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Elio Gaspari: Fux matou no peito e fez gol contra
O ministro Luiz Fux, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tinha diante de si um pedido para declarar a inelegibilidade de Lula. A petição era processualmente imprópria e ele rejeitou-a. Fez o mesmo que a ministra Rosa Weber há algumas semanas. A notícia foi divulgada pelo UOL. Fux deu-se conta de que rejeitando o pedido apenas por impróprio, poderia dar a impressão de que admitiria, em tese, a elegibilidade de Lula.
Deve-se ao repórter Reynaldo Turollo Jr. a narrativa do que aconteceu em seguida, nas palavras de Fux:
“Depois que saiu essa notícia, eu fui verificar se a decisão tinha sido publicada [no Diário da Justiça]. Então, peguei a decisão, para não deixar dúvida, e fiz questão de colocar nela (...) aquilo que tenho defendido publicamente, que é a inelegibilidade de candidatos que já incidiram em uma condenação em segunda instância”.
Fux deixará o TSE no próximo dia 14 e decidiu acrescentar um parágrafo ao despacho informando que vislumbrava a “inelegibilidade chapada” de Lula. Se o pedido tinha um vício processual, a questão estava resolvida, não havia porque acrescentar “aquilo que tenho defendido publicamente”, muito menos usando o termo “chapada”.
Lula sabe que será declarado inelegível, mas isso só poderá acontecer quando ele estiver na condição legal de candidato. Ademais, “chapado” não quer dizer nada.
Lula é candidato a vítima para eleger o “Poste”. Quanto mais o vitimizarem, maior será a sua capacidade de transferir simpatias e preferências. A barafunda provocada pelo drible do desembargador Rogério Favreto, abrindo uma temporada de bate-cabeças no Judiciário, premiou-o com as trapalhadas dos que não querem vê-lo como candidato ou mesmo em liberdade.
O complemento de Fux ao despacho foi um mimo para Lula. Primeiro, porque não é adequado que o presidente de um tribunal tenha “defendido publicamente” uma posição relacionada a um julgamento que ainda não aconteceu. Mesmo que o seja, foi despicienda a iniciativa de repeti-la num despacho que tratava de um pedido processualmente viciado.
Até a balbúrdia “prende-solta” dos desembargadores e do juiz Moro, podia-se achar que Lula era um apenado fingindo que era candidato. Depois dela, tornou-se uma vítima. Fux, como Moro, matou no peito e chutou contra o próprio gol.
Elio Gaspari: A diretoria da ANS deve pedir o boné
Desmoralizada pela tunga que tentou impor à vítimas dos planos de saúde, ela deve ir embora, mas não já
Os diretores da Agência Nacional de Saúde poderiam salvar suas biografias indo para casa. Basta que anunciem sua disposição de deixar os cargos no primeiro dia de mandato do novo presidente. Não devem fazê-lo agora porque seriam substituídos por farinha do mesmo saco. Na sua composição oficial, o presidente da ANS foi nomeado graças aos bons ofícios do senador Romero Jucá. Seu colega Eunício Oliveira nomeou três e Ciro Nogueira ficou com um.
Em junho passado, a ANS baixou uma norma que entraria em vigor em dezembro, aumentando em até 40% o valor da coparticipação de 24 milhões de vítimas no custeio de procedimentos médicos. Os diretores que aprovaram a medida e depois a revogaram devem ir embora antes do fim de seus mandatos porque expuseram o mafuá que orienta suas decisões.
A medida foi combatida, mas até aí seria o jogo jogado. Semanas depois, a presidente do Supremo Tribunal Federal bloqueou-a. Defendendo-se, Rodrigo Aguiar, um dos diretores da Agência, disse: “A ANS foi criada para proteger o sistema de saúde suplementar. Obviamente, na nossa regulação, a gente considera a vulnerabilidade do consumidor, mas a gente não é um órgão de defesa do consumidor.”
Em tese, “a gente” poderia até ter razão, mas um estudo do Ministério da Fazenda acertou na mosca quando viu a “possibilidade de formação de conluio entre as firmas para influenciar o resultado” e condenou a “dificuldade de acesso a informações de custos resultantes da competição dos agentes”. Em apenas 24 palavras, matou a charada.
Os custos hospitalares, viga mestra dos pedidos de reajuste das operadoras, são hoje uma grande caixa-preta. Felizmente, assustou grandes corporações que oferecem planos de saúde aos seus empregados, e disso resultou o surgimento de empresas que fiscalizam as contas hospitalares. A maior delas, infelizmente, mantém seus dados sob sigilo para o público. Mesmo assim, a repórter Cristiane Segatto pescou casos exemplares: em 18% de casos de diagnósticos de sinusite, coisa que pode ser resolvida com uma radiografia (R$ 33, na média), fizeram-se tomografias (R$ 240). Em 30 mil contas emitidas entre 2013 e 2017, acharam-se cobranças pelo uso de um equipamento hospitalar durante um período superior ao da internação do paciente. Valor do truque: R$ 24 milhões. Em 2015 alguns hospitais fizeram 100% de suas 364 cirurgias de quadril usando um material que encarecia em 64% o custo do procedimento. O uso do material seria razoável em 10% dos casos.
As operadoras acabam mal faladas porque vivem numa cultura de preguiça, sem discutir publicamente os custos hospitalares. Basta lembrar que há dezenas de hospitais onde os pedidos de ressonâncias magnéticas superam a taxa com que trabalha o Hospital Sírio-Libanês.
Os diretores da ANS devem ir para casa porque baixaram a norma e recuaram. Se a norma era sadia, como disseram por mais de um mês, não deveria ter sido revogada. Se o foi, não deveria ter sido baixada, muito menos defendida com argumentos de segunda classe.
Depois de ter dito que “a gente não é um órgão de defesa do consumidor”, o doutor Rodrigo Aguiar comandou o recuo reconhecendo que “a resolução causou grande apreensão na sociedade, que não a recepcionou da forma positiva.” Disse a coisa e seu contrário.
Engana-se quem acredita que o jogo terminou. A ANS informou que fará uma nova rodada de audiências públicas para discutir a questão. As operadoras e suas guildas não trabalham com essa mercadoria. Elas gostam do escurinho de Brasília. Expor os custos hospitalares, nem pensar.
Elio Gaspari: O PT nada aprendeu, nada esqueceu
A repórter Marina Dias mostrou um pedaço do programa de 36 páginas do PT. Como se sabia, lá está a proposta para convocar um plebiscito para revogar iniciativas do governo de Michel Temer (só?). O recurso à consulta direta depois de uma eleição majoritária é golpismo e na Venezuela deu no que deu.
Outras propostas petistas dividem-se em três categorias. A transformação do Supremo Tribunal em Corte Constitucional está na mesa. Outras, como o estabelecimento de mandatos para demais cortes superiores, são más ideias. Já a participação de servidores na eleição dos órgãos de gestão dos tribunais é uma girafona.
Coisas como o fim das férias de dois meses e do auxílio-moradia são arroz de festa, pois os penduricalhos agonizam. Parolagens em torno de ampliação dos poderes da "sociedade civil organizada" ou criação de "comissões de alto nível" são apenas parolagens.
Nessa amostra da plataforma petista vê-se que os comissários resolveram limpar o porão, trazendo de volta projetos repetidamente rejeitados pelo Congresso. É o caso do financiamento público das campanhas e o voto de lista.
Debulhando-se o aperitivo, percebe-se que diversas propostas dependem da aprovação de emendas constitucionais. É aí que a porca torce o rabo. Com que maioria o comissariado pretende aprová-las? Sua bancada será insuficiente, portanto, pretendem buscar os votos com aquilo que vem sendo chamado de centrão.
Como? Com os métodos que entre 2003 e 2004 acabaram no escândalo do mensalão. Nesse jogo reinava Valdemar Costa Neto, que foi para a cadeia, vestiu tornozeleira e foi indultado. Ele voltou a operar para Michel Temer e hoje está aninhado na coligação de Geraldo Alckmin.
Elio Gaspari: Geraldo Alckmin, o besouro voador
Ele parece ter saído de uma galeria da República Velha, mas poderá ir para o segundo turno, contra o PT
Besouro não deveria voar, mas voa. Geraldo Alckmin também. Aquele ex-deputado eleito vice-governador em 1994 na chapa de Mário Covas era um tucano inexpressivo. Ademais, Covas era um touro. Tão decorativo era o cargo de vice-governador que Alckmin decidiu se licenciar e disputou a prefeitura de São Paulo. Perdeu, mas o touro teve um câncer, e ele assumiu. Tornou-se o cidadão que por mais tempo governou São Paulo desde os tempos coloniais, mas evita tocar nesse assunto. Disputou a Presidência da República em 2006 e conseguiu ter menos votos no segundo turno do que no primeiro.
Geraldo Alckmin é candidato de novo. Sua posição nas pesquisas é pífia. Já sua capacidade de agregação no mundo político-partidário marcha para a aliança com uma poderosa coligação de caciques em cuja ponta final está Michel Temer.
É possível que Alckmin vá ao segundo turno, beneficiado por previsíveis autocombustões de Ciro Gomes e Jair Bolsonaro. Uma disputa final entre ele e o candidato de Lula espanta a banca que passou os últimos meses achando que a campanha eleitoral aconteceria num cenário de debates parecido com o dos seminários de universidades americanas. O susto da banca não vem de eventuais defeitos de Alckmin, mas da possibilidade de vitória do candidato de Lula, o temível “Poste”.
Geraldo Alckmin dispõe de um razoável patrimônio administrativo. Basta contrapor as administrações tucanas de São Paulo desde 2001, quando ele se sentou na cadeira de governador, com as do Rio de Janeiro. Naquele tempo estava lá o governador Anthony Garotinho, sucedido por um ano pela petista Benedita da Silva, e em seguida por Rosinha Garotinho (mulher de Anthony), Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão. De um lado, cinco pragas, do outro, o picolé de chuchu tentando ser sorvete italiano.
Pelo estilo pessoal, Alckmin parece-se com um personagem da galeria de governadores da República Velha que adornam paredes do Palácio dos Bandeirantes. Pelo estilo político, também. Estacionado nas pesquisas, tornou-se uma potência televisiva costurando alianças por cima sem enunciar uma só ideia.
Num cenário de sonho ele teria ao seu lado as multidões que foram para a rua pedindo a deposição de Dilma Rousseff. Já no cenário do pesadelo ele encarna a maioria político-partidária que colocou Temer no Planalto. Trocou-se uma presidente impopular pelo campeão de impopularidade.
O andar de cima já flertou com a candidatura do apresentador Luciano Huck, e sua banda golpista sonhou com a alternativa apocalíptica de Jair Bolsonaro. Restaram-lhe Alckmin e o medo do “Poste”.
Lula na carceragem de Curitiba vem se transformando num Getúlio Vargas recluso em sua fazenda de São Borja. Consegue isso muito mais pela soberba e inépcia de seus adversários do que por suas qualidades. Noutra comparação, Lula encarna no Brasil o fantasma argentino de Juan Perón. Por mais de duas décadas, los hermanos cantaram: “Se siente, se siente, Perón está presente”.
Com o “centrão” aninhado na candidatura de Alckmin, resta-lhe a necessidade de fazer uma campanha capaz de ser ouvida no andar de baixo. Até agora, nada.
Elio Gaspari: O PT e Ciro no golpe do plebiscito
Plebiscito logo após a eleição é golpe demagógico. Ciro Gomes e Rui Falcão, ex-presidente do PT, avisaram que em suas plataformas está a convocação de um plebiscito ou de um referendo para ratificar suas propostas caso vençam as eleições de outubro.
Ciro defendeu a convocação desse mecanismo para decidir o destino de um projeto de reforma da Previdência. Dias depois, Falcão falou em “reverter as reformas desastradas do Temer por plebiscito ou referendo”. (Num plebiscito os cidadãos escolhem uma entre várias alternativas. Num referendo, aprova-se ou rejeita-se uma proposta.)
Quando deputado, o petista José Dirceu apresentou um projeto propondo que os acordos para o pagamento da dívida externa fossem submetidos a um referendo popular. Diante da perspectiva de poder, o comissariado fez a “Carta aos Brasileiros” e mudou de assunto. Desde 2001 Ciro Gomes defende a realização de plebiscitos, inclusive para decidir a questão previdenciária. Ele chamava essa girafa de “terceiro turno”.
A ideia de uma consulta popular direta logo depois de uma eleição presidencial é um golpe demagógico. Seu objetivo é o emparedamento do Congresso. Esse truque fez o gosto de Hugo Chávez na Venezuela e deu no que deu. No Brasil de 2018 o pescoço da girafa cresce quando se vê que os candidatos estão costurando alianças com partidos devastados pela Lava-Jato.
Trata-se de um jogo de “perde-perde” para o regime democrático, pois ao seu final haverá um presidente imperial esmagando um Parlamento cuja “caciquia” Ciro Gomes cortejou em busca de tempo de televisão. Uma pessoa disposta a votar em Ciro pode achar a ideia boa. E se o poste de Lula ganhar a eleição?
Se um candidato tem o que oferecer, poderá fazê-lo durante a campanha que começa daqui a pouco. Se der, deu. Se não der, não deu.
As vivandeiras querem Bolsonaro
Um pedaço do andar de cima que desfila na tropa de Jair Bolsonaro não quer escolher um presidente da República. Quer um golpe parecido com o de 1964, aquele que colocou cinco generais na Presidência da República. Em 1984, quando a ditadura agonizava, quase todas as vivandeiras que aplaudiram as extravagâncias do poder militar aderiram à campanha de Tancredo Neves e varreram para os quartéis o entulho do regime.
A plateia que ouviu Bolsonaro na Confederação Nacional da Indústria durante uma hora viu que estava diante de um candidato compreensivelmente nervoso e incompreensivelmente desconexo. Vago ao expor sua plataforma econômica, o candidato citou o evangelista João — “conhecereis a verdade e ela vos guiará” — e, em seguida, guiou a audiência para a questão ambiental de Roraima. Adiante, informou: “Estamos entregando a mina de nióbio ao chinês.” Referia-se à mina da Anglo American de Catalão (GO). (Em fevereiro, em Hamamatsu, Bolsonaro prometeu trabalhar em parceria com japoneses para a exploração do nióbio brasileiro.)
Reforma trabalhista? “É remendo novo em calça velha”. Não se pode saber o que isso significa, mas a plateia não reagiu.
Num breve momento o candidato deu uma pista. Mencionando que ele temeu um eventual crescimento da esquerda, disse: “Aí acabou qualquer esperança de mudarmos o Brasil pelas vias democráticas, que tem que ser.”
Desde 1985 o Brasil está numa via democrática e Bolsonaro, com seus sete mandatos, é uma prova disso. O candidato de hoje não repete o deputado que há dez anos, diante de uma manifestação hostil, disse que o “grande erro” da ditadura “foi torturar e não matar”. O Brasil deve ao marechal Castelo Branco a exposição das “vivandeiras alvoroçadas” que, desde 1930, rondam quartéis. Elas ainda estão por aí.
Elio Gaspari: As tungas dos sindicalismos
Como a bolsa da Viúva deu sopa, maganos que se dizem representantes de patrões e de empregados fazem a festa
Quem leu a reportagem de Philipe Guedes constrangeu-se. O Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência e Educação à Criança e ao Adolescente cobrava uma “taxa negocial” aos seus 40 mil filiados, e quem não quisesse pagá-la deveria ir à sua sede para carimbar um documento. As vítimas tiveram três dias para cumprir a exigência, e o resultado foi a formação de uma fila de quase um quilômetro nas ruas vizinhas à sede do Sitraemfa.
Esse truque está sendo usado por inúmeros sindicatos desde que a reforma trabalhista desmamou-os, tirando-lhes o dinheiro do imposto sindical. (Um dia de suor de cada empregado formal, gerando uma caixa de R$ 3 bilhões em 2017.) Os sindicatos poderiam receber os documentos pela internet, mas criam uma burocracia intimidatória que supera, de muito, o tempo que um trabalhador perde para tirar uma carteira de identidade no Poupatempo de São Paulo.
É razoável que um sindicato cobre taxas por ter negociado o dissídio de uma categoria, desde que o tenha negociado. Milhares de sindicatos nada mais fazem do que cuidar da vida de seus dirigentes. Os mandarins dizem que as taxas foram aprovadas em assembleias dos associados, mas ganha uma visita ao sítio de Atibaia frequentado por Lula quem já foi a uma assembleia de sindicato. (“Nosso Guia” entrou na política combatendo o imposto sindical.)
A questão acabaria se fosse aberto o cadeado que blinda o peleguismo sindical de empregados e patrões. Bastaria abolir o dispositivo que obriga todos os trabalhadores e empresários de uma categoria a serem filiados a um só sindicato. Uma profissão ou atividade poderia ter inúmeros sindicatos, e o trabalhador escolheria o que lhe presta melhores serviços. Poderia até não se filiar a nenhum.
O sujeito que leu a reportagem de Guedes pode ter pensado que a praga é coisa do andar de baixo. Engano, a repórter Raquel Landim mostrou que no andar de cima a coisa é pior. Enquanto os trabalhadores eram tungados em um dia de salário, as empresas são mordidas num percentual de suas folhas de pagamento. O chamado Sistema S arrecadou R$ 16,4 bilhões em 2017. Uma parte desse dinheiro vai para atividades meritórias, outra financia a máquina sindical dos patrões.
Uma beleza de máquina. Os presidentes de 42 federações patronais estão no cargo há mais de nove anos; cinco, há mais de 40; Fábio Meirelles, presidente da Federação da Agricultura de São Paulo, há 43.
Em tese, essa liderança corporativa seria representativa da elite empresarial. Não é. O atual presidente da Federação da Agricultura do Acre já foi condenado a seis anos de reclusão por participar de uma rede de exploração de menores. Clésio Andrade, que está há 25 anos à frente da Confederação Nacional do Transporte, teve uma condenação a cinco anos. No Rio, pegaram na rede das roubalheiras de Sérgio Cabral o presidente da Fecomércio e seu colega da Fetranspor, doutor Lélis Teixeira. O presidente da Fiesp, Paulo Skaf, foi acusado de operar um caixa 2 em suas campanhas políticas.
A trama das “taxas negociais” e o coronelato patronal nada têm a ver com classes sociais, o que aproxima e encanta sindicalistas do andar de cima e do andar de baixo é o acesso à Bolsa da Viúva.
Elio Gaspari: A cadeia de Lula virou seu melhor palanque
Lula não pode dar entrevistas, mas sua voz estará na campanha, como a do aiatolá Khomeini nos anos 70
A juíza da Vara de Execuções Penais de Curitiba decidiu que Lula não pode receber jornalistas. Ela informou também que ele está em “situação de inelegibilidade”. Seja lá o que for o que isso signifique, a essência da decisão faz sentido. O que lhe falta é eficácia.
No início dos anos 70, quando começaram a aparecer cassetes com os áudios de sermões do aiatolá Khomeini, o Xá do Irã mal ligou. Afinal, ele era um islamita radical exilado na Turquia, Iraque e França. A liderança religiosa desprezava-o, e os poderes do mundo acreditavam que era apenas um excêntrico. O sujeito de barbas brancas tomou o poder e criou uma ditadura muito mais intolerante e repressiva. A ilusão foi favorecida pelo romantismo da voz do ausente. Isso aconteceu no tempo em que não havia internet.
Lula é um “apenado” na carceragem da Federal de Curitiba, e, proibindo-o de dar entrevistas, cumpre-se a lei, mas não se impede que ele seja ouvido. Mais: limita-se a sua capacidade de dizer tolices, como a louvação dos pneus queimados ou as ocupações de propriedades, cometidas na sua última fala.
A decisão judicial não tem eficácia porque Lula recebe advogados, e eles podem gravar o que ele lhes diz, com direito a divulgar o áudio. Por ser um preso, ele não pode montar palanques na cadeia. Por ser um cidadão, pode falar.
Em situações malucas, até os doidos acabam mostrando que são sábios. No século passado, quando o frenesi anticomunista tomou conta dos Estados Unidos, o compositor Woody Guthrie acabou num hospício, seus amigos preocuparam-se, e ele acalmou-os:
“Eu é que estou preocupado com vocês. Lá fora, se você diz que é comunista, vai para a cadeia. Aqui, eu digo que sou comunista, e eles dizem que sou maluco.”
Elio Gaspari: Lula, o grande eleitor
O Judiciário está derretendo e, na confusão, a cadeia de Curitiba tornou-se um lugar seguro para ‘Nosso Guia’
O circo de domingo fez da cadeia uma câmara de proteção para Lula. Olhando-se para o Judiciário a partir do balcão da lanchonete da rodoviária, as coisas estão assim: Marcelo Bretas prende, e Gilmar Mendes solta; Rogério Favreto solta, e Gebran Neto prende. Isso numa época em que juízes ganham um auxílio-moradia de R$ 4,3 mil mensais. A discussão do mimo chegou ao Supremo Tribunal, o ministro Luiz Fux matou no peito e reteve a decisão.
Faltam menos de três meses para a eleição presidencial, e a barafunda do Judiciário deu a Lula um impulso inesperado. Tudo indica que sua candidatura será impugnada, mas ele poderá ungir o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ou o ex-governador da Bahia Jaques Wagner, como ungiu Dilma Rousseff.
“Nosso Guia” (expressão criada pelo embaixador Celso Amorim) tem ao mesmo tempo um alto número de pessoas dispostas a votar nele, mas também é alto o nível de sua rejeição. O circo de domingo transformou a cadeia de Curitiba numa câmara de proteção para Lula.
Enquanto ele estiver preso, os outros terão a liberdade de fazer besteiras, da greve dos caminhoneiros ao prende-solta dos magistrados. Guardadas as proporções e ressalvados os aspectos legais, a carceragem da Polícia Federal está para Lula assim como a solidão de São Borja esteve para Getúlio Vargas em 1950.
O ex-presidente firmou-se no papel de vítima, e esse é o que melhor desempenha. Ficam duas perguntas: qual a sua capacidade transferir simpatias? E o que poderá fazer para reduzir as antipatias?
Dado o desempenho do governo de Michel Temer, a transferência de simpatias será considerável. A redução da antipatia será tarefa mais complicada, sobretudo porque Lula, o PT, Fernando Haddad e Jaques Wagner nunca fizeram um milímetro de autocrítica diante das malfeitorias praticadas nos seus dez anos de poder.
Tudo bem, mas autocrítica não é uma mercadoria abundante no plantel dos candidatos. Bolsonaro marcha garbosamente com o DOI na mochila. Ciro Gomes apresenta-se como o novo a partir de práticas capazes de fazer corar os velhos coronéis nordestinos. Geraldo Alckmin tem sobre a cabeça a nuvem dos cartéis de empreiteiros cevados nas gestões tucanas de São Paulo. Henrique Meirelles é ex-presidente do conselho da J&F, dos irmãos Batista. Finalmente, Marina Silva honra a plateia com sua austeridade e sonoros silêncios. Nenhum desses candidatos traz consigo o risco do aparelhamento da máquina do Estado por quadros semelhantes aos do comissariado petista. Em troca, Ciro Gomes aproxima-se do DEM, Bolsonaro flerta com o PR de Valdemar Costa Neto e Meirelles está no MDB, presidido pelo senador Romero Jucá. Salva-se Marina, sem os pés no aparelho tradicional.
Em 2002, Lula driblou seus adversários com a “Carta aos Brasileiros”. Foi uma guinada em relação ao que dissera em questões econômicas. Uma “Carta aos Brasileiros 2.0” tentará enxaguar a roupa suja petista, convertendo em neutralidade a antipatia pelo comissariado e somando-a à simpatia que Lula amealhou pelo que fez e pelo que lhe fazem. (Antonio Palocci, o autor da Carta 1.0, está na cadeia.)
Em 1950, como prometera, o ditador voltou ao poder como “líder de massas”. Em 2018, um ex-presidente preso por corrupção poderá vir a ser o grande eleitor num pleito em que o eleitorado coloca o combate às roubalheiras como uma das prioridades nacionais.
Elio Gaspari: 26 de junho de 1968, a alvorada da treva
A Passeata dos Cem Mil ficou como boa lembrança, mas não impediu a longa noite da ditadura escancarada
Daqui a duas semanas serão lembrados os 50 anos da "Passeata dos Cem Mil", a bonita jornada durante a qual o Centro do Rio foi tomado por milhares de pessoas que defendiam as liberdades públicas. No chão, marchava-se ao lado de intelectuais e artistas. Do alto dos edifícios choviam papéis picados. Será um momento de doce nostalgia para os septuagenários que viveram aquela tarde.
Numa época em que a democracia brasileira vive a tensão dos radicalismos do século XXI, convém que se revisite aquele dia, embebido nos radicalismos da ditadura. A passeata tomou conta da história de 1968, mas ela foi um crepúsculo. A treva amanhecera horas antes, durante a madrugada, quando um caminhão com 50 quilos de dinamite explodiu diante do portão do QG do II Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho e ferindo cinco outros militares.
O atentado foi obra da Vanguarda Popular Revolucionária e nele estiveram dez terroristas. Dias antes, a VPR havia roubado fuzis num hospital militar e o general que comandava a tropa do Exército em São Paulo lançara um desafio infantil: “Atacaram um hospital, que venham atacar meu quartel". Vieram. O motorista do caminhão saltou, o veículo bateu num muro, Kozel foi ver se havia alguém na boleia e a dinamite explodiu.
Oito horas depois, no Rio, a passeata saiu da Cinelândia e percorreu a Avenida Rio Branco. No dia seguinte, todos os grandes jornais noticiaram com destaque os dois fatos. Aos poucos, porém, a lembrança do atentado evaporou, abafada pelo romantismo da manifestação do Rio e pelo silêncio que protege o radicalismo esquerdista da época.
Na passeata, enquanto uma parte dos manifestantes dizia que "o povo unido jamais será vencido", outra, menor, proclamava que "o povo armado jamais será vencido". Seis meses depois, o presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5, e começou a longa noite da ditadura escancarada.
Passados 50 anos, é mais agradável lembrar a passeata do que o atentado. Nas palavras da militante que estava num carro de apoio, a bomba “não serviu para nada, a não ser para matar o rapazinho". O atentado serviu para estimular radicalismos, influenciando a vida do país, enquanto a passeata ficou como uma boa lembrança, nada além disso. Nada a ver com os comícios de 1984 pedindo eleições diretas. Elas não vieram, mas o povo unido levou o colégio eleitoral a eleger indiretamente o oposicionista Tancredo Neves.
O atentado e a facilidade com que se assaltavam bancos no final da década de 60 deram aos grupos radicais de esquerda uma enganosa sensação de invulnerabilidade. Quatro meses depois, dois dos terroristas que estiveram no ataque ao QG participaram do assassinato de um capitão americano que vivia em São Paulo.
A ditadura respondeu ao surto radical com torturas e mortes. Dos treze militantes que participaram dos ataques ao hospital militar e ao QG, dois foram executados, sete foram presos e três deixaram o país. Só um ficou livre no Brasil, com outro nome.
A VPR e suas congêneres nunca defenderam a ordem democrática. Já os ministros que participaram da reunião do Conselho de Segurança Nacional que baixou o AI-5 exaltaram a democracia em dezenove ocasiões. Ao final, fecharam o Congresso e suspenderam o habeas corpus.
Cármen fechou a roleta do STF
Advogados espertos criaram um sistema de roleta para conseguir habeas corpus no Supremo Tribunal. Quando veem negada sua petição por um ministro, começam tudo de novo, esperando contornar o ministro que os desatendeu. Confiam no sorteio, até que o caso caia nas mãos de um voto amigo.<SW>
Em outubro do ano passado, um pedido foi para o ministro Luís Roberto Barroso e ele negou o habeas. Com a mesma documentação, pediram de novo em novembro e o caso foi para o ministro Dias Toffoli. Nova negativa e nova tentativa. Por sorteio, o pedido voltou a Barroso e ele voltou a negar o habeas. Tentaram de novo em fevereiro deste ano. Na mão do ministro Edson Fachin, tiveram a quarta negativa. Em março, insistiram. Na quinta investida o caso <SW>caiu de novo na mesa de Toffoli e ele voltou a negar. Na sexta tentativa, sempre por sorteio, o processo voltou para Barroso. Falta de sorte.
Noutro caso, o habeas corpus foi negado pelo ministro Alexandre Moraes. Na segunda tentativa, o ministro Fachin também negou-o. Novo sorteio mandou o processo para a ministra Rosa Weber, terceira negativa. A cada pedido os advogados colocavam os ministros que os desatenderam como autoridades coatoras. Desse jeito, aumentavam suas chances de levar o processo a um ministro simpático. Num terceiro caso, a manobra gerou o circuito Luiz Fux-Alexandre Moraes-Celso de Mello, sempre com negativas.
A presidente Cármen Lúcia fechou a roleta e determinou que o primeiro caso deve ficar com Barroso, o segundo, com Rosa Weber e o terceiro, com Fux.
Fez mais. Mostrou que o joguinho “configura abuso do direito e defesa" e mandou que as espertezas fossem comunicadas à Ordem dos Advogados do Brasil.
Trumpistão
Um nova-iorquino cosmopolita, que nunca votou em republicanos e tem horror a Donald Trump desde que o conheceu, há cerca de 30 anos, informa:
"Ele poderá ser reeleito em 2020. A economia vai bem e o partido Democrata está sem rumo. A eleição de novembro deverá manter a maioria republicana no Senado e, com alguma chance, manterá também sua maioria na Câmara”.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, mas acha que a Agência Nacional do Petróleo e a Petrobras estão abusando de sua cretinice quando dizem que a política de preços de combustíveis será revista depois de uma consulta pública.
Se essa modalidade de avaliação tivesse valor, Michel Temer deveria ter saído do Planalto depois das primeiras pesquisas do Datafolha e do Ibope. Felizmente, esse jogo acabará em outubro, com a consulta eleitoral.
16 anos em dois
A marquetagem do governo inventou o slogan “O Brasil voltou, vinte anos em dois".
Gente bem humorada suprimiu a vírgula e os çábios arquivaram a peça.
Com o dólar encostando nos R$ 4, Temer pode ser orgulhar de ter voltado 16 anos em dois. Em 2002, nos dias de medo diante da possibilidade de uma vitória de Lula, ele chegou a R$ 3,99.
Excelsos viajantes
Os onze ministros do Pretório Excelso já tinham uma sala exclusiva no aeroporto de Brasília. Agora o Supremo Tribunal Federal tem outra área especial, que custará à Viúva R$ 374 mil anuais, ervanário superior a um ano de salário do presidente da República.
Cada doutor dispõe de um servidor para puxar a cadeira quando senta ou levanta no plenário.
Ócio
Nos quatro próximos domingos o signatário exercitará o ócio.
Elio Gaspari: A Petrobras corre real perigo
Desde a crise dos caminhoneiros, nada aconteceu de bom com a Petrobras e ela tomou o caminho da empulhação
A Petrobras arruinou-se no mandarinato petista por diversos motivos. Deles, o mais pueril foi a retórica da arrogância. Infelizmente, dela e do governo têm partido declarações destinadas a iludir a boa-fé do público fingindo desconhecer a barafunda criada pela política de preços dos combustíveis. Podiam ficar só nisso.
A retórica da arrogância foi exercitada à exaustão pelos petrocomissários. Basta que se recapitule um caso. Em 2012, um funcionário da companhia holandesa SBM denunciou suas maracutaias internacionais. Elas foram confirmadas por uma investigação interna que resultou numa indenização milionária ao governo holandês. Sabia-se, pela denúncia, que a SBM teria distribuído pelo menos US$ 139 milhões a intermediários e hierarcas da estatal brasileira para azeitar contratos de aluguel de plataformas.
Dois anos depois, uma equipe da Petrobras foi à Holanda verificar o caso e anunciou-se que nada acontecera de anormal. Engano, pois a SBM começaria a negociar um acordo de leniência com a Controladoria-Geral da União. Até hoje ele não foi concluído.
Entre 2012 e 2015 foram para a cadeia os ex-diretores Pedro Barusco e Renato Duque, ambos mimados pela SBM. O representante da empresa no Brasil, Julio Faerman, passou a colaborar com a Justiça e repatriou US$ 54 milhões.
Varrida pela Lava-Jato, a doutora Dilma colocou na Petrobras Aldemir Bendine, que estava no Banco do Brasil. Ele levou consigo para uma diretoria Ivan Monteiro. Num dos lances grotescos do período, Bendine chegou a anunciar que a Petrobras “talvez” voltasse a contratar serviços e equipamentos da SBM, “uma importante fornecedora". Como, não explicou.
A retórica da arrogância era um pastel de vento. Não havia como esconder a roubalheira denunciada em 2012 e, em 2015, não era possível contratar a SBM para coisa alguma.
Na segunda-feira, o repórter Rubens Valente revelou que em 2016 o diretor Ivan Monteiro foi investigado pela Comissão de Valores Mobiliários. Tratava-se de um caso de omissão de comunicado de fato relevante ao mercado. Monteiro propôs pagar R$ 200 mil à CVM e em setembro passado fechou-se o caso. O ervanário não saiu do seu bolso, mas da seguradora que ampara a diretoria da empresa. (O ex-diretor financeiro da Petrobras durante o mandarinato petista fez pelo menos quatro acordos desse tipo, somando R$ 1,75 milhão.)
Exposto o caso de Monteiro com a CVM, a Petrobras tocou o velho realejo: “não houve qualquer condenação da CVM ou reconhecimento de culpa de parte do senhor Ivan Monteiro, tendo a autarquia concordado com celebração de termo de compromisso, procedimento utilizado e previsto em nome, aplicável ao caso".
Noves fora o mau português, ninguém havia dito que Monteiro foi condenado, nem que reconheceu culpa. Apenas deixou de fazer o que devia. Tanto foi assim que propôs pagar R$ 200 mil à CVM, com dinheiro da seguradora. Ninguém dá R$ 200 mil à Viúva a troco de nada.
O escritor mexicano Octavio Paz ensinou, faz tempo: “Quando uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que se decompõe é a linguagem.” Nas próximas quatro quartas-feiras o signatário exercitará o ócio.
Elio Gaspari: ‘Greve de caminhoneiros’. Onde?
De uma hora para outra, houve uma greve de caminhoneiros e o presidente da Petrobras, Pedro Parente, tornou-se o responsável por dias de caos. Duas falsidades.
O que houve não foi uma greve de caminhoneiros, mas uma doce parceria com os empresários do setor de transporte de cargas rodoviárias. Diante dele, o governo capitulou. A repórter Míriam Leitão mostrou que só 30% dos caminhões pertencem a motoristas autônomos. Na outra ponta estão pequenas empresas subcontratadas e grandes transportadoras. Uma “greve de caminhoneiros” pressupõe greve de motoristas de caminhão. Isso nada tem a ver com estradas obstruídas.
Pedro Parente não provocou o caos. Desde sua posse na presidência da Petrobras, ele descontaminou-a do caos que recebeu. Na base dessa façanha esteve uma nova política de preços, acoplada ao valor do barril no mercado internacional. É assim que as coisas funcionam em muitos países do mundo. Se o preço do diesel salgou a operação do setor de transporte de cargas, o problema é dele, não de uma população que foi afetada pelo desabastecimento e agora pagará a conta. Os empresários sabiam muito bem o tamanho da confusão que provocariam.
O sujeito oculto da produção do caos foi o governo de Michel Temer. No seu modelito Davos, orgulhou-se da política racional de preços dos combustíveis. Já no modelito MDB-DEM-PP-PR-PPS, fez de conta que ela não teria custo político. Deveria ter provisionado um colchão financeiro para subsidiar a Petrobras, mas essa ideia era repelida pelos sábios da ekipekonômica. Diante do caos, descobriram que o colchão era necessário.
O governo tolerou a bagunça e associou-se ao atraso. A primeira reação de Temer deveria ter sido a responsabilização dos empresários, desmistificando a ideia de “greve dos caminhoneiros”. Bloqueou estrada? Reboco o caminhão, caso ele não pertença ao motorista. Queimou o talonário do policial que multou o veículo? Prendo-o. Só mudou o tom e exerceu a autoridade na sexta-feira, usando a força federal para desobstruir estradas.
Desde o primeiro momento tratou-se do caso com o gogó, deixando que o problema deslizasse para a Petrobras e seu presidente. Conseguiram piorar a discussão, beneficiando grupos de pressão, com o dinheiro dos outros.
A lição de Pedro Parente para os sábios
Na entrevista teatral e inútil que os ministros deram na quinta-feira, o doutor Carlos Marun defendeu a capitulação do governo diante da suposta greve dos caminhoneiros, referindo-se ao que denominou de “realidade brasileira”.
Teve toda razão, mas essa realidade está aí há 518 anos.
Em 2013, o prefeito Fernando Haddad aumentou as tarifas de ônibus e foi para um evento em Paris com o governador Geraldo Alckmin. Numa esticada noturna, cantaram “Trem das Onze”. Deu no que deu. O economista Edmar Bacha, conselheiro econômico do candidato Alckmin, cunhou a expressão Belíndia. Hoje se vê que os economistas belgas precisam aprender a viver com a realidade da Índia.
A política de preços da Petrobras estava certa. O que faltou foi combinar com os russos, com o setor de transporte de cargas rodoviárias, com as empresas e, finalmente, com os motoristas de caminhão. Faltou sobretudo acautelar-se. Perplexos, os belgas acordaram na Índia.
Pedro Parente foi satanizado até mesmo pelo senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), que o acusou de “arrogância” e pediu sua demissão. O senador Eunício de Oliveira (MDB-CE) seguiu na mesma linha, e o candidato a presidente Henrique Meirelles, corifeu do liberalismo de Temer, foi gloriosamente evasivo.
Pedro Parente fez o que devia como presidente da Petrobras. Quem desafiou a “realidade brasileira" foram Temer, sua ekipekonômica e a claque belga que os aplaudia.
Elio Gaspari: O TCU poderá abrir a caixa da OAB
A entidade se mete em tudo, vive de cobrança compulsória, não mostra suas contas e preserva a eleição indireta
A notícia é boa, resta saber se vai adiante. A repórter Daniela Lima revelou que o Tribunal de Contas da União pretende abrir a caixa-preta do cofre da Ordem dos Advogados do Brasil. Estima-se que ele movimente a cada ano R$ 1,3 bilhão. Cada advogado é obrigado a pagar cerca de R$ 1 mil em São Paulo e no Rio, e a administração do ervanário é mantida a sete chaves. Se isso fosse pouco, o presidente do Conselho da Ordem é eleito indiretamente. Em 2014, seu titular, o doutor Marcos Vinicius Coêlho, prometeu realizar um plebiscito entre os advogados para saber se eles preferiam uma escolha por voto direto. Disse também que colocaria as contas da OAB na internet. Prometeu, mas não fez.
A Ordem foi uma sacrossanta instituição, presidida no século passado por Raymundo Faoro. De lá para cá, tornou-se um cartório de franquias. Em 2015, na qualidade de presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, o deputado Wadih Damus (PTRJ) condenou o instituto legal da colaboração dos réus da Lava-Jato: “Delação premiada não é pau de arara, mas é tortura.” Ele tem todo o direito de dizer isso como cidadão, mas uma ordem de advogados não tem nada a ver com isso. A OAB defendeu o financiamento público das campanhas eleitorais e meteu-se na discussão dos limites de velocidade no trânsito de São Paulo. Esses assuntos não são da sua esfera, como não o são do sindicato dos médicos, e disso resulta apenas uma barafunda. Cada advogado pode ter as ideias que quiser, mas nem a Ordem, nem suas seções estaduais, devem se meter em temas tão genéricos e controversos. Coroando as interferências divisivas da Ordem, ela defendeu a deposição de Dilma Rousseff.
Uma Ordem de advogados pode tomar posição em questões gerais, como a OAB de Faoro desmontando o Ato Institucional nº 5. Mesmo nesse caso, não custa lembrar que o texto do instrumento ditatorial foi redigido pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva, ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, sucedido no cargo por Alfredo Buzaid, outro diretor das Arcadas. Ao contrário do que ocorre com os médicos, comprometidos com a saúde dos pacientes, o compromisso dos advogados com o Direito é politicamente volúvel. A Constituição da ditadura do Estado Novo foi redigida por Francisco Campos, um dos maiores juristas do seu tempo. Felizmente, naquele Brasil havia também um advogado como Sobral Pinto, defendendo Luís Carlos Prestes com a lei de proteção aos animais.
Quando os juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos chegam ao aeroporto de Washington, tomam táxis. Quando os conselheiros da OAB chegam a Brasília, têm à espera Corollas pretos com motorista. Esse mimo é extensivo à diretoria da instituição. (O juiz Antonin Scalia dirigia sua BMW. Seu colega Harry Blackmun andava de Fusca e nele viajaram suas cinzas para o cemitério.) Num outro conforto, se a OAB recebe um convite para participar de um evento na Bulgária, seu representante viaja com a fatura coberta pelos advogados brasileiros.
Não se pode pedir que a sigla da OAB deixe de ser usada como mosca de padaria, mas será entristecedor vê-la defendendo o sigilo de suas contas.