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O Globo: Sem política de inclusão, elite das Forças Armadas não tem diversidade
Thiago Herdy, O Globo
SÃO PAULO — O topo da carreira nas Forças Armadas reproduz a desigualdade existente em outras instâncias de comando de instituições públicas e empresas privadas no país. Documentos de Marinha e Aeronáutica, obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação, mostram que apenas três integrantes da elite — todos da Força Aérea — se declaram pretos, em um universo de 228 militares do alto escalão. Os retratos, colocados lado a lado aos dos 172 colegas do Exército — que não dispõe dos dados, o que dificulta inclusive a mudança do quadro, segundo especialistas —, evidenciam a falta de diversidade.
Infográfico: Veja o retrato da desigualdade nas Forças Armadas
A representação de pretos na elite militar é apenas um quinto daquela encontrada na sociedade brasileira como um todo. Entre os oficiais-generais da ativa (nomenclatura que contempla o topo das três Forças), apenas 1,75% são pretos, número que vai a 9,4% na população geral. Como as informações dos dados oficiais nem sempre seguem o padrão de cor definido pelo IBGE — na Marinha, por exemplo, há a possibilidade de se autodefinir como “moreno” —, O GLOBO acrescentou à lista a observação das fotografias de todos os oficiais-generais. A identificação visual incorporou outros quatro oficiais pretos aos três autodeclarados, totalizando sete num universo de 400. Nenhum deles ostenta quatro estrelas, o grau máximo que um oficial da elite pode atingir.
Estudo sobre representatividade racial nos espaços decisórios da Aeronáutica, publicado no ano passado pela Escola Nacional de Administração Pública, apontou a ocorrência de “um importante quadro de desigualdade racial” na “distribuição de espaços de poder” da Força Aérea. O trabalho menciona, no entanto, que não se trata de uma particularidade, mas o “retrato fiel do quadro de exclusão social presente no Brasil”.
Em países com debate público sobre igualdade racial nas Forças Armadas, como os Estados Unidos, oficiais de cor preta representam 9% dos comandantes da instituição, percentual mais próximo à representação de pretos na população norte-americana — 13%, segundo o último Censo.
Diretor-executivo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), o advogado Daniel Silveira ressaltou que a própria ausência de dados sobre militares em postos de comando reduz a capacidade de modificação do cenário:
— A negação de discussão se equivale à negação da construção de um país mais inclusivo. Considerando que as Forças Armadas também são instituição pública e empregadora, você não pode simplesmente excluir dos espaços mais empoderados a população negra. Ela também quer se ver refletida neste espaço de decisão.
Silveira diz ser importante reconhecer que os pontos de partida para acesso a oportunidades não apenas no Exército, Marinha e Aeronáutica, mas em toda sociedade, são diferentes para cada grupo.
— O próprio STF já afirmou que uma meritocracia que não considera os diferentes pontos de partida equivale a uma espécie de aristocracia velada.
Oportunidades e herança
Com a experiência de quem discute a desigualdade entre pretos e brancos no mundo corporativo, o sociólogo Mário Rogério, do Ceert, avalia que, conforme uma pessoa preta avança na hierarquia, mais discriminação sofre.
— Ocupar este lugar (de comando) não foi algo pensado para o negro. Atuar como soldado raso, fazer comida, cuidar da limpeza, este foi o lugar pensado para ele — aponta Rogério, acrescentando que é “difícil ter voz de defesa” quando se está isolado.
A progressão na carreira militar ocorre por critérios diversos, como concurso público, antiguidade, experiência medida por pontuação e escolha direta de superiores hierárquicos. Desde 2014, a lei prevê cota de 20% das vagas para pretos e pardos em concursos para a administração pública federal. No entanto, as Forças Armadas resistiram à previsão de vagas até 2018, quando foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal. A medida tem efeito inclusive sobre o acesso a concursos dentro das corporações.
— As cotas raciais foram um incentivo, mas quando isso vai se equilibrar? É daqui a dez, 15 anos. É uma herança do passado, da falta de oportunidade — sugere o contra-almirante negro Sérgio Gago Guida, que está na reserva.
Embora diga nunca ter se sentido vítima de preconceito ao longo da careira militar, ele avalia que a “falta de oportunidade” e a má qualidade da educação em regiões periféricas contribuem para a baixa diversidade. No Exército, o general-de-brigada André Luiz Aguiar Ribeiro é o único de cor preta entre os 172 da elite. Procurado, ele afirmou que só poderia tratar do tema com autorização do Exército, o que não ocorreu.
O Ministério da Defesa afirmou que “não há qualquer seleção pautada na cor ou raça de uma pessoa” e que todos os processos seletivos levam em conta “meritocracia, isonomia e impessoalidade”. A nota acrescenta que a todos são oferecidas as “mesmas condições de acesso à qualificação técnico-profissional necessária para atender aos requisitos para a promoção”. Procurados, os comandos de Aeronáutica, Marinha e Exército não quiseram comentar.
Fonte:
O Globo
Bolívar Lamounier: O primeiro gol tem de vir antes do segundo
Indiferente ao destino coletivo, nossa elite deleita-se com as tetas volumosas do Estado
O título deste artigo é um lugar-comum a que os locutores esportivos recorrem quando lhes ocorre apontar que um dos times contendores está se deixando levar pelo açodamento. Correria não adianta, tem de ser um gol de cada vez.
Tal advertência é igualmente importante, mas nem sempre observada, na política. Exceção à regra, o economista Alexandre Schwartsman tem insistido nela em suas palestras e seus artigos. O Brasil - diz ele - defronta-se com duas agendas, uma urgente e uma importante. Urgente é o conjunto de desafios que o governo Bolsonaro terá de vencer, de um jeito ou de outro, desde logo o ajuste fiscal (que inclui a reforma da Previdência). É o primeiro gol, sem o qual não haverá o segundo.
Se o primeiro ficar para o quatriênio seguinte, estaremos no mato sem cachorro, e assim sucessivamente, num mato cada vez pior, até que um dia nem teremos como pensar na agenda “importante”. Esta, diz Schwartsman, são os megaproblemas que nos esperam no médio prazo - 15 ou 20 anos, digamos; um mar de terrores que poderá até pôr em risco nossa existência como entidade nacional autônoma. Não precisamos esforçar-nos muito para trazer alguns exemplos à mente. Nosso descalabro educacional (o ministro Vélez Rodríguez está nos devendo um pronunciamento mais substancioso a esse respeito), meio ambiente e saneamento (que o ministro Ricardo Salles tem tratado com propriedade, mas por enquanto não lhe ocorreu que o saneamento é um problema gravíssimo até nos bairros ditos “nobres” da maior cidade da América do Sul). Desenvolvimento da média e pequena empresas - ou alguém acha que ficando na rabeira da China conseguiremos resolver nossos problemas de desemprego e criar uma classe média robusta? Nesse particular, alvíssaras, Joaquim Levy, presidente do BNDES, começou a solfejar a música que queríamos ouvir.
O problema é que temos pela frente dois formidáveis empecilhos, que afetam tanto a agenda urgente como a importante.
O primeiro é uma decorrência direta da radicalização política dos últimos anos e, em particular, do clima de “prende, mata e esfola” que emprestou seu sinistro colorido à campanha presidencial. As sequelas ainda estão aí, à vista de todos. Tenderão a se diluir, claro, a não ser que sejamos mesmo um país de lunáticos. E a consequência, enquanto não se diluem, é que a capacidade do atual governo de mobilizar a opinião, dramatizando a urgência da agenda urgente, permanece num patamar modesto.
Não estou propondo fazer o segundo gol antes do primeiro. Estou é dizendo que, forçado a superar rapidamente os entraves que já estão aí, bem configurados, o governo enfrentará dificuldades tanto maiores quanto menor for sua capacidade de convencimento. Com o passar do tempo, percebendo que ele não é a fera que todos imaginavam, o Congresso o encostará na parede. Mostrará a planilha que o nosso “presidencialismo de coalizão” sempre soube elaborar com extremo esmero. Pior ainda, o corporativismo - aquela miríade de grupos de interesse que só se dispõe a conversar com uma faca nos dentes - reativará seus acampamentos em Brasília.
E aqui chegamos ao segundo problema. Por enquanto, o governo vem pecando por uma baixa capacidade de convencimento. Mas o pior é que os grupos sociais situados entre os 15% ou 20% de mais alta renda e escolaridade raramente refletem sobre as questões apontadas. Sabem que elas existem, mas não contribuem para a governabilidade, ou seja, para a mobilização da opinião, para um adequado balizamento das forças políticas, em busca da indispensável convergência. Não se impressionam quando alguém lhes diz que o nosso médio prazo pode se transformar num circo de horrores; dão de ombros, simplesmente. Individualmente, cada um retruca: “Tal hipótese pode até se concretizar, mas não me atingirá, os outros que se cuidem”. Ou seja, nossa elite cultiva um individualismo tosco, inconcebível para uma pessoa que tenha tentado se informar sobre o que aconteceu em outros países, em diferentes momentos da História.
De onde provém esse individualismo ingênuo? Ora, por quem sois, do fato de Deus ser brasileiro. Sim, essa deve ser uma parte da história. Da circunstância de não convivermos continuamente com temperaturas extremas, vulcões, tsunamis, etc. Mais importante, porém, é termos conseguido consolidar rapidamente nossa unidade territorial, ao contrário, por exemplo, da Alemanha e da Itália, que só conseguiram estabelecê-la meio século depois de nós. Do fato, também, de que para consolidá-la e formar um mercado nacional não tivemos de encarar uma das guerras proporcionalmente mais sangrentas da História, como a guerra civil norte-americana de 1861-1865.
O fato é que nossa elite, além de indiferente ao destino coletivo de nosso país, e profundamente ignorante a respeito dos retrocessos e tragédias vividos por nosso país, aninhou-se gostosamente nas dobras do Estado, deleitando-se com suas volumosas tetas.
Sim, lá atrás, Deus nos deu uma mãozinha. Mas nossa elite precisa lembrar que os Estados Unidos, por exemplo, não obstante a já referida guerra civil, fizeram a partir de 1860 uma das mais espetaculares revoluções educacionais de que temos notícia, por meio dos land-grant colleges (universidades voltadas para o desenvolvimento tecnológico, construídas pelos Estados em terras doadas pela União). Que o Japão, graças à restauração da dinastia Meiji, fez em 20 anos reformas muito mais drásticas do que essas que temos estado a discutir há não sei quantos anos. E que a Alemanha, hors-concours quanto à corrupção na administração pública durante o século 18, transformou-se durante o século 19 no modelo de profissionalismo cantado em prosa e verso pelo nunca assaz louvado Max Weber, o maior dos sociólogos.
* Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências