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Elio Gaspari: Weintraub fez um Enem infernal
O que aconteceu foi inédito: erraram nas notas
É a mesma história, a quitanda abre tarde, sem berinjelas para vender, nem troco para a freguesa. Não bastassem as filas do INSS, o governo conseguiu azucrinar a vida da garotada que fez o exame no Enem e viu-se tungada nas notas. Aos aposentados disseram que fila é “estoque” e atraso é “empoçamento”. Aos estudantes dizem que erro nas notas é “inconsistência” e que o Inep “imediatamente adotou medidas”. A primeira afirmativa é empulhação, a segunda, mentira.
O vestibular sempre foi uma crueldade imposta aos jovens brasileiros. Em duas manhãs eles são obrigados a jogar um ano de vida, bem como suas expectativas pessoais e de seus familiares. Desde 2009 acontecem desgraças nesse exame. Num ano houve o furto de provas na gráfica, em três outros comprovaram-se vazamentos de questões. O que aconteceu com o exame de 2019 foi coisa inédita: erraram nas notas dadas a estudantes e em dois dias foram da onipotência à mistificação.
Aos fatos:
Vitor Brumano, 19 anos, candidato a uma vaga num curso de Engenharia, viu que sua nota não conferia. Tentou se queixar, mas não havia onde. Ligou para um 0800, e a atendente lhe disse que era isso mesmo. Registrou sua reclamação junto à Ouvidoria do Inep e recebeu a seguinte resposta:
“O edital que regulamenta o exame não prevê a possibilidade de recorrer da nota, pois o desempenho do participante na prova objetiva é calculado com base na TRI, a prova do Enem tem 180 questões objetivas. Portanto, a média não é exatamente proporcional à quantidade de acertos porque as perguntas têm grau de dificuldade diferente”. Conversa de educateca.
Vitor criou um grupo no WhatsApp. Começou com sete jovens tungados e em poucos dias teve dois mil comentários.
No sábado, o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, disse que “nós encontramos algumas inconsistências na contabilização da segunda prova do Enem. (...) Um grupo muito pequeno de pessoas teve o gabarito trocado. (...) Estamos falando de 0,1%”. Conta outra, doutor, foram pelo menos seis mil jovens, e nenhum deles seria lesado em 0,1% de seu desempenho mas, em muitos casos, em 100%.
Weintraub sabe o que é ralar como estudante. Em 1989 ele estava no primeiro ano de Economia na USP e tomou quatro zeros. Como ministro, explicou-se: “Foi um inferno. Meus pais se separaram, teve o Plano Collor, minha família desmanchou, eu tive depressão e sofri um acidente horroroso que eu tive que colocar um parafuso no braço.” O inferno do jovem Weintraub derivou de circunstância pessoais. O inferno da garotada do Enem de 2019 derivou da incompetência, agravada pela arrogância de seus educatecas. Se jovens como Vitor Brumano não tivessem botado a boca no mundo e se não existisse o tambor das redes sociais, eles seriam jogados num estoque empoçado de estudantes reclamões.
Jair Bolsonaro e Weintraub sempre trataram o Enem como uma questão ideológica. Que seja, mas como diz o seu nome, é um exame. Quem quiser, pode travar uma guerra cultural em torno dos tipos de berinjelas. Afinal, entre outras, há as italianas e as chinesas (comunistas e globalistas). Acima das ideologias, vale a lei do professor Delfim Netto: A quitanda do governo tem que abrir cedo, com berinjelas para vender e troco para a freguesa.
Elio Gaspari: Bolsonaro precisa levantar o tapete
Comissão de Ética deveria dar alegrias, mas tem sido fonte de tristezas
No próximo dia 28 a Comissão de Ética da Presidência da República tratará do caso do secretário especial de Comunicação do Planalto, Fabio Wajngarten. Como se sabe, até ser nomeado para o cargo ele dirigia uma empresa que tinha contratos com emissoras de TV e agências de publicidade que vendem serviços à Secom. Depois que se desligou funcionalmente, foi substituído por pessoa de sua confiança que vem a ser irmão do seu braço direito na Secom. Ele continua dono de 95% das cotas da empresa.
A Comissão de Ética da Presidência tem um passado de tumultos e frangos. Dois de seus presidentes já se demitiram (Marcílio Marques Moreira, em 2002, e Sepúlveda Pertence, em 2012). Passou por baixo das pernas dos seus doutores a evolução patrimonial do comissário Antonio Palocci, e ela conviveu com a escalafobética prática dos ministros que tinham empresas de consultoria. Em 2011, eram cinco.
Instituição que deveria dar alegria aos contribuintes, a comissão foi fonte de tristezas. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff dispensou legalmente 5 do seus 7 integrantes, e essas cadeiras ficaram vazias por cinco meses. No ano seguinte, a comissão deixou de publicar suas atas. Deu no que deu.
Wajngarten explicou-se na quarta-feira com um forte argumento: “Fui orientado pela SAJ [Subchefia de Assuntos Jurídicos do Planalto], pela AGU [Advocacia-Geral da União] e pela CGU [Controladoria-Geral da União]” para “que eu saísse do quadro de gestão” da empresa. Esse argumento terá a força de sua documentação.
Se existem uma consulta formal de Wajngarten a qualquer um desses órgãos e uma resposta informando que seu simples afastamento funcional eliminava qualquer conflito de interesses, será o jogo jogado. Se não existem papéis assinados, o argumento vira pó, entrando no mundo nebuloso das conversas do Planalto, nas quais todo mundo faz o que acha que pode e depois diz que não teve nada a ver com isso.
Como disse o presidente Bolsonaro, “se foi ilegal a gente vê lá na frente”. O que significa “lá na frente”, só ele sabe.
Olhando-se lá pra trás, ao primeiro ano de sua Presidência ele tem um espinho no pé. Em agosto do ano passado, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões, um trocado para um fundo que administra R$ 55 bilhões.
A Controladoria-Geral da União estudou o edital e, entre outras coisas, descobriu que uma só escola de Itabirito (MG) receberia 30 mil laptops (118 para cada um de seus 255 alunos). Outra, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG), receberia cinco laptops para cada estudante. Essa discrepância repetia-se em 355 escolas. O jabuti foi apanhado pela CGU, uma instituição do Estado, destinada a zelar pelo patrimônio da Viúva. Nada a ver com essa espécie desgraçada dos jornalistas.
O edital foi revogado em setembro e, desde então, jogou-se o jabuti para baixo do tapete. Passaram-se quatro meses e ninguém sabe quem concebeu o tal edital, quem tocou o assunto e quem chegou a justificar suas maluquices.
Isso tudo num caso em que o governo teria do que se orgulhar pela ação da CGU e pela decisão do presidente do FNDE de revogá-lo.
Cultura e Apocalipse
Antes de ser demitido da Cecretaria (à moda de Abraham Weintraub) de Kultura, Roberto Alvim disse que tinha convencido Bolsonaro de que sua repetição das palavras de Joseph Goebbels foi uma “coincidência retórica”. Como ele conseguiu isso não se sabe.
A apropriação foi mais que um plágio, foi uma identidade conceitual. Não são só os nazistas que pensam em arte “heroica”, mas a frase de Goebbels copiada por Alvim continha uma essência apocalíptica comum aos hierarcas do nazismo e do pós-nazismo. Em 1933, o ministro da Propaganda da Alemanha achava que a arte seria “heroica”, “ou então não será nada”. (E nada foi. Em 1945, Goebbels e sua mulher se suicidaram, depois de matar seus seis filhos de quatro a doze anos. A mais velha teria pressentido a execução, reagindo.)
O perigo das concepções pós-nazistas está na retórica apocalíptica infiltrada no cotidiano político: as coisas devem ser como eu digo, ou tudo se acaba. Nisso, Alvim foi apenas um desafortunado lambari.
Elio Gaspari: A quitanda do INSS entrou em pane
Essas coisas só acontecem com gente do andar de baixo
Os çábios da ekipekonômica desprezaram o conselho do professor Delfim Netto para o bom funcionamento do governo: “Todo dia você tem que abrir a quitanda de manhã cedo, ter berinjela para vender e troco para a freguesa.” A reforma da Previdência está no mapa há um ano e foi aprovada em novembro. Como a quitanda não tem berinjelas nem troco, pela primeira vez em muitos anos reapareceram as filas na porta de agências do INSS. Estima-se que 1,3 milhão de pessoas estão com seus processos encalhados. Desde 13 de novembro nenhum pedido de aposentadoria foi atendido. O óbvio: essas coisas só acontecem com gente do andar de baixo.
A quitanda encrencou porque os doutores, mestres na arte de ensinar economia e modernidade, não fizeram seu serviço. Até aí, a ekipekonômica apenas conseguiu ressuscitar um velho problema, mas ela superou-se com um blá-blá-blá empolado na forma e empulhativo no conteúdo.
O presidente do INSS, doutor Renato Vieira, disse o seguinte: “A seguir o atual fluxo, a atual produtividade do INSS, que tem demonstrado resultados positivos, sobretudo no último semestre de 2019, nós esperamos que nos próximos seis meses a situação esteja absolutamente regularizada”.
Ganha uma ida a Davos (sem agasalhos) quem souber como um serviço pode ter se tornado mais produtivo se há uma fila de 1,3 milhão de pessoas na porta da quitanda. O doutor Vieira poderia ser submetido à experiência de ter que esperar seis meses por um serviço que deveria ser prestado em 45 dias, abstendo-se de receber seus salários até julho.
O secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, anunciou que os çábios revelariam medidas para reduzir as filas. Tudo bem que passados três meses da aprovação da reforma e três dias do anúncio da formação de uma segunda “força-tarefa” ele não pudesse anunciar o que seria feito. (Quem ouvir falar em “força-tarefa”, “grupo de trabalho” ou “gabinete de crise”, pode ter certeza, lá vem enganação.) As palavras de Marinho, contudo, exemplificam o uso da linguagem para embotar a compreensão:
“Estamos conversando com o ministro e estamos validando as propostas e possibilidades internamente. Estamos trabalhando desde a semana passada, porque envolve orçamento, estrutura organizacional. Precisamos ter essa responsabilidade de buscar respaldo técnico e jurídico.”
“Validando propostas” significa que os doutores ainda não decidiram o que fazer. “Estrutura organizacional” é aquilo que Delfim Netto chama de funcionamento da quitanda, ter berinjela para vender e troco para a freguesa.
Sua secretaria chama fila de “estoque” e ele já chamou a proposta de taxação do seguro-desemprego de “inclusão previdenciária”. Teria toda a razão se o desempregado que busca o dinheirinho do seguro pudesse optar entre a “inclusão” e a preservação da exclusão. Como essa alternativa não existe no seu projeto, o que ele faz é usar adereços verbais da moda para esconder roupa rasgada.
Elio Gaspari: Nikola.Tesla@edu para Bolsonaro@gov
Se o senhor estimular a pesquisa de brasileiros, coisas boas acontecerão
Senhor presidente,
Talvez o senhor me conheça por causa do nome do carro elétrico. O dono dessa fábrica resolveu me homenagear, pois essa foi uma das muitas ideias que eu tive entre o final do século 19 e o início do 20. Meu nome é Nikola Tesla, e dei ao mundo coisas como o motor elétrico e as atuais redes de distribuição de energia. Previ que a humanidade poderia se comunicar instantaneamente, com objetos sem fio que caberiam no bolso, mas as pessoas já tinham me rebaixado da condição de gênio à de cientista louco e, mais tarde, apenas louco.
Outro dia o senhor disse o seguinte: "Em fevereiro vou estar nos Estados Unidos, vou lá visitar empresários, que são militares... Vão me apresentar transmissão de energia elétrica sem meios físicos. Se for real, de acordo com a distância, que maravilha! Vamos resolver o problema de energia elétrica de Roraima passando por cima da floresta".
Cuidado, presidente. O problema está no "de acordo com a distância", e foi nele que eu me danei. Transmitir eletricidade sem fios é coisa real, eu consegui, em maio de 1891. Em Nova York, acendi lâmpadas a meio metro de distância da fonte geradora.
Quem conversa muito comigo sobre esse assunto é um brasileiro que se chama Pedro de Alcântara. (Ele não gosta de ser chamado de imperador.) O Pedro foi uma das primeiras pessoas a usar o telefone e tem enorme curiosidade científica. Quando conversamos sobre sua fala, ele desaconselhou que lhe escrevesse, repetindo a frase que disse ao ser embarcado para o exílio: "Os senhores são uns doidos".
Pedro me contou que vocês tiveram um presidente capaz de dizer que Napoleão foi à China e hoje têm um ministro da Educação meio monarquista que não sabe português. Ele escreve "suspenção", "imprecionante" e "antessessores".
Como seu nome tem 13 letras, resolvi escrever-lhe para dizer que sua visita à empresa americana está na categoria dos espetáculos. Fiz muitas apresentações para visitantes ilustres e sei do que falo. Não estimule esse tipo de coisa. Energia elétrica passando por cima da floresta de Roraima não será coisa para seu tempo. Se, em vez de ir ver o que não entende, o senhor estimular a pesquisa de brasileiros, coisas boas acontecerão.
Eu tive a ideia de criar um motor elétrico enquanto andava com um amigo em Budapeste. Era um ninguém. O Brasil tem milhares de ninguéns. Em 1950, quando foi criado o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, os comunistas da China davam os primeiros passos em direção a uma das maiores fomes de todos os tempos. Hoje a China é o que é porque cuidou de seus cientistas. A Tesla acreditou no carro elétrico e seu valor de mercado ultrapassou o da General Motors e da Ford, somadas.
Respeitosamente,
Nikola Tesla
Elio Gaspari: O reino da treva quis taxar o Sol
Ou a Aneel faz um debate limpo ou o Congresso limitará seus poderes
Em menos de 24 horas o presidente Jair Bolsonaro e os presidentes da Câmara e do Senado desmancharam uma costura que vinha sendo armada há anos pelas distribuidoras de energia e pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). À primeira vista, o propósito dos empresários e dos eletrotecas era tungar os consumidores de energia solar, mas a coisa ia mais longe: queriam tungar a disseminação de uma energia limpa.
Desde 2012 sabia-se que em 2020 a Aneel rediscutiria os incentivos dados à produção e ao consumo de energia solar. Essa questão poderia ter sido conduzida de forma transparente, honesta e inteligente. Preferiu-se o caminho dos corredores, da onipotência e da treva. Primeiro, plantando-se uma versão segundo a qual o sujeito que coloca placas de energia solar no telhado de sua casa recebe subsídios.
Falso. Subsídio haveria se o cidadão consumisse R$ 100 de quilowatts e só pagasse R$ 90. No caso, quem tem placas de energia solar paga às distribuidoras até o último centavo pela energia que consome. Só não paga por aquela que o Padre Eterno lhe manda durante o dia. Hoje a energia solar representa 1% do consumo, e em 2019 a Aneel estimava em R$ 340 milhões os incentivos dados aos consumidores, sabendo que o subsídio ao uso do carvão custa R$ 1 bilhão.
Em outubro passado deu-se o grande golpe. A Aneel jogou fora meses de discussões e apresentou uma nova proposta para consulta pública que tungava entre 30% e 60% da economia conseguida por quem viesse a instalar painéis solares em suas casas ou em seus edifícios a partir de 2020. As consultas públicas anteriores haviam durado até quatro meses, com três reuniões presenciais. Dessa vez resolveriam tudo em 45 dias, com uma só reunião. Coisas de Brasília. Nesses dias, dando um toque pitoresco ao debate, um senador apresentou projeto classificando como “bens da União” os “potenciais de energia eólica e solar”. Tradução: lá vem imposto.
Com o tranco dado por Bolsonaro, Rodrigo Maia e David Alcolumbre, a Aneel tirou a girafa do picadeiro e disse que vai reexaminar a questão. (Vale lembrar que o Ministério da Economia havia emitido um parecer endossando a ideia da girafa. Lá viceja também a ideia de se taxar o uso da internet em transações bancárias.)
Os eletrotecas e os empresários menosprezaram o ensinamento de Tancredo Neves: “Esperteza, quando é muita, come o dono”.
Há dois tipos de consumidores de energia solar. Num estão as pessoas que têm placas nos telhados de suas casas, edifícios ou conjuntos residenciais. No outro, há os consumidores abastecidos por empresas que montam grandes fazendas captadoras de energia solar e funcionam como verdadeiras usinas geradoras. (Uma residência que paga R$ 300 mensais e instala painéis solares investindo R$ 15 mil derruba a conta para R$ 50.) Nos dois casos, usam uma energia limpa, mas pode-se dizer que as duas operações, mesmo semelhantes, não são iguais. Se os espertalhões tivessem exposto essa diferença, sem pensar numa tunga ampla, geral e irrestrita, talvez não tivessem tomado a pancada que tomaram.
Agora, ou a Aneel faz um debate limpo, ou o Congresso limitará seus poderes de taxação planetária.
Elio Gaspari: A gestão desastrada do FNDE
Uma escola de Minas Gerais receberia 30 mil laptops (117 para cada aluno)
No escurinho dos feriados, o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Rodrigo Sergio Dias, soube, pelo Diário Oficial, que havia sido demitido. Ele assumira em agosto, substituindo um professor nomeado em fevereiro.
O FNDE não é uma repartição qualquer, tem uma caixa de R$ 58 bilhões e transfere recursos tanto para a merenda escolar como para o malfadado Fies, um programa de financiamento de vagas em faculdades privadas, cujo rombo está em R$ 12 bilhões, com 584 mil inadimplentes. É, sem dúvida, o maior escândalo da história do ensino superior brasileiro.
Os repórteres Pedro Prata e Pepita Ortega revelaram o teor da colaboração de uma ex-diretora da Universidade Brasil, de Fernandópolis (SP), na qual ela contou à Polícia Federal que a instituição vendia vagas no curso de medicina por R$ 80 mil. Se o aluno quisesse financiamento do Fies (com a Viúva pagando), o pedágio custava R$ 100 mil. À época, só tinham acesso ao Fies jovens de famílias com renda per capita de até três salários mínimos. O MEC engolia dados fraudados.
As trocas do FNDE poderiam ficar por conta do caráter errático do governo, mas há algo a mais. Na sua primeira gestão bolsonariana, o fundo publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks destinados à rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões.
Entre agosto e a segunda metade de setembro, a Controladoria-Geral da União (CGU) achou maluquices e sinais de direcionamento no edital. Uma escola de Minas Gerais receberia 30 mil laptops (117 para cada um de seus 255 alunos).
O sinal de perigo dado pela CGU levou à suspensão e ao posterior cancelamento do edital por Rodrigo Dias na primeira semana de sua curta gestão.
Numa atitude tão esquisita quanto a concepção do edital, passaram-se quatro meses e não se falou mais no assunto. Um governo que pretende combater a corrupção precisa perguntar quem botou aquele jabuti na árvore.
As gestões do FNDE lidaram mal com suas lambanças. Mexer com o Fies significa desafiar os donos de faculdades privadas, com sua bancada de congressistas y otras cositas más. Em janeiro do ano passado, uma mão invisível alterou o edital para a compra de livros didáticos, e o MEC disse que ocorreu um “erro operacional de versionamento”.
No caso do edital de R$ 3 bilhões, o negócio é bem outro. Até hoje não se sabe como o jabuti subiu na forquilha nem o nome do dono da árvore.
Elio Gaspari: 2020 poderá filtrar a carga de atraso e mediocridade de 2018
Junto com o novo, veio uma carga de mediocridade e atraso
Começa hoje o ano capaz de filtrar o que o eleitorado quis dizer em 2018 e isso será percebido em outubro, depois da eleição municipal. Houve um voto contra o PT, mas houve também um voto hostil aos políticos. Até aí, nada de novo, mas 2018 elegeu Wilson Witzel (PSC) para o governo do Rio, Romeu Zema (Novo) para o de Minas Gerais e Eduardo Leite (PSDB) para o do Rio Grande do Sul. Todos encarnavam o novo. Dois vinham de partidos nanicos, só Leite vinha do tucanato e só ele tinha experiência administrativa, como prefeito de Pelotas.
Witzel (Harvard fake '15), com sua necropolítica, nada tem a ver com Zema e Leite. (João Doria, que se elegeu pelo PSDB para o governo de São Paulo, ficou no meio termo. Pode assemelhar-se a Witzel às segundas, quartas e sextas e à dupla mineira e gaúcha às terças, quintas e sábados.)
Esses governadores tão diferentes refletiram o resultado geral de 2018. São Paulo elegeu Tabata Amaral para a Câmara e o major Olímpio para o Senado. O antipetismo pode explicar a eleição de todos eles, mas isso não é suficiente. O ronco da rua entronizou tanto o novo como o atraso e é provável que em outubro esses dois ingredientes sejam separados.
Faltam dez meses para o pleito e só uma coisa é certa: as caciquias estão mais perdidas do que surdo em sinfonia. Basta que se acompanhem os jogos de cubos que se armam nas disputas pelas prefeituras do Rio e de São Paulo. No Rio, o novo poderia ser Eduardo Paes, talvez Marcelo Freixo, com a petista Benedita da Silva na vice. Em São Paulo, uma parte do PT sonha com uma chapa de Fernando Haddad e Marta Suplicy. (Uma outra parte sonha em destruí-los, mas não diz o que quer.)
Do outro lado do balcão, onde está o bolsonarismo, a única coisa que se sabe é que em um ano ele se dedicou a brigar em casa. Brigou no palácio, defenestrando ministros e generais da reserva. Brigou no Congresso, implodindo o próprio partido e brigou na rua, demonizando até o governador Witzel. Ganha um mês em Caracas quem souber qual política pública que provocou essas brigas.
Em 2018, Eduardo Leite era um candidato competitivo no Rio Grande do Sul, mas Witzel e Zema entraram na corrida como completos azarões. (Quem estiver disposto a delirar pode se perguntar: o que teria acontecido se o Partido Novo tivesse lançado a candidatura do economista Gustavo Franco ao governo do Rio?)
Depois de um ano de governo do capitão Bolsonaro, estuário de todas as insatisfações de 2018, parece claro que ele consolidou uma base de apoio com sua política de liberalismo econômico no andar de cima e, no andar de baixo, com sua cruzada no campo dos costumes. A paixão da campanha dissolveu-se, e o exercício do poder mostrou a Paulo Guedes que não se prensa o Congresso e a Ricardo Salles que a piromania custa caro ao verdadeiro agronegócio. Bolsonaro mudou pouco, mas não é o mesmo que prometia “botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Convive com os ativistas, com as instituições e, por menos que goste, até com o Ministério Público.
Em 2018 uma tempestade varreu a política brasileira. No que se supunha que seria o novo, veio junto uma carga de mediocridade e atraso. A eleição de outubro poderá separar o atraso.
Elio Gaspari: O Natal do papa Francisco
O padre que criou os Legionários de Cristo agia como um miliciano
Num dos mistérios do Natal, a ordem mexicana dos Legionários de Cristo penitenciou-se pelos crimes de pedofilia cometidos por seu fundador e por outros 32 padres de seu culto.
Um dia antes, o papa Francisco obteve a renúncia do cardeal Angelo Sodano da posição de decano do Sacro Colégio. Aos 92 anos, ele já não votava no conclave que elege os papas. Durante os pontificados de João Paulo 2º e de Bento 16, Sodano foi um dos homens mais poderosos de Roma, secretário de Estado do Vaticano durante 14 anos.
Sua vida foi de diplomata, ex-núncio em Santiago, teve boas relações com o general Augusto Pinochet. Em 2005, quando o cardeal Ratzinger foi eleito, Sodano teve quatro votos no primeiro escrutínio. Pouca gente soube, mas um argentino chamado Jorge Bergoglio foi o segundo mais votado em todos os quatro escrutínios.
O pontificado de Ratzinger durou sete anos, Bergoglio virou Francisco e no mesmo fim de ano em que a Netflix apresenta o filme "Dois Papas", de Fernando Meirelles, ele congelou Sodano e desentulhou o lixo do padre Marcial Maciel, fundador e dono da ordem dos Legionários de Cristo.
("Dois Papas" é um lindo filme e mostra longas conversas de Bergoglio com Bento 16. Elas não aconteceram. Se as falas do cardeal argentino soam reais, as do papa alemão ficaram aquém da qualificação intelectual de Ratzinger. Jonathan Pryce é um Bergoglio perfeito e Anthony Hopkins tornou-se um Ratzinger simpático, coisa que ele nunca foi.)
Quindim da plutocracia mexicana, o padre Maciel foi um miliciano da Santa Madre. Inigualável arrecadador de fundos (tanto no caixa um como no caixa dois), drogava-se, seviciava jovens e teve pelo menos seis filhos, um deles com uma menor de idade.
A proteção de João Paulo 2º preservou-o, mas Bento 16 afastou-o do sacerdócio, sem que Roma expiasse na sua amplitude os crimes que havia cometido. Sodano chamava as denúncias de pedofilia do clero de "fofoca vazia".
Para o andar de cima do México e para uma parte da elite do catolicismo conservador americano, onde ele também militava, Maciel, que era chamado de "Nuestro Padre", foi uma espécie de dom Hélder Câmara dos ricos. Enquanto a elite carioca produziu um "bispo dos pobres" austero, militante e reto, os mexicanos e seus amigos encantaram-se com um Lúcifer.
Em 1992, pediu aos seus fiéis que não começassem seu processo de canonização antes que se completassem 30 anos de sua morte. Ele morreu em 2008 e em 2038 será difícil achar um conservador católico disposto a lembrar-se de sua figura. O cardeal chileno Silva Henriques chamava os Legionários de Maciel de "os milionários de Cristo".
João Paulo 2º e Sodano blindaram Maciel, e Bento 16 afastou-o, mas Francisco mostrou que está disposto a livrar a Igreja Católica da sua banda de promíscuo e onipotente regalismo. Os malfeitos de Marcial Maciel e de alguns de seus legionários têm a ver com as suas condutas.
O acobertamento teve a ver com o autoritarismo de uma parte do clero católico. A denúncia de que ele se drogava surgiu em 1956. Ele havia sido expulso de dois seminários e em 1997 foi acusado de abusos sexuais por seis homens. Seu filho mais velho tem 33 anos.
Elio Gaspari: Chicago, quem diria, quer uma CPMF.net
Guedes sabe que o governo não tem um projeto de reforma tributária
Ganha um fim de semana em Santiago quem souber de onde o ministro Paulo Guedes tirou a ideia da criação de sua “CPMF digital”, como disse Merval Pereira.
Ele sabe que o governo não tem um projeto de reforma tributária. Sabe também que Bolsonaro não quer a volta da CPMF. Se isso fosse pouco, Rodrigo Maia já avisou que esse ectoplasma não passa no Congresso.
Ainda assim, Guedes disse uma frase que deve levar os sacerdotes do papelório a pensar onde se meteram. Disse o doutor: “Tem transações digitais. Você precisa de algum imposto, tem que ter um imposto que tribute essa transação digital.”
A ideia segundo a qual existindo uma atividade, “tem que ter um imposto”, é paleolítica. Se o sujeito transfere uma quantia pelo seu celular, “você precisa de algum imposto”. E se ele faz o depósito indo ao banco de ônibus, não precisa? Nessa maravilhosa construção tributária, a tunga viria do uso de um novo meio, o digital.
Isso nem jabuticaba é. Trata-se de um fruto que só existe no pomar do doutor Guedes, um ex-aluno de Chicago, universidade onde pontificou o economista Milton Friedman (1912-2006).
Pois Friedman tinha horror à intervenção do Estado e viveu o suficiente para perceber a importância da internet. Ele previu: “Eu acho que a internet será um dos grandes fatores para a redução do papel dos governos.”
Acertou na mosca, mas nunca poderia supor que um de seus discípulos viesse a defender um imposto para quem fizesse transações pela rede. (Pela CPMF.net de Guedes, se a operação for conduzida por telefone fixo, aquele do século 19, ela não seria tributada.)
Guedes disse que há uma discussão mundial em torno da taxação de operações eletrônicas. Há, mas ela nada tem a ver com uma CPMF.net. Discute-se a criação de um imposto para operações como, por exemplo, a compra de um chinelo produzido num país e vendido pela rede em outro. Nessa transação produziu-se um chinelo. Pela CPMF.net o sujeito seria mordido porque depositou a mesada do filho usando o celular. Pela ideia de Guedes o fato gerador do novo imposto do governo será o uso da internet.
Os fiscais da corrupção enxugam gelo
Falta examinar os jabutis de casos como o dos computadores do FNDE
Imagine-se o juiz Sergio Moro no gabinete de Curitiba recebendo a informação de que o governo petista fez um chamamento de preços para aluguel de um imóvel de 4.490 m² em Brasília listando entre os requisitos “desejáveis” do prédio dois auditórios com no mínimo 100 lugares, sistema de reuso de água, de elevadores com sistemas de antecipação de chamadas e selos de eficiência energética.
O juiz desconfiaria. Esse chamamento de preços partiu em outubro passado do Departamento Penitenciário Nacional, subordinado ao ministro Sergio Moro. A ONG Contas Abertas sentiu cheiro de queimado e mostrou ao Tribunal de Contas que em Brasília existe só um imóvel capaz de obter a pontuação máxima no julgamento de futuras propostas, o Centro Corporativo Portinari.
Dado o alarme, o Ministério da Justiça prorrogou o prazo de recebimento das propostas.
Lá, informam que o adiamento nada teve a ver com a entrada do TCU no caso. Fica combinado assim.
Pouco custava dizer que a postergação tinha a ver com as críticas. Os prédios onde trabalham a rainha Elizabeth, Jair Bolsonaro e Sergio Moro não atendem aos desejos listados pelo Depen. (Logo ele, que cuida de penitenciárias.) Em março passado o TCU pediu à Agência Nacional de Transportes Aquaviários que renegociasse o valor do aluguel que pretendia pagar no mesmo Centro Portinari.
Graças do TCU o chamamento de preços do Ministério da Justiça foi prorrogado. Graças à Controladoria Geral da União, desde dezembro do ano passado, 22 licitações foram suspensas. Entre elas, a do megajabuti do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando 1,3 milhão de computadores e notebooks para escolas da rede pública. Os auditores descobriram que 355 colégios receberiam mais de um equipamento para cada aluno, sendo que numa escola mineira, cada estudante ganharia 118 laptops.
Os órgãos de controle não estão aí para enxugar gelo. No caso do aluguel para o Fundo Penitenciário, pode ter havido exageros, ou mesmo um direcionamento. No do FNDE havia coisa muito mais grossa. Não basta suspender os chamamentos de preços e as licitações, falta examinar os jabutis.
Em 2003, quando nomeou três parentes para seu gabinete, o vice-presidente José Alencar, disse que dava “a mão a palmatória”, demitiu-os e ensinou: “Há topadas que ajudam a caminhar”.
Na mesma época, a prefeitura de Ribeirão Preto concluiu pela lisura de um licitação escalafobética de “molho de tomate refogado e peneirado, com ervilhas” em 40.500 cestas básicas, feita ao tempo em que o comissário Antonio Palocci governava a cidade. Deu no que deu e continua dando.
Elio Gaspari: Jari, a Fordlândia 2.0
Hoje o BNDES está com um mico de R$ 790 milhões
A repórter Stella Fontes informa: “endividada, a Jari agoniza”. Deve R$ 1,75 bilhão. Sua recuperação judicial foi suspensa e não tem como pagar aos 750 empregados de sua fábrica de celulose, encravada na Floresta Amazônica. Pode parecer mais uma história de fracasso numa época de crise. É muito mais, verdadeira aula sobre algo que poderia ter dado certo, deu errado e, ao longo de 30 anos, foi dando mais errado.
O Projeto Jari foi a primeira joia da Coroa da ditadura. Coisa de sonho: Nos anos 60, Daniel Ludwig, um dos homens mais ricos do mundo, comprou 160 mil quilômetros quadrados (um Líbano e meio) na divisa do Pará com o Amapá. Trouxe do Japão, por mar, uma fábrica de celulose e uma termelétrica. Construiu uma cidade, plantou gmelinas, arroz e queria explorar bauxita. Septuagenário sem herdeiros, avarento e misantropo, tomava leite com vodca. Deu tudo errado. Crucificado no lenho do nacionalismo xenófobo que envolve a Amazônia, Ludwig fez as malas e foi embora.
Quem ouve falar do Jari tende a compará-lo à Fordlândia, sonho de outro magnata misantropo. Em 1928 Henry Ford comprou dez mil quilômetros quadrados (um Líbano), onde pretendia plantar dois milhões de seringueiras e também planejou uma cidade. Deu tudo errado e, em 1945, a propriedade foi vendida por 1% do seu valor. Nenhum negócio de Henry Ford ou de Daniel Ludwig deu tão errado.
As semelhanças terminam aí. Ludwig não saiu como Ford. Em 1982 ele perdeu algo como US$ 1 bilhão, mas deixou o projeto no colo da Viúva, e o governo organizou um consórcio de empresários para ficar com a Jari. À frente, entrou o magnata Augusto Trajano de Azevedo Antunes, um dos maiores empreendedores do seu tempo. Numa carta de 20 de janeiro de 1982 ao presidente João Figueiredo, ele foi claro:
“Entendo que recebi uma missão do governo. (...) Ao se incumbir alguém de uma missão, cumpre propiciar-lhe também os meios indispensáveis para bem executá-la.”
Queria investimentos públicos, uma hidrelétrica e, sobretudo, simpatia para o “cumprimento de missão de alta relevância nacional.”
Um mês depois, o Banco do Brasil entrou no projeto e ficou com 12% das ações da holding.
Coisa da ditadura? Nem tanto, em 1994, depois de visitar o projeto, o candidato Lula informava: “O Ludwig foi um sonhador. Passei 20 anos da minha vida esculhambando o Jari, mas hoje o Brasil tem novos empresários”. Referia-se aos netos de Antunes que tocavam o projeto. Lula perdeu a eleição para Fernando Henrique Cardoso. Em 1996, FHC sabia que o BNDES estava metido com 20% de participação na Jari e que era “grave a situação”. Meses depois a empresa entrou em concordata branca e metade da dívida estava com a Viúva. Em 2000 a Jari foi vendida ao grupo Orsa, sob aplauso dos credores (a Viúva tinha um terço desse espeto). Por algum tempo conseguiu respirar, até que se afogou, e hoje o BNDES está com um mico de R$ 790 milhões.
Em 2019 o professor americano Greg Grandin publicou no Brasil seu livro “Fordlândia — Ascensão e queda da cidade de Henry Ford na selva”. Contou a história de um empresário que fez um mau negócio e foi em frente. Algum dia alguém contará a história do Jari, um mau negócio no qual o governo entrou, juntando-se a empresários e banqueiros amigos, sempre dispostos a cumprir uma “missão de alta relevância nacional”.
Elio Gaspari: Última morada de JK pede socorro no entorno de Brasília
'Fazendinha' só está intacta graças ao altruísmo de uma família modesta
Colhendo material para uma biografia de Juscelino Kubitschek, o repórter Lucas Figueiredo bateu em sua última morada, a “Fazendinha”, uma propriedade de 310 alqueires a 85 km de Brasília. Lá está a casa onde viveu o maior presidente da segunda metade do século. Intacta, graças ao altruísmo e sentido de história de uma família modesta, ela precisa que alguém ajude a preservar esse patrimônio.
É Lucas quem conta:
“No início da década de 1970, já de volta do exílio, JK comprou um pedaço de terra em Luziânia, interior de Goiás.
Começando do nada, construiu uma casa confortável (projeto de Oscar Niemeyer, com quatro suítes, pintada por fora de azul del rey para lembrar Diamantina), mas simples (o maior luxo era uma saleta que servia de sala de jogos e discoteca). Criou gado e produziu milho, trigo e café.
À noite, JK se punha na varanda a olhar as luzes de Brasília. Quando ele morreu, um admirador do ex-presidente, Lázaro Servo, comprou a fazenda, de porteira fechada.
Hoje, um dos filhos de Lázaro, Antônio Henrique Belizário Servo, mora na fazenda com a mulher, Rosana, e os filhos. Acordam cedo e trabalham muito para manter a fazenda produtiva.
A casa está hoje como se JK tivesse saído dela ontem. Os atuais moradores não usam a sala de estar, por exemplo. É proibido sentar nos sofás de vime e nas cadeiras estofadas de veludo alemão de cor laranja, todos originais. O carpete verde é original. A cozinha ainda guarda o fogão e as panelas da família. Nos armários, cristais, louças, prataria e roupa de cama dos Kubitschek.
Na garagem, está a Mercedes-Benz preta, ano 1963 (seis cilindros, banco em couro, volante em marfim), com a qual o ex-presidente um dia planejou fazer um leilão para angariar recursos para a campanha JK-65.
Em cima de um aparador, fica uma bela maleta que guarda fichas e baralhos, na qual, no dia 20 de novembro de 1971, JK anotou a caneta, no forro de feltro verde, ter feito um royal de copas.
A joia do conjunto é a biblioteca com cerca de 1.800 livros. Lá estão livros de medicina de JK da década de 1920 (ele era médico), o livro do bebê de sua filha Márcia no qual, em outubro de 1943, ele anotou que a menina dera o primeiro sorriso depois de mamar. Há volumes autografados por Pedro Nava, Oscar Niemeyer, José Sarney e pelo embaixador americano Lincoln Gordon.
Os visitantes não podem tocar nos livros. Os poucos pesquisadores que puderam fazê-lo tiveram de usar luvas de látex, por exigência de Rosana Servo.
Muito longe de serem ricos, os proprietários mantêm a fazenda-museu com grande dificuldade; o dinheiro só sai, não entra. Recentemente, tiveram de fechar os registros dos banheiros por semanas porque um vazamento ameaçava o carpete original. Há anos, eles reivindicam no Iphan o tombamento da fazenda, sem sucesso.
Acreditam que, com o tombamento, conseguirão ao menos garantir que a propriedade e seu acervo não irão se perder. Apesar de todas as dificuldades, estão dispostos a continuar botando dinheiro do próprio bolso para preservar um patrimônio nacional e a viver numa casa em que utilizam menos de metade do espaço”.
As casas do marechal Deodoro, de Prudente de Moraes e de Getúlio Vargas foram preservadas. A casa do sítio de João Goulart em Jacarepaguá foi demolida.
O que a família Servo faz pela memória de JK não tem precedente na história do Brasil.
Não ficou bem para Moro se meter na defesa de senadora cassada
O ministro Sergio Moro não leu os autos do processo que resultou na cassação do mandato da senadora Selma Arruda (Podemos-MT). Se tivesse lido não teria conversado com ministros do Tribunal Superior Eleitoral defendendo a salvação da senhora.
Não devia ter conversado porque não fica bem o ministro da Justiça se meter em casos desse tipo. E também porque nos autos lia-se que a doutora, como juíza, reuniu-se com marqueteiros de campanhas eleitorais. Ela se inscreveu no PSL antes da homologação de seu pedido de aposentadoria. Isso tudo e mais um empréstimo de R$ 1,5 milhão tomado ao seu suplente endinheirado. A senhora era chamada de “Moro de saia” e a cassação foi mantida por seis votos contra um.
Quem conhece direito e o funcionamento do Judiciário fulmina: “Se uma autoridade do Executivo fosse ao gabinete do juiz Moro em Curitiba para uma conversa dessas, arriscava receber voz de prisão”.
Sonho petista
Nas articulações de chapas para as eleições municipais do ano que vem, muitos petistas acreditam que serão favorecidos porque atrairão os votos de quem não quer “o que está aí”.
Sonhar é grátis, mas Jair Bolsonaro está no Planalto exatamente porque boa parte do eleitorado fez esse raciocínio, ao contrário. Queiram qualquer um, menos o do PT.
Outro povo
Em 1985, quando o ex-presidente Jânio Quadros derrotou Fernando Henrique Cardoso na disputa pela Prefeitura de São Paulo, o professor Delfim Netto riu dos bem pensantes da época: “Vão precisar trocar de povo”.
Essa advertência reaparece quando o Datafolha revela que Damares Alves é a vice-campeã de popularidade entre os ministros, com 43% de avaliações entre o ótimo e o bom.
Elio Gaspari: Paul Volcker, um servidor público
Ele mandou na economia americana e quebrou o Terceiro Mundo. Vestia-se mal e morava numa quitinete
No final do século passado, Paul Volcker estava num coquetel na Universidade de Princeton, uma daquelas confraternizações nas quais os americanos tomam vinho branco em copos de plástico. Um curioso aproximou-se da sua imponente figura (2m01cm) e, no meio da conversa, arriscou:
— O seu livro publicado em parceria com o ex-presidente do Banco do Japão deixa a impressão de que em 1982 o senhor quebrou o Terceiro Mundo para salvar os bancos americanos.
Volcker assumiu o Federal Reserve Bank em 1979, com a inflação americana acima de dois dígitos. Como presidente do banco central mais poderoso do mundo, paulatinamente jogou os juros para cima, e eles chegaram a 21% ao ano. Com isso, num cenário de alta do petróleo e baixa de outras matérias-primas, as dívidas dos países do Terceiro Mundo atreladas às taxas americanas explodiram. Em 1982, o México não conseguiu pagar suas contas. Meses depois, foi a vez do Brasil, e em alguns meses, só na América Latina, 16 países estavam quebrados. Deu-se a esse período o nome de “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”.
Volcker respondeu ao curioso:
— Esse era o meu serviço (“That was my job.”), e a conversa migrou para amenidades.
Em 1982 não houve a tal “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”, houve uma crise da banca internacional que emprestou dinheiro a quem não devia, mas os credores, com a ajuda dos governos caloteiros e do Fundo Monetário Internacional, inverteram o jogo. (Em 2007, quando a banca atolou-se, ninguém disse que havia uma crise dos devedores americanos inadimplentes.)
Anos depois, William Rhodes, chefe do cartel dos bancos, condecorado pelo governo brasileiro com a Ordem do Cruzeiro do Sul, escreveria:
“A crise da dívida latino-americana não foi apenas uma punição a excessos de endividamento. Foi também uma crise bancária.”
Volcker salvou a banca porque os servidores públicos americanos defendem os interesses de seu país. Ele era um economista do Federal Reserve de Nova York e aceitou a presidência do banco central sabendo que perderia metade do salário. Mudou-se para uma quitinete de estudante em Washington, e sua mulher alugou um dos quartos de seu apartamento em Manhattan. Fumava charutos baratos, comia congelados de mercearias e, certa vez, o presidente Jimmy Carter mandou-lhe um recado: ou comprava um terno novo, ou não o receberia na Casa Branca. (Há uns 20 anos, o milionário presidente da Goldman Sachs chegou em casa com um sobretudo novo, de uma loja caríssima. A mulher mandou que o devolvesse, pois já tinha abrigo para o inverno.)
Volcker tinha dois caminhos: quebrava os endividados do Terceiro Mundo ou quebrava os grandes bancos americanos. Seu serviço, como presidente do Fed, era defender o sistema financeiro dos Estados Unidos. Pouco importava se o presidente da estatal petrolífera da Indonésia havia fechado um empréstimo de 25 milhões de dólares assinando numa caixa fósforos de boate.
A grande proeza dele, da banca e do FMI foi conseguirem que todos os governos devedores contassem aos seus povos que a crise era deles.
Depois de sair do Fed, Volcker foi para a banca privada e contava que lá, num só dia, ganhou mais dinheiro do que em 30 anos de serviço público. Ele morreu na segunda-feira.