetivamente autoritário. Assim como demonstrou a sociedade estadunidense no governo Trump.
Qual a saída para a crise?
Em suma, o de que precisamos é fazer da Constituição mesa redonda para, em torno dela, buscar a saída dessa multitudinária crise que já se aproxima de 570 mil mortes em nosso território. Sem nenhum culpa dela própria, Constituição, que faz da saúde um dever de toda pessoa estatal e um direito social-fundamental de cada indivíduo. Além de criar o SUS, priorizar os serviços e ações preventivas e ainda obrigar todo e qualquer Presidente da República, junto com o seu Vice, a prestar o compromisso de mantê-la, defendê-la e cumpri-la, quando do ato das respectivas posses. É como está no seu art. 78, ao lado de outros deveres funcionais também diretamente constitucionais.
Se é assim, estamos vivendo o paradoxo de um Direito bom e uma prática administrativa ruim?
Sim. A Constituição é muito boa, em tema de saúde da população, porém a Administração Pública não tem seguido na mesma virtuosa trilha. Principalmente a Administração Federal. Daí o número altíssimo de contaminações e de morte em escala nacional. O que tem faltado é o claro entendimento de que, em tema de saúde pública, a Constituição adota políticas de Estado que se impõem às políticas de governo. Esstas são transitórias, por definição, tanto quanto aquelas são permanentes. É como dizer: as políticas públicas de governo somente serão juridicamente válidas se compatíveis com as políticas públicas de Estado. Mais uma vez, o que é preciso enfatizar é isto: somente se passa o Brasil juridicamente a limpo com a irrestrita observância da Constituição. Tanto é assim que atentar contra o exercício dos direitos sociais (saúde é direito social da espécie fundamental) é crime de responsabilidade. É só ler o inciso III do artigo constitucional de nº 85.
No mesmo tema, o STF tem embaraçado o funcionamento da Administração Pública Federal?
Não! Em absoluto! O que disse o Supremo, acertadamente, foi isso: a) é competência material de todas as pessoas federadas cuidar da saúde da população; b) também é da competência legislativa comum ou concorrente de cada unidade federada brasileira legislar sobre… saúde, justamente. É como está no inciso II do art. 23 e no inciso XII do art. 24, combinadamente com os incisos I, II e VII do art. 30, todos da Constituição. Com o que deixou assentado a liderança, sim, da União, mas não a exclusividade de cuidar de um setor de atividade estatal que é direito de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país.
Como é ser jurista e um poeta a um só tempo?
É conciliar emoção e razão, nessa ordem. Ou quociente emocional e quociente intelectual, também nessa ordem. O primeiro a abrir os poros do segundo, e não o inverso. Isso na perspectiva da costura de uma unidade que talvez mereça o nome de… consciência.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Estou há um ano e cinco meses sob ortodoxa quarentena. Isso porque somente saio de casa para uma voltinha de carro, a cada quinze dias, ou para uma eventual consulta médica. Sempre com os elementares cuidados com o uso de máscara, com o distanciamento físico possível e com as palavras de ordem “álcool em gel em mim”. Pra isso é que serve o dever da responsabilidade individual e coletiva. Ah, também já tomei as duas doses da vacina Astrazeneca. Se, em tema de saúde pública, a Constituição brasileira é de primeira qualidade, por que eu vou ser de quinta?
Fonte: Eixo Capital / Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/ayres-brito-so-se-passa-o-brasil-a-limpo-observando-a-constituicao/
Laurentino Gomes: 'Escravidão é assunto mais importante da história do país'
Sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, jornalista e escritor fala sobre racismo, desigualdade social e Semana de Arte Moderna
João Rodrigues, da equipe da FAP
O Bicentenário da Independência do Brasil ocorre em 2022. Neste contexto histórico de celebrações, a escravidão – marca perversa e cruel da história brasileira – merece ser analisada de forma ampla, principalmente pelos reflexos que ainda hoje causam em nossa sociedade, sobretudo pela normalização do preconceito, da violência e da desigualdade social.
Para analisar esse importante tema da história nacional, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira desta semana conversa com Laurentino Gomes, escritor, jornalista, sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura. Laurentino acaba de lançar Escravidão - volume II, o segundo livro da premiada série em que faz um profundo relato dessa triste página da história brasileira.
Ouça o podcast!
O episódio conta com áudios do canal Toda Matéria, canção Canto das Três Raças, de Clara Nunes, programa Roda Viva, Superinteressante e CNN Brasil.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
Dina Lida Kinoshita conta a história de judeus progressistas no Brasil
Professora aposentada da USP cita nomes que considera importantes, como o de seu pai, Wolf Lida
Cleomar Almeida, da equipe da FAP
Nascida em campo de refugiados nos arredores de Munique, na Alemanha, em 1947, a professora aposentada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) Dina Lida Kinoshita, de 74 anos, é a memória viva de um país que recebeu centenas de judeus progressistas desde o início do século passado. Sua história carrega influências diretas de seu pai, Wolf Lida, do físico e cientista Mario Schenberg e do ex-presidente nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Salomão Malina.
Ainda nos primeiros anos de vida, Dina mudou-se com os pais para o Brasil, que recebeu três levas de judeus progressistas. A primeira delas chegou ao país, na primeira década do século 20, por causa de muitos problemas na Europa Oriental e, também, em razão da frustrada Revolução Russa de 1905. “Houve muita perseguição aos judeus. Então, começaram a migrar para vários países, inclusive para o Brasil”, lembra Dina, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Depois, perto do fim da Primeira Guerra Mundial, que iniciou em 1914 e se estendeu até 1918, o país recebeu a segunda mobilização de judeus, após a guerra civil e, concomitantemente, a guerra russo-polonesa, que marcaram o cenário lá fora.
“Os judeus foram muito perseguidos, e muita gente veio nos anos 1920. A família de Mario Schenberg chegou, por exemplo, na primeira leva. A família Malina, na segunda. Depois, nos anos 1930, com a ascensão do nazismo, veio, de novo, muita gente para cá, apesar de o Vargas ser ditador também, mas eles preferiram ficar aqui a ficar em zonas que poderiam ser ocupadas pelos nazistas”, conta a professora.
“Velho lar”
É nesse contexto que os judeus foram se “enraizando no Brasil e aprendendo a língua”, como diz a cientista. “Eles tinham um olhar sobre o que ocorria no velho lar, que é onde viveram, nasceram, e essa gente criou muitas identidades culturais. A cultura sempre mesclada com a política. Fizeram teatro, coro, escolas, colônia de férias. Então, já havia uma movimentação muito grande desses judeus que se consideravam progressistas”, afirma ela.
No entanto, no Brasil, segundo Dina, os judeus imigrantes nunca falavam que eram comunistas porque sempre tinham a espada de Dâmocles, por medo de serem deportados já para a Europa nazifacista. Assim, à medida que o tempo foi passando, os filhos deles passaram a nascer em casas comunistas. “Os jovens brasileiros foram se incluindo nesse meio”, relembra a professora, cuja vida é marcada por um enredo distinto do que foi contado até aqui.
“A minha história é um pouco diferente. Meu pai nasceu no começo do século 20, em família religiosa, e saiu da casa dos pais para Varsóvia. Ele acabou se envolvendo com a juventude comunista e chegou a ser membro do Comitê Central nos anos 1930. Lutou na Guerra Civil Espanhola”, recorda Dina.
Wolf Lida era comissário político de um pedaço da Brigada Polonesa, onde lutavam os judeus. O rumo dele, porém, mudou de repente. O Partido Comunista Polonês, em 1938, foi dissolvido pela internacional comunista e não tinha mais força alguma, assim que acabou a Guerra Civil Espanhola.
“Meu pai não pôde voltar para Polônia, não tinha jeito. Ele acabou indo para a União Soviética, não ficou em Moscou porque a cidade era o centro da Internacional. Ele foi morar na região da Ucrânia que está em litígio, começou trabalhando numa mina de carvão e depois trabalhou no correio”, lembra.
Batalha de Stalingrado
No dia em que os nazistas invadiram a União Soviética, em 22 de junho de 1941, Wolf Lida se alistou no exército soviético, e não no polonês. “Ele passou a guerra toda na União Soviética. Lutou, inclusive, na Batalha de Stalingrado e, depois, ainda, foi para o Oriente lutar contra o Japão, mas foram lançadas bombas atômicas. E ele foi desmobilizado, voltando para Polônia”, conta.
Ainda muito criança, no Brasil, Dina passou a viver em uma atmosfera ligada diretamente não só ao PCB, mas aos partidos comunistas do movimento internacional. Ela ingressou no partido em 1961, no primeiro ano do governo de João Goulart. “Nós todos, os mais jovens, éramos mais ou menos filhos da Declaração de Março de 58, quando o partido muda toda a sua política e acaba tendo como estratégia permanente a aliança”.
Em sua juventude, Dina viveu um momento de muita efervescência cultural e política. Além de ver, de perto, o governo Jango, presenciou greves e lutas de camponeses e a série de tentativas de reformas urbanas, na época. Com atuação de destaque, ela chegou a ser dirigente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas. Nomes como os de Mário Schenberg e Salomão Malina passaram a ser ouvidos por ela ainda nos anos 1950.
Mario Schenberg
Aos 15 anos de idade, Dina conheceu Mario Schenberg, em 1962, ano em que ele foi candidato a deputado estadual pela segunda vez, antes de ser eleito suplente, no período da democratização pós-Segunda Guerra Mundial. “Fiz a campanha dele. Ganhou, e ainda tinha mais três deputados eleitos, mas eles não foram empossados, porque o Tribunal Eleitoral disse que eram notórios comunistas e não poderiam assumir”, relata Dina.
Logo depois do golpe militar de 1964, a jovem ingressou na faculdade. Em seguida, Mário Schenberg foi preso. Ele, que era defensor do desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil, já era um dos maiores físicos do mundo e considerado por Albert Einstein como um dos mais importantes cientistas de sua época.
Apesar de ser renomado, conforme descreve Dina, Mário Schenberg, um dos fundadores do Conselho Mundial da Paz, “era uma pessoa muito simples”. Recebia os estudantes em casa para conversar. Além disso, trabalhou com os maiores vencedores de Prêmio Nobel do mundo.
“Ele não era uma pessoa interna do partido, mas era uma pessoa que nós podíamos apresentar em qualquer lugar do país e do mundo como uma pessoa que é preocupada com o Brasil e o mundo, contra guerra e defensor da igualdade entre as pessoas”, diz a professora aposentada da USP. Ela também é autora da biografia “Mario Schenberg: o cientista e o político”. O físico morreu, em novembro de 1990, aos 76 anos.
Salomão Malina
Outro grande nome da história de Dina é Salomão Malina, definido por ela como “figura ímpar do partido”. Ele era de uma turma de descendentes de judeus nascidos no Brasil. Alistou-se na Força Expedicionária Brasileira (FEB) e lutou na Itália. “Ganhou o maior prêmio de heroísmo e bravura, que foi cassado”, conta a professora aposentada.
Na época, Salomão Malina era estudante de engenharia da hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e militava na juventude do partido. Abandonou tudo. Ao retornar ao Brasil, voltou com ainda mais energia política. Ele trabalhava na Tribuna Popular do Rio. Chegou a ser candidato a vereador, mas não foi eleito. Durante a ditadura, ele foi para o exílio.
Dina fortaleceu os laços com Salomão Malina depois da redemocratização do país, que ocorreu em 1985. No ano seguinte, os dois passaram a trabalhar juntos. “Uma pessoa firme, com ideias muito determinadas, mas, também, um ser humano doce, que conversava, na época, com muitos jovens intelectuais, recém-doutorados ou que ainda estavam estudando”, diz ela.
Diplomático, ele foi uma figura bastante emblemática para o fortalecimento do partido e também se preocupou com as relações exteriores. “Ele teve um câncer muito agressivo e parou de viajar. Confiava muito em mim. Como falo muitas línguas e conhecia muita gente no exterior, até por causa das comunidades judaicas, ele me mandava para tudo quanto é canto do mundo. Aprendi muito com ele”, relembra Dina.
“Não era um homem que tinha algum título universitário, mas tinha um nível intelectual muito alto. Ele foi o meu grande professor da política”, orgulha-se a professora aposentada da USP. Ela também integrou a executiva mundial da Associação Internacional dos Educadores para a Paz e o Conselho Mundial da Paz. Além disso, foi membro da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância.
Alberto Fraga, ex-deputado federal: Militar não tem habilidade política
Ex-parlamentar considera o grande problema de Bolsonaro a má condução da pandemia de covid-19 e avalia como desastrosa a participação dos generais com congressistas
Denise Rothenburg e João Vitor Tavarez / Correio Braziliense
O ex-deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF) fez uma dura análise, ontem, ao CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília — sobre a participação dos militares nas várias áreas do governo de Jair Bolsonaro. Por não serem talhados para a política, cometem erros para questões que precisam ser tratadas com habilidade. Ele aponta, particularmente, a Casa Civil, que já foi ocupada pelo general Luís Eduardo Ramos, e o Ministério da Saúde, que este sob o comando do general Eduardo Pazuello.
“O (senador José) Serra não era médico. Mas veja os secretários executivos e a equipe: eram todos técnicos. O Pazuello levou, ao que parece, 17 militares. E trata-se de um ministério em que sempre houve muita corrupção”, destacou.
Fraga também afirmou que, para as eleições de 2022, apoiaria novamente Bolsonaro se fosse contra o candidato do PT — que possivelmente será o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, mesmo assim, demonstra insatisfação com o enfrentamento à pandemia da covid-19 por parte do governo. A seguir os principais trechos da entrevista.
Como o senhor avalia a indicação do senador Ciro Nogueira para a Casa Civil?
É o reconhecimento de que a articulação política do governo não estava dando certo, visto que a Casa Civil é um dos ministérios mais importantes, pois dá um norte para viabilizar votações no Congresso.
Em que ponto pode dar certo?
Não se sabe qual o preço que o governo Bolsonaro vai pagar por essa articulação política. Não tenho dúvida de que vai melhorar. Foi um desastre a política praticada pelos generais, que não são habilidosos com a política. A formação do militar não está habilitada para essa área.
Falta habilidade?
Falta traquejo dos militares ao articular emendas com parlamentares. A base do governo, no Congresso, não é consolidada. Até mesmo porque foi alcançada à custa de muito dinheiro de emendas. Passei 20 anos naquela Casa e nunca tive R$ 5 milhões ou R$ 6 milhões em emendas. Hoje, há deputado de primeiro mandato que recebeu R$ 40 milhões. Algumas prefeituras por aí estão devolvendo dinheiro, porque não têm projetos. Foi muito dinheiro distribuído, visto que o articulador político na época, general (Luís Eduardo) Ramos, precisava ter a simpatia dos parlamentares.
O que Ciro Nogueira vai fazer de diferente?
Ele tem muita experiência. Foi deputado por muito tempo, além de senador. É diferente quando você não tem o convívio com a pessoa para você convencê-la a ajudar o governo. Mas, quando existe amizade, isto é, esse tipo de relacionamento, as coisas fluem com mais rapidez e sucesso. Alguém que não conhece o parlamento, como é que vai chegar numa Casa onde há 513 deputados e 81 senadores? É preciso ter vivência política e maturidade suficiente para saber trabalhar com essas pessoas.
O presidente Jair Bolsonaro aponta fraudes no sistema de votação por urna eletrônica, mas não apresenta provas. Como o senhor avalia isso?
Acredito que seja a forma como o presidente colocou isso. A ideia é que, após a votação, caso haja contestação, o voto possa ser recontado. Por que não batem na tecla de que as eleições no Brasil, hoje, não são sujeitas a auditoria? É um sistema falho. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não pode ser tão resistente à mudança, o que gera desconfiança. Muitas pessoas não entendem a forma como Bolsonaro defende essa questão. Não se quer mudar absolutamente nada (no sistema eleitoral). O objetivo é que, após apertar o botão “confirma”, o voto fique registrado em algum local. Qual a dificuldade? Não enxergo nenhum problema nisso para as próximas eleições.
O senhor vai ser candidato pelo Democratas no ano que vem?
Tenho conversado com algumas lideranças políticas da cidade, como Eliana Pedrosa, Alírio Neto, Reguffe e o PTB, que tem o Fadi Farad. Penso que, no período de pandemia, é muito prematuro falar em eleições. Vamos esperar até outubro. Até porque, posso garantir ao governador Ibaneis Rocha que essa moleza que ele enfrentou com dois anos e meio sem nenhuma oposição, fazendo uma bobagem atrás da outra e sem ninguém a lhe cobrar, na hora certa virá à tona. E, certamente, com um grupo de oposição, o que nós estamos trabalhando para montar.
O governador do DF está próximo de Bolsonaro. O MDB está dividido entre aqueles que apoiam e os que não, e o mesmo ocorre com o seu partido. Como o senhor fica diante dessa divisão?
O DEM não toma decisão nenhuma sem discussão coletiva com a executiva nacional. Essa virtude e mérito é do ACM Neto (presidente do partido). Ele faz isso com muita destreza e ouve a todos. Sabemos que o Onyx Lorenzoni é muito ligado ao Bolsonaro, assim como eu posso dizer que sou, embora meio afastado do presidente — isso não quer dizer que esteja rompido. Simplesmente me afastei em decorrência de problemas pessoais, até mesmo para não magoar o presidente com a minha situação emocional. Agora, eu penso que o DEM deve caminhar para apoiar (Bolsonaro). Temos dois possíveis nomes para se candidatarem à Presidência: o (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta e o (senador) Rodrigo Pacheco. Ambos não têm, hoje, a mesma densidade política dos dois principais nomes polarizados (Bolsonaro e Lula). Caso uma terceira via se consolide, vai ser difícil para um dos dois vencer.
O senhor vai apoiar Jair Bolsonaro?
Se for contra o PT, apoio de olho fechado. Quero que o governo Bolsonaro dê certo, mas não posso deixar de externar minha insatisfação com algumas questões, como a demora na aquisição da vacina e a presença de membros no governo, hoje, que não trabalharam na candidatura do presidente. Você acha que os militares foram às ruas pedir voto para Bolsonaro?
Militar deve fazer campanha eleitoral?
Quando se quer, os militares são os melhores cabos eleitorais que alguém pode imaginar, sobretudo policiais e bombeiros militares. Por exemplo: se chega algum idoso e fala com um militar, este pode ajudar a indicar. Ainda que seja crime, acontece de maneira natural, não ostensiva. Quando um militar é bom vizinho, quando vota não o faz sozinho. No mínimo, 90% dos militares estaduais votaram em Bolsonaro. E o que o presidente fez para esse segmento? Absolutamente nada até agora. Fizeram foi perder garantias. Então, isso precisa ser corrigido, sob o risco de esse pessoal debandar.
O senhor acredita em um candidato alternativo, entre Lula e Bolsonaro, nas eleições de 2022? Apoiaria uma terceira via?
É muito difícil falar, pois o governo Bolsonaro está perdendo muito. Sobretudo, por conta de posicionamentos parciais da mídia, onde a população fica sem entender o real posicionamento do presidente. Eu, se vejo em uma cidade de 500 mil habitantes, uma parcela de 500 pessoas gritando “mito, mito, mito”, não quer dizer que aquela cidade vai apoiá-lo totalmente. Bolsonaro tem reconhecidamente, hoje, de 25 a 30% de eleitores fiéis a ele.
A gestão da pandemia foi o principal fator de desgaste do presidente?
Não tenho dúvida. Até porque, em relação à corrupção, até agora por parte do Bolsonaro duvido que ele esteja envolvido em rolo. Agora, dizer que em um governo, em que há tanta capilaridade, não tenha corrupção, eu não diria isso.
Militar em cargo civil, como no Ministério da Saúde, pode ocorrer ou não?
Se o (o ex-ministro da Saúde Eduardo) Pazuello tivesse sido médico nas Forças Armadas, eu não teria nada contra. Mas era do apoio logístico. Não dá para colocar um ministro da Saúde que não seja médico. Isso não cabe em lugar nenhum.
Mas (o hoje senador) José Serra foi ministro da Saúde e não era médico.
Quer dizer que ele foi bom? Isso é muito relativo. Tudo bem, o Serra não era médico. Mas veja os secretários executivos e a equipe: eram todos técnicos. O Pazuello levou, ao que parece, 17 militares. E trata-se de um ministério em que sempre houve muita corrupção. Acredito que a intenção do Bolsonaro era estancar esse tipo de problema, que aconteceu ao longo de muitos anos. Quando o presidente colocou os militares, era para barrar, sobretudo porque eles têm disciplina e fidelidade. Mas habilidade política não é a praia dos militares.
* Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi
Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4941416-alberto-fraga-ex-deputado-federal-militar-nao-tem-habilidade-politica.html
Ameaça de golpe militar: General nega envolvimento das Forças Armadas
Francisco Mamede de Brito Filho, que participa de webinar organizado pela FAP nesta sexta (30), a partir das 16h, diz não ver riscos de os militares reagirem se Bolsonaro perder a eleição em 2022
Cleomar Almeida, da equipe da FAP
O general da reserva do Exército Francisco Mamede de Brito Filho, de 59 anos, 40 deles na ativa, diz não ver risco de as Forças Armadas serem usadas em reação ao resultado das urnas diante de uma possível derrota do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2022. Francisco, que também foi chefe de gabinete do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) nos quatro primeiros meses do atual governo, vai participar de evento online sobre o tema A questão militar: do Império aos nossos dias. O webinar será sexta-feira (30/7), a partir das 16h.
Assista ao vivo!
Coordenado pelo professor Hamilton Garcia de Lima, o evento será realizado pela FAP e também terá a participação do professor de história José Murilo de Carvalho e do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann. O webinar terá transmissão em tempo real no portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade.
“É inimaginável achar que as Forças Armadas vão ser empregadas em favor de um posicionamento ou de um chefe de governo contrário ao parecer das urnas e do próprio presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Isso seria uma ruptura institucional grave”, afirma, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Desprestígio
Ex-instrutor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Ecme) e ex-chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, o general explica que “a questão militar é um fato histórico pontual”. Segundo ele, está relacionada ao desprestígio da categoria de maneira geral, por causa da questão salarial, e à legislação leniente.
“Os fatores ali presentes na questão militar vão se replicar em outras situações de ruptura, além da República, como na Revolução de 30, no Estado Novo e no movimento de 1964”, analisa ele.
O conjunto de leis, por exemplo, de acordo com o general, ainda é leniente por não estabelecer limites para a participação política do segmento militar. “Era de se esperar que o Estado propusesse mecanismo de controle para se evitar interferências políticas”, ressalta.
“Controle não é, simplesmente, ter arcabouço legal que venha impor restrições”, explica. “Mas é preciso reconhecer que a despolitização ocorre, principalmente, por meio de legislação que coíba situações que favoreçam a politização”, acrescenta.
Caso Pazuello
Além disso, ele chamou de “obscura” a razão que levou à absolvição do general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Em junho deste ano, o colega de corporação se livrou de punição administrativa após discursar em ato político em defesa de Bolsonaro, apesar de regulamento disciplinar definir como transgressão a participação de militar da ativa em evento de natureza político-partidária.
“Quanto a isso, a coisa está obscura porque o comandante do Exército decretou 100 anos de sigilo sobre os motivos que o levaram a não punir Pazuello. Deve ter levado em conta algum dado que o deixou à vontade para tomar aquela decisão, mas está clara a situação transgressora, considerando os dados aos quais tive acesso”, diz Francisco.
Na avaliação do general da reserva, é preciso fortalecer ainda mais a legislação para evitar brechas interpretativas que favoreçam militares em cenários de transgressão disciplinar. “Se estamos vivendo situações que colocam a sociedade ansiosa ou com clima de confiança indesejável na democracia, é porque não tratamos bem o arcabouço legal”, assevera.
PEC
O general ressalta que um passo importante será a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos políticos em governos.
A autora da PEC, deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), afirmou que a “sensação” é de que não se sabe mais onde termina o governo e onde começa o Exército. “É o que pode acontecer de pior para esta instituição e as demais Forças Armadas”, disse, nas redes sociais.
Pré-celebração do bicentenário da Independência
A questão militar: do Império aos nossos dias
Dia: 30/7/2021
Transmissão: a partir das 16 horas.
Onde: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da Fundação Astrojildo Pereira
Realização: Fundação Astrojildo Pereira
Frente democrática deve ser condicionada a programa político, diz historiador
Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública
Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento do Brasil
‘Passado maldito está presente no governo Bolsonaro’, diz Luiz Werneck Vianna
FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia
General revela o voto de confiança traído pelo capitão
Aluysio Abreu Barbosa, da Folha da Manhã
Com Cláudio Nogueira e Matheus Berriel
“Um voto de confiança que foi traído”. Foi assim que o general Francisco Mamede de Brito Filho definiu a atuação do presidente e capitão da reserva do Exército Jair Bolsonaro (sem partido), diante da aposta de parte do alto oficialato das Forças Armadas Brasileiras, incluindo ele mesmo, no governo do Brasil eleito em 2018. Militar também da reserva, ele comandou o contingente brasileiro nas Forças de Paz da ONU no Haiti, a Força de Pacificação no Complexo da Maré-RJ e o Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, antes de servir à atual administração federal como chefe do gabinete do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do ministério da Educação. Mas, nas suas palavras, “a decepção chegou muito rápido”. Sobre esse e outros assuntos, o general tratará no debate virtual “A questão militar: do Império aos Nossos Dias”, ao lado do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann e do historiador José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ, em evento da Fundação Astrojildo Pereira, a partir das 16h da próxima sexta (30), com transmissão ao vivo na Folha FM 98,3 e da Plena TV.
Em entrevista na manhã de ontem, ao programa Folha no Ar, da Folha FM, o general Brito Filho foi sereno, mas firme, nas críticas ao governo que ajudou a eleger e integrou. Como participou da gestão Lula, em função técnica no ministério do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). À qual foi designado pelo comando do Exército. Diferente da “decisão pessoal” que levou Bolsonaro a fazer do general Eduardo Pazuello ministro da Saúde, em plena pandemia da Covid-19 no país. Ele tampouco contemporizou a ameaça que, segundo o jornal O Estado de São Paulo, o também general da reserva e ministro da Defesa, Walter Braga Netto, teria feito ao presidente da Câmara Federal, o governista Arthur Lira (PP/AL): “Sem o voto impresso, não haverá eleições em 2022”. “Ele (Braga Netto) não tem esse direito de manifestar um pensamento (…) que agride frontalmente outro Poder”, asseverou Brito Filho. Sobre a possibilidade de o Brasil ter sua democracia de fato ameaçada, o general garantiu: “trago aqui o testemunho, por conhecer as pessoas que estão no alto comando (das Forças Armadas), de que é uma situação inimaginável”.
Generais do governo – Os militares que estão ali junto ao governo Bolsonaro, o general (Augusto) Heleno (hoje, ministro do GSI) comandou o componente militar da missão de estabilização da ONU no Haiti. Desempenhou o mesmo cargo o general (Luiz Eduardo) Ramos (ministro da Casa Civil, de mudança ao ministério da Secretaria Geral, para dar mais espaço ao Centrão no governo). O general Braga Netto não teve nenhuma participação, pelo menos de comando, nas operações no Haiti. Mas comandou o Comando Militar do Leste, como responsável pela coordenação de segurança dos Jogos Olímpicos. Então, traz uma bagagem de experiência que é referência de sucesso na parte de competência de técnicas militares. De alguma maneira, isso foi levado em conta e colocado, talvez, como algum critério na escolha do presidente Bolsonaro em cima desses militares que trazem essa bagagem de experiências exitosas na carreira militar.
Voto de confiança – É lógico, todos tinham conhecimento a respeito do perfil do candidato Jair Bolsonaro à presidência. É um político que se mantinha na mídia através de declarações polêmicas. Então, a estratégia ao longo da sua carreira política, além do seu passado como militar, estavam todos presentes. Durante a campanha, ele, por ser proveniente de um partido político muito pequeno, que não dispunha de quadros suficientes para montar um governo, já anunciava que ia mobilizar o governo com militares das Forças Armadas. Então, ao surgir essa oportunidade, alguns militares depositaram um voto de confiança, até mesmo porque acreditavam que se aquele perfil que o presidente Bolsonaro, se era para se manter em evidência, uma vez eleito presidente ele estava no cargo máximo, poderia abandonar essa estratégia das polêmicas, se conscientizar da responsabilidade do cargo, assumir não apenas a chefia do governo, como também a chefia do Estado, na condição de estadista, num país com a dimensão do Brasil. É lógico que não levaram em consideração aquilo que acabou se configurando, que é o desejo de se manter no poder e, uma vez eleito, passar a pensar na sua própria reeleição. E com isso manter a mesma atitude inadequada de um presidente, como se estivesse em campanha. Com isso, houve a decepção de grande parte dos militares que se apresentavam ou que aceitaram o convite para participar do governo.
Experiência no governo – Muitos abandonaram o barco, eu fui um deles, acreditei nessa promessa. Embora tenha aceitado um cargo de não muita evidência, de chefe do gabinete do Inep, que é uma autarquia dentro do ministério da Educação, na condição de não participar de nenhum evento de natureza política. Mas, mesmo assim, num cargo de terceiro escalão, a decepção chegou muito rápido. Então, acabei decidindo por não participar mais do governo.
Voto de confiança traído – Aqueles que permanecem têm as suas motivações pessoais. Não podemos, em princípio, condenar que essas motivações sejam com base em má fé ou interesses escusos ou pessoais. Mas, acredito que, ainda, de alguma maneira, permanecem no cargo com a intenção de contribuir com o país e, de alguma maneira, impor ainda alguns limites oferecer sugestões e aconselhamentos em cima de atitudes não muito democráticas que o próprio presidente às vezes assume em manifestações públicas e declarações públicas. Acredito que o que aconteceu foi isso: um voto de confiança que foi traído. Quando se manifestou a certeza dessa traição, era tarde demais, talvez, para abandonar, e talvez até mesmo um ato de responsabilidade se ausentar do governo, em razão de tudo o que já tinha ocorrido e em razão do que poderia acontecer ainda, de pior, sem a presença deles no governo. Prefiro acreditar nessa boa fé dos militares que ainda permanecem no governo ao lado do presidente Bolsonaro.
Que traição? – Não acredito que seja apenas eu a ter essa visão. As atitudes do presidente foram muito explícitas. Promessas de campanha foram abandonadas já no primeiro momento de exercício do governo, culminando agora com essa declaração mais recente, inclusive, de que ele sempre foi Centrão. Isso já traduz o nível de não comprometimento com as coisas. Imagino a vergonha do general Heleno ao ver a realidade dos fatos, hoje, ao lembrar das suas primeiras declarações públicas (cantou “Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, na convenção nacional do PSL de 22 de julho de 2018, em paródia ao samba “Se gritar pega ladrão”, de Bezerra da Silva) e suas primeiras atitudes no início do governo.https://www.youtube.com/embed/rgnJjcAmO0U?start=1&feature=oembed
Bolsonaro de “o que tinha de velho ficou para trás”, em 2020, ao “eu sou Centrão” de 2021 – É difícil avaliar, diante de tantas inconsistências, o comportamento do nosso presidente, infelizmente. Nós vimos aí, inclusive, até mesmo declarações de militares, que lamento, de que há um discurso presidencial para a internet e um discurso presidencial para a realidade. Isso, de alguma maneira, já deixa bastante claras as contradições pessoais do presidente Bolsonaro nas suas declarações. De alguma maneira, isso aí nos leva a desacreditar em tudo o que ele fala. Mas, a questão da participação dele na frente do QG (do Exército, em Brasília, quando disse a frase de 2020) por si só, é uma imagem bastante forte. No dia, inclusive, 19 de abril, se comemora o Dia do Exército. Há brechas, inclusive, que nós podemos identificar, que acabaram possibilitando que o general (Eduardo) Pazuello, um militar da ativa, viesse a ocupar um cargo de ministro (da Saúde) e permanecer na ativa. Isso daí mostra um pouco o descuido que, eu diria, o meio político teve em inibir essas questões que permitem criar essas situações que podem levar à politização das Forças Armadas.
PEC contra participação de militares em cargos civis da administração pública – Hoje, nós já temos uma PEC (21/21) da deputada Perpétua Almeida (PCdoB/AC), até apelidada de PEC do Pazuello, que pretende justamente proibir a participação de militares da ativa em cargos civis no governo. Veja em que retardo isso acontece. Nós estamos em 2021. E outra: foi necessário acontecer a crise para que se tomasse uma providência. Acredito que isso demonstra, de alguma maneira, o descuido que o meio político dedica a regular essa relação do Estado com o segmento militar. E digo mais: essa PEC ainda vem de uma maneira incompleta, porque ela apenas proíbe que o militar da ativa ocupe o cargo civil. Eu acredito que tem que ser debatido no Congresso, durante a aprovação, talvez um complemento que imponha inclusive quarentena. Porque, se a pessoa pode assumir de imediato um cargo de governo político, nada impede que ele, durante os últimos dias na ativa, esteja a realizar campanhas em seu próprio nome ou até mesmo no sentido de arrebanhar partidários ou eleitores.
General Edson Pujol: “Pazuello ferrou a si e ferrou o Exército” – Não há como não concordar. Sempre me manifestei contrário às possibilidades de um militar da ativa ocupar cargo civil no governo. Agora, antes de abordar exatamente a questão, no que diz respeito à situação criada pelo general Pazuello, é muito importante a gente fazer uma distinção entre cargos de natureza militar e de cargos de natureza civil. Nós temos cargos de natureza militar dentro do governo, como, por exemplo, no próprio GSI, comandado pelo general Heleno.
Passagem técnica no governo Lula – Eu mesmo servi lá (no GSI), no governo Lula, e era responsável por assessorias militares dentro de uma secretaria de coordenação e acompanhamento de assessorias militares. É um cargo de natureza militar, eu ia trabalhar fardado e desempenhava atividades de natureza militar; Atividades de Estado, não de governo. Essa natureza militar, não vejo problema algum, deve ser ocupada por militares da ativa. São cargos que vão exigir um desempenho em cima daquilo que está relacionado com a minha formação como militar. Mais uma observação: a minha indicação para servir lá no GSI, ocupando esse cargo de natureza militar, foi uma decisão do comando do Exército. O comandante do Exército faz uma seleção, utilizando a diretoria de avaliação, e seleciona perfis que são condizentes com a execução daquele cargo. Então, eu fui parar lá com aval do comandante da minha Força.
Pazuello na Saúde foi decisão pessoal – O general Pazuello, que ocupou um cargo de natureza civil, ele não seguiu esse protocolo. É um convite de caráter pessoal do presidente ao general Pazuello. Não foi uma indicação do comandante da Força, do comandante do Exército. Foi um convite pessoal. E, ao aceitar o convite, ele manifestou a sua decisão pessoal de participar do governo. No meu entender, pode ser que ele tenha se julgado, ao aceitar o convite, com a competência necessária para o desempenho do cargo. No meu caso, eu, de antemão, recusaria esse convite. Numa autocrítica muito superficial, muito rápida, eu poderia chegar à conclusão de que não tenho as competências necessárias para desempenho daquele cargo. E tenho certeza que o comandante da Força, se fosse chamado para participar do processo, chegaria à mesma conclusão. O cargo de ministro da Saúde é muito específico, tem muitas peculiaridades que eu entendo que o general Pazuello não tinha. E a Força, se fosse chamada a intervir ou a participar do processo decisório para indicação do seu nome, ela iria se manifestar dessa maneira. Mas não foi. Para nós, que conhecemos a dinâmica, os protocolos nas relações entre as Forças Armadas e o governo, nós, facilmente, chegamos à conclusão de que, ao decidir aceitar o convite para ser ministro da Saúde, ele assume uma responsabilidade pessoal, que não pode ser transferida para a instituição. Agora, é impossível que essa mesma visão seja compartilhada com toda a sociedade, pelo fato de ele ter permanecido na ativa.
Imagem na sociedade – O nome do general Pazuello no cargo de ministro vai estar sempre vinculado, na maior parte da sociedade, à instituição a que ele pertence. Ele chegou a general, com certeza mostrou qualidades para isso, passou por um processo de seleção muito sério. Mas, para ser general oriundo do quadro do serviço de intendência, ao qual ele pertence; ele não pertence a nenhuma arma combatente. O que faltou, talvez, nesse processo todo, foi essa consciência do militar na ativa, que foi convidado para assumir um cargo complexo e, ao aceitar, não ter suposto ou imaginado a responsabilidade que ele assumia também perante à instituição. Isso, para mim, era evidente. E, para muitas pessoas, ficava evidente que o resultado dele não seria satisfatório e acabaria comprometendo a imagem da instituição, como acabou acontecendo. Mas, por conta de todas essas questões que regularam esses processos que levaram à nomeação de um general da ativa ao cargo de ministro da Saúde. O fato de o presidente ter feito um convite de caráter pessoal e ele ter aceitado e ter assumido o cargo de um ministério para o qual ele não tinha preparo nem competência.
Decisão pessoal e responsabilidade de Bolsonaro – Ele (Pazuello) ocupou o cargo de ministro da Saúde não como militar, mas como cidadão. E é uma decisão pessoal do presidente. Então, se alguma medida tivesse que ser tomada no sentido de mantê-lo no cargo diante do quadro da pandemia e do seu desempenho inicial, ou de retirá-lo do cargo diante das peculiaridades que foram trazidas pela pandemia, colocando alguém mais experiente, é uma decisão que cabia ao chefe de governo, ao presidente Bolsonaro, e a ele deve ser atribuída a responsabilidade, seja pelos erros como pelos acertos. Para o bem e para o mal. Se o general Pazuello tivesse tido um desempenho excepcional no combate à pandemia, essa glória toda caberia ao presidente que escolheu aquela pessoa para ocupar aquele cargo. Se o desempenho foi fraco e, mesmo, durante bom tempo, ele ainda permaneceu com a decisão de mantê-lo no cargo, a decisão é pessoal do presidente. Agora, se a decisão do presidente foi acertada ou não, a minha opinião pessoal é de que foi equivocada. Por isso nós temos hoje instalada no Senado uma Comissão Parlamentar de Inquérito no sentido de apurar as irresponsabilidades. Isso demonstra o vigor das nossas instituições democráticas. Mas é muito importante deixar muito claro a responsabilidade pessoal daqueles militares que aceitam desempenhar cargos civis no governo, quebrando qualquer relação com a instituição, uma vez que a escolha dos nomes não passa pelo comando da Força.
Pazuello participa de ato político vedado pelo estatuto do Exército e é perdoado – Como militar da reserva, ainda pertenço e nunca deixarei de pertencer à instituição. E ainda estou subordinado ao comando do Exército. Por uma questão de disciplina, subordinados não podem fazer comentários a respeito de decisões superiores. Então, eu me manifestei, inclusive no meu Twitter, sobre o processo decisório. Mas, também faz parte da cultura militar, uma vez tomada a decisão por quem de direito, não cabe mais nenhum tipo de crítica. Tem que ser aceito. Mas, a minha preocupação durante o processo decisório era justamente para que fosse tomada uma medida enérgica.
Sigilo de 100 anos ao perdão – Prestar contas à sociedade daquilo que ocorre no âmbito das Forças é uma obrigação do comando. Então, volto a dizer que houve aí também alguma falha de comunicação em uma decisão, no sentido de decretar sigilo nas razões que foram levadas em considerações pelo comandante, que nos deixa sem acesso. E nós, como militares disciplinados, temos que acreditar que ali existem boas e fortes razões para que ele tenha adotado isso, sem deixar que se possa fazer análises, e aqui não é nenhuma crítica, no sentido de defender sempre a questão da transparência e da clareza como a obrigação de qualquer servidor público, no sentido de manter informada a sociedade a que serve.
Troca do comando das Forças Armadas por Bolsonaro – Ela aconteceu numa situação diferenciada, numa situação em que não é normal. Mas, não colocaria dentro do contexto de uma grande crise. Até por conta, mais uma vez, do comportamento do nosso presidente, que foi quem tomou a decisão. Então, ele costuma ter decisões um pouco inesperadas, surpreendentes, assim como fez para a escolha (do procurador-geral da República), desprezando a lista tríplice, ou seja, a fuga completa ao protocolo. Então, a troca do comando do ministério da Defesa e dos comandantes militares, não é que tenha sido normal. O normal é que, durante todo o mandato presidencial, os comandantes, pelo menos, permaneçam os mesmos.
Saída do ex-ministro da defesa, general Fernando Azevedo e Silva – Aí eu fico muito livre para falar, porque não posso fazer críticas àqueles que estão na ativa, aos quais estou subordinado. Mas posso a um militar da reserva que desempenha um cargo civil, assim como já critiquei o desempenho do general Ramos na secretaria do Governo, quando estava lá. No caso específico da saída do general Fernando, o que aconteceu foi uma saída inesperada e não justificada. A mensagem de despedida do general Fernando do cargo é lacônica e dá margem a muitas leituras e interpretações, ela é enigmática, diz simplesmente que sai do cargo com a certeza e convicção de que trabalhou firmemente no sentido de não permitir a politização das Forças. Daí eu posso depreender várias coisas: será que ele foi cobrado de algum envolvimento político por parte das Forças Armadas, da parte do presidente, e se recusou a fazer isso? A sociedade merecia uma explicação a esse respeito dos motivos que levaram à demissão do general Fernando e à troca dos comandantes. Porque, se isso não vem à tona, não é tornado como claro, a sociedade como um todo, diante do inesperado, passa a fazer uma série de conjecturas que podem confundir tudo e não ter nenhuma aderência à realidade dos fatos. Achei muito salutar o fato de o Congresso ter sinalizado à possibilidade de chamar o (ex-)ministro da Defesa para que ele ali colocasse para a sociedade os motivos daquela troca ministerial e da troca dos comandantes. Mas, isso não chegou a ser concretizado.
Gratidão? – Na demissão do ministro Fernando, causa estranheza também, mais uma vez, o comportamento do presidente, que nem ao menos agradeceu aos comandantes militares o trabalho que eles realizaram durante o governo dele. Isso aconteceu de uma maneira muito singela, e acredito que também depois de uma certa pressão, alguns dias depois, (dizendo) que deixava ali o agradecimento aos comandantes militares. Mas, isso entra no rol das estranhezas que nós encontramos no perfil do nosso presidente.
“Ocupação em massa de militares em cargos civis” – Voltando ainda especificamente à saída do ministro Fernando, eu acho que ele, ao declarar que combateu a politização, e isso até coloquei em comentário no Twitter, a realidade não mostra que aquela declaração realmente corresponde à realidade. Porque foi na administração dele que o general Pazuello saiu da ativa e ocupou o cargo no ministério da Saúde. Foi na administração dele que muitos militares saíram da ativa, não apenas o Pazuello, e ocuparam cargos no governo. E aí passava pelo crivo dele como ministro. Caberia a ele, se quisesse defender dessa politização, realmente, se manifestar contra essa ocupação maciça, em massa, de militares em cargos civis no governo. E isso não ocorreu. Então, eu fico imaginando que ponto limite se chegou ao ponto de ele não aceitar permanecer mais no cargo diante de uma eventual demanda do presidente que possa ter ferido esse princípio, que dizia ter, de combater a politização das Forças.
Reação forte do almirante Ilques Barbosa à sua substituição no comando da Marinha – Também li essa reportagem. Infelizmente, foi um relato, uma notícia com base em fontes não reveladas. Então, fica sempre aquela suspeita de que se aquilo realmente aconteceu e se aconteceu daquela maneira. De qualquer maneira, é aceitável imaginar que a decisão tomada pelo presidente quanto à demissão não só do ministro da Defesa, como do comandante do Exército (general Edson Pujol), e parece que depois foi adotada como pedir demissão dos outros dois (Ilques Barbosa e Antonio Carlos Bermudez, da Aeronáutica) pode causar indignação diante de um quadro em que um comandante que está desempenhando as suas funções institucionais com zelo, com seriedade, com responsabilidade, de uma hora para a outra ser excluído, ser destituído daquele comando sem nenhuma explicação razoável.
Saídas de Sergio Moro e Santos Cruz do governo – Faço um paralelo à situação do ministro (da Justiça) Moro, e à própria saída do ministro (da Secretaria de Governo e general da reserva) Santos Cruz também. Eles saíram, mas colocaram à sociedade os motivos que os levaram a sair. Eles deixaram claro, foram transparentes e comunicaram as razões à sociedade. Eu fico muito triste em saber que isso não foi feito na época pelo general Fernando. Eu acho que, se ele tivesse deixado um testemunho a respeito das razões, ele teria feito uma grande contribuição, não só para a sociedade, no sentido de dar a ela essa oportunidade de tomar conhecimento das razões que levaram àquela decisão, até mesmo para a instituição a que ele pertence, as Forças Armadas, no sentido de deixá-las protegidos no que diz respeito ao desempenho pessoalmente daqueles outros comandantes que iriam assumir. Podem ter ocorrido outras coisas nos bastidores, mas eu acho essencial que isso tivesse sido tratado em público, como uma prestação de contas à sociedade.
General Hamilton Mourão – Acredito que alguma afinidade existiu nas ideias, na maneira de pensar dele, ao aceitar construir a chapa, como vice-presidente, com o presidente Bolsonaro. Através das suas declarações públicas, ficou evidente para quem acompanha o cenário político esse alinhamento de pensamento com o presidente Jair Bolsonaro em alguns pontos, que, a meu ver, são negativos, indesejáveis, especialmente no que se refere a reverências a supostas participações de militares, durante o governo militar, em experiências de tortura. Mas, no conjunto, eu acho que ele vem desempenhando um papel, apesar de ter sido também traído em alguns desvios de rota adotados pelo presidente Jair Bolsonaro após a eleição. As declarações dele em cima de situações mais polêmicas sempre trazem uma mensagem de estabilidade. Ele, como vice-presidente, pois eu não poderia analisá-lo como general, é uma pessoa que está consciente da responsabilidade do cargo que ocupa. Ele tem noção do tamanho da cadeira em que ele está sentado. Tem sido uma coisa necessária, inclusive. Uma coisa é você transmitir estabilidade quando não é necessário, outra é vir a público com coragem e se posicionar em cima de crises, muitas vezes até mesmo contrário às próprias declarações do presidente, e passar à sociedade uma mensagem de tranquilidade.
Braga Netto a Arthur Lira: “Sem o voto impresso, não haverá eleições em 2022” – É um caso muito recente. Há versões diferentes envolvendo os três atores principais, que seriam o órgão de imprensa que noticiou (jornal O Estado de São Paulo); o autor da mensagem, que seria o ministro da Defesa, Braga Netto; e o suposto emissário, que teria levado essa mensagem. Não vou discutir a credibilidade do órgão de imprensa que noticiou, muito menos das declarações do presidente da Câmara e do ministro da Defesa, Braga Netto. O que não foi negado peremptoriamente, deixando bem claro, para trazer o fato concreto, é se ele em algum momento fez aquela declaração ou não. Porque o que foi negado na sua declaração, ontem (na quinta, dia 22), ao público, é que, se ele precisasse levar alguma mensagem ao presidente da Câmara, ele faria pessoalmente e não usaria um intermediário. Entretanto, ele não negou ter declarado aquilo que foi noticiado, que seria justamente essa mensagem a respeito de uma não realização de eleições caso o voto impresso não fosse aprovado.
General Villas Bôas antes da votação do habeas corpus de Lula no Supremo – Essa situação me leva até a fazer uma analogia com o tweet do general Villas Bôas em 2018. De alguma maneira, ali foi uma forma mais explícita, ele usou a conta pessoal do seu Twitter e se manifestou como comandante da Força, deixando ali no ar, uma coisa que foi muito criticada por toda a sociedade, uma ameaça velada às votações que iriam ocorrer no STF no dia seguinte (do habeas corpus de Lula).
Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?
— General Villas Boas (@Gen_VillasBoas) April 3, 2018
PEC do voto impresso no Congresso e desinformação – Hoje, nós estamos diante de um movimento do Legislativo no sentido de aprovar ou não a adoção de medidas complementares de segurança ao sistema eleitoral que está em vigor. Não usou o Twitter, mas pode ter usado a desinformação ou uma declaração realizada em ambiente informal ou não. Mas, o fato é que a mensagem surgiu, foi explorada pela mídia e entrou no debate público. Não deixa de ser uma maneira de também exercer uma certa pressão, diante da indefinição de se de fato ocorreu ou não essa declaração. Mas, somente o fato da suposição já exerce, de alguma maneira, alguma pressão dentro do processamento dessa aprovação no que diz respeito ao voto impresso na Câmara.
Além da bravata? – Eu acredito aí que, sem entrar nos detalhamentos de como tudo aconteceu, até porque não temos certeza de como se processou, vamos ampliar um pouco o espectro e imaginar: se realmente nessa mensagem teria que haver uma conotação que vá além da simples bravata… As Forças Armadas estão muito bem comandadas e lideradas, têm passado mensagens de votação democrática e respeito às instituições; as Forças Armadas estrutura militar, militares da ativa, alto comando. Um sistema eleitoral que está estabelecido, e a autoridade competente para se manifestar a respeito da credibilidade ou não já se manifestou, o presidente do TSE, por inúmeras vezes, garantindo à sociedade de que é um sistema seguro e que não há a mínima possibilidade de fraude. E temos aí a palavra de um presidente que vem levantar suspeitas e que faz denúncias de que houve fraude nas eleições passadas, sem apresentar provas.
“Situação inimaginável” – Diante dessas três realidades, é possível que a sociedade imagine que essas Forças Armadas vão atuar em defesa do pensamento equivocado de um presidente em detrimento do respeito ao Poder Judiciário, que detém o sistema eleitoral e garante que é confiável? Eu, honestamente, trago aqui o testemunho, por conhecer as pessoas que estão no alto comando, de que é uma situação inimaginável. Está aí a declaração do nosso vice-presidente: nós não estamos numa república de bananas. As instituições estão já fortalecidas o suficiente para que se um tipo de bravata dessa, mesmo que tenha sido conduzida em ambiente informal, coisa que não deveria acontecer.
“Não tem esse direito” – O que eu gostaria de salientar é que, às vezes, os militares não têm noção do peso das suas declarações quando investidos de um cargo com a projeção que tem um ministro da Defesa, um chefe da Casa Civil, seja lá qual for o cargo do primeiro escalão. Eles têm que ter muito cuidado com o que falam, porque além de a mensagem ter um potencial muito grande, por trás daquela declaração, e mesmo sendo da reserva, ele coloca por trás da declaração a própria instituição a que ele pertence: as Forças Armadas. Então, é um cuidado redobrado. Acredito que todo civil que ocupa cargo público tem que ter essa consciência das declarações que fazem ao público, e muito mais cuidado deve ser tomado pelas autoridades que são militares da reserva, por conta dessa vinculação que a sociedade imediatamente faz, de uma maneira automática, em associar aquelas declarações feitas como cidadão ocupante de cargo civil e o vínculo com as Forças Armadas, que detêm o monopólio do uso da força. A associação é automática. Por isso, o general Braga Netto, como ministro da Defesa, em relação ao tema que foi abordado na notícia, ele estaria até obrigado de pensar isso. Ele não poderia em nenhum momento fazer esse tipo de declaração, mesmo em ambiente controlado ou em ambientes informais. Ele não tem esse direito de manifestar um pensamento dessa natureza, que agride frontalmente a um ou outro Poder. Eu estou aqui trabalhando suposições, não posso, de alguma maneira, dizer que ele fez a declaração ou não, porque é um ponto obscuro. Mas, a maneira como esse assunto chegou ao conhecimento da sociedade leva a acreditar que alguma coisa houve.
CPI da Covid investiga denúncias de corrupção de militares na negociação de vacinas – Primeiro, em relação ao envolvimento dos militares, no caso o coronel Elcio (Franco, da reserva do Exército), secretário-executivo do ministério da Saúde (hoje assessor especial da Casa Civil) em suspeitas de corrupção. Eu entendo que os militares, por se levarem uma vida muito restrita, a caserna, de certa forma, podemos conceituá-los como ingênuos. Não estou querendo de antemão afirmar que as questões levantadas não são verdadeiras ou que os militares se deixaram envolver por ingenuidade. Mas, é uma possibilidade. O fato é que não existe nada comprovado ainda. É importante esperar, saber a comprovação dos fatos para se omitir algum juízo a esse respeito. Mas, eu deixo a mensagem em relação a esse primeiro aspecto da seguinte maneira: os militares são muito vulneráveis a se envolverem com essas negociatas, porque não têm a expertise do que com certeza eles não fazem na caserna, porque não lidaram com isso durante a sua carreira. Mas, não estou querendo dizer de antemão que tenha ocorrido isso, até porque, conhecimentos básicos, todo coronel que chega a esse posto tem conhecimento obrigatório. Nos comandos dos batalhões, eles têm atividades que estão relacionadas com essa questão administrativa, de conhecer bem a lei de licitações e contratos. Então, também não são tão ingênuos a ponto de se deixar envolver inadvertidamente. Mas, é algo que a gente tem que aguardar.
Presidente da CPI, senador Omar Aziz fala em “banda podre” dos militares e gera reação forte das Forças Armadas – Em relação ao atrito, à troca de declarações infelizes ambas, na minha opinião, entre o presidente da CPI e o comandante do Exército (general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira), é aquele ditado: existem três coisas que não voltam: a flecha atirada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida. Nesse caso, o presidente da CPI, o senador, foi infeliz ao usar o termo “banda podre”, porque transmite uma ideia de que há uma quantidade considerável de corruptos dentro do Exército, ao ponto de merecer esse rótulo, coisa que não têm aderência com a realidade. Em seguida, ao saber da repercussão daquela declaração, ele, de imediato, se pronunciou de maneira muito correta, muito educada, muito civilizada, deixando claro que aquela manifestação, aquela declaração não tinha nenhuma intenção de atingir a instituição como um todo. Mas, mesmo assim, veio a nota, que não saiu do comandante do Exército, a quem foi dirigida aquela palavra agressiva, mas já de uma maneira conjunta dos três comandantes das Forças e assinada pelo ministro da Defesa. Também veio em um tom inadequado, porque, embora tenha usado o termo infeliz, não havia o porquê, depois da retratação feita logo em seguida, de ter aquele tipo de reação.
Reações e reações – Acredito até que a maneira mais eficiente de se manifestar a esse respeito para alguém que está interessado em não alimentar discórdia, em promover a união, que é uma obrigação de toda liderança antes de tudo… Quando servimos a um Estado, temos que trabalhar para manter esse Estado unido, sua sociedade… Poderíamos ter declarações bem mais amenas, como no sentido de que, se há uma “banda podre”, conte com o nosso suporte, o nosso apoio, para que sejam identificadas as responsabilidades, porque também nós estamos imbuídos de identificar irregularidades e desvios, e punir de maneira adequada e justa. Ao invés de ir contra, se juntar a ele no sentido de manifestar interesse de identificar os possíveis erros, comprovadamente, e adotar as medidas justas, sejam elas criminais ou disciplinares. Então, acredito que foi uma infelicidade, não só em relação ao termo que foi usado pelo presidente da CPI, como também o tom da resposta dos três comandantes das Forças. Acho que não contribui em nada no processo de unidade, de não alimentar discórdias no âmbito da sociedade.
Carreira política? – A gente nunca pode dizer que dessa água não beberei. No momento, não tenho nenhuma ambição nessa área. As minhas participações têm sempre sido com a intenção de trazer informações, trazer esclarecimentos relativos a uma instituição à qual servi com orgulho durante 40 anos, e carrego esse orgulho até hoje. Então, eu, na condição de militar da reserva, sem querer ser porta-voz dessa instituição, mas com base na experiência desses 40 anos de serviço, tenho me manifestado, sempre que julgo necessário, no sentido de defender as ideias em que eu acredito, os valores com os quais fui formado na minha carreira militar.
Orgulho de Exército – Tudo o que eu tenho na vida, devo ao Exército. Entrei no Exército aos 15 anos de idade, oriundo de Fortaleza, de uma família que não tinha militares. Meus pais eram professora e advogado. E consegui chegar ao curso de general. Isso daí é uma coisa da qual me orgulho. E reconheço muito essa postura da instituição em cima de adotar a meritocracia e levar aos postos elevados pessoas que demonstram durante a sua carreira um desempenho merecedor. Então, tenho essa gratidão muito grande à instituição e sempre terei, pela minha formação e pelas minhas convicções. Tenho essa intenção de colaborar e defender a instituição quando é possível defender. Quando não é possível, não vamos defender o indefensável, vamos criticar, vamos trazer para o debate. Mas, sempre com o objetivo de melhorar a instituição e, no sentido mais amplo, já que agora sou cidadão numa maior plenitude do que já era como militar, contribuir para o pensamento do processo democrático e o desenvolvimento da nossa sociedade. Essa é a minha motivação, isso é o que posso responder no momento.
Confira, abaixo e em vídeo, os três blocos com a íntegra da entrevista do general Francisco de Brito Filho ao Folha no Ar da manhã de sexta-feira (23/7):
Política de renda básica continua sendo emergencial, diz Débora Freire
Segundo a economista, programas sociais de renda básica "serão muito necessários pós-Covid" e precisam ser elaborados tendo em vista o enfrentamento das desigualdades sociais e a recuperação econômica
IHU Online
A experiência do Auxílio Emergencial concedido no ano passado, que repassou parcelas de até 1.200 reais para os beneficiários, indica a urgência desse tipo de política no país para enfrentar o aumento da pobreza. "Na minha concepção, a política de renda básica continua sendo emergencial e vai ser emergencial pós-crise. Teremos que discutir o aprofundamento da proteção social no Brasil se não quisermos perenizar o aumento da pobreza e da desigualdade que vai aumentar quando acabar o Auxílio Emergencial ", diz Débora Freire.
No ano passado, a economista fez um estudo acerca dos impactos da renda básica emergencial tanto na vida das famílias que receberam o benefício quanto na própria dinâmica da economia. "Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial. Para algumas delas, o auxílio mais do que cobriu a perda de renda naquele período. Também percebemos impactos nas classes que recebem de dois a três salários mínimos. Chamo a atenção para os impactos positivos em famílias que não são elegíveis do programa, que não recebem diretamente a transferência de renda. Esse é um impacto importante dos programas de transferência de renda e acontece porque as famílias que recebem o benefício diretamente estão na base da pirâmide e gastam sua renda em consumo. Então, elas aumentam o seu consumo e isso significa mais venda, ou seja, os setores produtivos têm que produzir mais para atender aquela demanda e, ao produzirem mais, empregam mais capital e temos mais geração de renda na economia", ressalta.
No ano passado, Débora Freire participou do evento "A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Na palestra "Renda Básica Universal. Combate à desigualdade e busca da justiça social na experiência brasileira", ela defende a construção de um "aparato de proteção social que consiga se ajustar rápido às crises, visto que a população informal e uberizada tem uma característica de muita volatilidade nos seus rendimentos, e toda vez que os rendimentos tendem a ser reduzidos seria possível fazer alguma transferência imediata para as famílias".
A seguir, reproduzimos a conferência no formato de entrevista.
Débora Freire é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ, mestra em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa - UFV e doutora em Economia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais - CEDEPLAR/UFMG. É professora adjunta do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG.
Confira a entrevista.
IHU – Quais as principais conclusões da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada - Nemea sobre o Auxílio Emergencial?
Débora Freire – Fizemos um estudo no Nemea acerca dos impactos da renda básica emergencial e o olhar que trago, para além das questões sociais e do impacto nas desigualdades [gerado pelo auxílio], é o de olhar para programas sociais de renda básica como programas também de incentivo econômico e de incentivo à recuperação econômica, que serão muito necessários pós-Covid.
A discussão sobre a implementação de programas de renda básica já existia [antes da pandemia], muito por conta da dinâmica do mercado de trabalho que estamos observando nos últimos anos, como o aumento de empregos de pior qualidade e fenômenos de flexibilização no mercado de trabalho, conhecidos como uberização. Muitas pessoas, dada a crise econômica, especialmente no Brasil desde 2015, aceitam empregos de pior qualidade, com jornadas exaustivas e sem garantias de direitos – isso, de fato, piora o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Ao mesmo tempo, ocorre um processo de robotização que tem gerado uma substituição da mão de obra de trabalho por máquinas e fala-se de uma tendência em que não haverá emprego para todo mundo. Então, temos visto um aumento do desemprego. Nesse contexto, no mundo todo, a discussão sobre uma renda básica, sobre um nível mínimo de vida necessário para as pessoas, já estava ganhando forma há algum tempo, em razão dessas novas dinâmicas, mas ganhou outra perspectiva e velocidade por causa da pandemia de Covid-19.
Na pandemia, os programas de transferência de renda foram utilizados na maioria dos países que conseguiram ser exitosos na tarefa de garantir um nível mínimo de renda para as famílias. No Brasil, não foi diferente: implementou-se um programa de auxílio emergencial que foi, de fato, um sucesso do ponto de vista das políticas públicas na pandemia em relação ao eixo econômico. Foi a política mais exitosa. No entanto, as transferências de renda foram reduzidas e não há perspectiva da continuação deste programa ou da implementação de um programa diferente. Também não sabemos, do ponto de vista da saúde, o que vai acontecer. Não sabemos até quando esta crise vai durar e, do ponto de vista econômico, a recuperação tende a ser lenta. Ao mesmo tempo, vemos uma discussão muito truncada e difícil de ser feita no âmbito federal, que não tem previsto no orçamento o que vai ser feito. O governo tem “batido muito a cabeça” [para encontrar formas] de como financiar uma renda básica, mas essa discussão não tem avançado na medida que precisa.
IHU – Como, a partir do Auxílio Emergencial, foi possível fortalecer minimamente o sistema de proteção social?
Débora Freire - Gostaria de destacar as potencialidades do tipo de transferência de renda, como a renda básica emergencial, para que possamos pensar novas perspectivas a respeito do aprofundamento da proteção social no Brasil, que vai ser necessário.
Não voltaremos para o mundo anterior e, muito provavelmente, teremos um mundo com muito mais desigualdades e com uma dificuldade de recuperação econômica muito expressiva. Na minha concepção, a política de renda básica continua sendo emergencial e vai ser emergencial pós-crise. Teremos que discutir o aprofundamento da proteção social no Brasil se não quisermos perenizar o aumento da pobreza e da desigualdade que vai aumentar quando acabar o Auxílio Emergencial.
A renda básica emergencial teve tanto sucesso, que conseguiu neutralizar o impacto da crise nas famílias. Não tivemos até hoje políticas tão distributivas como foi o Auxílio Emergencial no Brasil, mas tão logo o benefício acabe, vamos ver a face da desigualdade. Precisamos discutir possibilidades de políticas, de desenho de renda básica, e de financiamento.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde - OMS declarou a pandemia de Covid-19, e o Brasil teve um tempo para se ajustar, para tentar antever os efeitos da Covid. Mas, de fato, não aproveitamos esse tempo para nos planejarmos de maneira adequada. Do ponto de vista das medidas em relação aos impactos econômicos e das políticas a serem adotadas, primeiro, ouvimos declarações de que o governo continuaria com a agenda de austeridade, não mudaria os rumos da política econômica por conta da pandemia, o que de fato era um contrassenso, porque todos sabiam que a realidade iria se impor, a crise iria chegar e precisaríamos de um Estado fazendo política contracíclica, ou seja, aumentando os gastos estatais com saúde e proteção social. Já se sabia que isso deveria ser feito, mas o governo teve dificuldade de fazê-lo. Depois, o governo foi ajustando suas expectativas e anunciou que algumas medidas seriam tomadas, como a expansão do Bolsa Família, mas ainda havia uma incredulidade em relação aos impactos da crise. O ministro da Economia chegou a dizer que com oito bilhões seria possível dar conta da crise, mas hoje já se sabe que [aquilo] era uma fantasia, porque dada a magnitude dos gastos públicos que foram necessários e ainda são, aquela visão do início da crise era totalmente equivocada.
Impacto da pandemia na renda das famílias
Quando de fato foi decretada a pandemia de Covid-19, o nosso grupo de pesquisa reorientou sua agenda para avaliar os impactos sociais da pandemia. Nos perguntamos se o impacto seria homogêneo entre as pessoas e as famílias. Primeiramente, tínhamos um discurso de que por se tratar de uma crise sanitária, ricos e pobres enfrentariam a crise da mesma maneira. Obviamente, já sabíamos que isso não iria acontecer, do ponto de vista tanto da saúde como da economia.
Do ponto de vista da saúde, já sabíamos que a população mais pobre e vulnerável seria mais impactada, porque são pessoas que moram em condições mais precárias, vivem em locais com uma densidade populacional muito maior, aglomeradas, com mais dificuldade de acesso a serviços de saúde e a produtos de higiene que são necessários para tentar evitar o contágio e, além disso, pegam transporte público para ir trabalhar e não conseguem evitar aglomerações.
Do ponto de vista econômico, tentamos responder quão heterogêneo seria o impacto na renda das famílias, advindo de um cenário recessivo, que seria inevitável dada a crise de Covid-19. A nossa pergunta foi: como a queda de 1% no emprego impacta a renda das famílias por classes de renda? Para responder a essa pergunta, utilizamos um modelo de simulação – o qual desenvolvi na minha tese de doutorado – que mapeia os fluxos econômicos, como se fosse uma fotografia de toda a economia, mapeando os fluxos de vendas e compras entre setores produtivos, as famílias e o governo; as transferências de renda entre as famílias – como os setores produtivos remuneram as famílias na forma de renda do trabalho e do capital; e como essa renda é distribuída por classes de renda.
Do ponto de vista agregado, vimos que a queda de 1% no emprego se relacionaria a uma queda de 1,4% do PIB e a uma queda de 1,1% na renda disponível das famílias. Mas o nosso interesse era avaliar como esse impacto heterogêneo se daria do ponto de vista da renda das famílias por classes de renda, já que o modelo permitia essa análise. Conseguimos perceber que uma crise recessiva de 1% de queda no emprego afetaria a renda das famílias mais pobres – estamos considerando 11 classes de renda. Nas duas primeiras classes de famílias, que recebem até um salário mínimo e até dois salários mínimos, observamos que o impacto da recessão é 20% maior do que o impacto médio na renda das famílias de modo geral. Ou seja, projetamos que a renda das famílias mais pobres seria mais afetada do que a renda da maioria porque essa crise atingiu principalmente o setor de serviços, que emprega uma proporção maior de trabalhadores informais, com mão de obra menos qualificada e, portanto, a maior parte das famílias mais pobres trabalha no setor de serviços. Enquanto as famílias mais pobres têm uma renda menor e dependem exclusivamente da renda do trabalho e das rendas de transferência, as famílias mais ricas têm renda proveniente de rendimentos de capital, de ativos financeiros. Dada essa diferença, é mais impactado quem depende da renda do trabalho. Essas famílias precisariam ser auxiliadas porque, do contrário, aumentaria muito a desigualdade no país.
Implementação do Auxílio Emergencial
Primeiro, o Ministério da Economia anunciou um auxílio no valor de 200 reais para os autônomos. Já se sabia que isso seria insuficiente. O governo teve muita dificuldade de entender como conceder o auxílio: se iria utilizar o CadÚnico e como poderia expandi-lo. No entanto, a sociedade civil e os pesquisadores se mostraram muito participativos e pressionaram o Congresso para que votasse um benefício que fosse suficiente para lidar com a crise, visto que 200 reais era um valor insuficiente. O Congresso votou a renda básica emergencial de 500 reais, o governo acabou passando o valor para 600 reais, que foi aprovado no Senado.
IHU - Quais foram os impactos desse programa na economia?
Débora Freire - A pergunta da nossa pesquisa era: a renda básica emergencial é uma resposta suficiente aos impactos econômicos da pandemia de Covid-19 no Brasil? O nosso intuito era avaliar o impacto do auxílio na renda das famílias, mas também na economia, visto que, ao nosso ver, os impactos econômicos dos programas de transferência de renda têm de ser considerados. Esse tipo de política atua não apenas para diminuir a vulnerabilidade social das famílias no momento, mas como uma política de atenuação dos impactos da pandemia. Isso é importante de avaliar porque nos mostra os potenciais de um programa de renda básica para a recuperação econômica e como esses programas têm servido também do ponto de vista econômico e não apenas social.
Nós utilizamos aquele mesmo modelo de simulação que foi desenvolvido na minha tese de doutorado para simular os impactos da renda básica emergencial. No entanto, o adaptamos para um modelo trimestral – ele era anual – para captar os efeitos do trimestre e de curto prazo do programa. A estratégia de simulação mesclou duas bases de dados: a base de microdados do CadÚnico e os microdados da Pnad para mapear quem seriam os potenciais elegíveis para o programa, para conseguirmos mensurar os choques de transferência de renda que estabeleceríamos no nosso modelo.
O modelo tem 11 classes de renda e analisamos separadamente as três primeiras classes, que são as famílias que recebem de zero a três salários mínimos e que seriam contempladas pelo Auxílio Emergencial. Usando e mesclando essas bases de dados, estabelecemos os filtros usados pelo governo para determinar a elegibilidade para o programa: o indivíduo deveria atender a todos os pré-requisitos estabelecidos, como ser maior de 18 anos, não ter emprego formal, não receber benefício previdenciário ou assistencial, exceto o Bolsa Família, ter renda familiar de até meio salário mínimo per capita ou até três salários mínimos totais e não ter recebido acima de 28.559 reais no ano anterior. Deveria também ou ser microempreendedor individual ou contribuir individualmente para o FGTS ou ser um trabalhador informal, tanto desempregado como autônomo, inscrito no CadÚnico, ou por meio de autodeclaração, que foi feita via aplicativo. Conseguimos chegar a um número de beneficiados muito próximo ao número projetado pelo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e pelos dados divulgados pelo Dataprev. Posteriormente, o benefício atingiu um contingente populacional muito maior.
A estratégia de simulação que fizemos contemplou dois cenários: a renda básica emergencial nos três primeiros meses previstos, e depois analisamos um cenário sem o benefício.
Resultados
Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial. Para algumas delas, o auxílio mais do que cobriu a perda de renda naquele período. Também percebemos impactos nas classes que recebem de dois a três salários mínimos. Chamo a atenção para os impactos positivos em famílias que não são elegíveis do programa, que não recebem diretamente a transferência de renda. Esse é um impacto importante dos programas de transferência de renda e acontece porque as famílias que recebem o benefício diretamente estão na base da pirâmide e gastam sua renda em consumo. Então, elas aumentam o seu consumo e isso significa mais venda, ou seja, os setores produtivos têm que produzir mais para atender aquela demanda e, ao produzirem mais, empregam mais capital e temos mais geração de renda na economia. Uma vez que a distribuição de renda na economia entre as famílias é concentrada, os principais beneficiários indiretos desses programas de transferência de renda são as famílias que estão nas classes superiores. Esse efeito positivo para as famílias que recebem mais de três salários mínimos é um dos impactos indiretos da renda básica emergencial na economia.
Impactos macroeconômicos
Uma vez que esse tipo de programa gera impacto na renda das famílias, gera também efeitos macroeconômicos. Isso porque estimula o consumo das famílias que, por sua vez, gera um estímulo à produção de renda na economia, que se transforma em impactos macroeconômicos. Temos impactos no PIB, no consumo das famílias, no emprego e no investimento. Observamos um impacto positivo no PIB, de 0,44%, no primeiro trimestre, mas no cenário em que a renda básica fosse retirada, haveria uma queda nesses impactos, que perduraria ao longo do próximo ano (2021).
O programa de renda básica emergencial teve um impacto de mitigar a recessão e a crise econômica - Débora Freire Tweet
Dado o cenário econômico recessivo, o programa de renda básica emergencial teve o efeito de mitigar a recessão e a crise econômica, uma vez que gerou um impacto positivo no PIB e nas demais variáveis macroeconômicas. Se não fosse o Auxílio Emergencial, teríamos tido uma recessão econômica muito maior. Esse foi um programa muito importante, pois o consumo se manteve aquecido, apesar da crise. A queda do consumo foi muito menor do que se não houvesse a renda básica emergencial.
Financiamento
Uma questão importante das simulações é que nesses cenários nós consideramos o financiamento dessa política como de fato foi colocado em prática, por meio do endividamento público. Sabemos que os gastos para enfrentar a crise estão sendo financiados com o aumento do endividamento e, exatamente por isso, temos impactos maiores do ponto de vista econômico. Por que digo isso? Porque se tivéssemos que financiar a política com algum recurso como, por exemplo, impostos, teríamos um choque negativo na economia e os impactos seriam menores. Os efeitos [do Auxílio Emergencial] seriam maiores e teríamos um impacto ainda mais positivo se tivéssemos um financiamento baseado na tributação dos mais ricos, porque eles consomem uma maior parte da sua renda.
É importante ressaltar que o auxílio é uma política emergencial. Para pensar uma renda básica permanente, vai ser necessário algum tipo de ajuste e de mapeamento de fonte de financiamento. Não se financia uma política permanente com endividamento público. Então, precisamos pensar de onde tirar o recurso para desenhar uma política de renda básica permanente.
Os efeitos [do Auxílio Emergencial] seriam maiores e teríamos um impacto ainda mais positivo se tivéssemos um financiamento baseado na tributação dos mais ricos - Débora Freire Tweet
IHU – Quais setores econômicos foram impactados pelo Auxílio Emergencial?
Débora Freire - Esse tipo de transferência de renda para as famílias tem potencial de atingir setores produtivos de forma assimétrica porque eles têm participação distinta no consumo das famílias. Alguns setores têm uma participação muito mais efetiva. Quando consideramos as famílias em classes de renda, essa composição também muda porque enquanto as famílias de classe mais baixa gastam a renda em alimentação, serviços pessoais e eletrodomésticos, as famílias de classe mais alta têm uma cesta de consumo média diferente: elas consomem viagens, combustível, ou seja, têm outro perfil e padrão de consumo. Como as famílias de classes mais baixas foram as principais atingidas pelo auxílio, consequentemente o programa atingiu os setores de eletrodomésticos, de perfumaria, higiene e limpeza, de artefatos de couro e calçados, de saúde, de vestuário, de alimentos e bebidas. O setor de comércio foi muito afetado pela crise de Covid-19, mas o Auxílio Emergencial foi um programa de estímulo também para o setor.
Outro impacto do Auxílio Emergencial diz respeito à arrecadação do governo. O sistema econômico é integrado e muitas vezes fazemos algumas confusões em relação ao orçamento público, que não é igual ao orçamento familiar. Ou seja, a família gasta aquilo que ela tem de renda, mas o governo tem uma especificidade diferente: ele tem a capacidade de afetar a sua receita com seus gastos. O governo é um setor demandante da economia e, quando ele amplia os gastos, faz com que a economia se aqueça e gere o ajuste da produção dos setores produtivos para atender a demanda crescente. Esse novo cenário gera mais renda e, consequentemente, há um aumento na arrecadação de impostos. Então, o governo tem a capacidade de arrecadar e afetar a sua arrecadação.
Em função disso, chamamos a atenção para este resultado: a política de renda básica tem o efeito de, em partes, se autofinanciar, porque uma vez que o governo transfere renda para as famílias, a arrecadação do governo também vai ser afetada pela política. Segundo nossos cálculos, em três meses de renda básica emergencial, 24% do custo da política seria coberto pelo “desvio” que ela gera na arrecadação do governo. Ou seja, teríamos um efeito autoalimentador da política na receita do governo, que deveria ser considerado. Obviamente, a política não gera mais arrecadação do que o seu custo, mas no caso de uma política emergencial, o valor coberto seria de 24%. Então, é preciso considerar o custo líquido dessas políticas e não o custo bruto. O auxílio é primordial para as novas dinâmicas econômicas pós-Covid-19 exatamente porque essa nova dinâmica de desigualdades tende a se acelerar depois da pandemia.
IHU – Quais os desafios de instituir uma renda universal e incondicional?
Débora Freire - Quando falamos de renda básica, estamos falando de uma transferência de renda regular, incondicional e universal, ou seja, todos podem recebê-la. Mas a forma de financiamento é via imposto de renda: as famílias de classes mais altas seriam contribuintes líquidos, porque elas poderiam receber o benefício, mas teriam que pagar por ele no imposto de renda, ao passo que as famílias mais pobres seriam beneficiados líquidos, porque são isentas do imposto de renda.
A renda mínima diz respeito a programas focalizados, segundo critérios de renda, como o Bolsa Família, em que as pessoas precisam ter um limite de renda para receber o benefício, e também são condicionais porque tem alguma contrapartida, como as crianças terem que estar na escola para a família receber a renda etc. Os programas também podem ter focalização indireta, ou seja, crianças, idosos, famílias com crianças. Essa proposta tem sido muito discutida, visto que um programa de renda básica, inicialmente, é de difícil implementação porque é muito amplo. Teríamos que começar com programas com desenhos menores e, a partir das melhoras econômicas e fiscais, ir expandindo os programas. Poderíamos pensar na universalidade em um determinado tipo de focalização, como crianças, por exemplo. Ou seja, todas as famílias que têm crianças receberiam o benefício. Atingiríamos principalmente os mais pobres, visto que as famílias com mais crianças são as mais pobres, e teríamos um esquema de contribuintes e beneficiários líquidos. Também tem uma discussão importante acerca de uma renda para os jovens, porque as famílias com jovens costumam ser mais vulneráveis. Nesse sentido, a renda poderia ser estendida posteriormente aos jovens e depois aos idosos, por exemplo. Alguns desenhos estão sendo discutidos, principalmente na academia brasileira. O grande problema é o financiamento exatamente porque o governo tem sido reticente em fazer uma reforma tributária que angarie recursos dos mais ricos, que hoje são subtributados.
Poder de barganha
Além de combater a pobreza e a desigualdade, a renda básica tem a característica de dotar o cidadão de poder de barganha e, talvez, essa seja uma característica muito importante para os tempos atuais, visto as dinâmicas do mercado de trabalho. O trabalhador tem perdido muito poder de barganha e muitas pessoas estão trabalhando de forma precária, com jornadas exaustivas, sem nenhum tipo de direitos. Em geral, as pessoas aceitam essas condições uma vez que não conseguem encontrar empregos em outras atividades.
Vejo a renda básica como uma política que não só vai auxiliar a recuperação da economia, como vai ajudar no processo de dotar o cidadão de poder de barganha, garantindo a ele um nível de renda mínimo. Com esse nível de renda mínimo, poderá barganhar melhores condições de trabalho, visto que ele não depende fundamentalmente daquele trabalho que o explora para sobreviver e mitigar os problemas relacionados à oferta de emprego.
Só o Bolsa Família, nos seus moldes atuais, não será suficiente - Débora Freire Tweet
IHU - Quais são as perspectivas para a proteção social no Brasil?
Débora Freire - Será necessário algum tipo de proteção social, porque do contrário tende a se perpetuar uma situação de vulnerabilidade, de aumento da pobreza e da desigualdade. Só o Bolsa Família, nos seus moldes atuais, não será suficiente.
É preciso um aparato de proteção social que consiga se ajustar rápido às crises, visto que a população informal e uberizada tem uma característica de muita volatilidade nos seus rendimentos, e toda vez que os rendimentos tendem a ser reduzidos seria possível fazer alguma transferência imediata para as famílias. A grande questão, como comentei anteriormente, é como financiar esse tipo de programa. Existem as propostas de realocação de programas, sem alterar gastos, como acabar com alguns programas e canalizar isso para expandir o Bolsa Família ou criar um programa de renda básica. Tem ainda as propostas de financiar por meio da tributação dos mais ricos. Na minha concepção, o ajuste e a recuperação da economia brasileira têm que ser via sistema tributário e gasto social. Se redistribuirmos a renda dos pobres para os extremamente pobres ou a da classe média baixa para os pobres e extremamente pobres, estamos limitando o efeito progressivo da política e, consequentemente, limitando o impacto da política na economia ao mesmo tempo que tendemos a gerar crises sociais exatamente porque sabemos que esse equilíbrio não é estável. Uma vez que os mais ricos continuam com seus benefícios tributários, com as reduções no imposto de renda, com a isenção de lucros e dividendos para pessoa física, isso tende a gerar uma instabilidade muito grande, porque a classe mais rica mantém seu aparato econômico, inclusive, ganhando participação na renda nacional, ao passo que a classe média baixa está sendo muito afetada e comprimida para que a renda seja transferida para os mais pobres. Isso não é um equilíbrio viável.
O caminho mais viável economicamente e socialmente para financiar a renda básica seria a tributação dos mais ricos. A grande questão é: por que tanta resistência? Para fazer isso, precisamos rever e flexibilizar o teto de gastos. Não estou dizendo que não precisamos de regras fiscais, precisamos, sim, mas temos de ter uma regra que não trate o gasto de forma homogênea e que possibilite uma canalização do gasto para transferências sociais. O teto de gastos, ao limitar o crescimento real dos gastos a zero, elimina esse tipo de possibilidade de tributar mais os mais ricos e canalizar recursos para os mais pobres via um programa de transferência de renda. Nesse sentido, o imposto de renda de pessoa física é a potencial grande fonte de recursos para financiar uma renda básica.