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Elio Gaspari: Os juízes no deserto de juristas

Pesquisa sobre magistrados contou tudo e sua digestão ajudará o debate

Os juízes brasileiros vivem num deserto de jurisconsultos. Isso foi o que revelou a pesquisa da Associação de Magistrados Brasileiros depois de ouvir 4.000 doutores ativos ou aposentados. Diante de um pedido para que citassem três juristas que viam como referências importantes para o direito brasileiro, mencionaram cerca de 3.000 nomes. Os professores Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho e Marcelo Burgos filtraram os mais citados e disso resultou uma lista de 47 juristas. Apesar de seus 196 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal só produziu nove nomes.

Da atual composição da corte entraram quatro: Luís Roberto Barroso, Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Barroso, com 320 citações entre os juízes de primeiro e segundo graus, só perdeu para o monumental Pontes de Miranda (1892-1979), autor de mais de 300 obras. Entre os ministros de tribunais superiores, teve uma solitária menção, enquanto Pontes de Miranda ganhou cinco. (Conhecendo o tamanho dos egos do meio, os professores listaram as preferências dos juízes por ordem alfabética.)

A cultura jurídica dos magistrados que responderam à pesquisa revela grande respeito por autores que lidam com o lado processual da máquina e, em alguns casos, por advogados que produziram competentes manuais. Exagerando, pode-se dizer que são como pilotos que leem tudo sobre o funcionamento das aeronaves, mas não consideram relevante a autobiografia de Charles Lindbergh, a primeira pessoa a atravessar o Atlântico, num voo solo de 33 horas a bordo de um monomotor. Podem ter razão.

Juristas como Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, ex-ministros do STF cassados em 1968, ficaram de fora. Na outra ponta, José Carlos Moreira Alves, procurador-geral do general Emílio Médici, nomeado para a corte em 1975, também não entrou. Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura de 1969 a 1974, teve uma citação, mas Francisco Campos, o grande jurista do Estado Novo, autor do preâmbulo do primeiro Ato Institucional, não se classificou.

É surpreendente que entre os autores das 15 obras acadêmicas e filosóficas mais citadas pelos magistrados estejam apenas dois americanos. Isso numa época em que o direito brasileiro sofre as dores do parto da delação premiada e se discute a introdução de um mecanismo da "plea bargain" sem que haja sequer tradução consolidada para o instituto. (O ministro Sergio Moro diz que é "solução negociada", mas há quem fale em "transação penal") Mais de 80% dos magistrados brasileiros gostam da ideia. É verdade que o direito americano é diferente do brasileiro, mas, se o negócio é importar jeans, rock e leis, a discussão melhorará quando alguém citar Oliver Wendell Holmes (1841-1935), um campeão das liberdades públicas que ainda por cima combateu pelo Norte durante a Guerra da Secessão.

O relatório da pesquisa chama-se "Quem Somos -- A Magistratura que Queremos" e está na rede. Foram 198 questões que produziram cerca de 800 tabelas. É um tesouro em si porque mergulhou na vida dos magistrados e, acima de tudo, porque a equipe de professores fez esse mesmo trabalho há 20 anos. Desta vez, sua realização foi coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Poucos países do mundo puderam fazer a mesma coisa. Sua completa digestão deverá levar algum tempo.

Quem quiser começar a examiná-la partindo de temas atuais, pode ter um auxílio começando pela questão 176, a da "situação de moradia": 70% dos juízes de primeiro grau e 93% daqueles do segundo grau vivem em casa própria.

 


Elio Gaspari: As mineradoras precisam chamar os oncologistas

O diretor da Agência de Mineração mostrou a fonte do desastre de Brumadinho: a barragem do cartel das empresas

Eduardo Leão, diretor da Agência Nacional de Mineração, reconheceu numa entrevista ao repórter Nicola Pamplona que "tanto a questão de barragens quanto a questão das multas já foram pauta no Senado e realmente não andaram". Ele acredita que "tenha tido algum lobby para arquivar esses projetos".

Ex-funcionário da Vale, Leão acrescentou: "Infelizmente, tem empresas sérias, que a gente conhece, que em algum momento acabam formando um cartel que não permite esses avanços".

Não podia ter sido mais claro. As mineradoras blindaram-se. Um projeto que elevaria o teto das multas para R$ 30 milhões foi arquivado, e elas continuaram fazendo o que acham melhor, com multas de R$ 3.600. (Um motorista que bebeu paga R$ 2.934.)

Num paralelo que vem do comportamento das empreiteiras quando começou a Lava Jato, o cartel das mineradoras precisa se livrar do pessoal da gastrite, ouvindo os oncologistas.

Os poderosos empresários tinham dores no estômago e tratavam da gastrite até que foram todos para a cadeia. Diante da realidade da Lava Jato, foram aos oncologistas e tiveram outro diagnóstico: "Os senhores têm câncer no estômago, precisam passar por uma cirurgia e em seguida irão para a quimioterapia. Será um sofrimento e não posso dizer que ficarão curados".

Sofreram o diabo, mas estão soltos.

Horas depois do desastre de Brumadinho, o presidente da Vale, FábioSchvartsman, deu uma entrevista na qual admitiu que não sabia porque as sirenes da barragem ficaram em silêncio. Sete dias depois, informou que "a sirene foi engolfada pela queda da barragem antes que ela pudesse tocar". Schvartsman entrou no modo gastrite, pois sirenes tocaram dois dias depois, quando houve risco de rompimento de outra barragem.

Os doutores da gastrite não põem a cara na vitrine e escalam os marqueses para o papel de bobo. Essa atitude decorre de um sentimento de onipotente impunidade. (Quem se lembra das respostas arrogantes de Marcelo Odebrecht no início da Lava Jato sabe o que é isso.)

Na sua primeira entrevista, Schvartsman mostrou que a empresa alemã Tüd Sud atestou em dezembro a estabilidade da barragem de Brumadinho. Era verdade, e o laudo jogou a Tüd na lama. Agora, o engenheiro Makoto Namba, signatário do parecer, diz que se sentiu pressionado pela Vale para assiná-lo. Até aí, tudo seria uma questão subjetiva. A Polícia Federal mostrou a Namba uma troca de mensagens inquietantes de funcionários da Vale para colegas da Tüd, ocorrida dois dias antes do desastre, e perguntou-lhe o que faria se o seu filho estivesse na barragem. Ele respondeu: “Após a confirmação das leituras, ligaria imediatamente para seu filho para que evacuasse do local bem como que ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração para as providências cabíveis".

A Vale está atarantada no varejo porque seu comportamento no atacado orienta-se pelo protocolo da gastrite. O problema das empreiteiras estava no câncer do cartel, acima do varejão das propinas. Felizmente, quem usou a palavra demoníaca pela primeira vez foi o diretor da Agência Nacional de Mineração.

O passado e o futuro da imprensa
Para quem se preocupa com o futuro da imprensa ou sente sono quando ouve que o cheiro de tinta é agradável, saiu nos Estados Unidos um bom livro. É "Merchants of the Truth" ("Mercadores da Verdade - O Negócio da Notícia e a Luta pelos Fatos"), de Jill Abramson. Ela dirigiu o New York Times de 2011 a 2014, quando foi demitida.

O livro está debaixo de chumbo, mas é uma competente narrativa do que aconteceu com a imprensa desde que surgiram a internet, os sites e o iPhone. Abramson conta as histórias no New York Times, do Washington Post e dos sites BuzzFeed e Vice. De um lado estavam os donos do mundo, investido-se de um direito divino para decidir o que devia ser lido. Do outro, adoradores da internet, cabeludos, alguns bêbados ou drogados e quase todos pobres. O New York Times chegou à beira da falência, e o Post foi vendido a Jeff Bezos. Os cabeludos viraram bilionários e pareciam os senhores de um novo tempo.

Quando a internet era uma criança, um dos editores de Post lembrou que, se um sapo for colocado numa panela com água aquecida aos poucos, ele será cozinhado sem mover uma pata, pois seu sistema nervoso não registra a lenta evolução da temperatura. Ninguém o ouviu, e ele foi trabalhar num site. Centenas de jornais ferveram.

O New York Times luta bravamente para sair da panela e conseguiu 3,3 milhões de assinantes digitais. O Post voltou a ser um grande jornal. Com frequência, festeja-se que Bezos contratou cem jornalistas. Falta lembrar que ele teve 80 engenheiros na empresa.

A internet mudou a cabeça dos editores, quebrou barreiras na publicidade, impôs a métrica de audiência para as redações e, onde se falava em leitor, fala-se em clique. Jornalistas passaram a enfeitar eventos.

Abramson conta essa história com graça e a dose certa de fofocas. Tudo isso e mais a campanha de Donald Trump. Seu rancor da demissão é contido e ela circulou num evento junto com o patrão que a mandou embora. Se Jill Abramson tivesse conhecido Zózimo Barroso do Amaral, diria: "Enquanto houver repórteres, haverá esperança".

Faz tempo, o bilionário Warren Buffet ensinou que quando aparece uma tecnologia nova é arriscado investir nela, pois quase todos os primeiros fabricantes de automóveis faliram. O que se deve fazer é abandonar a velha. No caso, vender os cavalos das carruagens. Buffet recusou-se a salvar o Times quando ele estava quebrando. (Salvou-o o bilionário mexicano Carlos Slim.)

Abramson mostra como o Times e o Post estão na luta, sem tentar fabricar carros puxados por cavalos ou alimentando os bichos com gasolina.

CNPJ geral
De um sábio que entende de leis:

"Ao nominar o PCC e outras facções de criminosos, o ministro Sérgio Moro deu-lhes um verdadeiro CNPJ".

Solução popular
Pode-se estimar que a proposta de importação do mecanismo americano das soluções negociadas entre os réus e o Ministério Público tem o apoio de 9 entre 10 magistrados.

Registro
O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que o governo não conseguirá zerar o déficit fiscal neste ano.

Ele sempre soube disso, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi avisado ao vivo e a cores que a sua promessa de campanha era inviável.

Fantasias
O Carnaval vem aí, mas os hierarcas da República já criaram um código de fantasias.

Em ocasiões solenes, vestem faixas acetinadas. O governador Wilson Witzel mandou fazer uma, azul celeste.

Quando querem mostrar que estão trabalhando, vestem coletes. O de Witzel é laranja.

 


Elio Gaspari: Moro pôs a bola em campo

Pacote do ministro inaugurou governo Bolsonaro e, ao discuti-lo, Congresso precisa mostrar a que vem

Sergio Moro lapidou o discurso desconexo de defesa de lei e da ordem que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República. Para listar apenas alguns aspectos do pacote do ministro, homicida ficará trancado por, pelo menos, três quintos da duração da sentença; condenados na segunda instância irão para a tranca e caixa dois passará a ser crime.

A repressão aos crimes de colarinho-branco será tão dura quanto aquela que habitualmente atinge pessoas de pele negra. Essas propostas serão festejadas nos balcões das lanchonetes, por onde passam pessoas que têm medo de andar na rua à noite.

Moro quer trazer para o direito brasileiro a instituição saxônica das "soluções negociadas". Na essência, elas permitem um acordo entre réu e a Promotoria. O cidadão reconhece sua culpa, negocia a redução da pena com o promotor e com isso descongestiona-se o Judiciário.

Na teoria, faz sentido. Na prática, toda importação de regras do direito saxônico equivale a tentar calçar um par de stilettos de Christian Louboutin nos pés de um jogador de futebol.

O calo resultante da divulgação por Moro, no meio da campanha eleitoral, de um anexo irrelevante e inconclusivo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci está na memória política do país.

Felizmente, Moro fala agora em "soluções negociadas". Até há pouco falava em "plea bargain", talvez para evitar uma das traduções possíveis e evitando a palavra "barganha".

No Judiciário americano todas as delações protegidas pela teoria curitibana da "bosta seca" teriam sido mandadas ao lixo. Lá, se um delator diz uma coisa e outro diz o contrário, mexe-se na bosta seca, empesteia-se a sala e anula-se uma delas, ou as duas.

A solução negociada entre o réu e o Ministério Público pode ser um sonho de consumo. Contudo, no Brasil, leis suecas convivem com uma realidade haitiana. No que vai dar, não se pode saber. Afinal de contas, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, da PM do Rio, jamais faria um acordo com a Promotoria.

O "Caveira", senhor da milícia de Rio das Pedras, era amigo de Fabrício Queiroz. Sua mãe e sua mulher foram empregadas por ele no gabinete de Flávio Bolsonaro porque, nas palavras do colega, "a família passava por grande dificuldade, pois à época ele estava injustamente preso." Libertado, "Caveira" foi absolvido. Não se sabe por quê, está foragido. Na outra ponta, qualquer preso que está apanhando numa delegacia faz qualquer acordo.

Num ponto o projeto de Moro parece um jabuti. Quando ele diz que um juiz poderá deixar de impor uma pena ao agente público se "o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Falta definir "medo" e "violenta emoção". Os policiais cariocas que mataram um cidadão que empunhava uma furadeira e outro que carregava um guarda-chuva tiveram medo, foram surpreendidos ou estavam emocionados?

A proposta de Moro acertou no atacado. Contém apenas lombadas no varejo, mas o Congresso terá tempo para aperfeiçoar o projeto e pode-se acreditar que senadores e deputados não tentarão proteger o instituto do caixa dois.

O surgimento de uma bancada com toques de demagogia haitiana será um contraponto à demagogia sueca. Nesse sentido Moro desviou-se das duas.

O ministro passou a vida no gabinete de juiz, onde sua caneta mudava a realidade. Na nova cadeira, fez tudo direito com a caneta, mas a realidade continuará a assombrá-lo. As milícias do Rio e as quadrilhas do Ceará expuseram-se logo que ele chegou a Brasília, e continuam lá.

 


Elio Gaspari: As mineradoras precisam de uma Lava-Jato

Se as empresas tivessem a qualidade de seus advogados, nenhuma barragem teria se rompido

Os doutores das mineradoras precisam conferir o prazo de validade da vitória que conquistaram depois do desastre de Mariana. Morreram 19 pessoas, foram aplicadas 56 multas totalizando R$ 716 milhões, ninguém foi para a cadeia, e até hoje a Samarco (sócia da Vale) só desembolsou R$ 41 milhões. Se as empresas tivessem a qualidade de seus advogados, nenhuma barragem teria se rompido.

As mineradoras foram competentes para construir uma barragem política, judicial e administrativa. Projetos de aperto na fiscalização das barragens estão travados no Senado, na Câmara e na Assembleia de Minas. Uma iniciativa que elevaria para R$ 30 milhões o valor das multas cobradas às empresas atolou no Congresso, e o teto ficou em R$ 3.200. O Código de Mineração foi escrito em computadores de um escritório de advocacia de São Paulo, entre cujos clientes estava a Vale.

O setor do ministério de Minas e Energia que cuida de geologia e mineração foi dirigido e aparelhado por quatro veteranos da Vale. Uma empresa da família do deputado Leonardo Quintão (MDB-MG) explorou a bacia de rejeitos de Brumadinho. Por coincidência, o doutor relatou o Código de Mineração na Câmara. Como não se reelegeu, aninhou-se na Casa Civil de Bolsonaro. A Agência Nacional de Mineração tem 35 fiscais para 790 barragens de rejeitos.

Disso resultou que as sirenes da barragem de Brumadinho não foram acionadas. A Vale explica esse detalhe atribuindo o silêncio “à velocidade com que ocorreu o evento”. Os circuitos cerebrais do inventor dessa patranha devem estar desligados há anos.

No caso de Mariana, a Vale assumiu uma atitude de rara arrogância. Primeiro, tentou dissociar-se do desastre, dizendo que apesar de sócia do negócio, a barragem era de outra empresa, a Samarco. Clovis Torres, então diretor jurídico da Vale, foi mais longe: “A Samarco não é um botequim. Não é uma empresa qualquer”. Ofendeu os donos de botequim.

A barragem das mineradoras teve solidez. Assemelhou-se à das grandes empreiteiras em 2009, quando a Camargo Correa foi varejada pela Operação “Castelo de Areia”. Estava tudo lá, grampos, propinas e superfaturamentos. Graças ao mecanismo da blindagem, a investigação foi desmanchada no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Em 2014, um juiz pouco conhecido chamado Sergio Moro entrou na Operação Lava-Jato e deu no que deu. No ano seguinte, a Camargo Correa tornou-se a primeira grande empresa a colaborar com as autoridades, abrindo uma fila onde entraram todas as outras.

A estratégia vitoriosa em Mariana foi a “Castelo de Areia” das mineradoras. Brumadinho deveria ser um apelo para que comece uma nova Lava-Jato. As astúcias minerais e os malfeitos expostos pela Lava-Jato têm diferenças na dinâmica, mas convergem no desfecho. As empreiteiras distribuíam dinheiro para lesar a Viúva. As mineradoras blindaram-se para sedar a fiscalização e para controlar o poder público. Convergiram no dano, umas lesando o Tesouro, outras matando gente.

O prazo de validade da “Castelo de Areia” expirou com a Lava-Jato. A estratégia usada em Mariana precisa ter o prazo de validade anulado.

Como as mineradoras conseguiram blindar Mariana, adormecer o Congresso e aparelhar a máquina fiscalizadora? Uma nova Lava-Jato poderá trazer as respostas. Bastaria um juiz Moro e uma equipe de procuradores como a que surgiu em Curitiba. O resto vem por gravidade. O doleiro Alberto Youssef achou melhor falar, depois veio o engenheiro Paulo Roberto Costa, e assim foi. Se alguém fizer as perguntas certas, alguém falará.

A lição de Cordeiro
O marechal Cordeiro de Farias foi uma espécie de curinga nas revoltas militares do século passado. Esteve na Coluna Prestes, na Revolução de 30 e nos levantes de 1945 e 1964.

Em 1974, quando o comunista Luiz Carlos Prestes declarou-se condômino da vitória eleitoral do MDB, o deputado Thales Ramalho espinafrou-o. Cordeiro tinha um afeto paternal por Thales e, ao encontrá-lo, disse-lhe: “Não faça mais isso, seja qual for a tua divergência com o Prestes, ele é um personagem da História”.

Thales foi um marquês do Império na política da República e narrava o episódio com humildade. O pessoal que impediu a ida de Lula ao enterro do irmão Vavá tisnou as próprias biografias.

(No governo do general Figueiredo, o delegado Romeu Tuma, da Polícia Federal, tirou Lula da cadeia para o enterro da mãe.)

Um conservador
Os atrasados não são conservadores, são só atrasados.

Em 1974, pegou fogo um edifício comercial no centro de São Paulo, e nele funcionavam escritórios do Citibank. Morreram 189 pessoas. Quando Walter Wriston, presidente mundial do banco, soube que alguns de seus empregados tinham sido queimados e que John Reed, seu futuro sucessor, estivera no prédio dias antes, determinou que todas as sedes do Citi no mundo seguissem as normas do Corpo de Bombeiros de Nova York.

A adaptação custou milhões de dólares.

Anos depois, ao ouvir essa história, o presidente brasileiro do Banco de Boston, comentou: “É por isso que o Citi não consegue vender suas sedes”. Em 2011, o banco foi vendido ao Itaú (em tempo, o banqueiro não era Henrique Meirelles).

Wriston nunca teve empregada em casa e, quando foi sondado para ser secretário do Tesouro, recusou, porque não via razão para mostrar suas finanças ao governo. Impôs uma política de cotas ao RH e não promovia fumantes.

Era apenas um conservador.

Mourão falador
Estranha turma a de Bolsonaro. Está contrariada porque o vice-presidente fala demais.

Mas foi precisamente por falar demais que o general Hamilton Mourão entrou na chapa do candidato.

Mourão calado é uma fantasia.

Dr. Eremildo
A imprensa persegue os governos.

Em 2009, o repórter Luiz Maklouf Carvalho mostrou que a biografia oficial de Dilma Rousseff apresentava-a como doutora em economia pela Unicamp sem que ela tivesse apresentado a tese que lhe daria o título.

Agora, a repórter Anna Virginia Balloussier mostrou que a ministra Damares Alves se apresenta como “mestre em educação, em direito constitucional e direito da família” sem ter qualquer título de mestrado. A doutora explicou que a fonte de seu qualificativo é bíblico.

Eremildo, o idiota, é mestre em capoeira e xadrez.

É fria
Os çábios que orientam a defesa de Fabrício Queiroz acham que ele deve ir ao Ministério Público levando um texto e mantendo-se em silêncio.

Marcelo Odebrecht teve a mesma ideia. Meses depois começou a falar, ao vivo e a cores.
Os procuradores não têm pressa, só perguntas.

Encrenca
A próxima encrenca que azucrinará a vida de políticos do Rio poderá ser a comprovação de que dinheiro das milícias caía na conta de funcionários de gabinetes de alguns deputados.


Elio Gaspari: O conservador e o atrasado

Bolsonaro elegeu-se abraçando o atraso, o desastre de Brumadinho indicou-lhe o caminho da verdade

Fernando Henrique Cardoso gosta de relembrar uma cena na qual o historiador Sérgio Buarque de Holanda discutia o tamanho de algumas figuras do Império e ensinou: "Doutora, eles eram atrasados. Nós não temos conservadores no Brasil. Nós temos gente atrasada."

Foi a gente atrasada que levou o Brasil a ser um dos últimos países a abolir a escravidão e a adotar o sistema de milhagem para os passageiros de aviões, deixando a rota Rio-São Paulo de fora.

É a gente atrasada quem trava os projetos de segurança das barragensque tramitam no Senado, na Câmara e na Assembleia de Minas Gerais.

Essa gente atrasada estagnou a economia durante o século 19 e, no 20, faliu as grandes companhias de aviação brasileiras. No 21, produziu os desastres de Mariana e Brumadinho.

Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República com uma plataforma conservadora, amparado pelo atraso. Sua campanha contra os organismos defensores do meio ambiente foi a prova disso. Não falava em nome do empresariado moderno do agronegócio, mas da banda troglodita que se confunde com ele. Felizmente, preservou o Ministério do Meio Ambiente.

Outra bandeira de sua ascensão foi a defesa da lei e da ordem. A conexão dos "rolos" de Fabrício Queiroz com as milícias do Rio de Janeiro ilustrou quanto havia de atraso na sua retórica. (O Esquadrão da Morte do Rio surgiu em 1958 e anos depois alguns de seus "homens de ouro" tinham um pé no crime.)

Nos anos 70, o presidente de Scuderie Le Cocq era contrabandista, e o delegado Sérgio Fleury, grão-mestre do esquadrão paulista, ilustre janízaro da repressão política, protegia traficantes de drogas.

Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram conservadores, já os patronos dos esquadrões foram e são simplesmente atrasados. Por isso, Nova York e Londres são cidades seguras, enquanto o Rio é o que é. O detento Sérgio Cabral dizia que favelas eram fábricas de marginais.

As mineradoras nacionais moveram-se nos escurinhos do poder, e mesmo depois do desastre de Mariana bloquearam as iniciativas que aumentariam a segurança das barragens. Deu Brumadinho. As perdas da Vale nas Bolsas e com as faturas dos advogados superarão de muito o que custaria a proteção de Brumadinho. Será a conta do atraso.

Com menos de um mês de governo, Jair Bolsonaro foi confrontado pela diferença entre conservadorismo e atraso. Seu mandato popular ampara-se numa plataforma conservadora com propostas atrasadas. Muita gente que votou nele pode detestar o Ibama e as ONGs do meio ambiente. Também pode achar que bandido bom é bandido morto.

Quando acontecem desgraças como Brumadinho ou quando são expostas as vísceras das milícias e seus mensalinhos, essas mesmas pessoas mudam de assunto e o presidente fica só, como ficou o general João Figueiredo depois do atentado do Riocentro.

O atraso é camaleônico. Escravocratas do Império tornaram-se presidentes na República Velha. A Federação das Indústrias de São Paulo financiou o DOI, aderiu à Nova República e varreu os crimes da ditadura para a porta dos quartéis.

Trogloditas do agronegócio e espertalhões das mineradoras sabem o que querem. Conviveram com o comissariado petista esperando por um Messias. Tiveram-no. Quando a Vale caiu na frigideira, fizeram o que deviam e, num só dia, venderam suas ações derrubando em R$ 71 bilhões o seu valor de mercado.

Durante a campanha eleitoral, quando confrontado com os problemas que encontraria na Presidência, Bolsonaro repetia um versículo do Evangelho de João:

"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”

Brumadinho e suas relações com Fabrício Queiroz mostraram a Jair Bolsonaro o verdadeiro rosto do atraso.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Elio Gaspari: O valor do silêncio do general calado

A eleição de Jair Bolsonaro propagou o vírus da anarquia militar. Aqui e ali ouve-se falar em “núcleo militar” influindo no governo e “desconforto” fora dele. Desde que o presidente disse ao ex-comandante do Exército que “o que nós já conversamos morrerá aqui”, disseminou-se a curiosidade em torno do que conversaram. O fato da vida é que, para impedir-se a eleição de um candidato do PT, com suas obras e suas pompas, levou-se ao Planalto um capitão de pouca disciplina que, em 1988, baldeou-se para a atividade parlamentar. Ele levou na vice um general de quatro estrelas (da reserva) que anos antes perdera o comando das tropas do Sul por ter feito um discurso político.

O general tal acha isso, o general qual acha aquilo. Falta registrar que todos os militares que ocupam cargos civis estão na reserva e comandam apenas poderosas mesas. Chefe militar acha, mas não fala. Ninguém ouviu uma só palavra do general Enzo Peri, que comandou o Exército de 2007 a 2015. O mesmo se pode dizer de Gleuber Vieira, comandante de 1999 a 2003. Ambos tipificam o general calado. Não falavam antes de assumir o comando, nem falaram depois. O general calado é um enigma em si mesmo. Move-se dentro das normas da corporação. Manda, mas não fala, mesmo em épocas em que falam generais que não mandam ou, pelo menos, não mandam tanto quanto se pensa. Olhando-se para trás, é fácil ver o peso do general calado.

Castelo Branco só falou em março de 1964, dias antes da deposição do presidente João Goulart. Emílio Médici foi o silêncio da orquestra e chegou à Presidência sem dizer uma palavra fora das reuniões de generais. Os irmãos Geisel, Orlando e Ernesto, nunca falaram.

O general Euler Bentes, que em 1978 foi candidato a presidente pelo MDB (o de Ulysses e Franco Montoro, não o que está aí) nunca falou enquanto esteve na ativa. Derrotado, retirou-se no seu “Sítio do Pica Pau Amarelo” e morreu em 2002. Seu curto necrológio foi publicado abaixo da notícia da morte de “Mocinha”, a inesquecível porta-bandeira da Mangueira.

No ocaso da ditadura e da anarquia militar, havia alguns generais falantes, mas ninguém se lembra, por exemplo, de Ademar Costa Machado e de Jorge de Sá Pinho. Estavam no Alto Comando que barrou as bruxarias da anarquia e garantiu a eleição de Tancredo Neves (pode ser verdadeira a história segundo a qual Tancredo pediu para conversar com Costa Machado, a quem queria colocar no governo. Ele pediu que se encaminhasse a solicitação ao Ministério do Exército). Para dançar um tango e para alimentar a anarquia, não basta um militar, mesmo que seja da reserva. É indispensável uma vivandeira paisana. Durante a campanha eleitoral do ano passado, um general organizou uma reunião para ouvir uma palestra de paisano sobre obras de infraestrutura. Na sessão de perguntas, um oficial quis saber qual dos dois candidatos a presidente teria mais qualificações para tocar o assunto. O comandante da guarnição pediu que a pergunta fosse ignorada e que o oficial saísse da sala.

Ouvir o silêncio do general calado é tarefa impossível, mas uma coisa é certa: ouvir as falas dos generais da reserva em funções civis ou mesmo fora delas, como se falassem pelos quartéis, estimula a anarquia, embaralha os problemas e confunde a audiência. dos movimentos do “Mestre” também conhecido como “Cardeal”.

Nos últimos meses de 1963, teve pelo menos três conversas com o embaixador americano Lincoln Gordon, que via nele um conselheiro e redator de discursos do presidente João Goulart. Serpa testemunhou o ocaso de Jango na madrugada de 1ª de abril de 1964. Em julho, encontrou-se com o general Golbery do Couto e Silva, estrela da ditadura nascente. Anos depois, frequentava o gabinete de um coronel da confiança do general Emílio Médici. Em 1969, ao ser nomeado para a Presidência, o general fez um discurso oferecendo-se para praticar um “jogo da verdade” e restabelecer a democracia. Quem escreveu? Jorge Serpa (mais tarde, Médici defenestrou o coronel para liquidar a influência daquilo que o SNI chamava de “Grupo Serpa”).

O poderoso Jorge Serpa baixou à sepultura no cemitério São João Batista na terça-feira. Havia menos de dez pessoas na cena.

ABRIL EM ABRIL
O empresário Fábio Carvalho, que está comprando os salvados da editora Abril, decidiu que pagará todas as rescisões trabalhistas de ex-funcionários da empresa, até o teto de R$ 250 mil.

Com essa medida, sairão do sufoco 1.122 dos 1.154 ex-funcionários da empresa. Deles, 144 são jornalistas, 299 são gráficos e 679 trabalhavam em outros serviços. Pela sua conta, uma vez sacralizada a compra da empresa, o dinheiro chegará ao bolso das vítimas do processo de recuperação judicial entre o final de março e o início de abril.

A memória de Victor Civita, o fundador da empresa, que nunca atrasou o pagamento de seus empregados, agradece.

TRÍPLICE TEM TRÊS
Até as pedras sabem que o governo Bolsonaro tem um encontro marcado com inquietações nas universidades.

A retórica obscurantista do capitão levava a crer que dele partissem medidas provocadoras. Deu o contrário. Há professores inquietos diante da possibilidade de serem indicados para as reitorias mestres que não encabeçam as listas tríplices encaminhadas pelos conselhos universitários ao Ministério da Educação.

Como diz o nome, lista tríplice tem três nomes. Em 2009, o governador José Serra nomeou para a reitoria da Universidade de São Paulo o segundo nome da lista. A qualidade da reitoria do professor João Grandino Rodas é outra história.

QUARENTENA
Parlamentares da oposição já decidiram apresentar um projeto estabelecendo uma quarentena de quatro anos para que ocupantes do primeiro escalão do governo possam ser nomeados para o Supremo Tribunal Federal.

Essa ideia constou do conjunto de medidas contra a corrupção proposto ao tempo em que o juiz Sergio Moro estava em Curitiba.


Elio Gaspari: De Guerreiro@edu para Bolsonaro

Senhor presidente,

Fui empregado do Itamaraty durante 45 anos, seis dos quais como ministro das Relações Exteriores do general João Figueiredo (1979-1985). Ouvi o que o senhor disse em Davos, esperando que o governo da Venezuela “mude rapidamente”. Por cá, tenho ouvido a mesma coisa, pois o presidente Nicolás Maduro arruinou o país. Escrevo-lhe para sugerir que nossa diplomacia trate a crise desse país com quem temos dois mil quilômetros de fronteira seca tirando as meias sem tirar o sapato. Para as pessoas comuns, isso parece impossível, mas no Itamaraty sabemos fazê-lo.

Tenho horror a falar de qualquer coisa, sobretudo de mim. Na Casa corre o chiste segundo o qual eu sou capaz de dormir durante meus próprios discursos. Costumo adormecer os outros mas, mesmo acordado, falo pouco.

Quando sugiro que tiremos a meia sem tirar o sapato, lembro que a hostilidade verbal de seu governo em relação a Nicolás Maduro já foi explicitada. Nossas precauções devem se relacionar com o dia seguinte a uma eventual queda do bolivarianismo. O que advirá? Isso ninguém sabe. Tomara que não aconteça nada e que os venezuelanos resolvam a própria crise.

Em 1965, o Brasil apoiou a intervenção militar americana na República Dominicana, mandou tropas para uma força multilateral de paz e chegou a comandá-la. Mesmo assim, veja a frequência com que se fala das nossas missões militares recentes no Haiti e no Congo. Da República Dominicana, fala-se pouco. O que começou como uma operação destinada a evacuar cidadãos americanos transformou-se numa ocupação, e a tropa brasileira ficou por lá durante 18 meses. Até hoje, a diplomacia americana discute o processo de decisão que levou o presidente Lyndon Johnson a invadir o país. De qualquer forma, a Dominicana fica a dois mil quilômetros das nossas fronteiras.

O Itamaraty tirou a meia sem tirar o sapato em 1982, quando o general argentino Leopoldo Galtieri invadiu as Ilhas Malvinas, ocupada pelos ingleses desde 1833. O general achava que os Estados Unidos ficariam neutros e a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher absorveria o golpe. Não aconteceu uma coisa nem a outra. Se o Brasil apoiasse Galtieri, seria sócio de uma aventura. Se apoiasse a Inglaterra, alimentaria um ressentimento que duraria gerações. Ficamos no fio da navalha, apoiando o direito argentino à posse da ilha e dissociando-nos da invasão. Lembro-me de que o general Figueiredo foi a Washington e disse ao presidente Ronald Reagan que o Brasil não admitiria um ataque ao continente argentino. Ele não ocorreu, até porque não foi necessário.

Um ano depois do caso das Malvinas, pousou em Brasília um avião americano com o diretor da CIA, William Casey. Ele trazia um recado para Figueiredo: os Estados Unidos planejavam uma invasão ao Suriname e queriam nosso apoio, inclusive com tropas. O governo local era esquerdista, tinha ajuda cubana e perseguia a oposição. Conseguimos dissuadi-lo, dizendo-lhe que deixassem o Suriname por nossa conta. Figueiredo fez saber a Reagan que a condição de país limítrofe determinava que quaisquer efeitos negativos repercutiriam em primeiro lugar sobre nossos próprios interesses.

Nunca contei essa história, mas ela foi revelada no diário de Reagan. Outro dia reclamei com ele da indiscrição. Como ensinou o Barão do Rio Branco, diplomata não sai por aí cantando vitórias.

Perdoe-me a impertinência, mas o último presidente que pensou em mover tropas na nossa fronteira norte, para a Guiana Inglesa, foi Jânio Quadros.

Com meu profundo respeito, Ramiro Saraiva Guerreiro.


Elio Gaspari: Bem-vindo a Brasília, doutor Moro

Em Curitiba o juiz podia ir ao supermercado e sua caneta era uma lâmina, agora puseram-no num outro mundo

No sábado o ministro Sergio Moro foi chamado ao Palácio da Alvorada para uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e três colegas para decidir o que fariam com Cesare Battisti.

Ele fora preso na Bolívia e a Polícia Federal havia mandado um avião para trazê-lo de volta. Dias antes, Moro havia oficiado à Casa Civil para que exonerasse a diretora de Proteção Territorial da Funai, Azelene Inácio. O ministro vivia suas primeiras experiências no mundo da fantasia do poder.

A cena do sábado era pura ilusão do poder. O governo boliviano já decidira mandar Battisti para a Itália e um avião já saíra de Roma para buscá-lo.

O cumprimento da determinação para que Azelene fosse demitida era de outro tipo, pois deveria tramitar na burocracia do Executivo. Em Curitiba, Moro mandava prender e preso o cidadão seria. Caso o detento quisesse recorrer, a petição seguiria de acordo com o lento ritual do Judiciário.

Em Brasília, as coisas são, mas podem não ser. Na segunda-feira, Azelene, como o Alex da Apex, informou que continuava dando expediente e acrescentou que se sentia perseguida, como se estivesse “dentro do governo do PT”. A diretora continuou trabalhando porque a ministra Damares Alves, em cujo latifúndio jogaram a Funai, disse-lhe que reverteria a determinação de Moro.

O ministro da Justiça determinou à Casa Civil que exonerasse a diretora porque o Ministério Público apontou para um conflito de interesse na sua permanência. Passou-se uma semana e nada. Lula entregou-se à Polícia Federal em menos de 48 horas.

Em Curitiba, o Ministério Público denunciava, o juiz condenava e fim de caso, mas no Paraná Moro podia ir em paz a um supermercado. Em Brasília, ele teve a má experiência de ser interpelado por um cidadãoque também fazia suas compras. (Registre-se que Moro reagiu com a fleuma que faltou ao ministro Ricardo Lewandowski ao ser ofendido num avião.)

Brasília reserva outras surpresas a Moro. A maior delas certamente virá da imprensa. Na vara federal ele tinha um razoável controle da sua exposição.

Tendo feito boa liga com o Ministério Público, os procuradores ajudavam-no a operar a opinião pública. Moro era a imagem do poder nacional, encarnando algo bem-vindo e novo. Suas decisões eram festejadas, mesmo quando absolvia.

Podia dizer a um criminalista que advogados “atrapalham” e a conversa morria por lá. Se repetir coisas assim, está frito. Escapou-lhe também o controle da agenda.

O carro da deputada Martha Rocha leva tiros de fuzil e o problema cai sobre sua mesa. Fabrício Queiroz cala e dança e ele não pode fazer suas compras em paz. Isso para não se mencionar o conflito que está em curso no Ceará. Como ministro da Justiça e da Segurança Pública, Moro ganhou uma agenda velha e empoeirada.

Com a ida ao Alvorada para tratar de um assunto que podia ser resolvido por telefone ou pelo WhatsApp, ele entrou nos elencos teatrais da capital.

A cidade lhe reserva outros teatros, mais demorados e muitas vezes penosos. Ele descobrirá isso quando tiver que segurar uma conversa em jantar de embaixada. Habituado ao secular e poderoso simbolismo da toga, estará obrigado a conviver em ocasiões solenes com sexagenários que se enfeitam com faixas acetinadas e circulam pelo evento com o paletó aberto.

Quando Moro aceitou o convite de Bolsonaro para o ministério, disse que estava “cansado de tomar bola nas costas”. Essas boladas podiam vir do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, onde os jogadores são só 44. Pois agora levará caneladas e elas virão de todos os lados.

 


Elio Gaspari: A colaboração está virando jabuticaba

O instituto que começou como uma arma contra malfeitores aos poucos tornou-se uma barafunda que os favorece

Antonio Palocci, ex-ministro de Lula e Dilma, quindim da banca enquanto mandou, fechou seu terceiro acordo de colaboração, desta vez com o Ministério Público Federal em Brasília. Condenado a 12 anos de prisão, cumpriu menos de dois e está em casa, de tornozeleira. Como de hábito, o que vazou de suas confissões é uma mistura de notícias velhas com aulas de ciência política.

Quando juiz, no calor da campanha eleitoral, Sergio Moro divulgou um dos anexos da colaboração de Palocci à Polícia Federal. Espremendo-a, dela resultou que Lula chamou-o para uma reunião no Palácio da Alvorada e mandou que organizasse uma caixinha com os fornecedores
de sondas para a Petrobras.

Grande revelação, desde que em outros anexos, ainda desconhecidos, ele tenha contado a quem mordeu, quanto arrecadou e como passou o dinheiro adiante. Sem isso, o anexo é o que foi: um instrumento de campanha política.

O instituto da colaboração de malfeitores está contaminado desde 2015, quando um procurador de Curitiba formulou a doutrina da “bosta seca”, segundo a qual, havendo colaborações conflitantes, não se aprofunda a investigação.

Aceita-se a palavra do delator e, mais tarde, sentenças baseadas nelas caem nas instâncias superiores. Essa jabuticaba faz a fortuna de uma nova geração de criminalistas.

Ainda neste ano o Supremo Tribunal Federal decidirá se mantém ou revoga o acordo feito por Rodrigo Janot com os donos da JBS. Os irmãos Batista estão na frigideira, mas Janot, a outra ponta de um acordo tão astucioso quanto escalafobético, vai bem, obrigado.

Com a ida do astro-rei Sergio Moro para o Ministério da Justiça, talvez se possa começar a duvidar da eficácia da doutrina da “bosta seca”. Estima-se que, de cada dez anexos de colaboração, só a metade resulte em investigações ou sindicâncias.

Para ficar num exemplo que entrará nos anais da diplomacia, o Itamaraty de Lula deu agrément ao doutor Choo Chiau Beng, para a posição de embaixador de Cingapura no Brasil. Ele não pertencia ao serviço público, nunca chefiou a embaixada em Brasília e não deixou de ser o CEO do estaleiro Keppel, que fornecia sondas à Petrobras.

Essa circunstância foi revelada na colaboração do operador da Keppel no Brasil, Zwi Skornicki, que pagou a propina de 1,2% no contrato de US$ 700 milhões da plataforma P-52.

Quem topou dar o agrément? Choo entregou suas credenciais a Lula e chegou a fazer uma visita protocolar ao presidente do STF, Joaquim Barbosa.

ONIPOTÊNCIA
Os poderosos acreditam em qualquer coisa e assim há quem creia que a embrulhada de Fabrício Queiroz possa ser resolvida por algum craque capaz de matá-la no peito.

Afinal, Sérgio Cabral julgou-se protegido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, mas Claudio Lopes, que ocupou a procuradoria-geral de 2009 a 2011, passou uns dias na cadeia e Cabral rala sentenças que somam 192 anos.

Na infantaria do Ministério Público do Rio há gente decidida a impedir um novo vexame. Os procuradores não têm pressa, só perguntas.

PARENTE DO GENERAL
Refrescando a memória para a “nova era” do governo Bolsonaro:

Em 1964, o general Ernesto Geisel, chefe do Gabinete Militar de Castello Branco, encontrou-se com um sobrinho. Economista e funcionário do Banco do Brasil, pretendia trabalhar no gabinete do ministro do Planejamento, Roberto Campos. O general abateu-o em voo: “Não vá, porque eu vou dizer ao Roberto que mande você embora”.

Já o marechal Castello Branco demitiu o irmão Lauro da Diretoria de Arrecadação do Ministério da Fazenda porque ele aceitou um automóvel de presente.

OS FAIXAS
Nos últimos tempos disseminou-se o uso de faixas no vestuário dos hierarcas nacionais.

Pela norma, só quem tem a grã-cruz de alguma ordem da nobiliarquia republicana pode usar esse adereço, em ocasiões especiais. Como em Pindorama é farta a distribuição de condecorações, paisanos aparecem em solenidades com suas faixas coloridas. O governador Wilson Witzel mandou que se fizesse uma para enfeitá-lo.

Já se foi o tempo em que no Brasil só quem usava faixa eram o presidente da República e as misses de concursos de beleza.

UM JABUTI NO MEC
Alguém pôs um jabuti no edital dos livros didáticos que o Ministério da Educação divulgou no dia 2 de janeiro (governo Bolsonaro). A medida tinha data de 28 de dezembro (governo Temer) e com isso estabeleceu-se um jogo de empurra para fixar a autoria da peça.

As novidades do edital eram de discutível natureza pedagógica, mas escondido na pirotecnia havia um jabuti. Ele revogava a proibição de publicidade nos livros das crianças.

Assim, um garoto poderia estudar matemática num volume que anunciasse, por exemplo, as virtudes de uma operadora de telefonia.

As mudanças relativas à violência contra mulheres envolviam uma questão pedagógica. A colocação dos livros didáticos no mercado publicitário é um pleito antigo de algumas editoras e nesse caso há dinheiro no lance.

Tomara que a sindicância aprofunde a origem jabuti.

LEIAM O TIMES
Depois de pedir aos diplomatas que leiam mais José de Alencar e menos o New York Times, o chanceler Ernesto Araújo informou que o monoglota Alex Carreiro pediu para deixar a presidência da Apex, para a qual havia sido nomeado dias antes:

“O sr. Alex Carreiro pediu-me o encerramento de suas funções como presidente da Apex”, escreveu o ministro.

Carreiro não pediu demissão. Teve que ser demitido.

É melhor ler o New York Times. Lá quem mente está frito.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e encantou-se com o capitão quando soube que ele não preencheria cargos técnicos com indicações políticas. Altruísta, o cretino sabia que com isso perdia o acesso a uma boquinha.

Eremildo decidiu ir a Brasília para reivindicar um emprego na Agência de Promoção de Exportações. Alex Carreiro, escolhido por Bolsonaro para presidi-la, não era fluente em inglês, mas dirigiu o Patriotas de Brasília, primeiro partido a oferecer legenda ao capitão.

Ele foi patrocinado por amigos do PSL e viu-se defenestrado por causa de um atrito com uma diretora da agência, ex-secretária-geral do partido (expulsa em setembro passado). Mosca de padaria, ele esteve no Sebrae, na Caixa e na Secretaria de Portos.

Eremildo lembra que durante o mandarinato petista a Apex foi aparelhada com uma ex-secretária de Lula e com a mulher de um “aloprado” da fábrica de dossiês contra o PSDB. A agência foi presidida pelo comissário Alessandro Teixeira. Em 2016, Dilma Rousseff nomeou-o para o Ministério do Turismo e sua mulher (Miss Bumbum 2012) fez um ensaio fotográfico no gabinete do doutor.

OTIMISMO
Coisas boas também acontecem.

No dia 4 de março a Mangueira entrará na avenida cantando “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.


Elio Gaspari: O estilo teatral de Bolsonaro

Muita gente acha que Trump tem um estilo e isso é verdade, mas ele é acima de tudo um mentiroso

Como diria Lula, nunca na história deste país um presidente trombou tantas vezes com seu próprio governo em tão pouco tempo. Não foram trombadas de conceitos, mas de fatos.

Ao contrário do que dissera, Bolsonaro nunca baixou a alíquota do Imposto de Renda nem subiu a do IOF. Como sempre acontece na história deste país tentou-se remendar o efeito das trombadas com juras de fé e coesão.

Em tese, o presidente vale-se de sua capacidade de comunicação, comprovada na construção de uma candidatura vitoriosa. Na vida real, campanha é uma coisa, governo é outra.

Novamente em tese, ele faz o que fez Donald Trump, dirigindo-se diretamente ao povo que gosta de ouvi-lo. Novamente na vida real, o estilo de Trump é irrelevante porque ele é acima de tudo um mentiroso. Calcula-se que minta cinco vezes por dia.

As curtas mensagens de Trump podem inspirar Bolsonaro, mas o meio não é a mensagem. Jânio Quadros comunicava-se por bilhetinhos que hoje enfeitam o folclore de sua Presidência, Ninguém ri dos adesivos de Winston Churchill ordenando “Ação, hoje”. Isso porque as coisas aconteciam.

As trombadas de Bolsonaro parecem-se mais com o “campo de distorção da realidade” do genial Steve Jobs. Misturando carisma e segurança, ele se julgava capaz de convencer as pessoas de qualquer coisa.

Bolsonaro pode ter convencido muita gente de que o Brasil precisa se livrar do socialismo, mas quem acreditou na necessidade de colocar o Ministério do Meio Ambiente dentro da Agricultura enganou-se.

O “campo de distorção da realidade” pode funcionar na iniciativa privada, pois diante de um conflito o gênio prevalece ou vai embora.

Foi isso que aconteceu com Jobs em 1985, quando ele deixou a empresa que fundou. (Ele voltou à Apple em 1997, para um desfecho glorioso.) No exercício de uma Presidência, o negócio é outro. Trump ficou em minoria na Câmara e corroeu boa parte do prestígio internacional de seu país.

O governo de Bolsonaro tem três campos de distorção da realidade. Um está na segurança. A ação do crime organizado no Ceará mostrou que não existe pomada para tratar dessa ferida.

Outro fica no mundo dos costumes e tem funcionado como um grande diversionismo. O terceiro, aquele que parecia demarcado com a delegação de poderes ao posto Ipiranga, foi onde se deram as trombadas.

Isso porque os ministros Sergio Moro e Ricardo Vélez podem dizer o que quiserem. No mundo da economia a sensibilidade é imediata e por isso a primeira trombada teve que ser logo remendada.

A eficácia da teatralidade de Bolsonaro mostrou seu limite em menos de um mês. Isso aconteceu antes mesmo que o Congresso reabrisse seus trabalhos.

Dois presidentes deram carta branca a seus ministros da Fazenda. Num caso, com grande sucesso, Itamar Franco sagrou Fernando Henrique Cardoso.

No outro, com retumbante fracasso, o general João Figueiredo manteve Mário Henrique Simonsen no governo. Com o tempo viu-se que Itamar acreditou no que fez, enquanto Simonsen preferiu ser enganado. Não se sabe o que está escrito na carta branca de Paulo Guedes, mas essas cartas nada têm de brancas.

O simples murmúrio de que o secretário da Receita, Marcos Cintra, está na frigideira é um mau sinal. Ele deveria ter pensado duas vezes antes de botar a cara na vitrine desmentindo o presidente, mas o doutor estava certo, e Bolsonaro, errado.

Era uma questão factual, o decreto do IOF não havia sido assinado. Como ensinou o senador americano Daniel Moynihan, “todo mundo tem direito à sua própria opinião, mas não aos seus próprios fatos”.

 


Elio Gaspari: Bolsonaro desceu do palanque

Presidente trombou com a ekipekonômica, mas mostrou caminho para aprovar reforma da Previdência

Pelo andar da carruagem, a reforma da Previdência será aprovada. Numa revelação surpreendente feita durante uma entrevista aos repórteres Carlos Nascimento, Débora Bergamasco e Thiago Nolasco, o presidente Jair Bolsonaro pôs na mesa uma nova idade mínima para o acesso às aposentadorias e abriu o caminho para que ela passe a girar em torno de seu eixo principal, a “fábrica de desigualdades” exposta pelo ministro Paulo Guedes: “Quem legisla e julga tem as maiores aposentadorias e a população, as menores”.

Durante a campanha, Bolsonaro repetiu que a idade mínima do projeto mandado por Michel Temer era perversa. O anúncio da nova idade resultou numa trombada com a ekipekonômica. Resta saber quem manda e quem é capaz de fazer um projeto que passe pelo Congresso.

Bolsonaro defendeu de forma convincente a mudança na lei que permite a posse (não o porte) de armas. Afinal, em 2005, um plebiscito rejeitou a proibição da venda de armas de fogo. Felizmente, ele não comparou trabucos a automóveis, como faz o ministro Augusto Heleno.

O Bolsonaro da entrevista pareceu mais leve que o do palanque de mármore de Brasília. Ainda assim, disse que “hoje em dia o poderio das Forças Armadas americanas, chinesas e soviéticas alcança o mundo todo”. Como ele acha que com o seu governo o Brasil “começa a se livrar do socialismo”, alguém precisa avisá-lo de que a União Soviética se acabou em 1991.

O PODER DE PAULO GUEDES
Falta ao poderoso ministro Paulo Guedes um pé no Planalto. Parece detalhe, mas há dois tipos de ministros, os que têm sala no Palácio (Augusto Heleno, por exemplo) e os que não têm.

Quem está no primeiro grupo checa se o presidente está livre, toma o elevador e vai à sua sala. Quem não está precisa marcar hora ou arriscar-se a uma espera.

É claro que Guedes verá Bolsonaro sempre que isso for necessário, mas, por enquanto, a burocracia palaciana revela que nos primeiros cem dias de governo ele participará da reuniões do ministério às terças-feiras e de cinco encontros de “alinhamento”, sempre com outros colegas.

A trombada ocorrida na sexta-feira entre o que diz Bolsonaro e o que pensa a ekipekonômica mostra que faltam conversas. Isso na melhor das hipóteses, porque pode estar faltando disciplina. Choque com a ekipekonômica na primeira semana de governo é coisa nunca vista.

Os ministros com sala no Palácio têm um acesso informal ao presidente e essa circunstância cria um tipo especial de convivência. Para o bem, produz eficácia, para o mal, intrigas. É mais fácil se desviar de uma bola nas costas estando perto do juiz.

SANTAS PALAVRAS
Pode-se achar o que se queira do discurso de posse de Paulo Guedes, mas é impossível discordar de seu diagnóstico sobre os bancos públicos:

“Eles se perderam nos grandes programas, onde piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro.”

A BIC DE TEREZA
A caneta Bic de Tereza Cristina, ministra da Agricultura, tem mais tinta que a da maioria dos ministros civis.

O SAMBA DE ARAÚJO
O grande ausente na posse do chanceler Ernesto Araújo foi o escritor Oswald de Andrade (“Tupi or not tupi”). Quando o diplomata pediu a seu colegas que lessem mais José de Alencar e menos o New York Times, poderia ter feito uma ressalva, recomendando sua obra de ficção. Nela há um negro endiabrado sendo chamado de “bugio”, mas ficção é ficção.

Há um outro Alencar, político, deputado, ministro da Justiça e escravocrata convicto. Ele chamou a Lei do Ventre Livre de “iníqua e bárbara”. Isso em 1871, seis anos depois do fim da Guerra Civil que acabou com a escravidão nos Estados Unidos.

Alencar criticava o “fanatismo do progresso” e advertia: “A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo.”

“Toda lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e representa uma nova situação, embora imperfeita, da humanidade. Neste caso está a escravidão.”

“Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível.”

Alencar sustentava que o Estado não deveria se meter a legislar sobre a relação trabalhista da escravidão.

O MITO DE ARAÚJO
Noves fora José de Alencar, o chanceler Araújo deu-se a comentários sobre figuras míticas, valendo-se do rei português d. Sebastião. Com sua erudição, poderia ter associado Jair Bolsonaro a uma centenas de outras figuras.

D. Sebastião era meio pancada, sumiu na batalha de Alcácer Quibir (1578) e, como tinha horror às mulheres, foi-se embora sem deixar descendência. Disso resultou na anexação de Portugal pela Espanha por 60 anos.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e acha que os condenados na primeira instância do Judiciário devem ir para a cadeia sem direito a recurso.

O que o cretino não entende é por que o ministro Sergio Moro quer enviar ao Congresso uma emenda constitucional assegurando e prisão dos condenados na segunda instância.

Como juiz, Moro defendia esse procedimento e o tema está na pauta do Supremo Tribunal Federal para o dia 10 de abril.

Como é impossível que o Congresso aprove a emenda em tão pouco tempo, Eremildo ficou com a impressão de que a iniciativa seja uma pressão inútil. Até porque, o tribunal sempre poderá julgar a mudança inconstitucional.

A APPLE MANCOU
A queda do valor da Apple foi atribuída pelo mercado a uma retração dos compradores chineses.

Algo pior pode vir por aí. Depois de ter mudado os hábitos de consumo com os iPhones e os iPads, a Apple está mancando no novo mercado de aplicativos e de assistentes digitais que recebem ordens por comandos de voz.

Esses equipamentos têm o tamanho de um pequeno pote. Entre outras coisas, processam mensagens, ligam luzes, tocam músicas, registram ordens de compras e a cada dia expandem sua capacidade. O Echo da Amazon e o Google Home dominam o mercado, enquanto o HomePod da Apple está bem atrás. Steve Jobs não deixaria isso acontecer.

WITZEL NO PALANQUE
O governador Wilson Witzel ainda não desceu do palanque. Quando ele disse que o país precisa de “estabelecimentos prisionais destacados, longe da civilização, precisamos ter a nossa Guantánamo”, ofendeu a geografia e, tendo sido juiz, massacrou o Direito.

A prisão americana de Guantánamo não fica longe da civilização. Está a 899 km de Miami e a 65 km de Santiago de Cuba. Quando o presidente Bush resolveu mandar terroristas para lá, o que ele queria era mantê-los fora do alcance da Constituição dos Estados Unidos. A Corte Suprema cortou-lhe as asas.

TEMER PERDEU
O pente-fino determinado pela Casa Civil para o reestudo das últimas medidas tomadas pelo governo de Michel Temer é o preço que ele pagará por ter apostado no escurinho do fim de mandato para disseminar um testamento.

Deu o mau exemplo nomeando protegidos para a direção de agências reguladoras e acabará enrascado em maluquices de escalões inferiores.


Elio Gaspari: O capitão chegou

No palanque de mármore do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro fez o seu último discurso de campanha

Jair Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto pela vontade da maioria dos eleitores e com a esperança de dois terços da população. Discursos de posse podem querer dizer muito, ou nada.

O de Tancredo Neves, que não foi lido, queria dizer muito, os de Jair Bolsonaro, afora as teatralidades, acrescentaram pouco ao que disse na campanha. Ele propôs genericamente um "pacto nacional entre a sociedade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para o Brasil" e reafirmou seu "compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão".

Quem saiu da cerimônia e soube que, pouco depois, Bolsonaro anunciou que "o Brasil começa a se libertar do socialismo e do politicamente correto", ficou sem entender nada. Socialismo por cá nunca houve e o "politicamente correto" pode ser muita coisa ou coisa nenhuma.

Entre o discurso feito no Congresso e o do parlatório parece haver um abismo. No palanque de mármore, Bolsonaro repetiu temas que lhe deram o mandato popular. Fica a dúvida em relação ao "pacto". Ele existe, cheio de remendos, mas chama-se Constituição.

A partir de hoje, discursos de campanha serão inúteis, pois começa o serviço. Ele demanda eficácia e respeito às instituições dentro do pacto existente.

A ideia segundo a qual o Brasil precisa se libertar do "politicamente correto" (uma questão de comportamento) ou do "socialismo" (simples fantasia) é uma construção apocalíptica.

O ministro da Economia deverá tomar as medidas necessárias para liberalizar a economia, o da Educação poderá reorganizar os currículos escolares e administrará os recursos da pasta. Já o ministro da Justiça e de Segurança poderá compatibilizar o discurso da lei e da ordem com as leis e a ordem da vida real.

Até agora, como não poderia deixar de ser, tudo são promessas. O único sinal indiscutível, ainda que simbólico, do compromisso de novo governo com a austeridade, esteve no fato de todos os ministros de Bolsonaro terem assinado os termos de posse com uma caneta Bic. (Já houve tempo em que eram populares as Mont Blanc.)

A retórica apocalíptica do discurso no palanque de mármore contradisse a harmonia prometida na fala ao Congresso, mas só o dia a dia do governo poderá revelar o rumo de governo.

Do outro lado do balcão, partidos de oposição liderados pelo PT boicotaram a cerimônia republicana da posse do presidente. Péssima ideia, justificada com argumentos da pior qualidade.

A partir de hoje a oposição deverá partilhar o futuro da vida nacional. O pior cenário possível será aquele em que o Brasil terá um governo empenhado em libertar o país do "socialismo", e um pedaço da oposição esteja convencida de que ele vem aí, ou deveria vir.

Um choque de visões milenaristas não tem nada a ver com a vida nacional. O mandato recebido por Bolsonaro teve uma essência mais simples. Os brasileiros querem mais segurança, mais ordem e mais liberdade na economia.

Na expressão dessa vontade, repeliram corruptos e apoiaram propostas radicais, até mesmo demagógicas. Daí, não se pode concluir que uma sociedade politicamente radicalizada precisa da construção de conflitos.

Na primeira metade dos anos 60 a radicalização produziu tamanha intolerância política que um pedaço da sociedade não aceitava a hipótese da eleição de Juscelino Kubitschek para a Presidência. Outro pedaço não aceitava que o eleito fosse Carlos Lacerda.

Jamais o país teve dois candidatos mais qualificados e deu no que deu. Ambos foram proscritos pela ditadura.