elisa lucinda
Elisa Lucinda: Enchi!
Fui de novo no Jongo da Serrinha em Madureira, no Rio de Janeiro. Coisa ancestral e forte que acontece em forma de festa e samba de raiz sempre no último domingo do mês.Um bálsamo pro meu coração. A narrativa contida nas letras do que se canta ali traz um existencialismo interessante, romântico, coletivista, democrático preto e pouco ouvido por não negros nesta sociedade separatista. Faz falta a todos o que deixamos de saber da cultura negra. Nos empobrece a subjetividade. Voltei de lá nutrida de minha gente e, nesta hora em que meu coração é só tambor, escrevo.
Quem mora na Zona Sul como eu tem clareza da territorialidade que aponta e demarca a triste potência do nosso racismo e o seu mapa étnico de exclusão não deixa dúvidas: a zona em que habito é lugar de branco e de ricos ,enquanto a priori, na zona norte e nas favelas , vivem os pretos e pobres. Isso é apartheid, é isso? O que pensamos disto? Caralho! estou estupefata, que porra é essa? Socorro! Sou uma intelectual e quer sair de minha boca impropérios do fundo dos infernos. Palavrões em fila, querem saber que merda é essa. Onde estão os católicos, os evangélicos, os religiosos numa hora dessa? Os que gritam Om da Yoga, os que vão para índia, meditam em práticas orientais, onde estão os espiritualistas de plantão que não percebem que são mensageiros desse racismo do qual falo? É chocante que se vá à igreja, se comungue, que se realizem rituais judaicos e coisa e tal sem que essa fé sequer se lembre do racismo sistemático que essas famílias praticam há séculos. Como se crêssem que qualquer pecado, do racismo, do preconceito, da exclusão de qualquer ordem, que tais pecados são solventes em caridades, em dízimos, em hóstias. Ledo engano. Aliás, tenho informações certeiras de que o inferno é implacável com racistas. Soube por fonte segura que queimam no fogo da eternidade punitiva e acabam todos pretos.
Quero dizer que enchi o saco. Quero dizer que não sei falar de democracia sem falar do racismo. Que não admito mais grupos homogêneos só de héteros ou só de brancos... enfim. Não dá mais, estou escrevendo e apelando aos bons. Luther King nos advertiu do estrago que faz o silêncio dos bons. Se até nós pretos recebemos educação racista, o que será que não disseram aos brancos? Por favor, vasculhem a história. Lembre-se do nariz torcido dos seus pais quando você levou o amigo preto em casa ou aquele possível namorado ou namorada. Procurem nas últimas gerações e ramificações atuais da família se há algum negro inserido, transfigurado em cunhado, ou sobrinho.
É grave. Escolas ricas não tem preto, podemos afirmar. E cuidado, para agora, durante essa leitura, você não se lembrar daquele único coleguinha negro da turma do seu filho. Porque ,se só tem um ,é exatamente quando a exceção confirma a regra. Sinceramente, o príncipe ou a princesa que você sonha pro seu filho ou sua filha, são negros? Há algum lugar para essa imagem no campo simbólico brasileiro? É permitido sonhar no desejo com um preto ou uma preta? Fora o escondido, o proibido? A objetificação do corpo mais barato do mercado continua em ação. Estamos todos com a mão suja desse sangue, minha gente! Não acredito em democracia feita por racistas. Não me venha com argumentos de Sorbone, justificando seu nariz em pé, seu francês fluente, seu analfabetismo do mundo africano, mesmo sendo o povo constituinte dessa nação. É muita viagem pra Miami, meu Deus de céu! E não é só Portugal que fala português não, são sete países! Quantos que você conhece?
Enchi! O pote esburrou. Se você quer um mundo melhor e a favor duma vida mais justa para o povo brasileiro, não dá mais para entrar no restaurante onde só tem brancos e não reparar nisso. É preciso constranger os clubes que têm uma plaquinha num banheiro reservado escrito Babás; é preciso ficar constrangido por estar numa festinha de criança portando uma escrava vestida de uniforme branco para cuidar do amiguinho do aniversariante enquanto a mãe toma champangne com os outros adultos. A escravidão acabou, alô alô. É feio. Tem criança no evento. O que estamos ensinando à ela com essa cena? E por que a própria mãe ou o pai, ou os dois não levam só eles sua criança à festinha, sem a babá? Quero abrir os olhos dos meus amigos, seguidores, leitores, meu queridíssimo público enfim.
Uma das grandes “maestrias” da cultura da discriminação racial é justificar seus atos cruéis com algum argumento que os libere de culpa. Centrados no eurocentrismo, confiou-se no conteúdo teórico que apregoava que os negros eram uma sub-raça, como se não fôssemos humanos direito. Fôssemos quase.Tal fundamento fuleiríssimo foi ministrado com pitadas científicas, de modo que não se duvidou. Como resultado, alguns negros acreditaram realmente que eram inferiores, e os brancos, em sua maioria avassaladora até hoje se entendem como superiores. O resultado é essa senzala espalhada pelas calçadas, na fila dos hospitais públicos, nas filas do desemprego, nas cadeias. O retrato de um país dividido assumidamente entre área nobre e área da ralé sem vergonha de dos anúncios que estampam: Seu ap na área nobre da cidade! (ó, tristeza).
Estou procurando casa estarrecida com a expressão “3 quartos e dependências .Por que não são 4 quartos? Uma arquiteta amiga me explicou: “Quarto tem que ter 3 metros e a dependência, recebemos essas orientação pela faculdade, é de 1x80 a 2 metros e não precisa ter janela.” ( que loucura , uma senzalinha em casa).Reparando mais, percebi em geral que o chuveiro do banheiro de empregada, é posto levemente em cima do vaso e jamais tem box. Quem ali se banhar, sabe que vai ter que enxugar o chão e a privada, todos os dias. São os requintes da crueldade escravagista cujas famílias exibem em suas salas de jantar altas esculturas e pinturas da última ceia de Cristo (ó, tristeza).
Ontem, me vi banhada em lágrimas no meio do samba na Rua Compositor Silas de Oliveira. (Quem não conhece procure saber a obra desse compositor). Me senti em casa, no meio da romântica Madureira: cada um com sua moda, gente gorda, magra, homem, mulher, gays, sapatas, travestis, trans, cabe todo mundo, água no feijão que chegou mais um. Tudo que se cantava, Luis Carlos da Vila, Nei Lopes, Beto sem braço, Almir Guineto, Dona Ivone Lara, tudo era voz de uma gente que não é ouvida, gente silenciada. Mas não ali, ali é resistência, ali está garantido o grito, a maioria negra, e ninguém torce nariz pra branco não. Fiquei pensando, se ali, no meio do samba, estivesse uma moça loirinha, de olhos azuis, com uniforme de babá e um nenezinho preto no colo, o que pensaríamos? Teríamos pena da pobre babá? Oferecíamos à ela o nosso olhar de piedade ao moldes do que sentimos com a gata borralheira? Eu pergunto, se nos sinais de trânsito do Brasil houvesse uma criancinha loirinha pedindo esmola, não comoveria mais?
Enchi! Quero que arranquemos a venda que não deixa que enxerguemos a realidade cruel em que nos metemos trazendo até aqui a escravidão. Agora não passarão. Hoje Lucélia Santos não poderia ser escalada para viver a Escrava Isaura. Não passaria. Hoje estamos de olho e novela que se passava Bahia deixando o negro fora da trama principal causa estranheza antes da estreia. Não foi assim com Tieta e outras adaptações de Jorge Amado. Hoje um apresentador de TV tem que pensar três vezes antes de se revelar racista, sob risco de perder o emprego; Hoje, cada vez mais mulheres negras estão falando em literatura e na música sobre sua vida, sua história, sua sexualidade, suas peculiaridades e não só outras vozes falam por nós; por conta das políticas de inclusão dos recentes governos que antecederam ao golpe, há uma leva de intelectuais negros produzindo pensamentos, narrativas, e a sociedade tem que se preparar para tanto.
Faz parte dessa preparação uma convocação aos humanistas de plantão, em especial os brancos gente boa. Angela Davis é explícita no tema:” não basta não ser racista ,é preciso ser anti-racista!”
Chega. Encheu! Enchemos! Os tapetes chiques da casa grande se confirmam insuficientes para guardar tantos séculos de sujeira, escrotidão e homicídios.
Recentemente, ( pasmem vcs), na porta de uma academia , uma senhora cujo marido é grande empresário, me abordou. Nos conhecíamos superficialmente:
- Elisa, você é lá do Espírito Santo, né? Você ainda tem contato?
⁃ Claro, minha família é de lá. Vou sempre...
- Ah, você não traz uma menina de lá pra mim não?
- Você quer uma menina, como assim?
- Uns doze, treze anos...
- Ai, que bacana, criança grande... Que bom. Você quer adotar, né?
- Nãao, não é isso. Eu quero uma pessoa assim quase mocinha...sabe? É que a minha filha me arrumou uma neta!!! O casamento deu xabu, já viu,né? Estão lá em casa. E eu preciso de uma menina para me ajudar a cuidar da minha neta, porque a mãe dela trabalha, e eu daria comida, casa, tudo direitinho, quartinho pra ela, né? Até estudava...
- Ah, você quer para trabalhar?
- É por isso que eu quero de longe. Porque aí ela vem morar,né? Que aí, se eu precisar sair tem alguém para ficar com a criança...
-Eu acho que isso não pode mais não.
- O que??!
- É lei. A OIT pode ir atrás de você. Você pode ser acusada de tráfico de pessoas. Eu não vou entrar nessa não. Sou contra ,sabe?
E ainda será considerado, de acordo com estatuto da criança e do adolescente, como trabalho infantil.
- Meu deus, Elisa, onde é que a gente vai parar? Corre para um lado é a lei das domésticas, do outro é negócio de trabalho infantil, assim não dá não. Onde é que isso vai parar?
- Na igualdade, minha senhora, vai parar na igualdade.
Enchi.
(Elisa Lucinda, Outono da matamoforse, 2O18)