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Elio Gaspari: O MP entrou na defesa dos maganos

O Supremo abriu a brecha, e a história do fim do foro arrisca se transformar em conversa para boi dormir

O Ministério Público precisa se olhar no espelho. No Supremo Tribunal Federal ele defendeu o fim do foro especial para deputados e senadores. Essa decisão pontual foi festejada como uma conquista genérica. Engano. Menos de um mês depois, no Superior Tribunal de Justiça, o MP sustenta exatamente o contrário, defendendo a manutenção do foro na parte que lhe cabe do latifúndio.

Com o apoio da Procuradoria-Geral da República, deputados e senadores que cometam crimes fora do período de seus mandatos serão julgados na primeira instância. No STJ, contudo, o Ministério Público pediu que se preserve o foro especial para governadores, desembargadores, conselheiros do Tribunal de Contas e procuradores que atuam junto à corte. Em poucas palavras, diante da brecha aberta pelo Supremo, o "Tribunal da Cidadania" defende a jurisprudência do "quem manda aqui sou eu". Aceita, ela haverá de se propagar pelos estados.

O pedido do MP foi endossado pelo ministro Mauro Campbell e estava sendo julgado pela corte especial do STJ, composta pelos 15 ministros mais antigos. Como o ministro Luis Felipe Salomão pediu vistas, o caso será apreciado em junho. (Salomão remeteu à primeira instância um processo em que é réu o governador da Paraíba.)

Num exemplo hipotético, que poderá ocorrer em alguns estados:

Se um senador e um vereador (ou procurador) forem casados com duas irmãs e ambos matarem as mulheres, o senador será julgado na primeira instância e o vereador (ou o procurador) irá para o Tribunal de Justiça do seu estado. O senador não tem foro especial, mas os outros dois têm.

Expandida, a festa preservará o foro de todos os desembargadores, juízes de tribunais federais regionais, conselheiros de contas estaduais e municipais. E mais, bingo: dos membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais.

O foro especial favorece 58 mil maganos com funções em 40 tipos de cargos. A decisão do Supremo Tribunal, restrita a parlamentares, alcança algo como mil pessoas, levando-se em conta que há casos de cidadãos cujo mandato acabou. Na ponta do lápis, o Supremo livrou-se de mais de 60 processos.

A corte especial do STJ deverá decidir a questão no dia 6 de junho. Aberta a brecha, ficará a lição do "poetinha" Vinicius de Moraes:

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do Carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira.

O INDULTO DE LULA ESTÁ NO FORNO
Ciro Gomes tem toda a razão quando diz que não se pode oferecer um indulto a Lula enquanto ele tiver recursos tramitando na Justiça. Seria o mesmo que considerá-lo culpado.

Isso não elimina o fato de que se Ciro vier a ser eleito presidente da República poderá indultar Lula no primeiro dia de governo. (O ministro Luís Roberto Barroso parece ter farejado essa carta ao restringir o indulto de fim de ano de Temer.)

Em princípio, há um famoso precedente histórico. Em 1974, um mês depois de ter assumido a Presidência dos Estados Unidos, Gerald Ford perdoou Richard Nixon, arrastado pelo caso Watergate.

Mas nem tudo é o que parece. Ford perdoou Nixon argumentando que seu julgamento demoraria pelo menos um ano, dividindo o país. Segundo Ford, ele já havia sido obrigado ao inédito constrangimento de deixar a Presidência dos Estados Unidos.

Lula não renunciou e já foi condenado em duas instâncias judiciais.


Elio Gaspari: Os dois PMs de SP merecem festa

Em qualquer lugar do mundo, quem puxa a arma para assaltar precisa saber que arrisca a própria vida

A primeira cena deu-se em Suzano, no interior de São Paulo: Katia Sastre levou a filha de 7 anos para uma festa da escola, estava na calçada, junto com outras mães e crianças, quando um assaltante começou a revistar o segurança. Katia é cabo da Polícia Militar. Num átimo, tirou sua pistola da bolsa e deu-lhe três tiros, quase à queima roupa. Matou-o.

No dia seguinte, no Guarujá, numa farmácia, um assaltante armado com um revólver perseguiu durante 16 segundos um cidadão que estava na loja. Era um PM em dia de folga. Com um tiro, matou o bandido.

Os vídeos dos dois episódios estão na rede e não deixam dúvida. Não se está numa daquelas parolagens em que a polícia fala em confrontos que em São Paulo giram em torno de 20 por mês. No Rio, são cinco por dia. (Um terceiro caso de PM sem farda matando assaltante, ocorrido também em São Paulo, infelizmente não tem vídeo.)

O governador Márcio França fez uma justa homenagem a Katia Sastre mas, tendo gostado do espetáculo, deu-se a um momento de comédia:

“As pessoas têm que entender que a farda deles [PM] é sagrada, é a extensão da bandeira do Estado de São Paulo. Se você ofender a farda, ofender a integralidade do policial, você está correndo risco de vida. É assim que tem que ser.”

Quer dizer que se uma pessoa ofender um PM, caso de desacato previsto no Código Penal, “está correndo risco de vida”.

Deixando-se de lado a irresponsabilidade de França, o comportamento da PM de Suzano e de seu colega do Guarujá foi adequado. Casos clássicos de legítima defesa não podem ser vistos como estímulo à letalidade.

A segurança pública será um dos grandes temas da eleição de outubro. Os 18% de Jair Bolsonaro na pesquisa da CNT/MDA, bem como o surto do governador paulista, comprovam essa relevância.

O professor Mário Henrique Simonsen ensinava que o problema mais difícil do mundo, caso seja bem formulado, um dia poderá ser resolvido. Já os problemas mal formulados, ainda que fáceis, são todos insolúveis. Discutir a letalidade das forças da segurança pública junto com a atitude dos dois PMs dos vídeos é uma forma de embaralhar a questão, tornando-a insolúvel.

Pior: trata-se de aproveitar os holofotes para pontificar sobre o inexistente, em nome do politicamente correto. Casos existentes, politicamente inconvenientes, ficam na penumbra.

Na noite de 11 de novembro de 2017, sete pessoas foram mortas no Complexo do Salgueiro, no Rio. Moradores viram pessoas vestidas de preto, mascaradas, e com capacetes. Blindados do Exército passaram pela cena e uma mulher que socorreu um ferido diz que encontrou soldados na cena. O inquérito está na jurisdição do Ministério Público Militar. Foram ouvidos soldados, sargentos e oficiais, mas não foram tomados depoimentos de testemunhas civis. Outra investigação, da polícia do Rio, ouviu civis, mas não entrevistou militares. Passaram-se seis meses e não se sabe o que aconteceu no Salgueiro naquela noite. Nadinha.

O escritório brasileiro da Human Rights Watch vem chamando a atenção para esse episódio, sem muito sucesso. A Human Rights Watch é uma organização internacional e em 1997 compartilhou o Prêmio Nobel da Paz. Sua sede fica em Nova York.


Elio Gaspari: A CIA achou que Geisel dominaria a ‘tigrada’

A História do Brasil continua a ser escrita pelos americanos. O documento da CIA que revelou o encontro do presidente Ernesto Geisel com três generais para discutir critérios para os assassinatos de dissidentes políticos avacalha os 40 anos de política de silêncio que os comandantes militares cultivam em relação às práticas da “tigrada” dirigida pelo Centro de Informações do Exército, o CIE.

O documento, mandado pelo diretor da CIA ao secretário de Estado Henry Kissinger, revelou que, duas semanas depois de sua posse, Geisel fez uma reunião com o chefe da Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, e com os generais Milton Tavares de Souza, comandante do CIE e seu sucessor, Confúcio Avelino. Tavares de Souza, o “Miltinho”, era um asceta, radical, porém disciplinado. Confúcio, um medíocre.

Na reunião, “Miltinho” revelou que já haviam sido executadas 104 pessoas. Segundo a narrativa da CIA, a matança ficaria restrita aos “subversivos perigosos”, e cada proposta de execução deveria ser levada ao general Figueiredo, para que ele a referendasse. Esse projeto de controle do Planalto sobre o CIE ficou na teoria, ou na imaginação da CIA.

No dia 11 de abril, quando o telegrama foi transmitido a Washington, circulava no Planalto um documento desconhecido, do qual sabese apenas a reação do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel: “Estamos sofrendo uma ditadura dos órgãos de segurança. (...) toda vez que a cousa começa a acalmar, o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para permanecer, para mostrar serviço. (...) A verdade é que eles fazem o que querem.”

Depois de abril, pelo menos 15 guerrilheiros do Araguaia foram mortos, e tanto Geisel como Figueiredo, “Miltinho”, Confúcio e Golbery sabiam que essa matança estava em curso desde outubro de 1973. (Executavam-se inclusive os jovens que atendiam ao convite de rendição e colaboravam com a tropa.) Em janeiro de 1974, Geisel ouviu de um oficial do CIE uma narrativa das operações no Araguaia, onde haviam sido capturados 30 guerrilheiros. Geisel perguntou: “E esses 30, o que eles fizeram, liquidaram?”. Resposta do tenente-coronel: “Alguns na própria ação. E outros presos depois. Não tem jeito não.”

Semanas depois, ao convidar o general Dale Coutinho para o ministério do Exército, ouviu dele que “o negócio melhorou muito, agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar.” Geisel respondeu: “Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”

A metodologia narrada pelo serviço americano foi seguida no extermínio da direção do Partido Comunista Brasileiro. Antes de 1974, os comunistas eram perseguidos ou presos, mas não eram assassinados. Em abril, três dirigentes comunistas haviam sido capturados e mortos pelo CIE. No ano seguinte, outros sete.

Com a destruição das siglas metidas em terrorismo, o CIE neutralizou a única organização esquerdista que agia na esfera política. Para isso, dispunha de pelo menos uma preciosa infiltração, e conhecem-se casos de tentativas de recrutamento, pela CIA, de capas-pretas que viviam na clandestinidade. À falta de dirigentes, em 1975 a “tigrada” continuou matando militantes em sessões de tortura. A ideia de controlar o CIE colocando-o sob a supervisão do Planalto simplesmente não funcionou.

Em 1976, depois da morte do operário Manuel Fiel Filho no DOI de São Paulo, Geisel demitiu o comandante do II Exército, general Ednardo D'Avila Mello, e defenestrou Confúcio. Mesmo assim, só restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas em 1977, quando mandou embora o ministro do Exército, Sylvio Frota. (No dia da demissão de Frota, doidivanas do CIE pensaram em atacar o Palácio do Planalto.)

Para as vivandeiras e napoleões de hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na ditadura praticaram-se crimes e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça.


Elio Gaspari: Três cenas de ladroagens, sem PT

Em apenas cinco dias estouraram três denúncias, todas capazes de deixar a origem da Lava-Jato no chinelo

Desde 2014, quando uma pequena investigação bateu no doleiro Alberto Youssef e deu origem à Operação Lava-Jato, não se via coisa igual. Em menos de uma semana, explodiram três bombas no andar de cima. Diferentes entre si, deverão trazer consequências comparáveis às decisões do juiz Sergio Moro e ao povoamento das carceragens de Curitiba. Recapitulando-as:

Na quarta-feira passada a polícia prendeu a nata dos operadores de câmbio paralelo nacional, encarcerando 33 doleiros. Mesmo sabendo-se que o maior deles, Dario Messer, está foragido, pode-se especular que pelo menos 20 eram muito maiores que Youssef. Se apenas cinco vierem a colaborar com a Justiça, caberão várias Lava-Jatos na Operação Câmbio, Desligo. Ela está na vara do juiz Marcelo Bretas, que já botou na cadeia o ex-governador Sérgio Cabral e a cúpula da sua “gestão modernizadora” do Rio.

Por precaução, papeleiros ilustres já estão se afastando do mercado. Alguns deles sobreviveram às operações Satiagraha e Castelo de Areia. Nos dois casos, a falta de cuidado de investigadores e procuradores permitiu que fossem atropelados pela cegueira da Justiça das cortes superiores. A equipe da Lava-Jato tirou a venda da Justiça, e deu no que deu.

No domingo soube-se que, em março, o PM paulista Abel Queiroz, funcionário de uma empresa de carros-fortes, contou à Polícia Federal que foi pelo menos duas vezes entregar dinheiro no escritório do empresário José Yunes, bom amigo de Michel Temer, e seu assessor especial nos primeiros meses de governo. A PF acredita que esse ervanário valia R$ 1 milhão e saiu da Odebrecht.

No dia seguinte, outra novidade: autoridades suíças informaram que desde 2007 o engenheiro Paulo Vieira de Souza, o “Paulo Preto” do PSDB, transferiu US$ 34,4 milhões para bancos locais. O doutor abriu sua conta na Suíça 43 dias depois de ter sido nomeado diretor de engenharia da Dersa, a estatal de rodovias de São Paulo. Num episódio inusitado, a existência desse dinheiro foi revelada há meses pela própria defesa de “Paulo Preto”. Em 2010, quando seu nome foi associada a traficâncias no setor de transportes de São Paulo, ele disse que “não se larga um líder ferido na estrada a troco de nada, não cometam esse erro”. O estado é governado pelo tucanato desde 1995, e “Paulo Preto” está preso desde abril.

Uma eventual colaboração de doleiros ainda é matéria de especulação, mas os antecedentes permitem supor que algumas virão. Youssef foi uma peça vital para a Lava-Jato, e os irmãos Chebar fritaram Sérgio Cabral. O sinal mandado por “Paulo Preto” sugere que ele já não está a fim de ficar ferido na estrada.

A prisão dos doleiros terá efeitos multipartidários. De saída, ela bate em notáveis do PSDB e do PMDB. A revelação do PM que levava dinheiro ao escritório de Yunes flamba Temer e seu PMDB. Já a fortuna exportada por “Paulo Preto” vai ao coração do PSDB chique de São Paulo.

Nessa sucessão de novidades ainda há mais: pela primeira vez desde que a Lava-Jato entrou nas petrorroubalheiras do PT, a rede caiu em cima de doutores que nada têm a ver com o comissariado. Pelo contrário, eram ilustres defensores da deposição de Dilma Rousseff em nome da moralidade pública. Quem foi para as ruas em 2016 deve se lembrar dessa esperança.

* Elio Gaspari é jornalista

 


Elio Gaspari: O movimento pode ser uma milícia

O MLSM mostrou que o que parece ser defesa do andar de baixo às vezes é bandidagem

Condenado por corrupção, o maior líder popular surgido depois de Getúlio Vargas está na cadeia. Na madrugada de 1º de maio desabou em São Paulo um prédio de 24 andares onde viviam 92 famílias que o ocupavam em nome de um Movimento de Luta Social por Moradia, o MLSM. Seja o que for aquilo que se chama de “movimento”, o MLSM é uma milícia que domina oito prédios e barracas de comércio espalhados pela cidade. No edifício que desabou cobrava aluguéis de até R$ 400 mensais.

Diante da exposição dos métodos do MLSM, deu-se uma reação, mostrando que havia um risco de satanização dos “movimentos”. Quem defende os “movimentos” sem condenar as milícias sataniza aquilo que pretende proteger.

Não se pode dizer que o MLSM seja um ponto fora da curva. Em 1997 o estado de São Paulo era governado por Mário Covas, avô do atual prefeito, Bruno, e três pessoas haviam sido mortas pela PM num conjunto habitacional da Fazenda da Juta, invadido pelo “movimento” dos sem teto do ABC. Durante a ocupação, apartamentos de dois quartos e pequena sala eram negociados por atravessadores. Um dos invasores era um jovem de 19 anos, solteiro. No Nordeste já houve filas de fazendeiros pedindo ao MST que invadisse suas terras para que pudessem buscar indenização do governo.

A caminho da cadeia, Lula disse: “Não sou um ser humano, sou uma ideia”, e saudou uma plateia dos “movimentos” habituados a “queimar os pneus que vocês tanto queimam,” e a fazer “as ocupações no campo e na cidade”. Prometeu-lhes: “Amanhã vocês vão receber a notícia que vocês ganharam o terreno que vocês invadiram.”

Lula, o PT e muitas organizações de mobilização social nada têm a ver com o MLSM ou picaretagens semelhantes. O problema está no fato de que jamais denunciam o que é feito na suposta defesa do andar de baixo. Admitindo-se que invadir prédios seja uma forma de buscar a justiça social (o que não é), fazer de conta que não se vê a atuação de uma milícia é suicídio.

Pensa-se que, se o objetivo é social, o resto não importa. Isso vale tanto para as invasões como valeu para a manutenção de contubérnios com empresários e políticos profissionalmente corruptos. Foi assim que se abriu a trilha de malfeitorias que levou o maior líder popular à cadeia, por corrupção.


Elio Gaspari: Palocci foi o quindim do mercado

Antonio Palocci chegou ao Ministério da Fazenda em 2003 antecedido por denúncias de malfeitorias praticadas quando era prefeito de Ribeirão Preto, mas foi protegido pela simpatia do andar de cima, sobretudo da banca. Uma das maracutaias envolvia uma licitação de R$ 1,2 milhão para a compra de cestas básicas, grosseiramente manipulada para favorecer empresas amigas.

Como ministro da Fazenda de Lula e chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, Palocci tornou-se o comissário do andar de cima. A aliança de empreiteiros, empresários e papeleiros com Lula, Dilma e José Dirceu era essencialmente oportunista. Com Palocci havia mais que isso. O ex-ministro enriqueceu ao passar pelo governo.

Quando o juiz Sergio Moro bloqueou suas contas pessoais e empresariais, tinha R$ 30,8 milhões. Vivia num apartamento cinematográfico comprado por R$ 6,6 milhões. Uma parte contabilizada dessa receita veio de contratos de consultoria com grandes empresas.

A colaboração do ex-ministro poderá resultar na exibição de novas conexões da máquina de roubalheiras. Hoje, empreiteiros e fornecedores larápios tornaram-se arroz de festa. Palocci operava no lado oculto da Lua e pode mostrar como as propinas disfarçavam-se de caixa dois ou fingem ser contratos de consultoria. Um exemplo pitoresco dessas ligações perigosas circulou há poucos meses.
Palocci teria contado que, em 2002, antes do início do romance do PT com a banca, armou a transferência de US$ 1 milhão do ditador líbio Muammar Gaddafi para a campanha de Lula. Tomara que o comissário tenha mostrado à Polícia Federal a trilha bancária dessa transação.

A CHAPA CIRO-HADDAD ESTÁ NO BARALHO
Com nome e sobrenome, a ideia de uma chapa com Ciro Gomes (PDT) na cabeça e Fernando Haddad (PT) na vice veio de Luiz Carlos Bresser-Pereira e foi revelada pelo repórter Mario Sergio Conti, narrando uma conversa que juntou os dois, mais o ex-ministro de FHC e o professor Antonio Delfim Netto. Sem nome e sobrenome, a ideia está nos baralhos de muita gente, inclusive nos de Ciro e Haddad.

Exposta assim, a chapa parece uma especulação prematura. Mostrada de outro jeito, ela é quase inevitável. Basta que sejam aceitas duas pré-condições:

1 - Nos próximos meses Ciro e o PT convivem num pacto de não agressão, como vêm fazendo até agora.

2 - Até agosto as pesquisas indicam que Ciro e Haddad (admitindo-se que ele venha a ser o poste de Lula) têm algum fôlego, mas nenhum dos dois é forte o suficiente para ter certeza de que chegará ao segundo turno. Hoje Ciro tem 9% e Haddad, 2%.

Admitindo-se que as pesquisas mantenham Ciro em melhor posição que Haddad, o PT troca uma eleição perdida pela esperança de uma vice.

A maior resistência à chapa Ciro-Haddad virá do PT, onde suas facções sonham com cenários que vão da imortalidade política e eleitoral de Lula ao delírio de uma explosão popular, com gente nas ruas e pneus queimados.

O PT tem uma propensão suicida. No início da campanha eleitoral de 2014, a senadora Marta Suplicy lançou-se numa operação para substituir Dilma Rousseff, com um "Volta Lula". Tinha apoios e até mesmo a cumplicidade silenciosa de "Nosso Guia".

A manobra morreu porque Lula não disse a frase fatal: "Quero a cadeira". Meses depois, reeleita, Dilma colocou Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, mas deixou que ele fosse fritado pelo PT. Olhando-se pelo retrovisor, a história do PT teria sido outra com Lula candidato e Levy trabalhando em paz.

LULA SOLTO
Um sábio que já viu cinco eleições presidenciais avisa:

"Se Lula estiver em liberdade no dia da eleição, mesmo sem ser candidato, dobrará as chances do seu poste, seja ele quem for.

Os ministros do Supremo podem saber muito direito, mas não conseguiriam explicar na rua por que um homem libertado 'Excelso Pretório' pode ser culpado de alguma coisa."

LULA PRESO
As chances de Lula ser libertado antes da eleição de outubro pelo Judiciário, pelo Padre Eterno, ou por extraterrestres, são praticamente nulas.

POSTE 2.0
Está entendido que o ex-governador baiano Jaques Wagner não é candidato a poste de Lula. Hoje, o lugar é de Fernando Haddad. Como o PT não consegue viver sem uma briga interna, surgiu um novo nome, o do ex-chanceler Celso Amorim.

JANOT X RAQUEL
Mesmo tendo cumprido uma obsequiosa quarentena no exterior, o ex-procurador-geral Rodrigo Janot não conseguiu desencarnar.

AVANÇO E ATRASO
As montadoras brasileiras perderam a parada na qual pretendiam prorrogar a festa de incentivos fiscais que drenaram a bolsa da Viúva em R$ 28 bilhões desde 2006. Deverão se contentar com mimos menores.

As empresas querem benefícios e prometem investir em tecnologia, mas suas reivindicações acontecem num momento em que a China se arma para liderar o mercado de carros elétricos, coisa que em Pindorama não existe nem em sonho.

Piorando o quadro, os chineses da XEV acabam de apresentar um modelo de veículo popular elétrico cujas peças, salvo o chassi, os vidros e as baterias, são impressas em 3D.

TEMER CANDIDATO
Deve-se retificar a informação segundo a qual Temer não pode deixar que o balão de sua candidatura à reeleição murche, pois se o fizer, não conseguirá que o seu café venha quente.
Dizendo que não é candidato, nem água da pia receberá.

TERCEIRA DENÚNCIA
Há fortes indícios de que, havendo uma terceira denúncia contra Temer, ela não será votada pela Câmara antes da eleição de 7 de outubro. Disso resultará uma situação girafa, pois no dia seguinte existirão novos deputados, a serem empossados em 2019.

A Câmara de hoje, com um mandato caduco, não deveria abrir um processo que poderia afastar um presidente com poucos meses de mandato.

Nessa confusão, a denúncia poderia ficar nas nuvens, perdendo seu efeito letal no dia 1º de janeiro, quando Temer deixará a Presidência.

Pelas regras de hoje, no dia seguinte, ele perde o foro especial.

RECORDAR É VIVER
Os padecimentos do general Eduardo Villas Bôas, que sofre de uma doença degenerativa, parecem ter criado uma situação original. Ela é inédita num regime democrático, mas na ditadura o ministro do Exército, Orlando Geisel, comandou a tropa debilitado por um tifo. Homem magro, perdeu 12 quilos e passou alguns períodos em casa, obrigado a manter repouso absoluto.

A saúde de Orlando Geisel começou a ratear em 1972, com uma sucessão de gripes. Ele tinha um enfisema pulmonar, não se tratava e evitava médicos. No ano seguinte houve dias em que mal tinha forças para comparecer a uma cerimônia militar.

Naquela época ninguém sabia da doença do ministro e quem sabia fingia ignorância.


Elio Gaspari: O PSDB está desunido e desorientado

Nas mãos de Geraldo Alckmin, o partido fundado por Mário Covas virou um PT chique, e FHC fez que não notou

O PT teve dois presidentes denunciados por corrupção (José Dirceu e José Genoino), o PSDB também (Aécio Neves e Eduardo Azeredo). Quando estourou o escândalo do mensalão, o PT decidiu peitar a investigação e o processo, o PSDB também. Veio a Lava Jato, e o PT resolveu continuar na tática da negativa da autoria e no enfrentamento político. O PSDB também.

Em 2007, quando estourou o escândalo do mensalão mineiro, Ruth Cardoso, mulher de FHC e sua consciência social, sustentou que o ex-governador Eduardo Azeredo deveria ser afastado da presidência do PSDB. Não foi ouvida.

Esse precedente deu a Aécio Neves razões para permanecer na presidência do partido. Só quando sua situação tornou-se insustentável, deu uma carteirada em Tasso Jereissati e apoiou a escolha de Geraldo Alckmin para o lugar.

Se essa onipotência fosse pouca, o partido de Mário Covas e Franco Montoro foi dominado pela mentalidade provinciana de Alckmin. Primeiro ele fritou a liderança do PSDB de São Paulo inventando o "gestor" João Doria.

Se tudo desse certo, ele fritaria os tucanos pela segunda vez elegendo para seu lugar o vice Márcio França, do PSB. Deu errado porque o "gestor" escapuliu da prefeitura paulistana e arrebatou a candidatura ao governo.

Ganha uma viagem a Pindamonhangaba quem for capaz de citar cinco realizações de França em sua carreira política e outras cinco de Doria na prefeitura.

As denúncias contra Azeredo e Aécio ameaçam explodir o PSDB, mas as articulações de Alckmin estão implodindo-o. Sua candidatura à Presidência poderá significar o coroamento do extermínio.

Em 2004, quando o juiz Sergio Moro escreveu um artigo comparando a Lava Jato à Operação Mãos Limpas italiana, lembrou que dela resultou a destruição do sistema partidário italiano. Petistas e tucanos não lhe deram atenção e hoje os dois principais partidos brasileiros estão feridos.

E o MDB? Numa repetição do que aconteceu na França do Setecentos, arrisca-se assistir a um triunfo do pântano.

O colapso das propostas dos tucanos e dos petistas não faz bem ao país. Se os dois partidos decidiram enfrentar o problema da corrupção protegendo corruptos, isso não invalida as ideias que defendem, até porque do pântano saem sapos, não ideias.

Montoro e Mário Covas já se foram. Do time de fundadores do PSDB resta Fernando Henrique Cardoso. Tem passado e, aos 86 anos, seu futuro está numa encruzilhada. Nela, se olhar para trás, poderá desempenhar um papel político relevante.

Infelizmente, seu último livro "Crise e Reinvenção da Política no Brasil"é um bufê de autoelogios, onde se alternam boas causas e platitudes.

Em alguns momentos, FHC parece-se com um Jean de Léry do século 21. Olha para o Brasil com o distanciamento do seminarista francês observando os tupinambás que o mantiveram cativo na baía da Guanabara no século 16. Lendo-o, percebe-se o que está faltando ao PSDB: um segundo volume do "Crise e Reinvenção" dizendo tudo o que FHC não quis dizer no primeiro.

O ex-presidente é um homem cordial e não gosta de confrontos, mas deve-se registrar que na sua "Reinvenção" faltou alguma coisa: em 238 páginas ele não precisou mencionar Geraldo Alckmin, candidato de seu partido à sucessão presidencial.


Elio Gaspari: As bruxas do Rio estão soltas e zangadas

As forças da desordem estão mandando sinais desafiadores à intervenção federal na segurança do estado

Desde fevereiro, quando foi decretada a intervenção federal na segurança do Rio, coisas estranhas aconteceram, como se algumas peças de um tabuleiro de xadrez se mexessem sozinhas. Seis casos:

1) Um mês depois da intervenção, a vereadora do PSOL Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram executados. Até hoje os assassinos não foram identificados. No início de abril, o cadáver de um colaborador do vereador Marcello Siciliano foi encontrado dentro de um automóvel. (Dias antes, Siciliano havia sido ouvido na investigação do assassinato de Marielle.)

2) A tropa do Exército começou um processo de pacificação na Vila Kennedy, e o gabinete do interventor foi surpreendido por uma operação que destruiu 30 barracas e quiosques de comércio na praça Miami. O prefeito Marcelo Crivella desculpou-se, mas ninguém foi punido.

3) Durante uma inspeção do general que chefia o gabinete da intervenção ao 14º Batalhão da PM (Bangu), uma parte da tropa formada não lhe deu continência depois da ordem do coronel-comandante. Foi necessário que a repetisse.

4) Uma inspeção feita com a participação do Exército no presídio de Bangu 3 resultou num fracasso, com a apreensão de um celular e ventiladores. Mal planejada, a operação vazara. Outra iniciativa, da qual participaram 3.400 militares no Complexo do Lins, também teve resultados pífios porque a bandidagem foi alertada.

5) Na última semana de fevereiro, o gabinete da intervenção determinou o retorno de 3.100 policiais militares e bombeiros cedidos a outras repartições. (O efetivo de cabos e soldados da PM é de 22 mil.) Um mês depois, a Assembleia Legislativa ainda não havia atendido ao pedido de devolução de 87 dos 146 PMs lotados nos gabinetes da Casa. Segundo o deputado André Ceciliano, que ocupa a cadeira de Jorge Picciani, guardado em prisão domiciliar, o secretário de Segurança não administra questões financeiras. Nessa linha de argumentação, a Assembleia deveria pagar os salários dos PMs, mas como o governo do estado não repassa os recursos, eles continuam na folha da corporação. A Assembleia deve R$ 68 milhões à PM, mas os policiais continuavam lá.

6) Ontem os repórteres Fábio Teixeira e Gustavo Goulart revelaram que 47 dos 87 PMs lotados na Assembleia ainda não haviam se apresentado à corporação e arriscavam ser considerados desertores. Há camelôs que desafiam regras da Secretaria de Segurança, mas nunca se ouviu falar de militares desrespeitando ordens de seus comandos de forma tão ostensiva. Uma olhada nas condições dessa bancada revelou que 31 policiais emprestados recebiam apenas o soldo. Outros acumulavam penduricalhos, e um cabo acrescentou ao seu soldo de R$ 2.437 um adicional de R$ 6.495 líquidos.

Algumas das coisas estranhas que começaram a ocorrer depois da intervenção têm uma peculiaridade: não aconteciam antes dela. É verdade que os vazamentos de operações militares já haviam ocorrido, mas nunca havia sido assassinada uma vereadora. Também não se sabe de caso de tropa que não deu continência a um general, nem de determinação da Secretaria de Segurança que fosse respondida com tamanha demora e controvérsia.


Elio Gaspari: Temer foi avisado do tamanho da encrenca

No ano passado ele recebeu uma carta mostrando-lhe que a solução seria convocar eleições gerais antecipadas

Em junho do ano passado, o presidente Michel Temer recebeu uma carta fraternal de um sábio com experiência e êxitos muito superiores aos dele. Nela havia um proposta, curta e grossa: Temer deveria enviar uma mensagem ao Congresso antecipando a eleição geral de outubro para abril ou maio de 2018, experimentando-se a instituição de candidaturas avulsas e o voto facultativo.

Para evitar mal-entendidos, Temer não buscaria a reeleição. Era isso ou viver o agravamento da crise com um governo que perderia vigor. Cada dia seria pior que o outro, e a cada hora aumentaria o risco de aparecimento de salvadores da pátria, tanto individuais quanto institucionais.

Até o início de maio, Temer parecia surfar bons indicadores da recuperação da economia. Pensava-se que estava aberta a pista para que disputasse a reeleição. Ele não sabia que Joesley Batista gravara um encontro que os dois tiveram em março, e no dia 17 de maio a casa caiu, com a divulgação de trechos da conversa.

De um dia para o outro, Temer teve que usar a máquina de sua maioria parlamentar para salvar o próprio mandato. Nos grampos de Joesley Batista fritou-se também o tucano Aécio Neves, e sua irmã Andrea foi encarcerada.

A carta retratava a crise resultante do grampo de Batista mas, dias antes da sua remessa, o Tribunal Superior Eleitoral salvou o mandato de Temer, ameaçado pelo pedido de cassação da chapa em que era o vice de Dilma Rousseff. Ele acabara de receber 83 perguntas da Polícia Federal. Oito delas relacionavam-se com atividades portuárias em Santos e com negócios da Rodrimar, e outras sete tratavam de relações com o operador Lúcio Funaro.

Em menos de um ano, tudo o que podia dar errado, errado deu. Como era de se supor, os negócios do Porto de Santos estão atracados nas colunas do Palácio do Planalto. Temer escapou de duas denúncias ao preço do congelamento de seus projetos e confere as armas para a hipótese de ser obrigado a encarar uma terceira.

Como em qualquer época e em qualquer palácio, o mundo é sempre cor-de-rosa, pois os maus prenúncios são coisa de invejosos, golpistas e conspiradores. A ideia da antecipação do pleito perdeu-se no arquivo. Deu no que está dando.

Isso tudo são águas passadas. Fica uma pergunta inútil. Como estariam as coisas hoje se Temer tivesse aceito o conselho? Ele teria enviado a mensagem ao Congresso em julho do ano passado, e neste mês seria realizada uma eleição sem precedente. O voto seria facultativo, e cada cidadão poderia inscrever-se como candidato avulso, sem o garrote dos partidos políticos.

Se Napoleão tivesse deixado a Rússia em paz, seu reinado teria sido outro. Se em 1910 Benito Mussolini tivesse aceito a direção de um jornal socialista no Brasil, a história da Itália teria sido outra. Se em 1940 o pintor Henri Matisse tivesse embarcado no navio que o traria ao Brasil, ele pintaria quadros de mulatas, certamente melhores que os das odaliscas. Em todos os casos, o mundo ficaria melhor. Se Temer tivesse aceito os conselhos do sábio, ele, seu governo e o Brasil estariam vivendo dias de esperança e alívio.

(O nome do sábio fica preservado por respeito à etiqueta.)


Elio Gaspari: O STF e a turma dos sem-instância

No andar de cima a sentença só vale na última instância, no de baixo, fica-se na cadeia sem instância nenhuma
O Supremo Tribunal Federal julgará hoje o habeas corpus de Lula, condenado pelo TRF-4 a 12 anos de prisão. Por trás e acima desse recurso está a questão do cumprimento de uma sentença depois que ela passou pela segunda instância. O tribunal já decidiu nesse sentido, mas alguns ministros mudaram (ou não mudaram) de opinião, levando a bola de volta ao centro do campo. Os doutores são todos adultos e sábios. Suas decisões são finais, e seu argumentos eruditos às vezes são incompreensíveis.
Na questão da segunda instância, trata-se de decidir se um cidadão condenado por um juiz, com a sentença ratificada no primeiro nível superior, deve ir para a cadeia, ou se ele tem direito a continuar solto até que seja apreciado o seu último recurso.
Em juridiquês, o debate é interminável. Na vida real, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal discutem a essência social da Justiça brasileira. Essa questão só esquentou quando o juiz Sergio Moro começou a mandar para a prisão a turma do andar de cima. Isso porque no andar de baixo a história é outra. Quatro em cada dez brasileiros que dormem na cadeia estão lá sem julgamento algum. São os “sem-instância” chamados de “presos provisórios”, gente que não tem dinheiro para pagar a bons advogados. Há 711 mil detentos no país, 291 mil são “provisórios”.
Muita gente torceu o nariz quando o ministro Luís Roberto Barroso disse que há um velho “pacto oligárquico” na raiz das roubalheiras expostas pela Lava-Jato. Os pactos oligárquicos são implícitos e impessoais. Ninguém se apresenta como representante da oligarquia das empreiteiras, pedindo audiência a um burocrata nomeado pela oligarquia política. Apesar disso, os pactos do passado são reconhecidos e estudados, sem ofensas aos mortos. Está nas livrarias “Africanos livres — A abolição do tráfico de escravos no Brasil”, da professora Beatriz Mamigonian. Ela contou um aspecto do pacto oligárquico que sustentou a escravidão no século XIX e expôs a boca-livre da elite do Rio no trato dos negros contrabandeados que eram capturados pelos ingleses ou pelo governo.
A coisa funcionava assim: desde 1831, pela lei, seriam livres todos os africanos chegados ao Brasil. Foram capturados algo como 11 mil negros, transformados em “africanos livres”, obrigados a prestar 14 anos de serviços à Coroa, que os terceirizava para os maganos da Corte. Os concessionários pagavam uma taxa que equivalia a um mês de trabalho do negro, caso o alugassem para outros serviços.
Mamigonian conta o caso de Felício Mina, que foi trazido para o Rio em 1831. Em 1844, estava preso e esperava que os ingleses viessem protegê-lo. Seu concessionário dizia que ele era um ladrão perigoso, por “altivo”, “jamais disposto a humilhar-se”.
Entre 1831 e 1835, o concessionário de Felício explorou um plantel de 15 “africanos livres”. Ele se chamava José Paulo Figueroa Nabuco de Araújo, nada a ver com o pai de Joaquim Nabuco. Talvez algum dos 11 ministros de hoje se lembre dele, pois era titular do Supremo Tribunal de Justiça e escreveu uma “Coleção cronológica das leis do Império do Brasil”. Talvez o doutor não soubesse, mas fazia parte do pacto oligárquico e usufruía dos seus benefícios. (Jornalistas também tinham acesso ao mimo dos negros.)
* Elio Gaspari é jornalista

Elio Gaspari: Lula tenta a velha mágica do medo da rua

Manipulador do medo, Lula bota gente na rua e se oferece como pacificador. Desde que entrou na política, Lula mostrou-se um hábil manipulador do medo que o andar de cima tem da rua. Ele põe sua gente na praça, estimula bandeiras radicais e se oferece como pacificador. Quando os radicais passam a incomodá-lo, afasta-se deles. Essa mágica funcionou durante mais de 30 anos, mas mostrou sinais de esgotamento a partir de 2015, quando milhões de pessoas foram para a rua gritando “Fora, PT!”. Ele quis reagir mobilizando o que supunha ser seu povo, mas faltou plateia.

Agora o mágico reapresentou o truque. Ele informa que não tem “razão para respeitar” a decisão do TRF-4. Sabe-se lá o que isso quer dizer. Se é uma zanga pessoal, tudo bem. Pode ser bravata, pois ele cancelou a viagem à Etiópia e entregou o passaporte à polícia. Isso é coisa de quem respeita juízes.

Enquanto Lula é vago em suas ameaças, João Pedro Stédile, do MST, é mais direto: “Aqui vai o recado para a dona Polícia Federal e para a Justiça: não pensem que vocês mandam no país. Nós, dos movimentos populares, não aceitaremos de forma nenhuma que o nosso companheiro Lula seja preso”. A ver.

Em 2015, Lula defendia a permanência de Dilma Rousseff dizendo que era um homem da paz e da democracia, mas “também sabemos brigar, sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas.” Viu-se que o temível exército de Stédile não existia. Na parolagem catastrófica da época, o presidente da CUT, Vagner Freitas, dizia que “se esse golpe passar, não haverá mais paz no país.” Houve. (A CUT remunerava seus manifestantes. Um deles, imigrante da Guiné, tinha o boné da central, mas não falava português. Estava na Avenida Paulista porque recebera R$ 30.)

Nas recentes manifestações dos Trabalhadores Sem Teto em São Paulo, a via Dutra e a Marginal Pinheiros foram bloqueadas com o incêndio de pneus. Eram mais de 50 pneus em cada bloqueio. Ganha um fim de semana em Pyongyang quem souber como se conseguem 50 pneus sem uma infraestrutura militante e incendiária.

O truque é velho mas, desta vez, apareceram dois personagens surpreendentes. Primeiro veio Gleisi Hoffmann, presidente do PT: “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar.” Na quarta-feira, diante da condenação de Lula, ela avisou: “A partir deste momento, é radicalização da luta”.

Gleisi Hoffmann não é uma liderança descartável. Foi Lula quem a colocou na cadeira. Admita-se que ela exagerou na primeira frase e foi genérica na segunda. É nessa hora que entra o comissário Luiz Marinho: “Se condenarem o Lula vão apagar fogo com gasolina. Depois, arquem com as consequências. A toda ação corresponde uma reação. Nós não estamos falando em pegar em armas, mas não vamos aceitar uma prisão para tirar Lula da disputa”.

Marinho é o herdeiro presuntivo de Lula e candidato ao governo de São Paulo. Presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e a CUT. Foi ministro da Previdência e defendeu correções nos benefícios de aposentados e pensionistas. Confrontado por um protesto que lhe bloqueava o caminho, o motorista do seu carro oficial avançou e feriu três manifestantes. Dias depois, o ministro comentou o episódio: “O pessoal veio agredir o carro”. Em 2008, Marinho elegeu-se prefeito de São Bernardo com uma campanha de barão, orçada em R$ 15 milhões. É um dos comissários petistas que podem ser encontrados com frequência na copa ou na cozinha de Lula. Antes do julgamento, no entristecido café da manhã de Lula com sua família, só havia dois amigos: Marinho e o advogado Roberto Teixeira.

Os sinais dados por Marinho e Gleisi indicam que há um flerte de Lula com os radicais que bloqueiam a Dutra com 50 pneus. Esse poderá ser mais um dos seus erros num processo que começou há muito tempo, quando ele decidiu alisar o pelo de petistas corruptos. Desta vez, tentando se colocar como vítima de um pacto sinistro, Lula queima o filme do coitadinho, inocente e perseguido. Alguns dirigentes petistas já compreenderam o risco e trabalham para aquietar o “Momento Nero” de Lula, até porque esse é um Nero de baile de carnaval.

 


Elio Gaspari: Temer quer destruir o PSDB

Aécio é um biombo atrás do qual está o PMDB do tempo em que FHC, Montoro e Covas fundaram o tucanato

Fernando Henrique Cardoso e Tasso Jereissati jamais poderiam ter imaginado que, apoiando a deposição de Dilma Rousseff, substituindo-a por Michel Temer, levariam o partido para sua pior crise, correndo o risco da implosão. O vice-presidente da chapa de Dilma está esfarelando o tucanato com a ajuda de Aécio Neves, o candidato do PSDB derrotado em 2014.

Com todos os seus defeitos, o PSDB não é um partido qualquer. Ele foi criado por Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Franco Montoro e José Richa. Noves fora a qualidade biográfica desse grupo, eles abandonaram o PMDB, porque prevalecera a caciquia do governador paulista Orestes Quércia.

Quércia foi o primeiro político bilionário produzido pela redemocratização. Ao morrer, em 2010, deixou um patrimônio de cerca de R$ 1 bilhão. Montoro, Fernando Henrique e Covas fugiram desse modelo e fundaram o PSDB em 1988. Dois anos depois, o poderoso Quércia e seu PMDB elegeram seu sucessor, e Aloysio Nunes Ferreira tornou-se vice-governador. O tucanato só recuperou o governo de São Paulo em 1995, com Mário Covas e está lá até hoje, com o apoio do PMDB, é claro.

Michel Temer navegou no PMDB, sem ser admitido no círculo elitista do tucanato de São Paulo. O vice Nunes Ferreira migrou para o PSDB em 1997 e chegou a ocupar o Ministério da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso. Hoje é o ministro das Relações Exteriores de Temer e feroz defensor da permanência do tucanato no governo. (Antônio Imbassahy, atual ministro da Secretaria de Governo, também quer que os tucanos fiquem no Planalto, mas sua relação com o PSDB começou em 2005. Antes disso, era um quadro promissor dos governos de Antônio Carlos Magalhães na Bahia.)

Brigas de tucanos não chegam a ser novidade, mas poucos estranhamentos podem ser comparados ao que envolveu Tasso e Aloysio no Alvorada, em dezembro de 2001. Uma testemunha temeu pelo pior. Os dois reaproximaram-se, mas nem tanto.

O que parece ser uma briga de Aécio Neves com Tasso Jereissati pelo controle do PSDB é uma revanche do PMDB. A revanche de um partido no qual o quercismo foi uma doença infantil que se fortaleceu na maturidade e chegou ao poder com a deposição de Dilma Rousseff.

Pode-se acusar o PSDB de tudo, mas ele tem uma corrente ideológica. É ambígua, convive com o que condena, mas preserva uma ambição ideológica. Quem duvidar dessa característica pode ler quaisquer páginas dos três volumes dos “Diários da Presidência”, de Fernando Henrique Cardoso.

Enquanto os tucanos mandaram em Brasília, sempre houve quem defendesse um endurecimento do jogo com o PMDB. Tratava-se de contrariar seus pleitos, elevando a tensão, na certeza de que o partido de Temer seria capaz de tudo, menos de romper com o governo. A ideia nunca foi em frente. Numa trapaça da História, Temer está na Presidência e fez com os tucanos o que eles não tiveram coragem de fazer com ele. Elevou a tensão e obrigou o PSDB e seus valorosos intelectuais a decidir se são valentes a ponto de apoiar programas e abandonar cargos.

Para Tasso Jereissati, isso não é ameaça, é conforto. Para Temer, a briga com Aécio Neves é um presente dos deuses. O PSDB, dividido, poderá encolher, dando ao PMDB o direito de sonhar com o seu espólio. Não foi uma vingança planejada, era apenas inevitável.

* Elio Gaspari é jornalista