entrevista
Professor Carlos Melo: Democracia, desafio de sobrevivência
Para especialista, regime se fundamenta na capacidade de resposta e na promoção de segurança e do bem-estar
Quando a democracia falha em oferecer respostas, como na transição atual do capitalismo, é natural que seja questionada, destaca o professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa Carlos Melo. Ele também analisa as ameaças aos sistemas democráticos promovidas pelos "governantes incidentais", o perigo da desinformação, a falta de reflexão e de educação política, eleições e a importância dos partidos.
Integrante do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, Carlos Melo é professor Senior Fellow do Insper e professor de Sociologia e Política (graduação), de Estratégia e Política (mestrado) e do Curso de Relações Governamentais. É coordenador da Trilha de Humanidade e membro do Conselho Acadêmico do Insper.
Mestre e doutor pela PUC-SP, é analista político e pesquisador de liderança política. Foi membro do Conselho Superior do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp. Ex-colunista do UOL e da CBN, colabora atualmente com uma série de veículos, como O Globo, o Valor, a Globo News e CNN.
É autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Novo Conceito) e coautor de Decadência e Reconstrução: Espírito Santo, as lições da Sociedade Civil para um caso político no Brasil contemporâneo (Bei Editora).
A seguir, confira a entrevista que o professor concedeu à revista da Fundação Conrado Wessel (FCW):
FCW Cultura Científica – Professor Carlos, os candidatos pitorescos costumavam ter votação inexpressiva e não eram capazes de decidir uma eleição. O que mudou para que um candidato pouco conhecido e com quase nenhum espaço no horário político tradicional tenha provocado tamanho impacto na eleição da maior cidade do país, em um fenômeno que tem se repetido?
Carlos Melo – As eleições brasileiras sempre tiveram candidatos folclóricos, bizarros ou de gozação. A questão é que, atualmente, existem fatores que fortalecem e favorecem esses candidatos. Um fator importante é que estamos passando por um momento de transição no capitalismo. Estamos saindo de um modo de produção baseado na sociedade industrial e na prestação de serviços convencionais, saindo de uma sociedade analógica para uma sociedade digital. Essa é uma mudança que traz muito desconforto, especialmente pela quantidade de profissões que tende a desaparecer. Tenho 59 anos, nasci na periferia de São Paulo, e grande parte dos meus amigos de infância não tem colocação atualmente. Seus empregos desapareceram, e não houve, da parte deles e muito menos do Estado – que deveria se antecipar, pois as instituições existem para isso – um processo para mitigar os efeitos dessas transformações. O cidadão vinha de um cenário com carteira assinada, onde trabalhava diariamente das 8 às 17h, com hora de almoço, descansava nos fins de semana, tinha descanso remunerado, férias, décimo terceiro salário, e, em alguns casos, vale-refeição ou vale-supermercado. Ele saiu dessa realidade protegida para outra completamente desprotegida. É pura estupidez e hipocrisia falar que estamos na sociedade do empreendedorismo. É claro que o empreendedorismo tem um papel importante, mas isso não é empreendedorismo, isso é precarização. O Uber, só para citar um exemplo da nova sociedade digital, é uma precarização – com tendência a piorar, pois em breve o motorista humano poderá nem ser mais necessário. Em resumo, o Estado não se antecipou, as instituições e a política não se anteciparam a essa transformação, e quem está pagando por isso é a democracia. Esse é o pano de fundo que fortalece esse cenário.
FCW Cultura Científica – E quais fatores favorecem o surgimento desses novos tipos de políticos?
Carlos Melo – Um fator importante é a extrema capacidade de difusão de opiniões. Quando as redes sociais surgiram, pensamos que seriam uma maravilha para se comunicar com amigos, articular ideias etc. Elas realmente trouxeram essas possibilidades, mas também serviram para aqueles que descobriram um canal de manifestação da sua fúria. Nas redes sociais, essas pessoas encontraram porta-vozes, que meu amigo Sergio Abranches chama de “governantes incidentais”. Esse fenômeno não está presente apenas nas eleições municipais ou no Brasil, mas em todo o mundo, com muitos exemplos desses governantes, como Donald Trump, Viktor Orbán, o próprio Vladimir Putin, embora tenha surgido um pouco antes, Narendra Modi, Boris Johnson, Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Javier Milei e Nayib Bukele. No Brasil, temos Jair Bolsonaro e, mais recentemente, figuras associadas ao bolsonarismo, como Nicolas Ferreira, Carla Zambelli e Pablo Marçal. O interessante, e sobre o qual tenho escrito e falado bastante, é que essas figuras não são lideranças que conduzem um processo; elas apenas identificam e exploram o mal-estar. Esses governantes incidentais, a fúria e o sentimento antissistema estão presentes tanto na direita quanto na esquerda, como no caso da Venezuela. É um fenômeno recente que começou na Itália, na contestação ao crime organizado, com Beppe Grillo, uma história que o Giuliano da Empoli narra muito bem no grande livro Os Engenheiros do Caos.
FCW Cultura Científica – Nessa mudança da sociedade analógica para a sociedade digital, a democracia continua funcionando ou ela é um sistema que favorece apenas os mais ricos, sejam pessoas, empresas, governos ou países?
Carlos Melo – Se a democracia é uma questão de valor ou uma questão pragmática? A democracia é um regime muito recente. Para conhecer sua história, recomendo a leitura de um importante livro do Robert Dahl chamado Sobre a Democracia, que conta como ela surgiu na Grécia, depois desapareceu, voltou, desapareceu novamente, e assim foi até que se consolidou, especialmente a partir da independência dos Estados Unidos, com um grande impulso após a Segunda Guerra Mundial. É, de fato, um regime novo, se considerarmos há quanto tempo a humanidade existe. Além de nova, por definição, a democracia é um regime que requer aperfeiçoamento constante. Em outro livro de Dahl, Poliarquia: Participação e Oposição, ele destaca que a democracia exige que os governos sejam responsivos, ou seja, que respondam às demandas da sociedade. Quando a democracia falha em oferecer respostas, é natural que seja questionada, pois, ao contrário da ditadura, que usa a força para evitar responder, a democracia se fundamenta na capacidade de resposta e na promoção de segurança e do bem-estar. Neste momento histórico, trazer essa segurança e bem-estar é um desafio, pois vivemos em uma época de transição, o que Gramsci, observando o início do século 19, chamou de "interregno". Na passagem do século 19 para o século 20, durante um processo similar de transformação, o mundo enfrentou duas grandes guerras e o surgimento do fascismo e do nazismo. Espero que não cheguemos a tanto, mas, infelizmente, algumas semelhanças com aquele período já parecem bem evidentes.
FCW Cultura Científica – Como a desinformação, vinda principalmente das redes sociais, tem afetado o processo eleitoral?
Carlos Melo – A opinião costumava passar por vários filtros. Lembro bem como foi difícil publicar meu primeiro artigo em um jornal de grande circulação. Primeiro, era necessário realmente ter algo a dizer. Depois, havia uma série de pessoas que tinham algo a dizer antes de você e que diziam melhor. Antes de o seu texto ser publicado, ele passava por edição, revisão e checagem. A comunicação era um processo industrial com muitas etapas. Depois que o texto estava editado, diagramado e fechado, era a hora de imprimir; o jornal era em papel. Ele passava por uma rotativa enorme, onde era impresso e, em seguida, separado e distribuído em caminhões, em um processo frenético para chegar cedo à casa das pessoas. Os assinantes liam ou não, eles não eram invadidos por aquele artigo que você escreveu. O texto estava no jornal, mas se seria lido era outra história. Isso tudo mudou. Hoje, não há mais filtro. Primeiro, surgiram os blogs, que também eram enviados por e-mail e lidos na caixa de entrada; mas, se não quisesse, você poderia simplesmente descartar. Depois, vieram as redes sociais. As pessoas entraram nas redes com a ideia de fazer amigos, como na música do Roberto Carlos, "eu quero ter um milhão de amigos", e, de repente, você tem um milhão de amigos — ou melhor, de influencers, seguidores e contatos — que estão todos ali escrevendo o que pensam, sem filtro, sentados no sofá de casa, com suas angústias e problemas, escrevendo automaticamente, e alguém está lendo. Você até pode bloquear, mas a questão é que, nesse fluxo, você é invadido. Por mais que se considere a opinião de uma pessoa irrelevante, seja sobre política, sociedade, futebol ou qualquer outro assunto, essa pessoa irrelevante ainda passará na sua frente. E, se você decidir participar do jogo e também publicar, entrará nesse fluxo. Sua opinião será difundida e muita gente comenta sobre ela, tendo qualificação para isso ou não. Quando um especialista tenta puxar o freio e dizer que não é bem assim, que aquilo que está sendo transmitido não é verdade — afinal, ele estudou, conhece teoria e ciência — o sujeito do outro lado o chama de idiota, dizendo que ele não sabe do que fala, porque a Terra é plana.
FCW Cultura Científica – Nas eleições, temos visto que esse comportamento é cada vez mais frequente.
Carlos Melo – Durante as eleições, vemos especialistas formados, cheios de títulos, que estudaram a vida toda para falar algo sobre o processo eleitoral, mas que, ainda assim, têm dúvidas sobre o que vão dizer. Isso é natural, afinal, ninguém sabe tudo ou é dono da verdade. Do outro lado, temos os influencers que, por entenderem de timing, de como usar as tecnologias e de quando e como postar, e por saberem como lidar com o mundo digital, de repente se sentem no direito de desqualificar o especialista, que passa a ser desprezado e até odiado. Tanto Giuliano da Empoli como outros autores, como Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia, discutem essa perda de status dos especialistas. E quem são os especialistas? São advogados, economistas, politólogos, sociólogos, cientistas, técnicos de futebol — todos aqueles que perdem o valor de seu conhecimento, porque a comunicação passa a não ter mais filtro.
FCW Cultura Científica – Um argumento de quem usa as redes para desinformar é que o processo de comunicação se tornou mais democrático.
Carlos Melo – O público que se informava por jornais, revistas e livros era restrito; era uma elite, limitada, qualificada, capaz de avaliar e ponderar. Meu argumento pode parecer elitista — e, de fato, é —, mas quando se diz que hoje as coisas melhoraram e que o acesso à informação está mais democrático, isso não corresponde totalmente à realidade, pois perdemos em qualidade. Costumo comparar essa situação com a de um pequeno vinhedo no interior de São Paulo ou Minas Gerais, que produz um vinho excepcional, mas só consegue fabricar 500 garrafas por ano. O vinho é fantástico com essa produção limitada, pois o solo e todas as condições de produção não permitem fabricar mais do que isso. Mas, com o sucesso, o produtor se empolga e decide aumentar a produção para 5 mil garrafas por ano. O que acontece? A qualidade vai por água abaixo. O produtor passa a viver do rótulo, não mais da qualidade.
FCW Cultura Científica – Com a quantidade enorme de informações e com a velocidade em que chega, somados à falta de filtro e de discernimento, como fica a educação política do cidadão? Ela tem melhorado ou piorado?
Carlos Melo – Na eleição presidencial dos Estados Unidos em 1960, Kennedy versus Nixon, houve uma transformação muito grande que foi nortear as campanhas com base nas pesquisas eleitorais. No Brasil, um marco disso foi a eleição presidencial de 1989, quando o Collor foi eleito. Quem fazia algum tipo de política no Brasil antes de 1989 deve se lembrar de como eram as campanhas. Havia todo um processo fabril no qual se bolava um panfleto, discutia com os seus pares e imprimia em uma gráfica. Depois, distribuía o panfleto na porta da fábrica, na porta da igreja, na feira, na praça, nas ruas. Quando uma pessoa passava, o candidato pedia licença e perguntava se podia conversar um pouco sobre política. Ele ou ela tentava convencer o cidadão da justeza da sua opinião e do que estava escrito no panfleto, tentava ser incisivo mas também didático. Com as abordagens baseadas nas pesquisas eleitorais, o que o candidato pensa e o que fala para o eleitor muda completamente. As campanhas descobrem o que o eleitor quer ouvir. Elas colocam 12 pessoas em uma sala, com um espelho falso para poder analisar as opiniões, classificam aquele grupo em tipos representativos da sociedade mais ampla e começam a compreender o que os diversos setores pensam. É isso que vai fundamentar o discurso político, não é mais a visão ideológica, a opinião, a discussão ou a educação. Mais do que transformar, mais do que educar, o objetivo passa a ser ganhar a eleição, pois o feio é perder. Para ganhar a eleição, o candidato só se importa em saber o que o eleitor quer ouvir. O resultado é que o eleitor, antes na televisão e hoje pelos algoritmos das redes sociais, é invadido com uma determinada informação e pensa: “É isso exatamente o que eu penso! Essa cara me representa”. Só que não é isso. O candidato sabe exatamente o que o eleitor quer ouvir. Não é que ele formulou e você se descobriu a partir do que ele disse. Você disse antes, por meio de seus gostos e de seu uso da internet, como queria ser seduzido e o candidato vai te seduzir com todas as técnicas de marketing. Primeiro pelo rádio e televisão, que vimos nessa eleição municipal que continuam importantes, e depois pelos algoritmos.
FCW Cultura Científica – Qual é o risco de ter apenas a informação, de não ter mais o debate nem a reflexão política, como a conversa que os candidatos faziam nas ruas com os eleitores?
Carlos Melo – Antes, o candidato ia até a porta da igreja e conversava com o seu José, que era conservador, e com a dona Maria, progressista, gastando o mesmo tempo com ambos. Hoje, o candidato conservador vai direto ao seu José, não perde mais tempo com a dona Maria. E o candidato progressista faz o mesmo, ignorando o outro. Hoje, um terço pensa de um jeito e um terço pensa absolutamente o contrário. O terceiro terço é o eleitor ainda sem opinião formada. Não é a terceira via, não é o "estou esperando uma alternativa". Esse terço é simplesmente mais independente, digamos assim. E, por isso, o esforço dos candidatos está em conquistar 50% desse terço, porque as eleições recentes terminam em 51% a 49%, sendo muito acirradas, como ocorreu recentemente no Brasil e nos Estados Unidos. São eleições muito disputadas porque dois terços estão calcificados em posições distintas, e o campo de batalha está no terço que ainda pode mudar de opinião. O resultado é que não há mais programa político, preocupação programática ou visão ideológica, para o bem ou para o mal, porque as visões ideológicas nem sempre são para o bem, elas também são voláteis. O fato é que o candidato não sustenta mais, como antes, uma visão ideológica do mundo, pois ele apenas quer conquistar aquele terço fundamental para ser eleito.
FCW Cultura Científica – Nesse cenário, os partidos políticos ainda importam?
Carlos Melo – Essa é uma boa pergunta. Se partidos políticos não importarem mais, teremos uma pulverização muito grande do sistema e perderemos os interlocutores, algo que já está acontecendo. Por exemplo, quando o governo quer formar maioria no Congresso, antes conversava com meia dúzia de líderes partidários e conseguia essa maioria. Hoje, é preciso negociar com 513 parlamentares, pois cada um é senhor de si próprio. Essa pulverização é ruim, porque o custo de negociação é muito maior e a dispersão, também. Democracia implica a existência de canais de representação, caso contrário, vamos em direção à democracia direta, como a ágora grega, que não tinha partidos políticos, mas era uma sociedade de cerca de 5 mil pessoas, todas ricas e homens. Em uma sociedade complexa, se não tivermos partidos, precisamos de algo que os substitua, pois, do contrário, perderemos a capacidade de interlocução. Não dá para resolver tudo por meio de enquetes nas redes sociais. Os partidos políticos importam, mas precisam se reinventar. Não é que perderam a importância, eles ainda são relevantes, mas perderam a capacidade de organização.
FCW Cultura Científica – Quais são os problemas dessa pulverização político-partidária atual?
Carlos Melo – Uma legislação permissiva que permite a presença de 25 partidos no Congresso Nacional é uma loucura. É preciso ter cláusulas de barreira, é necessário discutir a representatividade. Se, por exemplo, um partido não tiver 5% dos votos em pelo menos nove estados, ele precisa se fundir com outro ou compor uma federação. A minirreforma de 2017 buscou esse caminho, tentando acabar com as coligações proporcionais e, ao longo do tempo, reduzir o número de partidos. Uma quantidade excessiva de partidos não significa mais democracia, significa mais custos de negociação e transação. Grupos específicos que querem representação não precisam criar novos partidos, mas sim se organizar e disputar o poder dentro dos partidos existentes. Quem tem capacidade política se mantém; quem não tem, desaparece. É claro que precisamos reduzir o número de partidos, pois a negociação se torna caótica. E o pior: quando o partido perde importância e representação, cada um pensa apenas em si. A questão torna-se individual, e o parlamentar só quer saber de se reeleger. Ele não quer discutir a questão nacional nem temas que não lhe interessam diretamente. Ele quer recursos para realizar uma obra no seu município e garantir a reeleição, sem se importar com a opinião pública geral. O resultado é a "paroquialização" da política que vemos hoje, evidenciando a fragilidade dos partidos.
Como os partidos não conseguem mais agregar diferentes interesses, cada um se volta para sua própria paróquia. Essa unidade também pouco importa para os partidos. O que interessa é ter uma grande bancada, pois é isso que gera mais recursos. Para a elite partidária, não faz diferença se o deputado José pensa igual ou vota junto com a deputada Rosa. O importante é ter ambos, José e Rosa, e aumentar o fundo partidário, reunindo mais recursos — cuja gestão é, por sinal, um ponto absolutamente obscuro. Em resumo, estamos confundindo democracia com democratismo. Os candidatos passam a vangloriar-se das candidaturas, dizendo que sonhavam com o dia em que cada um poderia ser candidato por si próprio. Muitos defendem candidaturas avulsas, o que é um absurdo. Precisamos, sim, de algum instrumento, que hoje chamamos de partido e amanhã poderá ter outro nome, mas que seja capaz de unir um determinado grupo social ou grupos sociais afins para disputar o poder.
FCW Cultura Científica – Em seu blog no UOL, o senhor acompanhou a eleição presidencial de 2018 e todo o governo de Jair Bolsonaro, um dos governantes incidentais como lembrou no início desta entrevista. Qual é o risco para a democracia quando tais candidatos são eleitos?
Carlos Melo – Recentemente, em uma entrevista para um telejornal, o apresentador me pediu para explicar o que é um regime autoritário e o que é uma ditadura. Temos a teoria, os conceitos e as definições clássicas, mas eu resolvi dizer o seguinte: o regime autoritário ocorre quando o líder no poder quer sufocar a oposição. Se puder acabar com a oposição, ele acaba. Acaba com os mecanismos de checks and balances, de freios e contrapesos, com o Judiciário controlando uma parte do processo, e o Legislativo e o Executivo controlando outras. Se ele puder desmantelar as instituições, ele desmantela; se puder colocar a oposição na cadeia, ele coloca. Se puder fazer tudo o que quiser, ele fará. Esse é um regime autoritário. Já o regime ditatorial é quando o governante já fez tudo isso. O problema da fúria é que ela quer ouvir desses governantes incidentais que eles têm soluções rápidas. A fúria tem pressa. A fúria vive com mal-estar e quer resolver seu problema rapidamente. Mas os canais da democracia são lentos. Na democracia, é preciso fazer um diagnóstico do que está acontecendo, pensar no que pode ser feito, propor alternativas, debater as alternativas, votar, implementar — tudo isso sem a garantia de que dará certo. Enquanto isso, o líder autoritário afirma: “Eu tenho a solução para a segurança pública; é só colocar bandido na cadeia, acabar com a saidinha e armar a população”. Mas, para essas soluções rápidas, ele não pode ter um Congresso, porque o Congresso vai querer debater. Ele não pode ter um Judiciário, porque o Judiciário vai dizer que aquilo não é constitucional. Ele não pode ter uma imprensa livre, porque a imprensa vai contestar. Ele não pode ter oposição nem instituições funcionando.
FCW Cultura Científica – Por que esse tipo de governante e de candidatos parece ser cada vez mais frequente?
Carlos Melo – Na eleição de 2018 no Brasil, havia um mal-estar. A esquerda estava destroçada com o impeachment e, depois, com a Lava Jato e a prisão de Lula. O centro estava desmoralizado, pois o governo Temer foi marcado por escândalos: corridinha com mala de dinheiro, apartamento recheado de notas, presidente gravado na garagem do Palácio. O resultado é que o eleitor queria um outsider, alguém que não estivesse ligado ao sistema político tradicional. Nomes como Luciano Huck e Joaquim Barbosa foram cogitados, mas, após avaliar, decidiram não concorrer. Então, o que restou para a fúria? Um outsider de dentro, por mais contraditório que pareça — alguém que já estava no sistema político, mas que nunca havia participado do poder porque sempre foi irrelevante. O centro desapareceu, o antipetismo era muito forte, e Bolsonaro venceu a eleição em uma onda semelhante à que elegeu o Donald Trump dois anos antes.
Zygmunt Bauman teve uma sacada fantástica, que ele chamou de Retropia, título de seu livro. Quando não conseguimos enxergar o futuro, começamos a sonhar com o passado. Um passado em que os Estados Unidos eram grandes, o famoso “Make America Great Again”. Um passado em que o Brasil crescia, tinha ordem e progresso e parecia menos violento — o que é uma ilusão, pois foi o período da ditadura. Essa retropia também apareceu na esquerda: em 2018, a campanha de Fernando Haddad usava o slogan “O Brasil feliz de novo”, remetendo aos anos de Lula. Assim, a solução não está no futuro, nem no presente, mas no passado. A ideia é que, se voltarmos ao passado, se formos regressivos e estabelecermos uma utopia retrógrada, resolveremos os problemas simplesmente desfazendo tudo que foi feito. Tanto que esses governos incidentais, quando surgem, qual é o objetivo deles? É o que vemos em Trump, Orbán, Bolsonaro. O objetivo é ser destrutivo, não construtivo. Destruir para depois refazer. Aí se propõe um plebiscito e uma nova constituição de acordo com o interesse do líder; fecha-se o Judiciário ou aumenta-se o número de juízes para ter o controle e esmagar as instituições. Se o país tem uma Procuradoria-Geral da República, o governante indica um procurador-geral comprometido com ele e seu grupo, e não com a lei ou a sociedade. O procurador-geral deveria defender a sociedade, mas sonha em ir para o Supremo Tribunal Federal e o governante coloca a cenoura ali na frente dele. Isso não ocorre apenas no Brasil. Os Estados Unidos, que se viam como o grande exemplo de democracia, também se mostraram bastante frágeis. Os chamados "pais fundadores" não imaginavam que a política pudesse sair do controle das elites. Costumava-se dizer que nada era mais parecido com um republicano do que um democrata no poder. Mas isso ficou no passado: a elite perdeu o controle do processo, e não se faz política sem liderança. A grande crise que enfrentamos hoje é de liderança. Quando falo de elite, não me refiro à elite econômica, mas à elite política, que possui qualificações e é capaz de conduzir um processo político. Sem isso, é a barbárie — que é mais ou menos o que já começamos a viver.
Entrevista e edição: Heitor Shimizu
Publicado em: 22/11/2024
Foto do entrevistado: arquivo pessoal
Foto de abertura: Paulo Pinto / Agência Brasil
Lula na COP-27: ‘Nunca o Brasil teve uma posição como a que está sendo anunciada’, avalia professor
Ítalo Lo Re* Estadão
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursou nesta quarta-feira, 16, na Cúpula do Clima (COP-27), em Sharm El-Sheik, no Egito. O pronunciamento foi feito na área da Organização das Nações (ONU) e durou quase 30 minutos. Entre outros pontos, ele afirmou que o “Brasil está de volta” ao debate climático global e falou no desafio de enfrentar o aquecimento global.
Para Eduardo Viola, professor da Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), a posição anunciada pelo Brasil é inédita. “A mitigação da mudança climática, a transição energética e o controle do desmatamento são colocados como centrais na política pública brasileira e na política externa”, destaca. Leia os principais trechos da entrevista:
Qual foi o destaque principal do discurso do presidente eleito?
Hoje foi tornado público, diretamente pela voz dele, o compromisso que ele assumiu quando fez o acordo com Marina (Silva) e aceitou a plataforma socioambiental apresentada por ela no dia 12 de setembro. Isso levou Marina a apoiar Lula no primeiro turno e a engajar-se muito na campanha eleitoral. O discurso reafirma todo esse compromisso. Nunca o Brasil teve uma posição como a que está sendo anunciada neste momento. A mitigação da mudança climática, a transição energética e o controle do desmatamento são colocados como centrais na política pública brasileira e na política externa.
Sobre política externa, Lula indicou que quer colaborar com outras nações, mas cobrou investimento de países ricos. Como o senhor avalia?
Isso foi um destaque, mas não é necessariamente uma novidade. Lula deu ênfase aos países desenvolvidos darem assistência aos países em desenvolvimento mais pobres. Não se trata de assistência financeira para países como o Brasil, que são de renda média alta, mas para países de renda média baixa. Grande parte da África, da Ásia e alguns da América Latina se enquadram nisso. Não o Brasil e a China, por exemplo. O importante é que ele está chamando (atenção) para isso. Falou de cooperação técnica, de assistência tecnológica para a África Subsaariana, por exemplo. Vale lembrar que, em Copenhagen, em 2009, na COP-15, Lula falou que até o Brasil poderia contribuir para assistência aos países mais pobres. É uma posição muito diferente da política de Bolsonaro, que dizia ‘a gente protege a floresta e vocês nos pagam’, digamos assim. Não tem nada disso.
Muito importante também, paralelamente, é o desejo de eliminar todo o desmatamento até 2030 em todos os biomas brasileiros. Uma coisa seria falar em eliminar o desmatamento ilegal, ou mesmo eliminar o desmatamento na Amazônia, mas ele falou de todos os biomas brasileiros. É um compromisso forte. Ele propôs também uma cúpula amazônica para discutir a integração da Amazônia. O Tratado de Cooperação Amazônica não funciona, mas, com a liderança do Brasil, esse tratado pode se tornar mais efetivo para a integração da Amazônia. A oferta do Brasil para sediar a COP-30, que é em 2025, também é um destaque. O País nunca teve uma COP, só teve a própria conferência do Rio, em 1992, que é a fundação de tudo isso.
O discurso também foi marcado pela valorização de povos originários. Isso indica priorização desses grupos no governo Lula?
É um destaque que nunca houve antes na história do Brasil. O destaque, inclusive a fala de que vai criar um Ministério dos Povos Originários, é algo que não teve no primeiro governo Lula, não nesse nível de intensidade. É um nível de intensidade muito maior de reconhecer os direitos e as contribuições dos povos originários, que é uma tendência em todo o mundo.
O senhor citou o discurso de Lula na COP-15, em 2019. A fala de hoje remonta àquela época, de somar esforços para ajudar países mais pobres?
O que foi, eu diria, radical de Lula naquele momento é que, no discurso na COP, em 2009, ele falou que o Brasil contribuiria com a assistência financeira para países pobres. E ele não falou exatamente isso hoje. Mas falou da cooperação tecnológica com a África Subsaariana.
Então, ele não colocou o Brasil nem como país que recebe recursos nem como que investe, mas como o que conduz mudanças?
E nem vai colocar. Embora exista uma demanda para países de renda média alta, como China, Brasil ou México, para colocar algum dinheiro de assistência, de doação, países pobres. Não quer dizer que não pode ser feito, mas ele não falou estritamente hoje.
Os pontos abordados no discurso, de modo geral, são aderentes ao que tem sido discutido em outros países? As nações desenvolvidas estão abertas a fazer mais investimentos?
Não. Uma coisa é propor o que tem que ser feito, um componente normativo, a norma do que é correto. Outra coisa é a realidade. Nós estamos este ano, por causa da crise inflacionária e pela crise do preço ser da energia, além de uma tendência para recessão em países desenvolvidos, nós estamos em uma situação mais difícil que há um ano, na COP de Glasgow. Na realidade, a tendência é que não há avanços nem houve avanços efetivos em aumentar os recursos para o fundo verde global. Nesse sentido, é correto o que Lula falou, mas não quer dizer que isso vai acontecer no futuro próximo.
Como resumiria a análise sobre o discurso de Lula?
É um ponto de virada do Brasil. Ele não retoma à política ambiental climática no nível do primeiro governo. É um patamar mais alto do que no primeiro governo Lula. O primeiro governo Lula foi o mais consistente na política climática e ambiental. Depois, começou um retrocesso no governo Dilma, que continuou no governo Temer e se super aprofundou com Bolsonaro. Agora, a política climática ambiental tem uma posição muito mais central da que tinha até no primeiro governo Lula. É um outro patamar. Praticamente Brasil se iguala agora à vanguarda do mundo, à liderança do mundo, que é a União Europeia, em termos de política de climática. E se coloca, pelo menos no plano do discurso, pelo menos no mesmo nível da União Europeia. O destaque aos povos originários também parece ser maior do que se tinha no primeiro governo.
Texto publicado originalmente no Estadão.
Revista online | Roberto Freire: “Votar em Lula é salvar a democracia”
Entrevista concedida a Caetano Araújo, Luiz Sérgio Henriques, João Rodrigues e Paulo Fábio Dantas Neto, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
Na reta final do segundo turno da campanha presidencial, diversos fatos ainda movimentam o xadrez político nacional. No último domingo (23/10), por exemplo, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) atacou policiais federais com granadas e tiros de fuzil, após resistir a uma ordem de prisão expedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para analisar a conjuntura política e o futuro da democracia no Brasil, a equipe da revista Política Democrática online entrevistou o presidente do Cidadania, Roberto Freire. “Votar 13 no próximo domingo é a nossa única chance de salvar o Estado Democrático de Direito no Brasil”, resumiu Freire.
Ex-senador e deputado federal, líder do governo Itamar Franco e candidato a presidente da República em 1989 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Roberto Freire defende que o voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é essencial para frear o projeto fascista do bolsonarismo. Freire também foi membro da Assembleia Nacional Constituinte e um dos responsáveis pela transformação do antigo PCB no Partido Popular Socialista (PPS), em 1992.
O papel estratégico da senadora Simone Tebet (MDB-MS) na campanha do ex-presidente Lula (PT), a ampliação da federação PSDB Cidadania, com uma eventual inclusão do MDB, e a importância de movimentos de renovação política estão entre os temas abordados. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista com Roberto Freire.
Confira, abaixo, galeria de imagens do entrevistado:
Política Democrática (PD): Como você avalia esta reta final da campanha, com todas as incertezas que este complexo processo eleitoral tem demonstrado?
Roberto Freire (RF): Em primeiro lugar, gostaria de registrar que considero as pesquisas eleitorais confiáveis e acredito que elas devem ser consideradas. No primeiro turno, as pesquisas acertaram o percentual de votos atingido pelo ex-presidente Lula (PT). O problema maior foi em relação ao presidente Bolsonaro (PL). Porém, como muitos eleitores bolsonaristas, por orientações de ministros do atual governo, inclusive, se recusaram a responder os levantamentos, pode ter ocorrido influência. Estou em Brasília, não tenho percorrido o Brasil neste segundo turno. Até porque não adianta muito a gente andar na rua, pois a campanha é majoritariamente digital. Contudo, penso que a eleição está mais ou menos decidida. Esse episódio do Roberto Jefferson – que atacou com granadas e tiros de fuzil agentes da Polícia Federal para descumprir uma decisão do STF – pode fazer com que pessoas que antes diziam votar nulo agora decidam votar 13, no Lula. Certamente, houve um impacto muito negativo para a campanha do Bolsonaro. Foi algo patético, bizarro. Você imagina se fosse um negro, favelado, pobre? Atirar na polícia é inaceitável. O apoio da Simone Tebet e da Marina Silva, em diversos eventos pelo país afora, também ajuda o Lula a diminuir o receio de alguns setores da sociedade. A minha impressão é de que está bem encaminhada a vitória do ex-presidente Lula no próximo domingo, 30 de outubro. A não ser que surja um fato novo, algo imponderável.
Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online
PD: Qual a sua avaliação do desempenho de Simone Tebet no primeiro turno da eleição presidencial e como analisa o papel estratégico dela na campanha do ex-presidente Lula (PT)?
RF: O desempenho foi ótimo. Infelizmente, tivemos poucos votos. Talvez, tenha sido a terceira via com menor percentual de votos absolutos nas eleições. A rejeição dos dois principais candidatos e a polarização foram fatores decisivos para esse cenário. Mas a Simone Tebet é muito maior do que os votos que conquistou. Ela obteve um crescimento exponencial, saiu bastante fortalecida do processo eleitoral e está consolidada como uma das maiores lideranças políticas do país. A presença dela no palanque do Lula é um diferencial, ajuda muito. Logo no início do segundo turno, eu me lembrei da campanha de 1989, quando mandamos fazer camisas e adesivos com a frase: ‘Sou Freire e estou Lula’. Reproduzimos esse slogan agora com a Simone. Nosso objetivo é passar aquela ideia: ‘com a Simone a gente vai’. Digo isso porque esse fato abriu um pouco alas para as pessoas que ficavam meio encabuladas, pois vinham perguntar: mas você não vivia esculhambando com o Lula? Ou qualquer outra coisa desse tipo. A partir dessa ideia (“Sou Simone e estou Lula”), conseguimos um anteparo. São diversos economistas, o pessoal do Plano Real, intelectuais, artistas, que agora passam a apoiar mais efetivamente o voto em Lula neste segundo turno. Todos esses atores têm um papel importante. A Marina Silva, por exemplo, que já foi do PT, mas tinha se afastado, exemplifica esse esforço por um bem maior, que é a democracia brasileira e o compromisso com o progresso nacional.
A militância do partido da Cidadania está muito ativa no lulismo, tem participado energicamente em tudo quanto é lugar do Brasil. O que a Simone está fazendo também é de uma militância impressionante. Ela está colada em Lula, até parece a vice, que não descola da vinculação com o titular. É algo praticamente inédito, de ter um apoio tão efetivo de uma candidata que não foi ao segundo turno, mas está totalmente comprometida com a candidatura. Isso é uma coisa que está engrandecendo-a. Aqueles que estavam decepcionados com Bolsonaro imaginavam que não iriam para o Lula de jeito nenhum e ela foi. Então, ela cresceu no conceito e no respeito de todos exatamente por conta dessa integração com muita ênfase na campanha presidencial. É uma militante que alguns petistas mais ativos devem estar mirando como exemplo.
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PD: Pensando em um cenário pós-eleitoral, você acredita que, assim como Tancredo Neves foi chamado de “candidato da conciliação nacional”, o ex-presidente Lula poderia ajudar a pacificar o país?
RF: Essa é a questão em que a gente vai ter que se concentrar a partir de segunda-feira (31/10). Que quadro nós vamos ter? Vitória de um ou de outro. Vamos admitir que hoje não temos essa definição, apesar de certo favoritismo do ex-presidente Lula. Mas é um grande debate. Hoje já fui confrontado com isso em uma entrevista que dei a uma rádio de Pernambuco (PE). Eu disse que não estamos definidos. Eu dizia que Lula seria presidente, mas que nós não tínhamos definido se estaríamos no governo ou ficaríamos na oposição. Sem grandes problemas. Até porque oposição sistemática tivemos apenas na ditadura. O fato concreto é de que nós vamos ter que nos debruçar sobre isso. Vamos usar mais uma vez a Simone Tebet como exemplo. Como é que a Simone vai se posicionar? Estou querendo conversar com ela e ainda não pude. Ela tem viajado bastante. Falei pelo telefone, mas não avançamos em nada, por enquanto. Eu acredito que ela não queira participar de um novo governo Lula. Estava até discutindo uma questão colocada na ampliação da federação PSDB Cidadania, com a integração do MDB, para criar talvez a terceira ou quarta bancada. Se conseguirmos, podemos estar nos preparando para planos maiores em 2024 e 2026, fugindo desses dois polos que vão continuar. Qualquer que seja o resultado é fundamental para nós discutirmos, inclusive com a Simone, MDB e PSDB, ela liderando e nós vamos ter que discutir enquanto Cidadania. Pode oferecer a Lula a possibilidade de ele brigar contra seus radicais e entender que precisa minimamente não pacificar, mas, ter uma ampla maioria para evitar uma radicalização bolsonarista. Garantir a capacidade da sociedade de impedir que isso frature ainda mais o que já está fraturado. A presença da Simone, dos economistas, do setor liberal, de setores empresariais em apoio a sua candidatura tem que ficar junto dele no seu governo. Esses economistas, que vão ter um certo peso para contrabalançar o programa econômico de Lula, precisam estar junto também para dizer a ele: ‘olhe, você tem que ter o cuidado no governo de buscar pacificação, tolerância. Não pode excluir parte da sociedade que porventura não tenha votado em você.’ Embora a Lei não permita nenhum revanchismo, qualquer distúrbio que porventura possa existir deve ser suprimido. Não vamos pensar que esse episódio Roberto Jefferson, que ocorreu agora como um sinal de sedição, não sei, mas depois de uma derrota, isso pode se tornar algo comum. Indivíduos que queiram não admitir os resultados. Precisa ter um governo que tenha capacidade de juntar na realidade aqueles que estão votando para ter um processo democrático e não retrocessos. A gente não fala muito do Viktor Orbán e fala muito da Venezuela. O Bolsonaro não vai ser aquele que vai tentar experimentar um sistema de estatização da economia, de provocar aquilo que a Venezuela provocou concretamente, um empobrecimento da própria sociedade. Nós somos muito mais para a economia da Hungria, que cresce, do que para a economia da Venezuela, que vai lá para baixo. O governo Bolsonaro, autoritário, pode ter amplo apoio da sociedade. Não gerar o que gerou a Venezuela do empobrecimento, de uma decadência como ocorreu.Esse é o risco! Vamos analisar a Venezuela apenas como processo, mas não como base. Isso vai ficar mais para Polônia, para aquele sistema inserido na economia de mercado, que não vai sofrer retrocesso. O perigo está aí. Não é um processo de ruralização. Não vamos ter uma venezuelização por aqui, nesse sentido. Eu me lembro, quando vim de Cuba, em 1981, com o Goldman (Alberto), que estava sentado comigo, quando descemos em São Paulo, no aeroporto de Guarulhos, e vimos que aquilo era uma imensidão, uma potência. E eu brinquei com Goldman: ‘se a gente quiser fazer o que Cuba fez, vamos precisar de cinco Stalin e cinco Miami.’ Em Cuba, precisou de um só, mas por aqui precisariam de cinco. É uma economia que não tem como você imaginar que vai implantar isso e continuar. Eu acredito que esse é um grande desafio que a gente tem que pensar. É levar esse movimento que está ocorrendo no segundo turno para uma base efetiva do governo Lula. Nem mesmo participando necessariamente, não é isso. Mas é tendo o apoio crítico, mesmo com a independência, mas dando sustentação. E Lula entendendo que é fundamental ter isso. E não pensar que vai pegar o Centrão com qualquer movimento de aceitar processos de orçamento secreto ou qualquer outra forma para garantir o apoio meramente fisiológico. Ele tem que buscar esse apoio nesse sentimento democrático da sociedade. A Simone pode exercer o papel de liderança junto ao MDB e ao PSDB e, claro, nós do Cidadania estamos integrados nisso. Até porque esse objetivo, independente de quem for, a gente sempre teve.
PD: O que poderemos chamar de “centro democrático” no Brasil pós-eleição, ganhando Lula ou Bolsonaro? Quais são as condições para se articular com a razoável autonomia?
RF: Esse é o nosso grande desafio. Eu fico imaginando, tem um pouco de torcida, mas começa a ser um pouco de realidade. É um favoritismo. Vamos admitir que o governo Lula é o melhor para nós. O centro democrático se consolida mais com o governo Lula. Um eventual segundo governo Bolsonaro seria terrível para o Brasil. Teríamos que tomar uma série de medidas para não conviver com uma clara escalada golpista. Se Bolsonaro for eleito, o STF vai ter novos membros. Eles vão, talvez, abrir alguns impeachments de ministros do Supremo no Senado Federal. Caso ganhem, eles teriam uma postura autoritária e fascista, com forte presença no Senado, com figuras que terão lideranças importantes até vinculadas às Forças Armadas, como é o caso do atual vice-presidente, Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul (RS). Ele foi um dos primeiros a verbalizar a ideia do aumento de ministros no STF. Esse é apenas o passo inicial. Eles vão querer modificar as relações com o Judiciário, que hoje é o poder mais frágil do Estado brasileiro. Precisamos reconhecer que o Supremo foi importante para conter avanços antidemocráticos nos últimos anos. Com Arthur Lira no comando da Câmara Federal, o Congresso não agiu em praticamente nenhum movimento para conter arroubos autoritários. Na época do Rodrigo Maia, ainda tivemos algumas votações de decretos legislativos, impedindo retrocessos. Se Bolsonaro ganhar, o STF ampliado por novos ministros eventualmente bolsonaristas pode ser bastante prejudicial para a nossa democracia. Acabou. A partir daí, controla tudo. Isso é o modelo do Chaves na Venezuela. O Bolsonaro tem fortes aliados. Parte do setor de bancos, a maior parcela do agronegócio, que pode ajudar tremendamente a que isso se transforme em uma atitude de separação dos poderes, afirmando que o Executivo não pode ser impedido de governar, independente do Legislativo e, especialmente, do Judiciário. É preciso ter cuidado. Quem ganhar a eleição tem espaço para ajustar discurso do futuro democrático do Brasil. Agora, se ganhar o Lula, nós podemos, a partir da presença que Simone pode ter – e eu fico imaginando que ela não participe – porque poderíamos construir uma federação ampliada, da qual ela seja a presidente, passando a ter um papel político importante na sociedade brasileira. Uma federação ampliada com o MDB, com todos os eventuais problemas, poderíamos, sim, chamar de ‘frente democrática brasileira’, que não é ampla como a uruguaia, que foi feita a partir das esquerdas. Porém, nós podemos e devemos encaminhar isso. Vamos ter alguns bolsonaristas que vão querer fazer uma oposição maior, mas isso a gente terá que trabalhar para segurar. É mais fácil segurar quem quer fazer oposição do que quem adere. Nós, do Cidadania, podemos, com o governo Lula, manter a independência e ao mesmo tempo construir uma possibilidade, pois não vamos construir uma alternativa democrática à direita. O campo da direita durante algum tempo vai ser hegemonizado pela parte mais extremada.
PD: Você acha que isso acontecerá mesmo com a vitória do ex-presidente Lula?
RF: Com certeza. O bolsonarismo permanecerá, independente do resultado das urnas neste segundo turno. É ótimo que estamos aqui com pessoas que têm a visão da esquerda que quer ser contemporânea desse mundo que está aí, uma esquerda moderna. Ao contrário da esquerda dogmática, que pensa que é ainda revolucionária dos tempos do capitalismo industrial, bolchevique ou quer outros tipos de revoluções. E a América Latina tem muito disso. A América Latina é refratária a toda movimentação que houve no pensamento de esquerda, que é hoje o sustentáculo da União Europeia. Outro exemplo é a esquerda norte-americana, que consegue entender que para derrotar Donald Trump era melhor colocar Joe Biden do que Bernie Sanders. Essa esquerda que é democrática no mundo e entende a globalização, essa nova economia, as mudanças nas relações de trabalho e a evolução da própria sociedade.
A tendência do mundo, quando se fala de reforma trabalhista, é de querer regulamentar esse novo que está surgindo e não modificar o do passado. O próximo governo vai ter que lidar com um mundo que já não corresponde mais à mentalidade metalúrgica de Lula, daqueles que falam de classe operária enchendo a boca como a gente enchia, imaginando que o mundo era da classe operária no futuro. Era uma marcha que nós devíamos fazer na história. Não conseguem entender que não foi derrotado, houve a superação desta realidade, desta sociedade. E isso vai gerar crise lá dentro. Estou imaginando que esta força, o crescimento desta terceira via, é o avanço de uma visão que envolva também pensamentos – vamos chamar de social-democrata, centro-esquerda, o referencial que teremos para o futuro de uma esquerda democrática. A Europa democrática entende que deve se posicionar contra Putin em defesa da soberania da Ucrânia. Isso é um pouco essa visão progressista, e não da visão que aproxima Lula, também Bolsonaro a Putin. O eventual novo governo Lula vai ter essa contradição muito maior do que teve, por exemplo, em 2003, no início do primeiro mandato do PT, quando eles pensaram em fazer alguma reforma ali e, como reação, foi criado o Psol, de Heloísa Helena e tantos outros. Depois veio o mensalão, o que aumentou ainda mais as dissidências internas e tudo mais. Agora, vai ser muito mais concreto, não vai ter condições de alguém pensar na economia com a visão de que vamos fazer protecionismo, vamos construir uma indústria nacional, como disseram: ‘na pandemia, tivemos problema com agulhas, com máscaras, que poderiam não ter existido’. Por favor, isso foi um colapso da logística do mundo. Não é um problema para ficar imaginando que precisamos estar lá nas fronteiras produzindo algumas dessas coisas como se voltássemos ao mundo das barreiras alfandegárias.
Esse processo de globalização só vai se intensificar. Precisamos de um governo que tenha capacidade de administrar o país com a essa nova realidade e nenhum dos dois que estão aí está tendo capacidade para isso. Lula pode vir a ter, e vai ser necessário, porque ele precisa ampliar a sua base, mas, no momento que ele tomar determinadas decisões, pode enfrentar dissidências pela extrema esquerda. Vai ter problemas com aqueles que não permitem o que chamam de neoliberalismo, não admitem que você tenha uma visão de integração na economia mundial. Que diga que são sustentáveis, que isso seja mais importante que a economia do petróleo, do pré-sal. Teremos conflito com as corporações, haverá discussões sobre as necessárias reformas que estão em pauta. Por isso, fico imaginando que nós – e é dramático porque o MDB, com muito setor bolsonarista, o PSDB também, e até nós do Cidadania – como vamos gerar uma unidade para entender que nem Bolsonaro nem as posições majoritárias no PT são o futuro? O amanhã promissor nasce a partir da liderança da Simone Tebet, que também precisa entender que tem um grande papel. Esse é o nosso grande desafio. Concretizando essa federação ampliada, com o MDB, é até um desafio que se possa imaginar que tem que se criar uma nova formação política com esse setor, mas isso precisaria ter lideranças e eu não sei se o Eduardo Leite, eleito no RS, e se a Raquel Lyra, provavelmente eleita em PE, terão força suficiente para trazer o PSDB minimamente para um projeto desse porte. Nós, do Cidadania, estamos com dificuldade, poderíamos exercer esse papel se tivéssemos muita unidade com a nossa bancada. Esse é o drama. Não termos o velho Partidão, que enfrentou na época da ditadura a esquerda em cima, resolução, aventura, romantismo, outras tantas dificuldades e a gente se segurou e dentro do MDB, construindo uma alternativa democrática. Foi demorado, não foi fácil. As pessoas pensam que foi no final, quando as Diretas Já eram realidade, mas poucos sabem dos percalços. Nós acompanhamos. E agora, eu não sei qual força pode fazer isso. O PSDB não tem força para fazer. Esse é o drama que estamos vivendo. Mas é necessário construirmos. Se a gente tivesse esse setor que está indo para o Lula com a compreensão de que temos, desde já, buscar maior integração e construir novas alternativas políticas ao país, seria um avanço importante. Tem que tentar desde agora construir essa alternativa: a frente democrática que vai disputar 2026 não como um azarão, mas como uma força política que supere essa polarização que se afirmou novamente agora.
Sobre o entrevistado
Roberto Freire é presidente nacional do Cidadania, advogado, ex-senador, ex-deputado federal e foi candidato a presidente da República em 1989 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
** Entrevista produzida para publicação na revista Política Democrática Online de outubro de 2022 (48ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
Equipe de entrevista
Caetano Araújo: Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), consultor legislativo do Senado Federal e diretor-geral da Fundação Astrojido Pereira (FAP)
Luiz Sérgio Henriques: tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das “Obras” de Gramsci no Brasil, além de integrante do Conselho Consultivo da FAP
João Rodrigues: jornalista, sociólogo, mestre em Ciência Política e coordenador de Audiovisual da FAP
Paulo Fábio Dantas Neto: cientista político, economista, professor da Universidade Federal da Bahia e integrante do Conselho Consultivo da FAP
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Revista online | “Brasil precisa de choque para economia de carbono neutro”
O historiador Jorge Caldeira, que também é escritor, jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), diz que o país tem uma oportunidade maior do que a descoberta do ouro no século XVII para se desenvolver: ingressar na economia de carbono neutro. Segundo ele, o estímulo à plantação de árvores é a saída mais viável para esse objetivo.
Caldeira é o entrevistado especial desta revista Política Democrática online de setembro (47ª edição). Autor de dezenas de livros, como Brasil: Paraíso restaurável e História da riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e governos, ele diz que o país reduzirá à metade as emissões de carbono, se parar de desflorestar a Amazônia.
Segundo o escritor, que também é sócio fundador e diretor da editora Mameluco, “a passagem para a economia de carbono neutro tem imensa vantagem para renda, emprego e desenvolvimento” no país e no mundo. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Política Democrática (PD): O senhor vê como viável o Brasil assumir o projeto de carbono neutro?
Jorge Caldeira (JC): O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do governo do presidente Ernesto Geisel (1974-1979) é o fracasso que dura até hoje. Até então, o Brasil tinha a economia que mais havia crescido no mundo nos últimos 80 anos. O PIB absoluto do Brasil era maior do que o da China. Então, os 50 anos de fracasso do planejamento levaram à situação em que estamos. Nos planos eleitorais, continua o debate como se o planejamento de desenvolvimento do Brasil fosse ainda o modelo dos anos 1970. De lá para cá, o Brasil perdeu a globalização fase um, que são cadeias produtivas, trocas, comércio internacional crescendo acima da média nos mercados internos. Então, o Brasil se fechou, perdeu esse pedaço. O país tem uma segunda chance agora, que é transformar economia de carbono neutro, cujo preço central não existia na economia tradicional. É o preço do carbono. Era a natureza até bem pouco tempo atrás. A mudança climática transformou em bem escasso a temperatura regulada na vida da Terra e criou um mercado de carbono, que existe no planeta inteiro e tem um preço. Quem emite carbono, portanto, queima combustível fóssil, floresta e paga. Quem fixa carbono recebe. Portanto, não é só um preço. São fluxos de renda, emprego, trabalho, progresso. O Brasil está fora dessa economia porque não se planeja. Esse mercado movimentou, em 2020, US$ 280 bilhões no planeta, o que é quatro vezes o total da exportação do agro brasileiro. O planejamento econômico do Brasil não é feito para que o país esteja nesse mercado por falta de meta de carbono neutro para determinada data. O primeiro ente político a adotar o carbono neutro como meta foi a União Europeia, em dezembro de 2019. Mas, ao longo de 2020, entraram China, Japão, Coréia do Sul, Estados Unidos, as grandes economias do planeta. Hoje o planejamento estratégico delas é feito em referência ao carbono neutro. Os incentivos econômicos para o desenvolvimento, progresso, emprego e renda são dados em função disso, que leva muito mais longe do que as pessoas imaginam. A União Europeia atrelou todo o dinheiro de recuperação da Covid à meta de carbono. A Air France, que é uma companhia aérea francesa, pediu 7 bilhões de euros para sobreviver na pandemia, em troca de se adequar a uma meta de carbono zero em 2050. Isso, que já é realidade de planejamento econômico, estratégico e, especialmente, de mercado nas economias centrais, é absolutamente marginal na vida brasileira. O Brasil, que tem 8% do território planetário, pode ficar perto de 35% a 40% de todo o carbono do planeta. Portanto, é a economia para a qual, obrigatoriamente, deve se dirigir todo o investimento em fixação de carbono e combate ao aquecimento global. Qual é o método para se fazer isso? O que o Brasil precisa para chegar lá? O país é o quinto maior emissor de carbono do planeta. Metade das emissões brasileiras é relacionada à derrubada e queimada de árvores, o que é considerado duplamente na conta de carbono. Se derruba a árvore, você elimina um fixador de carbono. Se queima, você emite. Vai para a conta como emissão de carbono. Se parar de desflorestar a Amazônia, o Brasil reduzirá à metade as emissões de carbono no país. Além disso, só há um método de fixar carbono razoável a médio prazo: plantar árvores. A árvore, quando cresce, fixa carbono. Então, a pessoa que emite paga para a pessoa que planta, que fixa o carbono. Com essa possibilidade, a economia brasileira tem 35% do mercado mundial de qualquer jeito porque não há outra forma de fazer isso. Brasil, Indonésia e África têm 80% desse mercado. Plantar árvores é o gerador de empregos mais barato que existe. Precisa de uma pessoa por hectare. O Brasil tem 500 milhões de hectares disponíveis para plantar árvores sem mexer na agricultura e na pecuária, nas cidades e nas reservas. Se fosse usar todo esse potencial, precisaria importar gente porque não teria trabalhadores suficientes para tocar o projeto. Semente tem. O investimento é mínimo, e esta é a nova realidade da economia. Planejar estrategicamente o futuro da economia nacional, com geração de emprego e renda, além da reinserção do Brasil na economia mundial, é carbono neutro.
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PD: O senhor reconhece, na nossa história, outros momentos em que o Brasil perdeu oportunidades análogas à da economia verde? Se as perdemos, quais foram os motivos?
JC: O Brasil, em 520 anos de contato com a economia ocidental, aproveitou e perdeu oportunidades. O país não é a potência que mais aproveitou a oportunidade de 500 anos, mas está muito longe de ser um desastre. O Brasil é uma das 15 maiores economias do mundo, mas pode ser facilmente a quarta, quinta, terceira, sem grandes problemas. Há dois momentos em que o país não aproveitou as oportunidades, que são graves. O Brasil, em 1800, era do tamanho dos Estados Unidos. Em 1890, era 15 vezes menor. Então, na época, houve perda de oportunidade muito grande em relação ao padrão da economia que mais crescia no mundo. Essa perda foi, basicamente, por causa do tempo que levamos para lidar com a questão da escravidão. Não apenas a libertação dos escravos, mas a adaptação das instituições brasileiras ao capitalismo, o que começou na República, com direito de propriedade, facilidade de fazer empresa, gasto público decente em educação e saúde. Então, o Brasil criou isso por oportunidades próprias, mas perdeu uma oportunidade gigantesca. Desde os anos 1970, se isolou da globalização. Basicamente, esse foi um ciclo de 50 anos perdidos. A economia de carbono neutro é um ciclo diferente, já que a diferença econômica é carbono, preço e mercado, assim como geração e transferência de riqueza. A institucionalização disso na economia está acontecendo agora no resto do planeta. A oportunidade real, que é maior do que a descoberta do ouro no século XVII, é entrar na economia de carbono neutro.
PD: Quais as maiores restrições que o Brasil enfrentou, ao longo dos 200 anos da Independência, para financiar o desenvolvimento e conseguir produzir ambiente de crescimento sustentável da nossa economia? Essas restrições parecem estar mais agudas ou mais frouxas?
JC: O Brasil levou 16 anos, entre 1890 e 1906, para sair de uma estagnação de sete décadas para ir a uma economia que crescia mais do que a dos Estados Unidos. Mudou-se, basicamente, o enquadramento institucional da movimentação de capitais. Além de todos os males pessoais do domínio de uma pessoa sobre a outra e o preconceito, que dura muitos séculos, as pessoas precisam entender que, na economia da escravidão, o escravo era, também, o principal título financeiro dela. O título de propriedade do escravo era empregado pelo proprietário dele. Então, todo o mercado financeiro, no Império, funcionava em torno do título de propriedade do escravo. Quando se fez a abolição, rasgou-se o título de propriedade. Além de o escravo fisicamente ser libertado, o dono perdeu o título de propriedade, e isso deixou de circular no mercado. Para se manter o título de propriedade do escravo como o principal da economia, foi preciso torná-lo, por meios legais, competitivo, e o jeito que se encontrou de fazer isso, no Império, foi restringir o crédito ao máximo. As políticas econômicas da época eram todas de restrição de crédito, o que permitia que o título de propriedade do escravo ficasse competitivo. Acabou a escravidão. Facilitou-se o crédito, e o capital apareceu a troco de nada. Existe um livro chamado Nature of Capital, que mostra exatamente como que, em São Paulo, se financiou, com pequeno capital, a ferrovia e a acumulação do capital. Os tropeiros de São Paulo conseguiram financiar a sua passagem para a posição de proprietários de ferrovias antes ainda do fim da escravidão, e isso permitiu uma acumulação de capital que, depois, foi aproveitada na economia. Essa história toda eu conto no livro Júlio Mesquita e Seu Tempo, que aborda o período em que a economia brasileira teve um “crescimento chinês”. Mas o Brasil também foi bem, fazendo o contrário, depois dos anos 1930. Como a base do crescimento não eram os pequenos, mas os grandes projetos – siderurgia, eletrificação, petróleo –, precisava ter capital intensivo para isso. Então, a solução brasileira foi juntar esses capitais no estado. Foi muito bom. Funcionou. O PND do Geisel era feito para que as ações fossem cada vez mais assim: o estado junta os capitais e os aplica, e o mercado interno cresce por causa dessa aplicação de capitais. Isso deixou de ser relevante em 1970, mas muita gente continua pensando que o desenvolvimento, no Brasil, é um grande projeto estatal. A boa notícia é que a economia de carbono neutro, especialmente no que se refere à energia, é meio como era a dinâmica no século 19. Nos últimos dois anos, foi instalada, no Brasil, uma Itaipu de energia solar, que representa 10% da produção da energia elétrica no país. É um negócio gigantesco, provavelmente, o maior investimento em energia nos últimos tempos. Basicamente, 700 mil pessoas foram colocadas em pequenas instalações, e alguns poucos produtores fizeram instalações maiores. Mesmo assim, ela tem escala tão pequena que dá para ser financiada privadamente. Não precisa ser grande. Então, isto é outra vantagem na área de energia, especificamente, que o Brasil já tem competitividade por causa da matriz energética mais limpa do planeta. O mundo, em geral, é 80% de fóssil; 20% de renovável. Esse é o padrão mundial das economias industrializadas. O Brasil tem cerca de 55% de fóssil e cerca de 45%, de renovável. Então, para se chegar ao carbono neutro, a energia vai ajudar, mas o mais importante é plantar árvores. O país tem tudo para essa economia dar certo e, inclusive, o fato de ser tudo descentralizado. Já está acontecendo tudo isso sem planejamento. Como financiar? Financia com um ambiente onde muitas pessoas podem financiar o seu projeto, mas precisam ter muito mais do que isso. O ambiente de planejamento, para a economia de carbono neutro, é de muita gente pequena fazendo negócio, empreendendo. Essa é a vocação brasileira sociológica hoje como a principal categoria de emprego e renda. É esta gente que faz a transformação. A passagem para a economia de carbono neutro tem imensa vantagem para renda, emprego e desenvolvimento. Isto é central porque ela não precisa ser feita como ocorreu na passagem da economia escravista para a economia capitalista no tempo da República. O Brasil precisa ter planejamento. Emitiu-se US$ 280 bilhões de título para fixar carbono, mas levou quase zero disso. É preciso instruir os pequenos proprietários para juntarem provas de que estão plantando. Se planta um hectare de floresta, ganha-se um dinheirinho. Se cinco milhões de proprietários fizerem isso em um hectare, o Brasil quintuplicará a capacidade de refazer mata nativa em um ano. Na Amazônia, tem 15 milhões de hectares nas mãos de sem-terra, que se tornaram proprietários e tiveram que desmatar porque não sabiam fazer cultura. Se pagar para plantar, haverá 15 milhões de empregos com um emprego por hectare dentro da Amazônia. Isso é 2% da área da Amazônia. O que falta para o contrato de fixação de carbono é a segurança: a pessoa que põe o dinheiro para financiar um hectare de floresta precisa ter certeza de que o dinheiro foi aplicado em um hectare de floresta como mostra a própria foto de satélite.
PD: O senhor acredita que falta cultura de patente ou algum tipo de institucionalidade do Estado, um plano de país voltado para inovação e empreendedorismo, para estimular essas ações?
JC: Se você comparar as categorias básicas do Censo do século XVIII, vai ver que o Brasil, em 1800, era uma nação em que nove décimos das unidades produtivas eram pequenas unidades familiares, e um décimo era coisa maior do que isso. Nessas unidades, se fez toda a adaptação, toda a criação econômica e toda a produção, porque estavam no sertão. A visão econômica que se tinha disso, na maneira antiga de historiografia, era de unidades de economia de subsistência, ou seja, que não produziam riquezas e que eram incapazes de acumular capital. Esse conceito de economia de subsistência era usado por economistas conservadores, liberais e da esquerda, que achavam que ali não havia riqueza. Isso foi contemplado nos anos 1970, quando viram que a economia dos índios era capaz de produzir excedente, fazer troca, e, portanto, permitia acumulação. No livro Banqueiro do Sertão, mostro como fazer negócios com índios gerava, dentro da economia brasileira, uma cadeia de acumulação de capital gigantesca. Capital era prata contrabandeada do Peru, em 1600, 1700, antes do ouro. Então, esse padrão não era visto pelo conceito antigo. Hoje, para se explicar como que a economia colonial brasileira chegou a ser do tamanho que a dos Estados Unidos, a razão é simples. O chamado mercado interno que, antigamente, era calculado em peso. A economia informal era a economia. No século XVIII, o padre Guilherme Pompeu de Almeida movia negócios em uma área que ia de Buenos Aires, Potosí, Belém, Salvador, Rio de Janeiro, sem sair de Araçariguama. Ele tinha capital suficiente para fazer isso trocando – ele basicamente fabricava ferro, que era a mercadoria base de troca com os índios. Trocava, fornecia esse ferro, por algodão, madeira, farinha. Vendia isso e acumulava prata nas trocas, que também fornecia para as áreas. Havia grande capacidade empreendedora, mas a economia formal brasileira era realmente pobre para lidar com isso. O que a República fez, e o Brasil precisa fazer agora, é simplesmente diminuir o tamanho do caminho entre economia formal e economia informal para que haja crescimento. Se quiser plantar em cinco milhões de propriedades, você tem que facilitar a vida de cinco milhões de proprietários e fazê-los empregar outras cinco milhões de pessoas que, hoje, estão tudo na informalidade. Vai ter que formalizar para poder prestar conta do contrato de venda de carbono fixado para alguém que veio do exterior. Esta formalização simples permite muito, e o problema do Brasil, para ser uma segunda, primeira economia do mundo, é saber fazer isso direito hoje, o que não é tão difícil. Acho que o que se faz, no país, é vender como não educação o que, na verdade, é cultura e produtividade. Índios sabem reflorestar melhor do que o melhor fazendeiro. Temos que arranjar um jeito também de, nessa economia, chamar um índio para nos ensinar, o que não é feito porque achamos que ele é mal-educado e que nós somos educados. Não é verdade. Todo o Brasil foi feito de adaptação a uma realidade tropical que a Europa desconhecia. Quem se adaptou? Quem conhecia? O índio. Eu sempre dou o exemplo do homem da carrocinha de reciclagem, que é economia circular e a mais moderna que existe. Aquilo lá é trabalho e capital. A carrocinha é capital. Ele é trabalho, e ele, trabalhando, enche a carrocinha, que é capital, e faz renda. Ele não tem emprego. Ele não está no mundo formal, mas ele é, tecnicamente, um empreendedor, uma mistura de trabalho e capital. Para a nossa sorte, a população pobre do Brasil tem esta característica essencial, e ela pode ser aproveitada.
PD: O Brasil já foi mais ou menos inovador, mais ou menos capitalista, o capitalismo chegou à base?
JC: Há uma diferença entre empreendedor e capitalismo. Capitalismo é trabalho assalariado, basicamente. Então, você precisa ter acumulação suficiente de empreendedores para que chegue a uma empresa capitalista. Isso depende de condições institucionais. No Brasil, não é muito bom porque mantém, na informalidade, a população empreendedora, e o país não é muito bom de formalizar a acumulação de capital do informal para o formal. Só foi bom no período do começo da República. Rui Barbosa, em 17 de janeiro de 1890, baixou um decreto cujo artigo primeiro libera a organização de empresas, no Brasil, bastando registrá-las na junta comercial. Até então, para você organizar uma sociedade anônima no Brasil, precisava juntar as pessoas, fazer o estatuto da empresa, levantar 10% do capital e, quando isso estava pronto, depositava o capital no banco. Mandava a papelada para o Conselho de Estado, que era órgão assessor do poder moderador na Corte do Rio de Janeiro e levava um ou dois anos para autorizar a empresa a funcionar, ou não, dependendo de várias questões, inclusive, saber se a finalidade daquele negócio era lícita ou ilícita do ponto de vista moral. Evidentemente que o Império e eles se orgulhavam que tinham 89 sociedades anônimas em todo o Brasil em 1889, enquanto, na Inglaterra, havia 10 mil. Com o decreto de Rui Barbosa, só no ano da assinatura e apenas na cidade de São Paulo, se fizeram 210 sociedades anônimas. Então, a restrição não é capacidade. Não havia capacidade empreendedora. Não era capital. Não era nada. Era regulação. A regulação era ruim. O Brasil precisa de um choque dessa espécie hoje para entrar na economia de carbono neutro, que é como fazer alguém que tenha um hectare plantar árvore nesse hectare de maneira decente. O Brasil não recebe dinheiro porque isso não está feito. O resto do planeta não tem terra, não tem lugar para pôr árvores, não tem água, não tem nada. Aqui, no Brasil, o problema é que a lei não deixa.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
PD: O Brasil tem eleição desde 1560. Se há um povo, no mundo, que não pode dizer que não sabe votar, é o Brasileiro porque teve chance de aprender na terra de José Bonifácio que, depois, gerou Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Mário Covas, Marcos Maciel. Por que a política se degradou tanto no Brasil ultimamente e o que devemos fazer para sair disso?
JC: Em uma economia em declínio, é difícil que apareça gente otimista e capaz de olhar um futuro bom. A tendência é ficar tentando repetir a fórmula que nos levou ao sucesso lá no passado e não ficar enxergando o que mudou e porque temos que fazer diferente. Então, uma das coisas que me preocupa muito na eleição atual é que o grande ambiente e as grandes categorias de debate intelectual estão no mundo da Guerra Fria. O modelo de muito sucesso demora muito para morrer mentalmente. Ficam tentando repetir, insistindo no que já foi e que não é mais. Quanto mais você fizer isso, pior fica a sua situação, e isso pode ir muito longe. Há nações onde essa situação, às vezes, passa a um declínio, a decadência ou a cenários muito complicados sem que se saia dessa disfunção. É como um filme em que você volta todo dia para o mesmo dia. Isso está acontecendo, em alguma medida, no Brasil. A nossa sorte é que um resto de outras coisas funciona. O Brasil tem conexões com o resto do mundo e, no que interessa, é o potencial para a economia de carbono neutro. Então, o mundo vai nos olhar. Vai ser difícil escapar dessa. Por bem ou por mal, o Brasil vai ter que se adaptar a isso. Isso é, mais ou menos, quando você tem esse tipo de clima, é mais ou menos o que aconteceu no fim do Império com a abolição. Todo o mundo que tinha o mínimo de visão de futuro dizia “temos que fazer abolição porque isso aqui não tem futuro”. Em 1800, quando fizeram as instituições brasileiras para proteger a escravidão, ninguém tinha alternativa para ela. Em 1850, em uma hora, já havia alternativas para ela. Em 1880, aquilo era um atraso monumental, e os escravistas diziam que, se houvesse abolição, faltariam braços para o trabalho porque ninguém quer ser escravo, mas os braços para o trabalho livre sobravam. Então, o Brasil está olhando o mundo um pouco como era no fim do Império, com lentes do passado, da Guerra Fria, de projetos econômicos que já não tem mais sentido porque ninguém vai fazer um poço de petróleo. Esquece. Não tem futuro. É economia morta. O equivalente à defesa do trabalho escravo no tempo do Império é o negacionismo de hoje: negar que não existe uma economia nova nascendo. Mas a economia existe. Então, não tem como escapar disso. A elite brasileira tem muita dificuldade de olhar uma economia com os princípios da economia de carbono neutro. No entanto, o pequeno empresário enxerga isso muito mais depressa que o grande. Por isso que a mudança está acontecendo embaixo. No caso da energia solar, qualquer dono de casa faz a conta e fala: se colocar uma placa solar aqui, pago essa placa solar só na conta de luz em 12, 16, 24 ou 36 meses. É assim que está sendo feito, apesar de não ter plano nacional para a transição à energia solar. O que era planejamento nos anos 1970 não é planejamento hoje. O que era desenvolvimento econômico não é desenvolvimento econômico hoje. Se não se adaptar a essa mudança, você ficará no tempo passado. A economia do tupinambá é muito mais próxima a dos prêmios Nobel de 2007, 2008, 2010, que foram concedidos a quem lida com a tradição de carbono neutro e a economia circular, e não com a teoria econômica que aplicamos, como a Teoria do Valor, de Karl Marx e do Adam Smith. Isso é uma coisa que pouca gente nota, mas valor em economia, para o Adam Smith ou Marx, é exatamente a mesma definição teórica: o que está na natureza não tem valor, o que só começa na hora em que se arranca a árvore que estava na natureza, porque é trabalho humano, e, com isso, faz-se uma mercadoria. Enquanto ela é útil, tem valor. Quando deixa de ser útil, perde o valor, e você joga fora. É lixo. Então, o ciclo econômico é só entre arrancar da natureza e jogar de volta para a natureza. Por outro lado, o ciclo econômico do cacique e dos economistas é diferente: você tem que produzir, reciclar e produzir de novo para fazer um circuito de produção econômica. Essas mudanças a gente percebe pouco, mas são essenciais no mundo que corre hoje.
Sobre o entrevistado
Jorge Caldeira é escritor, jornalista, historiador e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (47ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
Equipe de entrevista
André Eduardo: consultor legislativo do Senado Federal na área de economia e mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB).
Benito Salomão: economista chefe da Gladius Research, doutor em economia pelo Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU).
Carlos Marchi: jornalista e escritor. Trabalhou no Rio de Janeiro, em Brasília e em São Paulo, nos principais meios de comunicação do país – Correio da Manhã, Última Hora, O Globo, TV Globo, O Estado de S. Paulo. Paulo. Entre 1984-1985 foi assessor de imprensa na campanha civilista de Tancredo Neves. Foi secretário geral do Sindicato dos Jornalistas do DF (1977-1980) e vice-presidente da Fenaj (1980-1983).
Cleomar Almeida: jornalista, coordenador de Publicações da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e editor da revista Política Democrática online.
Silvio Ribas: jornalista, escritor, consultor em relações institucionais e assessor parlamentar no Senado Federal.
Vinícius Müller: doutor em História Econômica, professor do Insper e membro do Conselho Curador da FAP.
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Em entrevista à Revista Política Democrática Online, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) fala sobre a participação das mulheres no Parlamento.
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Vladimir Carvalho fala sobre o filme de "Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino"
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Sucesso no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2019, o documentário “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” foi o tema principal de entrevista do cineasta Vladmir Carvalho ao Canal Brasil.
Na entrevista, Vladmir fala sobre o sucesso do filme, que retrata a vida do líder comunista baiano Giocondo Dias, militante da esquerda que viveu dois terços de sua vida na clandestinidade e liderou o PCB como secretário-geral.
Confira abaixo vídeo da entrevista na íntegra.
José Álvaro Moisés: "PSDB jogou fora oportunidade”
Para cientista político, quem vencer prévia tucana vai ter que disputar com Moro e Ciro
Cristian Klein / Valor Econômico
Rio - A crise gerada pelas prévias do PSDB expõe um partido dividido que terá um trabalho redobrado para retomar o protagonismo da disputa presidencial, afirma o cientista político José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP). O que já era difícil, para um partido que obteve 4,7% dos votos ao Planalto em 2018 e tem pré-candidatos com baixa pontuação nas pesquisas para 2022, se tornou “um panorama extremamente complexo”, diz Moisés, ex-secretário no Ministério da Cultura nos dois mandatos do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Tanto o governador de São Paulo, João Doria, quanto o do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que disputam as prévias do PSDB com o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio, poderiam se beneficiar do grande holofote que a disputa interna ganhou para se cacifarem nacionalmente. Mas o fiasco tecnológico e as brigas de caciques que vieram à tona geram descrédito sobre a capacidade de os tucanos liderarem a terceira via. “O PSDB jogou fora essa oportunidade, pelo menos até agora. Poderia ter dado visibilidade ao grande legado do partido durante as prévias”, diz o cientista político.
Para Moisés, os pré-candidatos do PSDB figuram numa espécie de terceiro pelotão da corrida presidencial, já bastante polarizada com a dianteira do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que reúne cerca de 40% das intenções de voto, e do atual, Jair Bolsonaro, que amealha por volta de 25% das preferências. Sobram 35% para a fragmentada terceira via, calcula.
No segundo pelotão, já não está fácil o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) crescer pela centro-esquerda, pois “Lula está muito estabilizado”, afirma. Por outro lado, também não está fácil para o ex-juiz Sérgio Moro (Podemos) atrair parte do eleitorado bolsonarista. “Outra figura da terceira via vai encontrar situação muito difícil, precisando disputar com Moro o voto de Bolsonaro e com Ciro o eleitorado de Lula. Difícil prever que quem quer que vença as prévias vá superar esses obstáculos”, diz Moisés.
Seja Doria ou Leite, os favoritos na disputa tucana, o grande desafio, em primeiro lugar, será o de unificar o partido, rachado pelo próprio acirramento das prévias e pelas correntes bolsonarista e oposicionista. A construção de uma candidatura ao Planalto minimamente competitiva passa pelo que Arthur Virgílio chamou de processo de “desbolsonarização do PSDB”, aponta Moisés.
“Ainda assim, quem vencer vai ter que disputar com dois nomes [Moro e Ciro] que já estão mais bem estabelecidos, com 10%, 11% das intenções de voto”, afirma o coordenador do Grupo de Pesquisa sobre a Qualidade da Democracia, no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
Pesquisa Genial/Quaest divulgada há duas semanas mostra dois cenários em que Lula oscila entre 47% e 48%, contra 21% de Bolsonaro. Moro registra 8%, Ciro varia entre 6% e 7%, enquanto Doria surge num cenário com 2% e Leite no outro com apenas 1%.
Para Moisés, a candidatura Doria seria mais competitiva, pela maior estrutura partidária do PSDB em São Paulo. “Agora, quem, de alguma maneira, acenou com possibilidades mais amplas de negociação, durante alguns debates das prévias, foi o Eduardo Leite. Então é difícil discriminar inteiramente quem dos dois vai desempenhar melhor o papel de unificação do partido e ao mesmo tempo de negociar com outras forças para se chegar a um nome de consenso”, afirma.
Professor aposentado da USP, Moisés diz que será muito difícil se chegar a esse nome de consenso da terceira via entre Moro, Ciro e o PSDB. “Chegar a um consenso entre esses três significaria transpor barreiras muito complicadas, políticas, ideológicas e mesmo regionais, que não estão tão visíveis” diz. “Mas é muito difícil. Até agora não se vislumbrou essa possibilidade. E no caso do PSDB, que de alguma maneira, estava querendo, digamos, montar o cavalo nesta direção, mancou e perdeu uma perna. E agora está tentando se reconstituir. Não vai ser fácil, mas está tentando”, conclui.
Para Moisés, a recuperação do eleitorado perdido pelos tucanos depende de o PSDB “trazer uma versão inteiramente nova e um compromisso com a social-democracia, não a keynesiana clássica”. “Mas é preciso redefinir o pacto do partido, numa combinação do enfrentamento das desigualdades sociais com a defesa da economia de mercado”, diz, lembrando que essa tese também tem sido pregada por Arthur Virgílio.
O ex-prefeito de Manaus, ao lado de Doria, tem sido um crítico duro da atuação do deputado federal e ex-senador mineiro Aécio Neves, apoiador de Leite. Aécio é apontado como líder da ala bolsonarista do partido, que resiste a adotar um tom oposicionista de olho em emendas e cargos oferecidos pelo governo federal. A expectativa é que uma vitória de Doria nas prévias possa provocar a desfiliação de tucanos simpatizantes de Bolsonaro. Por outro lado, se Leite vencer, o PSDB estaria mais propenso a abrir mão de candidatura própria, o que nunca aconteceu desde a redemocratização, nas últimas oito eleições presidenciais.
Indagado sobre o destino em disputa do partido, se mantém a vocação ao Executivo federal ou se converte-se numa típica legenda fisiológica, Moisés afirma que “as duas hipóteses estão colocadas”. Um dos problemas, ressalta, é que deputados do PSDB têm demonstrado a preocupação com o volume de recursos do fundo eleitoral que uma campanha à Presidência irá drenar, em vez de abastecer as campanhas dos parlamentares.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/11/26/partido-jogou-fora-oportunidade.ghtml
Chico Whitaker: "É preciso afastar Bolsonaro já para parar a matança"
Esperança do ativista é que o presidente seja afastado por crimes na pandemia
DW Brasil
A um mês de completar 90 anos, o ativista político Francisco Whitaker, precursor da luta que permitiu a apresentação de projetos de lei por meio de iniciativa popular – como a Lei da Ficha Limpa, que teve 1,6 milhão de assinaturas –, procura desesperadamente por uma porta aberta para que se possa retirar Jair Bolsonaro da presidência do Brasil.
Descrente do impeachment, apontando ser difícil que este passe na Câmara, e de uma cassação da chapa de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Chico Whitaker vê como único caminho possível a responsabilização criminal do presidente por crimes comuns e omissões da administração federal no combate à pandemia de covid-19.
Já foram enviadas ao menos quatro representações de entidades da sociedade civil à Procuradoria-Geral da República (PGR), pedindo que Bolsonaro seja julgado por crimes diversos que cometeu. Se a PGR acatar os pedidos e denunciar Bolsonaro, o presidente só poderia ser processado com aval da Câmara dos Deputados, sendo afastado do cargo imediatamente por 180 dias. O ativismo político por mais de sete décadas, porém, faz com que Whitaker mantenha os pés no chão.
"O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. É difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados", afirmou à DW Brasil.
Afastado de qualquer atividade político-partidária desde o início dos anos 2000, Whitaker diz que vai continuar militando na sociedade civil "até morrer". O exílio que viveu por 15 anos, no período da ditadura, após pertencer ao governo de João Goulart, a experiência da Constituinte e tantas outras lutas o alimentaram, sustenta.
"Desde que Bolsonaro foi empossado, que sua missão é destruir", diz. "É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais."
DW Brasil: Após décadas de ativismo contra a corrupção eleitoral e por transparência na política, qual sua avaliação sobre os movimentos do Congresso para se alterar o sistema político brasileiro e retroceder em várias legislações?
Francisco Whitaker: Esse Congresso foi composto na mesma onda de eleição do Bolsonaro. Ele conseguiu uma quantidade expressiva de aliados no Congresso e construiu uma maioria que, objetivamente, bloqueia tudo o que seja contrário a ele, como é o caso do impeachment, diante da impossibilidade de haver 342 votos para aprovação. De outro lado, está na estratégia de Bolsonaro, desde que empossado, que sua missão é destruir.
Tudo o que foi avanço civilizatório no Brasil após a ditadura, com introdução de mecanismos de controle da sociedade sobre a vida política e econômica em geral, está sendo progressivamente destruído por iniciativa de Bolsonaro, através de medidas provisórias e leis. E todas passaram pelo crivo do Congresso, que é o que é. Tudo o que foi feito de positivo e construído após a ditadura, o objetivo é destruir.
A palavra boiada foi muito expressiva – houve uma reunião do governo gravada e divulgada em que um dos ministros [Ricardo Salles] falou que precisava aproveitar a sociedade preocupada com a pandemia para passar a boiada. A boiada, no caso, é a desregulamentação de tudo quanto é controle social.
Há quatro meses é que começou a haver maior resistência. Mas Bolsonaro adotou uma estratégia de multiplicar frentes. A cada dia, a cada semana, ele lança uma nova. O que os seus asseclas vão inventando, o Bolsonaro vai assinando. E deixa a oposição totalmente zonza. E a sociedade, em si – e esse é um outro enorme problema – tem uma tendência de naturalizar as coisas. E está se acostumando, agora, até ao morticínio. Bolsonaro age para criar o caos. Desde o começo negou a virulência da covid-19, depois a necessidade de vacina, agora nega a importância de máscara. Tudo o que seja para estancar o vírus ele tenta interromper.
Grande parte dos deputados não é constituída por gente que foi para lá trabalhar pelo bem comum, mas sim de oportunistas que estão lá para ganhar dinheiro. Estão tirando tudo o que podem. Reforma eleitoral, fundo eleitoral, tudo isso é aprovado por essa maioria destruidora. O quadro é bastante preocupante. Até onde irá isso? Até onde ele poderá chegar? A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites. Sobra para a militância da sociedade civil tentar fazer alguma coisa.
Mas o poder de reação social não está muito limitado?
Muito limitado. Porque ultimamente é: a Câmara decidiu, está decidido. O que a gente pode fazer objetivamente? Encher as ruas não dá para encher. Com a pandemia, pior ainda. Estamos vivendo uma situação em que é difícil a ação. E qual ação possível se não protestar? Seria resistir às mudanças. O Senado tem tido um pouco esse papel. Como a sua composição é um pouco diferente da da Câmara, tem mais gente com capacidade de resistência – e a própria CPI da Covid tem demonstrado isso. O Senado tem segurado alguma coisa. Agora a gente tem que torcer para que, quando aprovem na Câmara, não aprovem no Senado.
O novo Código Eleitoral com quase mil artigos, por exemplo, aprovado na Câmara sem muita transparência, não foi votado pelo Senado, ou seja, não poderá vigorar em 2022.
São os pequenos respiros que estão nos sobrando. O Senado é um deles. Veja, a Procuradoria-Geral da República (PGR) é uma instituição importantíssima na defesa da sociedade, porque é independente, não é Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário. O procurador-geral é o fiscal dos interesses difusos da sociedade. Tradicionalmente, em outros tempos, o procurador sempre foi muito ativo e enfrentava. Inclusive, pode agir de ofício. Nisso nós estamos totalmente bloqueados. Agora estamos tentando abrir essa porta na estratégia da sociedade civil, que ainda não foi cassada. Existem representações importantes na PGR em torno dos crimes de Bolsonaro cometidos na pandemia. A CPI [da Covid] está mostrando a quantidade de crimes. O que tentamos agora é esperar inclusive que a CPI venha com mais denúncias de crimes. É um modo diferente de afastar Bolsonaro, que não pelo impeachment: afastá-lo pela quantidade inominável de crimes.
Sua expectativa então é que haja um afastamento de Bolsonaro da Presidência não pelo impeachment, mas pela responsabilização de crimes, entre eles crimes contra a humanidade e de responsabilidade?
Mais do que isso: se a Câmara autorizar o Supremo Tribunal Federal a julgar Bolsonaro por esses crimes ele é imediatamente afastado. Nossa esperança, agora, é usar esse instrumento. A dificuldade qual é: fazer com que as lideranças políticas esqueçam 2022 e tratem de tirar Bolsonaro já. Temos que parar a matança. Com ele lá, continua a agir. Foi para a ONU e, nessa altura dos acontecimentos, voltou a falar do chamado tratamento precoce contra a covid-19. O que é isso, meu Deus? Ele é totalmente fora do tempo e das coisas. Nossa esperança é acordar setores da sociedade civil, que não têm preocupação eleitoral, e acordar as lideranças políticas pela necessidade de usar o processo criminal para afastar Bolsonaro imediatamente. Já temos 600 mil mortos.
Se o impeachment não passa, pelo cenário de hoje, e há os interesses eleitorais das lideranças políticas, por que acreditar que seria possível um afastamento para investigar Bolsonaro, a partir de pedido do STF?
O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. E isso vai criar brechas dentro da maioria. E aí a sociedade vai ter pelo que pressionar, pressionar a Câmara a afastar o Bolsonaro por 180 dias. E difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados.
Durante toda a sua vida você atuou politicamente, sobretudo como representante da sociedade civil. Qual é sua sensação, aos 90 anos, vendo boa parte dessas lutas sendo desconstruídas no Brasil atual?
É de muita tristeza, mas ao mesmo tempo é uma alfinetada para a gente não parar. Eu tenho, literalmente, 70 anos de ação política. Vou chegar aos 90 mês que vem e comecei tudo isso aos 18 anos, quando entrei na universidade e comecei a acordar para a questão política. Tive até que pagar o preço do exílio: estive por 15 anos fora do Brasil, exilado. Era diretor de planejamento de reforma agrária no governo João Goulart, então estava num setor muito "quente". Acabei me tornando uma persona non grata na ditadura. Fiquei 15 anos fora, parte na França e parte no Chile. No Chile, vivi toda a experiência de [Salvador] Allende, estava lá na hora do golpe. Ou seja, para mim foi tudo muito duro e difícil.
Ao longo desse processo, sempre se abrem portas e possibilidades, a gente se junta a outras pessoas, ganha coragem e vai dando as contribuições que podemos dar. Minha vida foi marcada por uma militância permanente. Sou arquiteto, minha mulher é psicóloga. Até o Chile, exercíamos as nossas profissões. Na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), eu trabalhava com desenvolvimento regional.
A ação política apareceu para nós como primordial e prioritária, e por causa da desigualdade social abissal no Brasil. Tive a oportunidade, desde então, de participar de muitas atividades, nas quais aprendi muito. Na França trabalhei em um projeto da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), "Por uma sociedade superando as dominações”. Esse projeto me abriu perspectivas muito grandes. Quando voltei ao Brasil fui trabalhar diretamente com Dom Paulo Evaristo Arns. A participação popular na Constituinte foi um trabalho muito bonito. Virei vereador e aprendi pra burro na Câmara Municipal [de SP] o que é efetivamente o Legislativo, que é composto fundamentalmente por oportunistas e não por pessoas voltadas ao bem comum.
Cada etapa da minha vida foi um aprendizado e até certo ponto uma vitória. A primeira delas foi contra a compra de votos, outra doença brasileira. Depois a outra, mais conhecida, a lei de iniciativa popular. Ou seja, tudo isso foi me alimentando. Agora, estamos numa etapa negativa. Nos dois últimos anos, depois da vitória de Bolsonaro, enfrentamos um desafio cavalar. É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo, e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Eu estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais.
Você acompanhou a Lei da Ficha Limpa florescer no Brasil. Vê riscos de retrocessos também nessa legislação?
Eles estão tentando, se não derrubar, pelo menos amenizar tudo quanto é lei que aumenta o controle social. Para nós foi muito impressionante na Constituinte, mas era outro momento. Houve o plenário pró-participação popular, que tinha frase muito significativa: Constituinte sem povo, não cria nada de novo. Foi uma fase de grande entusiasmo construtivo no Brasil. Uma das ideias que surgiu nessa luta foi permitir que o povo apresentasse emendas ao texto da Constituição. Foram apresentadas 120 emendas populares. A primeira iniciativa popular foi contra a compra de votos, dez anos depois da Constituinte, e exigiam a assinatura de 1% do eleitorado. Vinte anos depois, fazíamos a segunda iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa, com 1,5 milhão de assinaturas. São coisas que passaram na Câmara com um enorme trabalho junto aos parlamentares. É um aprendizado lento, com perdas e ganhos. Agora o momento é de retrocesso muito grande. É mais do que um retrocesso, porque a cabeça do Bolsonaro é doentia.
Em 2006 você se desfiliou do PT. Atualmente você está ligado a algum partido ou o seu ativismo político não tem cor partidária?
Saí do PT em 2005, no auge de todas as complicações que surgiram com o mensalão. Antes eu já tinha deixado a vida partidária. Cumpri dois mandatos na Câmara Municipal de São Paulo [como vereador, pelo PT]. Cheguei à conclusão de que nenhum parlamentar deveria ficar por mais de dois mandatos no Legislativo. No primeiro ele aprende, no segundo ele faz as coisas sem se preocupar com a reeleição. Depois de 2005 me afastei também do partido. A vida partidária está muito distorcida por causa da burocratização geral da militância. Não pretendo entrar em partido nenhum. Vou continuar, até morrer, na sociedade civil.
'Todos subestimam Bolsonaro: assim ele virou presidente e pode ser reeleito'
Para Creomar de Souza, oposição se fragmenta ao subestimar força do presidente, o que deve facilitar sua ida ao segundo turno, com chances de vitória
Mariana Schreiber / BBC News Brasil
A ideia de dar um segundo mandato ao presidente Jair Bolsonaro hoje é rejeitada pela maioria da população, segundo diferentes pesquisas eleitorais. Esses mesmos levantamentos mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como favorito para vencer a disputa presidencial do próximo ano.
Apesar disso, o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma, avalia que Bolsonaro se mantém um candidato competitivo, com chances de permanecer no Palácio do Planalto em 2023.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele lembra que o presidente mantém nas mãos a "chave do cofre", ou seja, recursos para tentar reverter sua impopularidade com políticas de governo, como o aumento de transferências de renda, seja com a prorrogação do auxílio emergencial ou a ampliação do Bolsa Família.
Além disso, acredita que "o canal paralelo de comunicação" construído por Bolsonaro e seus apoiadores por meio de grupos de WhatsApp e Telegram terão novamente papel importante na eleição, como forma de divulgar mensagens favoráveis ao presidente e "destruir reputações" de adversários. Para Souza, mesmo narrativas que pareçam pouco convincentes para parte da população podem cativar eleitores.
"O desemprego, o retorno da fome, a inflação: tudo isso gera uma enorme dificuldade para Bolsonaro. O que o presidente tem feito é jogar a conta da inflação no (discurso do) 'fique em casa durante a pandemia'. Me parece ser uma manobra muito difícil, mas não é uma manobra que não possa colar", afirma.
"Não podemos trabalhar com a ideia de que o eleitor é invulnerável a percepções que nós não consideremos objetivas da realidade. Temos que lembrar que, no fim das contas, muita gente tomou cloroquina e outros medicamentos que não tinham comprovação científica alguma. Isso acontece", reforça.
Para o professor, o cenário de 2018 está se repetindo agora, com uma ampla subestimação do potencial do presidente.
"Todo mundo subestima o Bolsonaro. O Lula subestima o Bolsonaro. Quem está com o Bolsonaro subestima o Bolsonaro. Quem quer fazer terceira via subestima o Bolsonaro. E uma característica bem importante do Bolsonaro como persona política é o fato de que ele chegou onde está com todo mundo o subestimando", lembra.
"Assim ele chegou à Presidência da República. Assim ele vai finalizar provavelmente o mandato sem impeachment, e assim ele pode inclusive ser reeleito", acrescenta.
Na sua visão, ao subestimar Bolsonaro, a oposição tende a se fragmentar, gerando um cenário mais favorável para o presidente estar no segundo turno, com chances de se reeleger.
"Em algum sentido, essa fraqueza aparente do Bolsonaro dá a impressão de que qualquer outro candidato pode derrotá-lo, e esse é o principal vetor que impede a construção de qualquer tipo de coalizão", ressalta.
"Essa é a melhor chance do Bolsonaro. Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro, porque o Bolsonaro tem uma base concentrada de votantes. Se os (demais) votos estiverem muito diluídos em outros nomes, ele está no segundo turno", diz ainda.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - A alta rejeição de Bolsonaro medida nas pesquisas eleitorais tem indicado um caminho difícil para o presidente em 2022. Ele continua sendo um candidato competitivo com chances de se reeleger?
Creomar de Souza - O presidente ainda é competitivo por duas razões. A primeira delas está no campo bem tradicional da política: tem a chave do cofre. E quem tem a chave do cofre pode criar mecanismos, instrumentos, pra reverter percepções negativas sobre si mesmo. Isso não significa dizer que presidente é favorito ou ganharia a eleição com a fotografia que temos hoje. Mas o fato é: hoje o presidente conseguiria estar muito provavelmente no segundo turno. E isso não pode ser menosprezado.
A segunda razão que acho muito importante vem de um elemento mais novo da política, que tem muito impacto a partir de 2018 e acredito que terá muito impacto também em 2022: o presidente foi muito bem-sucedido em construir um canal paralelo de comunicação, se utilizando de WhatsApp e de Telegram de forma que, até onde eu sei, não há outra liderança política utilizando isso de maneira tão eficaz.
E a gente precisa lembrar de alguns dados. Por exemplo, uma pesquisa da consultoria Mckinsey mostra que o Brasil é o quarto país mais plugado à internet. Todo mundo usa WhatsApp, a ponto de quando tem algum problema no WhatsApp as pessoas confundem com queda de internet. Então, isso gera um impacto em termos de jogo político e eleitoral que não é desprezível.
O presidente da República e seus apoiadores têm um canal muito bem construído de construção de informações e de percepções e de destruição de reputação de inimigos. Então, em uma eleição que tem tudo pra ser altamente tumultuada, que caminha pra ter dois protagonistas (Bolsonaro e Lula) que são antagonistas e que despertam muitas paixões positivas e negativas, essa conjuntura gera um caldeirão que acaba diminuindo o componente de uma eleição que seria normal ou racionalizada.
Isso acaba sendo muito bom pro Bolsonaro em específico. Quanto mais raivosa for a eleição, melhor para ele. Porque a gente tem certeza de que os apoiadores do Bolsonaro vão às urnas. A gente não tem certeza se os eleitores nem-nem, que não sejam nem Bolsonaro nem Lula, vão comparecer à cabine de votação.
E tem outras variáveis como por exemplo o voto envergonhado. Aquelas pessoas que não dizem nas pesquisas que votam em Bolsonaro (mas na urna votam). Então, é importante levar todos esses elementos em consideração quando tentamos estabelecer uma compreensão responsável do processo eleitoral e não meramente aquilo que se deseja que seja o processo eleitoral.
BBC News Brasil - Os grupos de WhatsApp e Telegram são canais em que Bolsonaro se comunica com uma base mais fiel e radicalizada. A princípio, esse público não é suficiente para elegê-lo. Qual a importância de ter essa base radicalizada e o que ele precisa fazer pra conquistar apoio fora dela?
Souza - Creio que tem dois elementos importantíssimos nessa construção da persona política do Bolsonaro. A gente vai ter um Bolsonaro do WhatsApp, do Telegram, o Bolsonaro do YouTube, que fala para a base. E essa base é muito importante porque é o ponto de partida dele, a base que pode empurrá-lo ao segundo turno.
De outro lado, teremos um outro Bolsonaro que vai tentar ser mais palatável pra determinados pedaços da sociedade. E aqui tem um elemento que não se pode esquecer: a sociedade brasileira é em grande parte composta por pessoas conservadoras.
E onde essas duas linhas se encontram? Na junção entre a capacidade que os grupos de WhatsApp e Telegram tenham de produzir conteúdo e de manter essa base de apoio agregada, e o fato de que alguns desses conteúdos sejam palatáveis o suficiente pra atingir os concorrentes de Bolsonaro do ponto de vista eleitoral, como requentar as denúncias do Lula acerca de corrupção, falar de alguma característica de caráter do Ciro Gomes, ou fazer algum tipo de ataque a um outro candidato, como Eduardo Leite (governador do Rio Grande do Sul pelo PSDB), João Dória (governador de São Paulo pelo PSDB), (ex-ministro da Saúde, do DEM, Luís Henrique) Mandetta, quem quer que seja.
O entroncamento desses dois elementos me parece criar uma lógica e uma ação que o grupo do presidente hoje acredita que seja o suficiente pra requentar alguns elementos da narrativa de 2018, sobretudo a ideia de que Bolsonaro é um mártir diante de um sistema que é muito corrupto, que é muito pouco engajado na transformação do país, e ele pode usar isso com um mix de "olha, mesmo diante de todas essas dificuldades, nós entregamos algumas reformas".
Nesse aspecto, ele tem tido grande apoio do (presidente da Câmara dos Deputados) Arthur Lira (PP-AL), mas de outro lado tem-se uma dificuldade pra que se avance no Senado. Por exemplo, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA) deixou muito claro que a reforma do Imposto de Renda não vai avançar e que o governo tem outras alternativas pra prorrogar o auxílio emergencial que não envolvam necessariamente rebatizar o Bolsa Família.
BBC News Brasil - O governo não conseguiu até o momento criar um programa para substituir o Bolsa Família, ao mesmo tempo que desemprego e inflação seguem altos. A economia e a atuação do governo na pandemia são fatores que dificultam a reeleição?
Souza - Sendo bem pragmático, eu creio que a pandemia não será o principal tema da eleição. A vacinação vai avançar, devagar os casos tendem a se reduzir e talvez a gente não tenha (em 2022) uma grande reflexão sobre o que foi a pandemia, sobre o papel do governo. Talvez o timing nesse aspecto da pandemia vai ser mais gentil com Bolsonaro do que foi com (o ex-presidente americano Donald) Trump por exemplo. O Trump entrou no processo eleitoral no meio da tempestade da pandemia. O Bolsonaro vai conseguir se distanciar disso.
Agora, o desemprego, o retorno da fome, a inflação: tudo isso gera uma enorme dificuldade para Bolsonaro. O que o presidente tem feito é jogar a conta da inflação no "fique em casa durante a pandemia". Me parece ser uma manobra muito difícil, mas não é uma manobra que não possa colar. Não podemos trabalhar com a ideia de que o eleitor é invulnerável a percepções que nós não consideremos objetivas da realidade. Temos que lembrar que, no fim das contas, muita gente tomou cloroquina e outros medicamentos que não tinham comprovação científica alguma. Isso acontece.
É uma estratégia que existe desde o primeiro dia de governo: tudo aquilo que é bom é sempre responsabilidade do Bolsonaro, e tudo que está errado ele sempre transfere o ônus. O presidente vai tentar terceirizar o ônus para os governadores e pros concorrentes políticos que foram favoráveis a medidas mais restritivas durante a pandemia.
A questão é: vai colar? Isso depende da capacidade que o governo tem de por dinheiro na mão das pessoas, principalmente dos mais pobres, que são os que decidem a eleição. Vai depender de conseguir reativar o auxílio emergencial (previsto para acabar em outubro) ou ampliar o Bolsa Família.
BBC News Brasil - A vitória do presidente em 2018 é em boa parte atribuída ao antipetismo, que teria levado pessoas moderadas a votar em Bolsonaro. Esse fator perdeu força agora, dificultando a reeleição?
Souza - Me parece que o antipetismo é uma força de longa duração, assim como o petismo. O sistema político brasileiro da redemocratização é povoado por partidos fisiológicos, os partidos não são orgânicos. Você não vê uma pessoa na rua entusiasmada com uma bandeira do MDB ou do DEM, por exemplo. Já os partidos que são mais orgânicos em sua maioria são nada competitivos. E você tem uma exceção: o PT conseguiu se construir como um partido orgânico e competitivo.
Isso gerou dois elementos muito importantes. O primeiro é dentro do DNA do PT uma lógica de hegemonia. O PT quer ser um partido hegemônico. E os militantes do partido acreditam piamente que tenham direito a essa conquista hegemônica porque são o partido mais orgânico da República.
O segundo elemento é que, como não há uma cultura de vida partidária na sociedade civil como um todo, você desperta encantamento e estranhamento. Esse estranhamento se cristalizou numa lógica de antipestismo que vem mesclada com reminiscências de conservadorismo da sociedade, da ideia de que o PT é um partido comunista e coisas do gênero, que são anteriores até ao próprio partido.
Então eu creio que, assim como o petismo conseguiu sobreviver, saiu ferido mais saiu vivo de toda essa crise que vem de 2013 até 2016, o antipetismo é uma força de permanência.
A questão é que hoje tem um antipetismo que está cristalizado no Bolsonaro, mas esse anti bolsonarismo está cristalizado no PT? Talvez essa seja a pergunta de um milhão de dólares pra eleição do ano que vem. Um cenário que no segundo turno teremos Lula contra Bolsonaro não será uma eleição de escolha positiva, será uma eleição em que a rejeição vai dizer mais que a aceitação. Com o retrato que nós temos hoje, provavelmente o Bolsonaro tem um problema, que é o fato de que ele tem mais rejeição que o Lula (segundo as pesquisas atuais).
O antipetismo é uma força de longa duração e o PT trabalha muito pouco com a ideia de reduzir essas arestas. Acaba, em algum sentido, sendo cômodo também para o partido trabalhar com a ideia de que eleitores que não gostam dele são moralmente não comprometidos com uma transformação social. Assim, os coloca em um ponto de vilania. Isso é parte do processo também.
BBC News Brasil - A principal aposta dos potenciais candidatos da terceira via hoje parece ser o derretimento de Bolsonaro e a possibilidade de uma dessas alternativas disputar o segundo turno com Lula. É um cenário provável ou estão subestimando o presidente?
Souza - Eu creio que todo mundo subestima o Bolsonaro. O Lula subestima o Bolsonaro. Quem está com o Bolsonaro subestima o Bolsonaro. Quem quer fazer terceira via subestima o Bolsonaro. E uma característica bem importante do Bolsonaro como persona política é o fato de que ele chegou onde está com todo mundo o subestimando.
Todo mundo acha que não vai dar em nada, que o Bolsonaro de fato não é uma ameaça ou que ele vai estar sob controle de alguém. E ele vai galgando as posições e assim ele chegou à Presidência da República. Assim ele vai finalizar provavelmente o mandato sem impeachment, assim ele pode inclusive ser reeleito presidente da República.
Para além disso, eu creio que para a terceira via está faltando mensagem. Sem uma mensagem você não tem voto.
E aí, por exemplo, caso o (apresentador José Luiz) Datena saia candidato pelo União Brasil (partido que será criado com a fusão de DEM e PSL) ou que a gente imagine um cenário de uma chapa do Eduardo Leite com Datena, com um monte de dinheiro, tempo de TV (para propaganda eleitoral), possibilidade de fazer um monte de coisa, mas isso não necessariamente significa que você consegue entregar algo, porque no fim você precisa de uma mensagem.
E nós aqui (na consultoria política Dharma) acreditamos que essa mensagem vai estar num tripé que envolva melhoria econômica, qualidade de política pública e, em específico, o tema saúde. A covid vai ter um elemento nisso, mas a reflexão sobre o SUS vai ser um elemento importante também.
Nesse aspecto, me parece que Bolsonaro, numa manobra muito arriscada, vai se negar a discutir vários desses temas e vai insistir na ideia do anticorrupção, de "não tem escândalo no meu governo". Ele ganhou uma eleição negando os debates, então isso pode funcionar de novo, não se pode descartar isso.
O Lula vai trabalhar muito com a memória (do seu governo), e essa terceira via, os candidatos que queiram esse voto nem-nem, vão ter que entregar alguma coisa, trazer uma mensagem bem construída.
BBC News Brasil - Esse cenário de predominância da preocupação econômica na eleição, do aumento da miséria, parece ser um cenário que favorece Lula a trabalhar com a memória do seu governo. Qual seria a fraqueza dele, algo que pode atrapalhar esse caminho?
Souza - Eu creio que o grande inimigo na candidatura do ex-presidente Lula será certamente todo o imbróglio que envolve a Lava Jato. Por mais que o ex-presidente e o partido hoje tenham uma narrativa de dizer que Lula foi inocente, para um número considerável de eleitores isso é uma história muito confusa, muito mal explicada. Muito provavelmente todos os inimigos de Lula farão uso disso de forma muito forte porque o líder da corrida eleitoral sempre é o alvo preferencial.
Então, o grande obstáculo pra ele será como lidar com esse passivo. Pra uma parte da sociedade, o Sérgio Moro ainda é um herói nacional. E você precisa de todos os votos possíveis. Não é uma eleição em que as pesquisas estão dizendo que o Lula leva no primeiro turno. Muito provavelmente vai ser uma eleição muito acirrada, com muito tumulto e alguma instabilidade.
BBC News Brasil - Então, embora exista um discurso de que Bolsonaro é autoritário e de que tem que haver uma união das forças democráticas contra ele, na prática Lula, por ser o líder das pesquisas, pode virar o alvo preferencial?
Souza - E esse me parece ser um ponto bem interessante. Em algum sentido, essa fraqueza aparente do Bolsonaro dá a impressão de que qualquer outro candidato pode derrotá-lo, e esse é o principal vetor que impede a construção de qualquer tipo de coalizão. E essa é a melhor chance do Bolsonaro.
Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro, porque o Bolsonaro tem uma base concentrada de votantes. Se os (demais) votos estiverem muito diluídos em outros nomes, ele está no segundo turno. E segundo turno é aquele negócio que a gente não sabe como termina, é muito difícil pra um candidato em reeleição perder em segundo turno. Esse é um ponto muito crítico e muito importante da conjuntura do ano que vem.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58936883
Alberto Aggio: Resistência da sociedade é visível e vai continuar
Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político
Vanessa Maranha / Folha de Franca
A política é motor do funcionamento e palco dos reveses nas sociedades. O Brasil e o mundo têm vivenciado, sobretudo na última década, pela facilitação da comunicação em rede via Internet, o acirramento ideológico, a polarização das posições partidárias e também subjetivas por uma já evidenciada manipulação da percepção da realidade que as mídias possibilitam. Folha de Franca convidou o historiador Alberto Aggio, docente e autor de artigos e livros de relevância com foco na História Política da América Latina, um nome mais do que avalizado para pensar o Brasil e o mundo de hoje na esfera política em perspectiva temporal e factual.
Formado em História pela USP, onde também fez mestrado e doutorado, é professor de História na Unesp/Franca desde 1987, na qual tornou-se Livre-docente e Titular. Atualmente, colabora como professor de pós-graduação no PROLAM da USP. Foi articulista do jornal O Estado de São Paulo. É colaborador da revista eletrônica Estado da Arte e criador e editor do Blog-Revista Horizontes Democráticos (www.horizontesdemocraticos.com.br).
Nesta conversa, a partir de seu arcabouço teórico e numa articulação lógica e ao mesmo tempo reflexiva, Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político. Ao longo de todo o texto há indicações de links para aprofundamento nos temas mencionados, discutindo a renovação na crença da democracia e defesa da mesma, retrocessos e sectarismos na atualidade, bem como as perspectivas para 2022, sem poupar críticas ao governo atual.
Folha de Franca – De que forma e por que se deu a sua escolha em estudar essa área? Quais são os pensadores que balizam o seu percurso?
Alberto Aggio – Desde minha mudança para São Paulo, em 1970, me interessei pela área de Humanas. Na escola média, o teatro e a escrita me interessaram muito. Com amigos fizemos ambas as coisas, mesmo depois de terminar a escola. A escrita ensaística de opinião foi o que mais me prendeu. Tornar-me professor foi uma questão profissional, de sobrevivência. Na minha formação e como professor universitário os autores que mais me influenciaram foram K. Marx, A. Gramsci, A. Tocqueville, E. Hobsbawm, G. Vacca, Luiz Werneck Vianna, dentre outros.
FF – Seus posicionamentos políticos se modificaram conforme seu percurso teórico e o próprio fluxo dos acontecimentos mundiais/nacionais? Em suma: como você se posicionava politicamente no início de sua carreira …
AA – Não noto grandes mudanças, não. Reconheço-me desde sempre como um partidário da democracia e da mudança social, por mais igualdade, mais progresso e desenvolvimento. Lutei contra a ditadura, na periferia de São Paulo, ajudando a organizar a população e estimulando a cultura e as artes; na universidade, defendia uma luta intransigente pela democracia, mas sempre com realismo. Fui crítico à esquerda que aderiu a luta armada. Revendo essa trajetória, creio que há mais continuidade do que mudanças súbitas e profundas. É claro que a vida profissional e a dedicação aos estudos, à teoria, geraram mais solidez e ampliaram meus conhecimentos. Politicamente, sempre me mantive na defesa, consolidação e aprofundamento da democracia.
FF -A mídia de países como EUA e Inglaterra declara abertamente sua posição político-partidária. Como você avalia isso sob a ótica brasileira?
AA – São histórias políticas diferentes, culturas políticas distintas. Nesses países o embate entre correntes político-ideológicas foi mais incisivo e direto. Havia jornais que cumpriam a função de partidos, que formaram o seu público por longos anos. No Brasil não foi assim. Manter um jornal em circulação custa muito e somente empresas de comunicação podem suportar esses custos e nem sempre conseguem. Mesmo assim, o jornalismo de opinião faz parte da nossa grande imprensa, mas é uma parte pequena dela. Com a internet tudo se alterou radicalmente. Com ela é possível uma comunicação mais abertamente partidária. Mas também há uma dispersão maior.
FF – Como e por que, na sua avaliação, em nível de mundo e de Brasil chegamos a tal polarização política?
AA – Creio que há fatores mundiais e domésticos que se combinam. O fim do comunismo abalou muito as convicções e, por outro lado, aqueles que acreditaram que a História havia chegado ao fim perceberam que sua crença se despedaçava com as crises que se sucederam desde o início do século XXI. A pós-verdade se instalou e junto com ela o relativismo integral. Da crítica ao padrão civilizatório ocidental se evoluiu para a destruição dele, para a defesa de um passado imaginário, de rejeição à globalização, aos direitos humanos etc. Isso gerou um retrocesso cultural e humano imenso. Não há como não resistir a tudo isso. Mas é uma resistência difusa e, muitas vezes, confusa. Às vezes, atua de maneira tão sectária que faz o jogo desses novos “destruidores”, como é o caso dos chamados “identitarismos” de raça, de gênero, etc. Do meu ponto de vista, há um polo de destruição em ação (equivocadamente chamado de populismo) e a principal vítima é a democracia. Os “novos bárbaros” querem o fim dela ou sua mitigação e advogam por uma “democracia iliberal”. Ora, o essencial da democracia não ela ser liberal, é ela ser pluralista e representativa, sustentada por valores e regras consensuais. Como renovar nossa crença na democracia e saber defendê-la me parece que se tornou o nosso maior desafio.
FF – Como você avalia a evolução-involução da política brasileira sob uma perspectiva histórica e cultural?
AA – A política brasileira sentiu o impacto dessas mudanças globais e emergiu entre nós, com muita força, a antipolítica, em suas diversas faces. O PT foi um ator da antipolítica, instalou no país a lógica do “nós contra eles”, foi hegemonista e majoritarista. Essa prática feriu de morte a democracia que estava sendo construída à base de consensos, como foi o conquistado pela Constituição de 1988. E então veio o bumerangue: a reação da ultradireita. Creio que a ruptura da frente democrática na primeira eleição pós-ditadura abriu espaço para essa involução. O país enfrentou vários desafios de lá para cá, venceu alguns, mas estruturalmente permaneceu muito desigual socialmente. E, fundamentalmente, a democracia da Carta de 1988 não está consolidada como cultura política na sociedade. Vide esse movimento da extrema-direita que conseguiu galvanizar massas e ganhar a presidência da República. Com Bolsonaro o grau de destruição e de ameaça à democracia tornou-se dramático. Não haverá possibilidade de retomar o “fio da meada”, como escreveu Luiz Werneck Vianna, sem que se ultrapasse o equívoco que a sociedade cometeu em 2018.
FF – De que forma, a seu ver, pode ser definido o atual cenário político brasileiro? Estamos às voltas com um autocrata que sonha uma teocracia?
AA – Somos governados por um personagem que se coloca fora do campo das forças políticas democráticas, mesmo as de direita. Bolsonaro é um parasita das estruturas do Estado Democrático de Direito, é um homem de facção, vive para seus apoiadores mais diretos, não se configura como o líder de uma Nação, não é um estadista. No início do seu governo, eu cheguei a imaginar que iríamos por esse caminho, de uma teocracia. Escrevi até um artigo em que comparava Bolsonaro com Girolamo Savonarola, um pregador ultracatólico que queria moralizar a Florença da época dos Medici (https://horizontesdemocraticos.com.br/do-fantasma-pinochet-ao-risco-savonarola/) . Chegou ao poder, mas durou pouco; mandou muita gente para a fogueira, mas depois foi lá que ele foi parar. Mas a vinculação de Bolsonaro com as igrejas me parece pragmática, instrumental e utilitária. E hoje, felizmente, ele não galvaniza mais o apoio de antes.
FF – Quais são seus prognósticos para 2022?
AA – Ao que tudo indica caminhamos para um regresso ao passado se a disputa eleitoral se concentrar entre Bolsonaro e Lula. Bolsonaro é em si mesmo o passado, o atraso; enquanto Lula expressa um retorno ilusório a um período que não volta mais (https://horizontesdemocraticos.com.br/quando-o-regresso-se-impoe/) . De qualquer forma, entendo que, para o bem do país, Bolsonaro tem que ser derrotado nas urnas. Penso que a eleição tem que assumir um caráter plebiscitário: deve ser um “não” a Bolsonaro (https://horizontesdemocraticos.com.br/uma-eleicao-plebiscitaria/) . Em segundo lugar, a sociedade deve refletir sobre como quer encontrar o tal “fio da meada”: salvar a democracia, retomar a luta pela equidade, pela sustentabilidade, retomar o crescimento e recuperar a nossa inserção internacional. E isso sem ilusões e sem demagogia, com olhos voltados para a retomada da economia global no pós-pandemia. O processo está em curso e não sabemos se os atores políticos e a própria sociedade estarão conscientes desse quadro e à altura dos seus desafios.
FF – Em artigo que você publicou recentemente sobre Antonio Gramsci, você o coloca como valor representação, numa basilar simbólica das esquerdas. Falo no plural porque, no seu texto você sugere uma pluralidade de esquerdas de vários matizes, inclusive aquela que deturpou o pensamento gramsciano. Por favor, resuma ao nosso público leitor a ideia central dessa discussão.
AA – Antonio Gramsci foi sempre um autor de referência, um clássico. Ele foi publicado no Brasil em diversas edições desde a década de 1960. É um autor póstumo. Morreu em função da prisão imposta por Mussolini. Sua recepção no Brasil tem uma história político-cultural que precisa ser conhecida e é isso que tentei fazer nesse artigo que você mencionou (https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/) . Ele influenciou a esquerda brasileira, especialmente no período de luta contra a ditadura. Ajudou a pensar que tipo de formação social era a nossa e como a democracia aqui é difícil, mas imprescindível. Há diversas correntes interpretativas sobre seus escritos. Algumas o tem como um revolucionário comunista, movimento ao qual, de fato, ele esteve vinculado. Outros, já o veem como um pensador que escapa ao comunismo e se vincula aos desafios da contemporaneidade, na qual a democracia é uma forma política que nos auxilia a vencer os traços oligárquicos e excludentes que ainda existem na sociedade atual.
FF – Quando você menciona, ainda nesse texto, uma “revolução passiva à brasileira” a que exatamente se refere?
AA – A expressão é de Luiz Werneck Vianna. Para esse autor, o Brasil nunca teve uma revolução, no sentido convencional do termo. O Brasil é um exemplo paradigmático da “revolução passiva”, um conceito presente nos seus Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci. Nele está a ideia de que a História moderna muda por meio de processos nos quais a conservação controla os ímpetos maiores de transformação da sociedade. E isso assume diversas formas e dinâmicas, conforme a época. Há momentos de negatividade, de autoritarismo; e momentos de positividade, de reformismo e mudança. A “revolução passiva à brasileira” alude ao longo processo que vai da nossa Independência até os dias atuais, embora tenhamos que fazer um reparo: com Bolsonaro nem mesmo esse processo não-revolucionário de andamento da História existe; o que existe é simplesmente destruição e regressão.
FF – O que você diz da trajetória histórica do PT (Partido dos Trabalhadores)? O que você tem a dizer acerca do antipetismo?
AA – O PT é parte da história da redemocratização do Brasil. Ele se forma pela combinação de militantes da luta sindical no ABC paulista, das CEB da Igreja católica mais os egressos da luta armada dos anos 60 e 70. Tudo isso se junta aos novos seres sociais que emergem com a modernização conservadora impulsionada pelo regime militar, o famoso “milagre econômico”. Forjou-se então um grande partido de massas, com uma grande liderança que é o Lula. O problema esteve nas suas convicções democráticas e no reconhecimento de que a política, em especial a política democrática, é diferente da luta sindical, da prática religiosa ou da militância radical dos guerrilheiros. E mais: a compreensão do Brasil necessitava mais do que a vontade de transforma-lo. E então veio a vitória de 2002 e o desafio de governar o país. A política cobrou seu preço. A saída foi desastrosa: Mensalão, Petrolão, etc…; o PT apostou na compra dos outros atores políticos para ter sustentação. Fez uma opção antidemocrática e antirrepublicana. Acabou desmoralizando a esquerda. O impeachment de Dilma é um desdobramento disso. Aí emergiu o monstro que já existia entre nós. Das manifestações de 2013 ao impeachment a ultradireita ganhou espaço e se firmou por meio do antipetismo que se desdobrou em antiesquerda, em antidemocracia. E aí estamos.
FF – As eleições de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil trouxeram a marca da manipulação algorítmica que as redes sociais propiciam. O documentário Privacidade Hackeada (Netflix) denuncia como a extrema direita de lá e de cá, assessorada por Steve Bannon, polarizou a opinião pública a partir de perfilamento psicológico dos usuários das redes e compartilhamento desses dados para manipulação das mentalidades. Podemos falar, nesse sentido, em estelionato eleitoral? O que você tem a dizer sobre isso?
AA – Tudo isso é verdade. Há uma clara influência dessas iniciativas manipuladoras no processo eleitoral de 2018, mimetizando o que ocorreu nos EUA. Mas não vejo aí um “estelionato eleitoral”. Creio que a situação brasileira guarda especificidades. Além de se sustentar no antipetismo, Bolsonaro manifestou uma série de ambiguidades: foi mais corporativo do que um liberal-reformista, como pregava no seu discurso eleitoral. Creio que aqueles que se dizem liberais podem dizer que foram enganados. Da mesma forma, aqueles que votaram em Bolsonaro para continuar a luta contra a corrupção. A ruptura com Sergio Moro e as denúncias de corrupção dos Bolsonaros e mais o que tem revelado a CPI da Covid mostram que o descrédito do presidente tem razão de ser.
FF – O movimento da História é mesmo pendular? A cadela do fascismo está sempre no cio, como vaticinou Bertolt Brecht?
AA – O fascismo é sempre um perigo e temos que estar atentos. No momento em que os democratas não conseguem sustentar a democracia, o fascismo pode emergir e vencer. A História é aberta em todos os sentidos. Não é repetível, nem como tragédia nem como farsa. Essa foi uma imagem usada por Marx para ilustrar uma situação específica. A História também não é “um carro alegre com um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como cantou Chico Buarque referindo-se à Cuba revolucionária. A História é simplesmente desafiadora. Em termos acadêmicos e sociais penso que a História não pode ser vista como reprodução do passado. Ela é uma reconstrução do passado e tem seus métodos reconhecidos.
FF – O que você diria sobre a mentalidade do brasileiro dentro da perspectiva da História das Mentalidades, no que tange à política?
AA – É difícil dizer que o brasileiro tem uma única mentalidade. O brasileiro é multifacetado. Reconhecemos que padece de algumas dificuldades do ponto de vista de valores coletivos. É a expressão de uma História difícil, com traços singulares de adaptação e atualização à dinâmica do mundo.
FF- Como você avalia as últimas manifestações como a de 02 de outubro?
AA – Acho que as manifestações de 02 de outubro ficaram aquém do esperado. Mas elas se generalizaram pelo país e houve participação. As oposições estão muito divididas, com projetos eleitorais particulares que dificultam uma mobilização unificada. A pandemia e o governo Bolsonaro machucaram muito a população. Mas a resistência da sociedade é visível e vai continuar. Acho que a dinâmica eleitoral vai se impondo com os diversos candidatos e a ideia de uma mobilização única contra Bolsonaro vai se diluindo. Fica claro que o impeachment não virá. O que não significa que a oposição a Bolsonaro irá arrefecer.
Fonte: Folha de Franca e Blog Horizontes Democráticos
https://folhadefranca.com.br/secoes/colunas/alberto-aggio-a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/
Cidadania age para firmar federação e candidatura à presidência
Em entrevista ao CB. Poder, Roberto Freire deu detalhes sobre os planos para solidificar a candidatura
Denise Rothenburg / Gabriela Chabalgoity / CB Poder / Correio Braziliense
O presidente do Cidadania, Roberto Freire, trabalha com dois projetos no horizonte. O primeiro, é consolidar a pré-candidatura do senador Alessandro Vieira (SE) à Presidência da República — embora admita que, faltando aproximadamente um ano para a corrida eleitoral, há tempo suficiente para se trabalhar várias alternativas no campo da chamada “terceira via”. O segundo é construir uma federação de partidos em torno da legenda, que busca partidos com os quais tenha afinidades — como Rede e PV — para viabilizar aquilo que pode ser o embrião de uma nova agremiação. A seguir, confirma os principais pontos da entrevista que Freire concedeu ao CB.Poder, uma parceria entre o Correio Braziliense e TV Brasília, que foi ao ar ontem.
O que fará o Cidadania diante de regras mais rígidas de sobrevivência para 2023?
A federação precisa ser entendida não como uma alternativa à coligação. Tem uma outra característica: ela é muito mais embrião de futuro partido do que mera coligação. Na coligação, acabou a eleição, cada um vai para o seu lado. Na federação, não — é um partido durante, pelo menos, a legislatura. Isso é processo de fortalecer partidos, até porque a pulverização nas casas legislativas é excessiva — isso dificulta governos, dificulta a própria atividade legislativa. Embora o Cidadania tenha superado a cláusula de desempenho de 2018, ela vai aumentar. Então, precisamos ter um certo cuidado.
Ou seja, a federação de partidos é feita durante a eleição e continua valendo durante toda aquela legislatura?
Sim. Não pode haver separação, então vai ter que ter muito mais convergência do que divergência. Você não aguenta quatro anos se não houver um movimento, uma sinergia, de integração. Não pode ser algo que vai aos trancos e barrancos porque você pode perder, inclusive, respeito diante da sociedade. Não é a cláusula de desempenho que tem que indicar qual é o meu caminho. Meu caminho tem que ser de construção de uma alternativa política. Por isso, o Cidadania só admite discutir federação com quem tem identidade com o Cidadania.
Sobre a discussão do Cidadania em relação à federação com a Rede e o Partido Verde, já tem alguma decisão nesse sentido?
Nós conversamos, um tempo atrás, sobre a possibilidade de uma fusão com a Rede, até mesmo antes da eleição, e com o PV. O PV não quis e nem conversou. Com a Rede, quase tivemos uma fusão, lá em 2018. Não me parece que a Rede tenha mudado de posição, acho que quer continuar tentando sobreviver como partido, independentemente de superar ou não a cláusula de barreira. Mas, o PV, que não quis a fusão, já olha com outro olhar. Como federação, imagina que pode ser uma alternativa.
O Cidadania já lançou uma pré-candidatura à Presidência da República, para 2022, o senador Alessandro Vieira (SE). Ele vai ser candidato mesmo ou é um nome que está ali para discutir mais à frente?
Desde o lançamento o compromisso do Cidadania é de trabalhar pela unidade. É chamada a alternativa do campo democrático e que a imprensa usa muito com o nome de “terceira via”. Ótimo se essa unidade estiver em torno do Alessandro. Mas se tiver outro nome que agregue mais, o Cidadania não será nenhum obstáculo em relação a isso. Não é apenas para derrotar Bolsonaro ou Lula.
É possível vencer a polarização?
Claro, estamos muito distantes da eleição. Há de se diminuir as surpresas porque parece que o recuo que (o presidente Jair) Bolsonaro teve que fazer acalmou aquela ânsia de agredir os Poderes da República. O cenário não está definido.
O PSDB dificilmente deixará de ter candidato à Presidência. Gilberto Kassab que afirmou que o PSD também terá. Ciro Gomes (PDT) falou que a candidatura está certa. Como fica a união do centro?
Mais de um ano antes das eleições há um movimento de partidos políticos discutindo uma candidatura única. Em nenhuma outra sucessão presidencial teve isso. O bloco democrático está tentando discutir um salto para o futuro. Essas duas forças políticas que se polarizam (Bolsonaro e Lula) são duas forças que não compreendem a nova realidade.
O país passa por uma crise grave na economia e o senhor vê alguma saída a curto prazo?
O Congresso atuou bem na pandemia, juntamente com governadores e prefeitos. Se não fosse por eles, teríamos vivido uma tragédia ainda maior do que essa que está aí. É importante salientar que, há algum tempo, nós do Cidadania defendemos o impeachment. Mesmo que (o vice-presidentre Hamilton) Mourão não seja nenhuma grande alternativa, para fazer a transição seria muito melhor do que a continuidade que está se anunciando com Bolsonaro.
* Estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/10/4953735-cidadania-age-para-firmar-federacao-e-candidatura-a-presidencia.html
'Cotas fizeram negros saírem das páginas policiais e virarem colunistas'
Tema agora interessa a grande parte da sociedade, incluindo empresários, afirma José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares
Matheus Moreira / Folha de S. Paulo
Em 2019, pela primeira vez os negros se tornaram a maioria dos estudantes nas universidades públicas brasileiras —um marco na luta contra a desigualdade racial.
Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a explicação para isso é a lei de 2012 que instituiu as cotas obrigatórias nas instituições públicas de ensino superior.
A regra estabelece que as universidades precisam reservar vagas para estudantes autodeclarados negros e indígenas e para pessoas com deficiência de acordo com a proporção desses grupos na população do estado onde está localizada.
A legislação prevê que, após uma década, os resultados da política deveriam ser avaliados pelo Ministério da Educação e pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. De acordo com Vicente, até agora não houve manifestação do governo federal sobre a divulgação dos resultados para avaliação da sociedade civil.
Faltando apenas três meses para 2022, ano limite para a revisão, a Faculdade Zumbi dos Palmares lançará a campanha “Cotas Sim!” na próxima terça (5) em evento no qual serão apresentados os projetos de lei que tramitam no Senado e na Câmara com o objetivo de pautar com urgência a discussão sobre a renovação do mecanismo.
Para Vicente, as chances de renovação são boas,”As cotas deixaram de ser algo de interesse dos negros e passaram interessar parte expressiva da sociedade brasileira”, disse em entrevista à Folha por telefone.
Onde a Lei de Cotas acertou? Acertou por ser uma política de governo com uma agenda, até então, inexpugnável. Foram 130 anos batendo na mesma tecla. As cotas são um grande acontecimento político, econômico e histórico.
Em segundo lugar, o ambiente do ensino superior não estava preparado para lidar com essa lei. As cotas mudaram a estrutura do ensino superior público, e depois privado, do país. Foi necessário que se adequassem e reestruturassem.
Além disso, graças às cotas ampliamos, em tempo recorde, de 2% para quase 15% a quantidade de negros nas universidades. Pela primeira vez na história estamos vendo esse grupo de brasileiros não só entrar mas permanecer e sair da universidade aplicando esse conhecimento. Sob todos os aspectos, as cotas são e continuam sendo uma grande vitória.
Na avaliação do senhor, quais foram as falhas dessa política? Em certa medida, as limitações da política são as mesmas antes e depois da lei. Os negros brasileiros precisam de mecanismos para se manter no curso, porque esse público vem de um padrão econômico e social diferente. Sem auxílio à moradia, auxílio à locomoção, acesso a livros e até alimentação, uma parcela dos estudantes não tem condições econômicas de permanecer na universidade.
A lei atendeu algumas necessidades, mas não padronizou o acesso a essas instrumentações. Esse é um dos problemas mais sérios, um equívoco não tratado na lei.
Outra ação que deve ser aprimorada é a formatação sobre quem é e quem não é negro. Houve certa confusão a princípio porque algumas instituições criaram mecanismos próprios. A lei, agora, talvez possa definir melhor essas ferramentas.
E quanto aos fraudadores de cotas? Essa é uma questão significativa que surgiu na esteira da ausência de padronização. Muitos usaram variados subterfúgios para fraudar a lei, criando um problema de difícil solução, porque não havia ação preventiva definida. Muitos entraram, fraudaram e nada lhes aconteceu. Isso colocou dúvidas sobre a lisura do processo.
A formulação da lei foi ingênua por não cogitar a possibilidade de fraude? A lei desconsidera essa hipótese. Achava-se que todos estariam bem intencionados e que não seria necessário haver padronização sobre como proceder em situações dessa natureza.
De qualquer forma, os dez anos da lei nos permitiram criar parâmetros muito bem definidos para esse tipo de avaliação. Se renovada, a lei pode se inspirar nas boas práticas instituídas pelas universidades que expulsaram os alunos fraudadores e tiveram a expulsão confirmada pela Justiça.
A própria USP expulsou um aluno fraudador pela primeira vez em 2020… Exatamente! As instituições foram capazes de fazer valer a lei. O caso da USP é muito simbólico.
Sobre as bancas de heteroidentificação, quais os erros e os acertos? As bancas se saíram bem até aqui, considerando que o nosso racismo não é apenas de ancestralidade, mas de cor de pele. Foi necessário criar um mecanismo para evitar fraudes e os primeiros apresentaram equívocos e situações inadequadas, mas os dez anos da lei nos ajudaram a operar essa ferramenta com mais efetividade.
O problema continua sendo crucial e ainda é difícil de solucionar, tem havido poucas reclamações diante dos resultados das bancas. Esse instrumento se aprimorou e mostrou ser capaz de resolver as questões que se apresentam, mas sempre há necessidade de aprimoramento.
É possível dizer que o aumento de negros nas universidades reflete positivamente na economia? Não tenho dúvida disso. Os fundamentos econômicos sempre condicionaram a capacidade do desenvolvimento do país ao talento, inventividade e habilidade dos seus recursos humanos, e isso é o que temos de sobra em todos os espaços nos quais negros puderam atuar de forma autônoma e libertária.
Deixar os negros e todo seu talento de fora da universidade é uma medida desinteligente, além de cercear a produção, crescimento e desenvolvimento do país.
O Brasil preferiu fechar os olhos e tratar apenas de uma elitezinha muito limitada e que nem sempre entregou aquilo que poderia entregar. No fim das contas, poucos usaram suas habilidades ali adquiridas para ajudar a resolver os problemas do país.
O que vão sugerir na campanha pela renovação da Lei de Cotas? A primeira reivindicação é de que seja renovada. A aplicação da lei precisa ser avaliada para que saibamos quais são os seus problemas e limitações. O fato é que essa ação está a cargo do governo federal.
A lei diz que o governo deveria fazer a avaliação, mas isso não foi feito e dificilmente o Ministério da Educação terá tempo hábil para fazer. Só será possível fazer uma avaliação quando tivermos acesso ao inventário com os resultados dos dez anos da lei, mas o governo ainda não o disponibilizou.
Sabemos que há cursos em que as cotas não foram cumpridas integralmente, como medicina, mas não sabemos o motivo. Por outro lado, nas áreas de humanas as cotas foram muito bem precisamos compreender por que isso aconteceu, se é preferência, vocação ou por ser mais palatável.
Também precisamos saber quantos estudantes entraram nas universidades por cotas e permaneceram. E se não permaneceram, por quê? Foi racismo? Dificuldades econômicas?
E a diversidade precisa ser vertical, da gestão ao corpo técnico. Isso aconteceu? Não. Avançamos apenas no ingresso de estudantes negros. Nas quase 200 universidades publicas federais temos apenas quatro reitores negros. Professores e pesquisadores negros podem ser contados nos dedos.
Avalia que será mais difícil discutir a Lei de Cotas no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) do que foi no primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT)? Por incrível que pareça, acho que será mais fácil. Em 2012, nós caminhávamos em direção ao desconhecido, e isso nos dava medo. Temia-se que houvesse um conflito e até que as pessoas pegassem em armas. Havia todo tipo de teoria. Vencer tudo isso exigiu um esforço sobre-humano.
No entanto, se houve motivos para desânimo, isso ficou lá atrás, porque hoje, dez anos depois, desmistificamos os medos e confirmamos o que se dizia: a universidade é, por natureza, o espaço de sanar conflitos.
Não houve queda na qualidade. Os cotistas, agora com oportunidades, superaram seus colegas brancos. Os negros entraram, mantiveram o nível e o elevaram. Tudo isso permitiu que pudéssemos ampliar e levar as cotas para juízes, promotores, na Petrobras e até em cartórios, por exemplo. O Brasil avançou ao abraçar as cotas como uma política vitoriosa.
E quanto às empresas, como a Magazine Luiza, que também adotaram cotas? Vimos um outro movimento que referencia as cotas nascer. Veja, vamos lançar a campanha pela renovação na terça (5), e 40 empresas estão entre os apoiadores da renovação. As empresas em sua maioria nem aceitam que exista racismo, mas as mudanças foram tão profundas que hoje há brancos conosco. Pense que estamos falando da segunda turma de trainees da Magazine Luiza. Há uma semana tínhamos a informação de que a Folha pela primeira vez terá negros em seu conselho editorial. Ao ler a Folha de dois anos atrás e a Folha de agora, você verá pelo menos dez colunistas negros em todos os cadernos e tratando as questões negras.
Os negros saíram das páginas policiais e viraram colunistas, sobretudo na Folha. Tudo isso é fruto desse amadurecimento da lei. Essa política pública ajuda a cumprir os fundamentos da própria República, da democracia e do Estado democrático de Direito, que é de igualizar por meio da oportunidade os direitos de negros e brancos num país rachado pelo racismo estrutural.
As cotas deixaram de ser algo de interesse dos negros e passaram a ser de interesse de parte expressiva da sociedade brasileira, incluindo o próprio ambiente empresarial.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/10/cotas-fizeram-negros-sairem-das-paginas-policiais-e-viraram-colunistas-diz-reitor-da-zumbi-dos-palmares.shtml