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Elio Gaspari: Tereza e Mandetta, dois êxitos
Eles são apenas normais. Cuidam do expediente e evitam brigas públicas
Tereza Cristina e Luiz Henrique Mandetta são dois ministros de Jair Bolsonaro que abrem a quitanda às seis da manhã com berinjelas para vender e troco para as freguesas. Ela, desde os seus primeiros dias no Ministério da Agricultura. Ele, na Saúde, administrando o problema do coronavírus. Pode-se discordar de algumas de suas ideias, ou mesmo de todas, mas deve-se reconhecer que fazem seus serviços. Ambos pertencem à escola do centroavante Dario (o preferido do general Emílio Médici para a seleção de 1970). Numa época em que se falava muito em problemática, ele informou: “Eu dou a solucionática”.
A biografia e o comportamento de Tereza Cristina e Mandetta são uma aula de política e de administração.
Começando pela biografia. Ela vem da cepa oligárquica dos Corrêa da Costa. Desde a Regência, eles governaram Mato Grosso 11 vezes. Sabe-se lá quando a primeira Corrêa da Costa conseguiu um diploma universitário, mas Tereza Cristina formou-se em Engenharia Agronômica e tocou sua empresa. Mandetta vem de uma cepa neo-oligárquica, primo de senador, de deputado e do prefeito de Campo Grande. Um irmão meteu-se em negócios com o rei do jogo no estado. Ele formou-se em Medicina, é ortopedista, trabalhou em hospitais e dirigiu a Unimed de seu estado.
Os dois foram deputados. A atividade parlamentar obriga a ouvir e negociar. Um deputado pode saber que tem razão e que está sendo contraditado por um larápio ignorante, mas aprende a se comportar como se estivesse diante de Rui Barbosa. O Congresso educa, mesmo não se podendo dizer que o deputado Bolsonaro tenha aprendido muita coisa. Lá, o vencedor tonitruante é um bobo. (Eduardo Cunha ganhou todas, está em Curitiba.)
Esses dois ministros bem-sucedidos trabalharam em rotas diferentes. Ela, costurando por dentro, acalmou os ânimos com a China e reabriu o mercado americano para a carne brasileira. Carrega o piano sabendo que tem agrotrogloditas por perto e um ministro do Meio Ambiente que repete coisas que não deveria nem ouvir.
Diante do coronavírus, Bolsonaro entrou em campo dizendo que custaria muito caro repatriar os brasileiro que estavam na China. Fez isso depois de se reunir com quatro ministros. Mandetta (que não estava na reunião) coordenou com clareza as ações do seu ministério e valorizou os profissionais dos estados. Além disso, passou mais tempo diante das câmeras falando do coronavírus do que o general da reserva Augusto Heleno e o doutor Paulo Guedes em todas as suas vidas. Não criou atritos e satisfez quem o ouviu.
Tereza Cristina e Mandetta estão fora da linha de exibicionismo e evangelização que enferruja o governo. Com jeito de quem não queria nada, o ministro da Saúde disse que a construção relâmpago de um hospital na China foi um exagero e que lavar as mãos é proteção mais eficaz do que o uso de máscaras.
Ao estilo Guedes-Heleno, poderia ter dito o seguinte:
“O que os chineses fizeram foi uma palhaçada típica dos regimes comunistas (Heleno) e social-democratas (Guedes). Brasileiro tem que aprender a lavar as mãos (ambos).”
Isso para não se falar no que diria Abraham Weintraub: “Petistas estão indo aos hospitais simulando sintomas para provocar pânico na população”. Já o ministro Sergio Moro chegaria para a entrevista coletiva dirigindo uma ambulância.
Pode parecer que Tereza Cristina e Mandetta são excêntricos, mas excêntricos são os tempos em que se vive. Eles são apenas normais. Cuidam do expediente e evitam brigas públicas. Num governo que vive em loucas cavalgadas para nada, isso até espanta.
Elio Gaspari: Moro miou
O ministro da Segurança Pública podia pelo menos ter ficado calado
Diante do motim de 10 do 43 batalhões da Polícia Militar do Ceará, Sergio Moro, o "Tigre" de Curitiba, miou em Fortaleza. Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Moro foi ao Ceará no sétimo dia do motim, sobrevoou teatralmente a cidade e disse o seguinte:
"Os policiais do país inteiro, não só do Ceará, são profissionais dedicados, que arriscam suas vidas, são profissionais que devem ser valorizados".
Falso. No país inteiro há policiais dedicados, mas ele estava em Fortaleza porque lá havia PMs amotinados, usando balaclavas, esvaziando pneus de carros e ameaçando colegas que trabalhavam. Do quartel do 3º Batalhão de Sobral partiram dois tiros que atingiram o senador Cid Gomes na sua coronelada pilotando uma retroescavadeira.
Moro já dissera que em Fortaleza havia um "movimento paredista da polícia do estado".
Falso. O que havia no Ceará era um motim de PMs. "Movimento paredista" havia sido a greve de 20 dias dos petroleiros. Os operários cumpriram a lei e não esvaziaram pneus de ninguém.
O ministro da Segurança Pública disse também que "não há uma situação de absoluta desordem nas ruas". No entendimento do "Tigre" de Curitiba, as coisas estavam "sob controle, num contexto relativamente difícil". Miau. Desde o início do motim haviam sido assassinadas 170 pessoas no estado, uma a cada hora.
Moro mandou a Força Nacional de Segurança para o Ceará e o presidente Jair Bolsonaro decretou uma operação de Garantia da Lei e da Ordem para o estado. Com essas medidas adequadas, o ministro da Segurança Pública podia pelo menos ter ficado calado.
Sua fala chegou ao limite da solidariedade com os amotinados. O ministro alinhou-se com um presidente da República que exibe uma biografia de amparo e silêncio diante dos motins do gênero. O cabo Sabino, tido como um dos líderes da rebelião, orgulha-se de ter organizado a primeira visita do deputado Jair Bolsonaro ao Ceará, em 2015. Ele é um exemplar do bolsochavismo.
A convocação de manifestações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal reflete um projeto golpista recôndito na cúpula do bolsonarismo. Essa manobra relaciona-se com o uso da liberdade de manifestação para minar as instituições democráticas. Já os motins de PMs são movimentos saídos da base bolsonarista e indicam algo mais profundo. Relacionam-se com a quebra sistemática da ordem legal e da hierarquia militar.
Os amotinados colocam a anistia como primeiro item de sua pauta. Desde 1997 já foram concedidas anistias em pelo menos 22 estados e no Distrito Federal. A cada motim segue-se uma anistia e a cada anistia segue-se outro motim. Bolsonaro é o quinto presidente a fazer de conta que esse problema não existe.
No Ministério da Justiça, Sergio Moro pode ver os retratos de seus antecessores. Lá estão figuras como Miguel Seabra Fagundes, Milton Campos e Mem de Sá. Cada um à sua maneira soube deixar o cargo quando viu que as coisas iam mal. Lá estão também Francisco Campos, Luís Antônio da Gama e Silva e Alfredo Buzaid. Estes ficaram, no remanso das ditaduras do Estado Novo e do AI-5.
À diferença de todos eles, Moro é também ministro da Segurança Pública. Não precisava ter miado em Fortaleza.
Um vírus chamado Trump
O governo americano informou que conduziu em seu território um exercício militar no qual simulou combates usando armas nucleares táticas, respondendo a um ataque russo. Esses exercícios são comuns, mas nunca haviam sido divulgados. Desta vez o próprio secretário da Defesa americano revelou ter participado do treinamento.
Há anos, sempre que a Coreia do Norte lança um míssil, bases americanas na Ásia respondem, lançando outro no mar, porém percorrendo uma distância igualmente intimidadora.
As armas nucleares táticas têm pouco a ver com a bomba de Hiroshima e por trás de sua doutrina está a ideia segundo a qual, se os russos jogassem uma bomba numa base americana na Europa, os americanos jogariam outra numa base russa, mas nenhum dos dois atacaria grandes cidades com mísseis intercontinentais. Desde os anos 1950 há quem duvide que seria possível evitar uma escalada.
Três presidentes americanos (John Kennedy, Lyndon Johnson e Richard Nixon) recusaram-se a apertar o botão, mas não faltaram sugestões.
Está na rede o livro "The Bomb", do jornalista Fred Kaplan. Ele conta planos americanos capazes de tirar o sono. (Os segredos russos continuam blindados.)
Em 1961, um plano de guerra americano estimava que a União Soviética perderia 54% de sua população. Numa versão light, morreriam entre 500 mil e 1 milhão de russos. Se tudo desse certo, não morreriam americanos; dando errado, pereceriam sete em cada dez. "Numa guerra termonuclear, é fácil matar gente", escreveu o autor do plano.
Ia tudo bem, afinal guerra é guerra, até que o presidente Kennedy perguntou por que o plano previa ataques a alvos na China: "Pelo que eu entendi, essa guerra não começou lá".
"Isso é o que está no plano", respondeu o general que fazia a exposição.
Em 1989, quando parlamentares perguntaram a um general por que os Estados Unidos precisavam de 10 mil bombas, ele respondeu que elas eram necessárias porque existiam 10 mil alvos. Houve quem achasse que ele estava brincando.
Eremildo, o Idiota,
Depois de ouvir Sergio Moro lidando com o motim da PM cearense e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, lidando com o coronavírus, Eremildo pensa em ir a Brasília para propor a Bolsonaro um gambito: Mandetta na Justiça e Segurança Pública e Moro para a Saúde, pois lá ele não precisará valorizar o vírus.
CHAPA PARA 2022
Um sábio que costuma ver anos à frente sugeriu a Luciano Huck que pense no nome da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para a vice de sua chapa.
BATALHA DE ITARARÉ
A briga criada pelo ministro Augusto Heleno em torno do Orçamento tem tudo para ser uma batalha de Itararé, a que nunca aconteceu.
Paulo Guedes sabe disso e daqui a algumas semanas Congresso e Executivo poderão proclamar vitória e paz. Ficarão zangados só aqueles que se pintaram para a guerra.
HELENO
O general da reserva Augusto Heleno acha que Bolsonaro precisa botar o povo na rua para defender seu projeto político. Ele sempre poderá argumentar que manifestações são legítimas.
Nesta semana completam-se dois anos do dia em que ele foi à Escola Superior de Guerra e disse o seguinte:
"A Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia".
Foi vivamente aplaudido, mas não disse "o que fizemos no Araguaia".
Está documentado que a partir de outubro de 1973 a tropa do Exército que foi mandada ao Araguaia matou todos os guerrilheiros do PC do B que estavam na mata. Eram cerca de 40. Alguns estavam armados. Outros atenderam ao convite da tropa para que se rendessem, entregaram-se e foram executados.
Parte dessa história está contada no livro "Borboletas e Lobisomens", de Hugo Studart.
Elio Gaspari: Zema, ou a velhice do novo
Depois que Alckmin se recolheu, governador mineiro disputa-lhe o campeonato de platitudes
Novo mesmo é o coronavírus. O governador mineiro Romeu Zema elegeu-se com 73% dos votos apresentando-se como algo de novo. Afinal, é um empresário bem-sucedido. Repete que é “novo na política”, mas foi filiado ao Partido Liberal por 18 anos. O doutor notabilizou-se por encaminhar à Assembleia Legislativa um pedido de aumento de 42% para os servidores da área de segurança, a um custo de R$ 9 bilhões em três anos.
Graças à internet, está na rede a entrevista que ele concedeu a uma equipe da GloboNews no dia 29 de janeiro, quando o mimo estava sendo cozinhado. A conversa durou 56 minutos, e é uma viagem ao novo, ecoando a fala do príncipe de Salinas no romance “O leopardo”: “Tudo isso não deveria poder durar; mas vai durar, sempre; o sempre humano, é claro, um século, dois séculos... e depois será diferente, porém pior”.
Zema acha que “o Brasil precisa se reinventar”. “Parece que tem hora que o mineiro e o brasileiro só enxergam o que dá errado”. Nesse ofício, lascou os governos anteriores, sobretudo o do PT:
“Somos um Estado quebrado”, uma “podridão”. Repetiu um bordão apocalíptico: “O Brasil estava caminhando para ser algo semelhante a uma Venezuela.”(Quando ele disse isso, a repórter Vera Magalhães ainda não havia mostrado a influência das milícias e dos motins de PMs, cunhando a expressão “bolsochavismo”.)
Depois que o paulista Geraldo Alckmin se recolheu, Zema disputa-lhe o campeonato de platitudes: “Você não consegue fazer tudo ao mesmo tempo”, ou “com a matemática não se brinca”. (A sério, ele reduziu o custo do estado em R$ 5 bilhões. Brincando, mandou a mensagem dos bilhões.)
Afora a embromatina, Zema mostra-se um campeão do novo-velho. Orgulhou-se de ter renegociado um contrato de R$ 106 milhões para R$ 2 milhões, mas passou batido quando lhe perguntaram se mandou investigar quem botou o jabuti na árvore.
Sendo o novo, Zema disse que tem coragem para cometer “sincericídios” e ensinou que “a eleição de 2018 mostrou que o modelo que vigorou no Brasil está falido, aquele político que fica prometendo, que fica dissimulando, aquele político que não quer enfrentar problema de frente, deu no que deu. (...) parece que no Brasil a classe política sempre teve medo.”
No 50º minuto da entrevista, deu-se o momento Zema. O repórter Gerson Camarotti perguntou-lhe o que achava das filas do INSS (1,3 milhão de pessoas) e da balbúrdia do Enem (seis mil estudantes prejudicados). “Há problema de gestão?” Zema respondeu:
“Eu fico muito feliz com esses problemas, porque você não falou em nenhum problema de corrupção”.
Camarotti lembrou-lhe que “você tem pessoas necessitando de aposentadorias, numa situação dramática”.
Só então caiu a ficha. Zema reconheceu que “há falhas” e que “nisso, concordo plenamente”. Concordou plenamente com a dramaticidade da situação lembrada por Camarotti, como se ela não tivesse existido. Afinal, foi-se o tempo daquele político que fica dissimulando, aquele político que não quer enfrentar problema de frente.
O príncipe de Salinas sabia do que falava. Tanto era assim que o velho político Elio Vittorini (comunista) rejeitou o manuscrito do “Leopardo” duas vezes na editora Mondadori.
Elio Gaspari: Lembrai-vos de 1968, de 1937, e de 1984
Em 13 meses, Jair Bolsonaro conseguiu um prodígio de desarticulação política, implodiu seu partido, não criou outro e demitiu colaboradores imediatos
A incontinência da retórica política dos Bolsonaro, do general da reserva Augusto Heleno e até mesmo do ministro Paulo Guedes indica que eles cultivam um conflito institucional. Pelos seus sonhos, com o Congresso, mas na falta dele qualquer coisa serve. Com 12 milhões de desempregados, “pibinho”, filas nas agências do INSS, motins de PMs e encrencas com milicianos, busca-se uma briga.
Há um ano tudo parecia fácil, de um lado estaria um presidente cacifado por 58 milhões de votos e do outro, um Congresso de crista baixa. Em 13 meses, Jair Bolsonaro conseguiu um prodígio de desarticulação política, implodiu seu partido, não criou outro e demitiu colaboradores imediatos, entre os quais seis generais da reserva. Trocou um ministro da Educação delirante por outro, desastroso. Defenestrou o presidente do BNDES, o secretário da Receita e dois presidentes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
No endinheirado FNDE ainda falta saber quem preparou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops ao custo de R$ 3 bilhões. A CGU apontou o vício do certame e ele foi revogado, mas jabuti não sobe em árvore. Como disse o presidente há poucos dias, “nossa luta contra a corrupção continuará sendo forte, fazendo o possível pelo Brasil melhor”. Faça-se.
Um governo pode viver das brigas que inventa (basta olhar para Donald Trump), mas elas não o livram de encarar os problemas cotidianos da administração. Nesse departamento, Bolsonaro vai devagar, quase parando.
A turma que está em Brasília a fim de arrumar uma briga pode estar perdendo seu tempo. Dois governos armaram cenários que desembocavam em golpes e foram bem-sucedidos. O de Costa e Silva, em 1968, e o de Getulio Vargas, em 1937. Ambos tinham conjunturas internacionais radicalizadas. Vargas enfrentara uma insurreição militar em 1935. Costa e Silva estava diante de um surto terrorista e deixou-se boiar numa provocação palaciana que criou o conflito com o Congresso. A Bolsonaro e aos seus cavaleiros do Apocalipse ainda faltam todos esses ingredientes. As ruas estão em paz e, hoje, em festa. Quarta-feira abre-se a quitanda e continuarão lá os PMs dispostos a se amotinar, bem como os milicianos.
Os golpes bem-sucedidos são sempre lembrados, mas aprende-se também com aqueles que fracassam. Em 1984, quando Tancredo Neves estava virtualmente eleito (indiretamente) para a Presidência, armou-se no invencível Centro de Informações do Exército (CIE) uma provocação venenosa. Pediram-se soldados ao Comando Militar do Planalto para colar em paredes de Brasília cartazes vermelhos, com a foice e o martelo, a sigla PCB, uma figura de Tancredo e o slogan: “Chegaremos Lá”. Ia tudo muito bem até que a polícia prendeu os soldados, e o carro do CIE que lhes daria cobertura escafedeu-se. Exposta a provocação, fez-se silêncio, até que na reunião do Alto Comando do Exército o general que comandava a tropa do Rio perguntou o que tinha sido aquilo. “Gente do meu gabinete, não foi”, respondeu o ministro. O general Newton Cruz, comandante do Planalto, estava na reunião e viria a contar: “Senti um frio na espinha. O CIE era um anexo do gabinete dele. Se não tinham sido eles, tinha sido eu.”
Não tinha, mas acabou sendo. A tropa era dele, porém a operação era do CIE. Nas semanas seguintes fritaram Newton Cruz, negando-lhe a promoção, e ele passou para a reserva, transformado em bode expiatório de todas as bruxarias.
Chefe militar
Em janeiro de 1961 a Assembleia Legislativa de São Paulo negou um aumento ao Corpo de Bombeiros e à Polícia Militar (Força Pública, na época). Amotinados, eles hastearam uma bandeira preta no alto de uma escada Magirus do quartel da Praça Clóvis Beviláqua. Uma tropa mandada para controlá-los insubordinou-se.
No dia seguinte, amotinados seguiram em passeata e cercaram portões do Palácio dos Campos Elíseos, onde vivia o governador.
O comandante da 2ª Divisão de Infantaria chegou acompanhado de um major e, empunhando seu bastão de general, informou: “Isso é uma baderna. Será dissolvida a bala. Pensem nos seus filhos.” Logo depois veio sua tropa, com blindados.
O que havia sido uma passeata virou coluna em marcha, cantando o Hino Nacional em direção à cadeia. Foram indiciados 513 policiais.
O general chamava-se Arthur da Costa e Silva. Antes de chegar à Presidência da República, fizera fama como chefe militar, daqueles que comandam sua tropa.
(Em tempo: os amotinados ganharam uma anistia do Congresso, pedida pelo então deputado Ulysses Guimarães.)
Constitucionalismo
Não existe parlamentarismo branco, nem verde e rosa. O que existe, às vezes, é presidencialismo sem cor.
Servidores
Depois dos “parasitas”, surgiu uma nova categoria de funcionários públicos: os “servidores simples”. Ela foi criada pelo doutor Nabhan Garcia, secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura.
Ele falava numa audiência pública (repetindo, pública) em Marabá, quando uma geógrafa do Incra questionou-o sobre a lentidão dos processos de regularização de terras.
“A senhora parece não conhecer de hierarquia. Como uma servidora simples, não dá para vir aqui questionar a instituição.” Dá, doutor. A audiência era pública e, antes de ser funcionária, a geógrafa é uma cidadã.
Nabhan Garcia ganha dez hectares de terras queimadas se conseguir explicar o que vem a ser uma “servidora simples”.
O grampo da CIA
Para que a história do grampo da CIA nas comunicações cifradas do governo brasileiro não fique esquecida:
Sem dúvida as máquinas de código usadas pelo Itamaraty eram da empresa suíça Crypto, da qual eram sócios a Central Intelligence Agency e o serviço de informações de Alemanha.
Professores brasileiros contratados pelo Itamaraty e pelo Serviço Nacional de Informações decifraram o funcionamento das máquinas e passaram a ler mensagens secretas de outros governos. Nas palavras de um deles: “Durante a Guerra das Malvinas em 1982, o presidente João Figueiredo lia as mensagens argentinas antes que elas chegassem ao seu colega, o general Leopoldo Galtieri.”
Em 1994, o embaixador Roberto Abdenur chefiou uma equipe que negociou com diplomatas americanos. Posteriormente, um deles escreveu um livro e narrou ações da delegação brasileira, citando relatos e comentários enviados por Abdenur em seus telegramas cifrados. O negociador americano era Richard Feinberg, que nos anos 1970 batalhava na causa dos direitos humanos durante o governo do presidente Jimmy Carter.
Detalhe para quem gosta de histórias do gênero: pela lembrança de quem trabalhou para trocar as máquinas da Crypto, elas devem ter sido recolhidas em 1983. O grampo seria outro.
Elio Gaspari: As PMs recrutaram os governadores
Amotinados foram socorridos por anistias votadas pelas Assembleias Legislativas e pelo Congresso
O manifesto dos 20 governadores dizendo-se confrontados por Jair Bolsonaro porque, entre outras coisas, ele se “antecipou a investigações policiais para atribuir fatos graves à conduta das polícias” foi um monumento à dissimulação da cumplicidade corporativa dos signatários. Os governadores decidiram sentar praça nas suas polícias militares.
Bolsonaro lançou suspeitas sobre a conduta da polícia baiana no episódio da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente não foi a única pessoa a sentir cheiro de queimado naqueles tiros. Ademais, essa não foi a primeira batatada de Bolsonaro, com sua vulgar loquacidade.
O governador Wilson Witzel (Harvard fake '15) assinou o manifesto. Em matéria de “fatos graves”, a PM do Rio tem uma galeria de troféus. O capitão Adriano pertenceu ao seu Bope. Na PM esteve o subtenente Fabrício Queiroz, chevalier servant dos Bolsonaro, que empregou familiares de Adriano nos gabinetes parlamentares da família. Aos dois somam-se o sargento reformado Ronnie Lessa (ex-guarda-costas de bicheiros) e o ex-PM Elcio Queiroz (ex-segurança de cassinos), ambos presos, acusados de terem matado a vereadora Marielle Franco.
Fala-se muito da militarização do governo Bolsonaro porque há três generais de quatro estrelas no Planalto. Essa é uma questão real, mas eles comandam mesas e dois estão na reserva. Quem comanda tropa são os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Há 30 anos as Forças Armadas brasileiras mantêm-se dentro da disciplina e nelas os casos de corrupção foram pontuais. Conhece-se o episódio escabroso do sargento da FAB apanhado com 37 quilos de cocaína. Não se conhece o resultado da investigação, mas até agora não se pode dizer que existisse uma quadrilha de traficantes dentro da Força.
O manifesto de solidariedade dos governadores às suas Polícias Militares acende a luz noutra direção. Somadas, essas corporações têm cerca de 500 mil homens e mulheres. Esse número supera o efetivo da Forças Armadas e, ao contrário do que acontece no Exército com os conscritos, seus soldados são profissionais.
Nos últimos 20 anos deram-se pelo menos 12 motins e seis greves de policiais militares. Só na Bahia, cujo Bope matou o miliciano Adriano, as rebeliões foram três, numa das quais foi necessária a intervenção do Exército, como sucedeu também no Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Tocantins e Espírito Santo. Em todos os casos, os amotinados foram socorridos por anistias votadas pelas Assembleias Legislativas e pelo Congresso. O último perdão beneficiou os amotinados do Espírito Santo, e o anterior afagou indisciplinados de 19 estados. Vetado por Dilma Rousseff , durante a presidência de Michel Temer o Legislativo derrubou o veto e promulgou a anistia. Ninguém deu um pio. Quase sempre, tiveram no deputado Jair Bolsonaro um aliado.
Governadores não gostam de atritos com suas polícias, muito menos com as PMs. Tanto é assim que o mineiro Romeu Zema, signatário do manifesto, pediu um aumento de 41,7% para os policiais civis e militares. O doutor gosta de expor a situação falimentar em que recebeu o governo mineiro e intitula-se, como seu partido, o Novo na política. Põe velho nisso.
Prestigiar a Polícia Militar é uma coisa, sentar praça é bem outra.
Elio Gaspari: O grande golpe da CIA
Grampo americano em máquinas antiespionagem vendidas por empresa suíça durou 20 anos e atingiu uma centena de países, inclusive o Brasil
No maior golpe de um serviço de inteligência durante a Segunda Guerra Mundial, os ingleses quebraram os códigos alemães valendo-se dos melhores matemáticos do país e de uma equipe que chegou a reunir dez mil pessoas em Bletchley Park. Nos anos 1970, a Central Intelligence Agency Americana conseguiu quebrar os códigos de mais de uma centena de países com pouco esforço. Brasil, Argentina, Líbia, Irã e até o Vaticano compravam máquinas codificadoras da empresa suíça Crypto. Desde 1970 e por quase 20 anos a CIA foi simplesmente sócia secreta da Crypto, e as máquinas estavam grampeadas. Enquanto os ingleses gastaram milhões de libras para manter sua operação, a CIA ganhou milhões de dólares com a venda dos equipamentos aos países-clientes.
Esse grande golpe acaba de ser revelado pelo repórter Greg Miller, do The Washington Post. O grampo americano funcionou durante 20 anos e nele estava, como sócio, o serviço de inteligência alemão.
O Brasil entrou na lista das vítimas, mas em 1976 o Serviço Nacional de Informações decidiu criar uma operação de criptografia, recrutando professores, militares e diplomatas. Nessa época, só dez pessoas sabiam da existência do projeto, e os equipamentos comprados no exterior eram trazidos como contrabando diplomático. Os técnicos brasileiros disseram que as máquinas suíças eram cavalos de Troia e mostraram onde estavam os furos de suas concepções, decifrando mensagens de outros governos. Depois de 1978, as máquinas suíças foram desativadas. Mais tarde, a operação virou uma estatal, a Prólogo, e em 1981 ela tinha 350 funcionários.
Comprovadamente, em 1972 a Marinha brasileira fez uma compra de US$ 250 mil à Crypto. Segundo um documento da CIA de 1977, o Brasil forneceu máquinas do modelo CX52 da Crypto aos governos da Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai metidos na Operação Condor.
No mundo da criptografia, há anos desconfiava-se que as máquina suíças estavam envenenadas. Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, os militares argentinos suspeitaram que suas máquinas estivessem bichadas e interpelaram a Crypto, mas foram engambelados.
A autofritura de Paulo Guedes
O “Posto Ipiranga” colocou-se num processo de autofritura. Suas declarações demófobas contra as mulheres que trabalham nas casas dos outros e os servidores públicos, revelam o destempero pessoal de uma mente autoritária e ególatra.
Deixando-se de lado a retórica de Paulo Guedes (o que não é pouca coisa), o maior problema da quitanda do ministro está na entrega de berinjelas à freguesia. A contração da indústria e a queda das vendas do varejo em dezembro são fatos reais. Os servidores poderiam ser parasitas e as domésticas poderiam ser proibidas de ir à Disney e a economia continuaria andando de lado. Se isso fosse pouco, Mansueto Almeida, o quadro mais qualificado de seu ministério, está com um pé e a alma fora do governo.
Guedes acumulou poder anexando órgãos da administração pública. O oposto do que fez Delfim Netto, o mais poderoso ministro da Fazenda dos últimos cem anos. Delfim nunca anexou repartições. Ele colocava seus valets nos postos-chave e operava das seis da manhã à meia-noite. Além disso, era coloquial até mesmo quando enrolava a audiência (na crise da dívida, por exemplo). Aulas como as do seminário ambulante de Paulo Guedes, Delfim nunca deu.
A fritura de Guedes tem aspectos de uma autocombustão. A reforma tributária do ministro tornou-se um Rolls-Royce sem motor, lindo quando parado, mas sem a CPMF. A administrativa foi envenenada numa proeza de Asmodeu. Ele conseguiu viciar uma discussão sobre algo que não afetará os servidores que estão em atividade hoje. Sabendo-se que a máquina pública funciona mal, travar essa discussão equivale a dizer ao doente que ele não deve pensar em ir a um hospital.
Guedes, como todo “Posto Ipiranga”, está em cima de um depósito de combustível e, ao contrário do que dizia Tiririca, pior fica.
Boas notícias
Nas próximas semanas chegará às livrarias “Capitalismo na América”, de Alan Greenspan, o ex-presidente do Fed, em parceria com o jornalista Adrian Wooldridge. São 460 páginas com uma história dos Estados Unidos de Cristovão Colombo a Donald Trump. É uma exaltação erudita e documentada, do capitalismo criador e destrutivo dos Estados Unidos. Só Alan Greenspan poderia assinar uma de suas frases, referindo-se a Alexander Hamilton, o primeiro formulador da grandeza econômica do país: “Ele era um gênio nato do calibre de Mozart e Bach”.
(Hamilton morreu num duelo em 1804 e seu túmulo está no cemitério da igreja de Trinity, na entrada de Wall Street. Vale a visita.)
“Capitalismo na América” não tem índios, negros, pobres, nem mulheres. Daí a segunda boa notícia, pois ainda neste ano, ou no início de 2021, sairá a tradução de “These Truths”(Essas Verdades), da professora Jill Lepore. Ela conta a mesma história, vista do andar de baixo.
Para os agrotrogloditas, um petisco de Greenspan: “No Brasil colonial, o governo distribuía porções gigantes de terras para grandes proprietários. Na América capitalista, ele distribuía terras entre pessoas comuns com a condição de que cultivassem o solo”.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e achou ótima a ideia de se criar um Conselho da Amazônia sem a participação dos governadores da região. Ocorreu-lhe a ideia de criação de outro conselho, encarregado de tudo, sem conselheiros.
Outra hipótese seria preencher os lugares com notáveis. O Conselho Geral teria o Padre Feijó, o marechal Floriano Peixoto, o Barão do Rio Branco, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves.
As Spacetroopers
Em 2017, seis jovens do Colégio Santa Terezinha, de São Gonçalo, entraram com a cara e a coragem numa competição internacional da Nasa, a agência espacial americana, destinada a estimular estudantes que projetassem veículos de transporte para outros planetas ou para a Lua. Voltaram com dois prêmios. Participaram novamente nos anos seguintes e em 2109 conseguiram o sétimo lugar na classificação mundial.
A fundadora do grupo, Rafaela Bastos Costa, que em 2017 cursava o ensino médio, está hoje na Minerva University, nos Estados Unidos. Ingryd Andrade, da equipe de 2018, estuda nanotecnologia na UFRJ e Anna Clara Gonçalves faz o vestibular de Medicina.
Aimée Borges, Beatriz Mata e Rafael Moreira, da equipe de 2020, são alunas do ensino médio de Santa Terezinha, estão na equipe dos Spacetroopers Brasil deste ano e irão em abril para a competição em Huntsville, no Alabama.
Como em todos os anos, esses jovens precisam de ajuda para a viagem. Quem acha que a ideia é boa ideia, pode entrar em contato com a diretora do Colégio Santa Terezinha, Lúcia Helena Bastos Vieira de Souza.
Elio Gaspari: Conta outra, doutor
A vida e a morte de Adriano da Nóbrega, do Escritório do Crime, tornaram-se duas histórias mal contadas
Ganha um fim de semana em Rio das Pedras quem conseguir montar um cenário plausível para a seguinte situação:
Setenta policiais participam de uma operação para a captura do “Capitão Adriano”, foragido desde o ano passado. Suspeitando-se que ele se escondeu na chácara do vereador Gilsinho da Dedé (PSL), alguns deles formam um triângulo e cercam a casa. Tratava-se de uma área rural, sem vizinhos.
Segundo a versão da polícia baiana, ratificada pelo governador Wilson Witzel (Harvard Fake ’15), “chegamos ao local do crime para prender mas, infelizmente, o bandido (Medalha Tiradentes ’05) que ali estava não quis se entregar, trocou tiros com a polícia e infelizmente faleceu”.
Conta outra, doutor. Ou, pelo menos, conta essa direito. Adriano da Nóbrega estava cercado. O bordão “trocou tiros” é um recurso gasto. Antes da chegada da polícia, o miliciano já fugira da casa onde estava com a família, na Costa do Sauípe, e do esconderijo onde se abrigara, numa fazenda próxima. Os policiais podiam ficar a quilômetros da casa, e o bandido poderia atirar o quanto quisesse, mas continuaria cercado. Se a intenção fosse capturá-lo vivo, isso seria apenas uma questão de tempo. Três dias depois da operação, as informações divulgadas pelas polícias foram genéricas e insuficientes para se entender o que aconteceu.
Na melhor da hipóteses, os policiais foram incompetentes. Na pior, prevaleceu o protocolo de silêncio seguido pelo ex-PM Fabrício Queiroz, chevalier servant da família Bolsonaro e administrador da “rachadinha” de seus gabinetes parlamentares, onde estiveram aninhadas a mãe e a mulher de Adriano. O silêncio de Queiroz é voluntário, o do miliciano foi inevitável. Fica no ar um trecho da fala triunfalista de Witzel, no qual ele disse que a operação “obteve o resultado que se esperava”.
Quando a polícia estava no rastro de Adriano, o ministro Sergio Moro vangloriou-se de ter organizado uma lista dos criminosos mais procurados. Nela estavam 27 bandidos, mas faltava o “Capitão Adriano”. No melhor burocratês, o ministério explicou: “As acusações contra ele não possuem caráter interestadual, requisito essencial para figurar no banco de criminosos de caráter nacional”. Conta outra, doutor. Dois dos listados eram milicianos municipais do Rio de Janeiro. Ademais, a interestadualidade de Adriano foi comprovada na cena de sua morte, com policiais baianos e fluminenses.
O secretário de Segurança do governo petista da Bahia prometeu transparência na investigação da morte do miliciano. Seria uma pena se a cena do tiroteio tiver sido alterada. Numa troca de tiros deveriam existir cápsulas da arma de Adriano. Seria razoável supor que a polícia disparou mais tiros, além dos dois que atingiram o bandido. A cena poderia ter sido filmada, mas isso seria pedir demais, mesmo sabendo-se que se tratava de uma operação de relevância nacional. A captura de Adriano lustraria a polícia e jogaria luz sobre suas conexões. A morte do ex-capitão serviu apenas para aumentar as trevas que protegem essa banda das milícias do Rio.
Faz tempo, uma patrulha do Exército perseguiu outro ex-militar foragido pelo interior da Bahia. Chamava-se Carlos Lamarca. Apesar de ter teatralizado a cena de sua morte, o oficial que comandava a patrulha não falou em troca de tiros. Narrou uma execução.
Elio Gaspari: O caótico MEC de Weintraub
Se os educatecas não conseguem fazer um exame que preste, como farão três?
Depois de ter anunciado “o melhor Enem” e de ter entregue o pior, o Ministério da Educação de Abraham Weintraub saiu-se com uma ideia nova, fatiando-o em três exames que seriam aplicados a partir do primeiro ano do ensino médio. Trata-se de uma parolagem típica de burocratas que não fazem seu serviço e, diante do fracasso, propõem uma reforma. Se os educatecas não conseguem fazer um exame que preste, como farão três?
O Enem é uma praga que aflige a juventude brasileira há mais de 50 anos, desde quando se chamava vestibular. Em julho passado, o ministro Weintraub pôs luz nessa questão anunciando que a partir deste ano as provas seriam feitas por meio eletrônico. Prometeu tudo direitinho, dizendo que até 2026 a nova modalidade estaria implantada em todo o país: “Há cem anos a gente faz exame do mesmo jeito, em papel. Queremos fazer como é feito lá fora”.
Lá fora, tomando-se o exemplo do SAT americano, o exame é feito por meio eletrônico e os jovens têm sete oportunidades a cada ano para fazer a prova. Foi mal num, tenta outro. Se a promessa de Weintraub fosse adiante, algum dia seria possível fazer mais de um exame por ano.
Passaram-se oito meses e um fracasso. O que se vê é o início de uma discussão maluca para esquecer o que foi dito. Não se pode pedir que Weintraub faça o que prometeu, mas não seria muito pedir que faça pelo menos o que está combinado, um Enem por ano, mesmo no papel, sem desastres como o das últimas semanas.
Weintraub foi o quarto ministro a prometer o Enem digital. Ele e todos os outros seguiram a mesma metodologia: prometeram a mudança e nunca mais tocaram no assunto.
Que eleição?
Uma pesquisa realizada em São Paulo revelou que dois terços dos entrevistados não sabiam que em outubro haverá uma eleição municipal para a escolha do prefeito e dos vereadores.
Esperando Bloomberg
Até o dia 3 de março, quando 14 estados americanos realizarão suas prévias, os democratas e a torcida mundial contra Donald Trump continuarão ralando um inferno astral. Só então entrará na disputa Michael Bloomberg, o bilionário ex-prefeito de Nova York.
Os resultados de Iowa e o que virá nesta semana de New Hampshire indicam o caminho para uma derrota quase certa dos democratas, provavelmente enorme. Ficaram na frente o jovem Pete Buttigieg e o veterano Bernie Sanders. Quem acha que o eleitorado americano pode colocar na Casa Branca um gay (Buttigieg) ou um neossocialista (Sanders) pode torcer à vontade, mas terá mais quatro anos de Donald Trump.
Bloomberg entrará na Superterça com 78 anos e uma fortuna de US$ 61 bilhões. Ele já foi republicano e politicamente incorreto. No andar de cima, sua conversão poderá ser absorvida, mas, no de baixo, ele terá que ralar para buscar o voto do eleitorado negro.
O candidato pelo partido democrata tem um ego comparável ao de Trump, mas essa é a única semelhança. Judeu, nasceu na classe média, não herdou um tostão e construiu um império jornalístico. O outro herdou a fortuna do pai e quebrou várias vezes.
Serpentário
Jair Bolsonaro não gosta da imprensa e reclama das notícias de que pretende mexer no Ministério. Tudo bem, mas, de dez frituras que são noticiadas, nove partem do serpentário do Planalto.
Tanto é assim que a saída do ministro Gustavo Canuto do Ministério do Desenvolvimento Regional e sua substituição por Rogério Marinho, uma decisão pessoal de Bolsonaro, passou ao largo dos radares dos fabricantes de frituras.
Energia solar
A turma que pretende taxar a energia solar de forma ampla, geral e irrestrita continua ativa, trabalhando no escurinho do Congresso.
Um curioso acaba de descobrir um documento capaz de subsidiar essa discussão. Trata-se de um manifesto dos produtores de velas, paródia escrita em 1845 pelo economista francês Frédéric Bastiat. Ele defendia a liberdade de comércio e redigiu a petição destinada a enfrentar um concorrente estrangeiro (o Sol), pedindo uma lei que mandasse fechar janelas e claraboias para impedir a entrada de sua luz, protegendo a indústria, o comércio e milhares de empregos.
Bastiat queria preços livres e na sua paródia argumentava que, se a luz do Sol podia concorrer com a das velas, o governo não poderia taxar a importação de laranjas portuguesas, mais baratas que as francesas porque a lavoura de Portugal era beneficiada porque lá havia mais Sol.
Transição
Em 2018, a ministra Cármen Lúcia passou a presidência do Supremo Tribunal Federal ao seu colega Dias Toffoli com grande suavidade.
Depois do barraco dos juízes de garantia, deve-se temer que a transição de Toffoli para Luiz Fux tenha sobressaltos.
Cabral falou
O ministro Edson Fachin homologou a colaboração de Sérgio Cabral, feita à Polícia Federal, determinando que seus anexos fiquem sob sigilo. Eles poderão chegar à centena.
A última colaboração de magano à Federal, também rejeitada pelo Ministério Público, foi a de Antonio Palocci e teve um percurso desastroso. Vazou mais que coador de macarrão e um de seus anexos foi divulgado pelo juiz Sergio Moro durante a campanha eleitoral.
As confissões de Palocci, com 39 anexos, geraram muito barulho e poucos resultados. Pelo andar da carruagem, a colaboração de Cabral pode ir pelo mesmo caminho, a menos que seja acompanhada pelas devidas investigações e necessárias prisões.
Embaixador calado
Pelo menos um embaixador do Brasil numa capital do circuito Elizabeth Arden especializou-se na arte de ficar calado ou de repetir platitudes em jantares onde o colocam ao lado de senhoras estranhas ao mundo diplomático.
As mulheres de diplomatas de outros países sabem que certos assuntos devem ser evitados.
Guilherme Schelb
O procurador-geral Augusto Aras escolheu seu colega Guilherme Schelb para uma das vagas no conselho da Escola do Ministério Público e começou uma gritaria da turma da Casa.
A maior restrição feita a Schelb é a sua simpatia por Jair Bolsonaro e a defesa que faz do Escola Sem Partido. Esse é um direito dele.
A turma da grita tem memória seletiva. Em 2001, Schelb integrou a equipe de procuradores que investigou o assassinato de guerrilheiros do Araguaia no século passado. Alguns guerrilheiros foram executados depois de terem aceito as propostas de rendição feitas pelos militares por meio de panfletos e de convites transmitidos pelos alto falantes de helicópteros a partir de outubro de 1973. Um dos panfletos dizia: “Oferecemos a possibilidade de abandonar a aventura com vida, com tratamento digno e julgamento justo”. Era mentira.
O trabalho desses procuradores ajudou a levantar o véu de silêncio jogado sobre o fim da guerrilha pelo Exército e, sob outros aspectos, pelo PCdoB. Eles listaram nove “desaparecidos” que foram vistos nos aparelhos que o Centro de Informações do Exército mantinha na região.
Elio Gaspari: Bolsonaro deve estudar seus recuos
A ideia de deixar brasileiros numa área de risco era bobagem em estado puro
Precipitação e insônia os males de Bolsonaro são. Basta que se congelem duas situações irracionais nas quais teve que recuar. Primeiro, a nomeação do peripatético Vicente Santini, demitido depois de seu voo de Davos para Nova Déli e novamente defenestrado. Depois, a declaração de que não poderia resgatar os brasileiros confinados em áreas de risco da China: “Custa caro um voo desses”, disse o capitão depois ter ouvido quatro ministros. Novamente, recuou e fez o certo.
No primeiro caso (a recontratação de Santini), poderia ter ficado quieto por 24 horas, durante as quais ouviria pessoas em quem confia. No segundo (o dos brasileiros que estão na China), bastaria ficar calado, pedindo aos çábios que lhe sugeriram a omissão que pusessem a cara na vitrine.
Sempre houve ministros prontos para repetir bobagens ditas por presidentes. Apanham, mas colhem prestígio palaciano. Presidente repetindo bobagens ciclópicas de ministros é coisa rara. Esse foi o caso do “custa caro um voo desses”. A ideia de deixar brasileiros numa área de risco era bobagem em estado puro, e o presidente foi jogado aos leões por um infeliz palpiteiro (ou por felizes palpiteiros que preferiram ficar calados). Bolsonaro mexeu com a relevância do cargo que ocupa.
Não se pode pedir que ele siga os melhores exemplos de seus antecessores, mas pode-se lembrar a conduta de Dom Pedro II numa situação inversa, na qual ele poderia ser suspeito de trazer um micróbio indesejável. Em 1871 o imperador viajava para a Europa como Pedro de Alcântara, um cidadão qualquer, e seu navio aportou em Lisboa. Passageiros vindos do Brasil tinham que se submeter a uma quarentena, indo para o Lazareto. Ofereceram-lhe um passe livre e, em voz alta, ele o recusou, submetendo-se a uma quarentena de que durou oito dias. Escreveria: “Estou no Lazareto, uff!”
Dom Pedro passou para a História escondendo suas opiniões. Bolsonaro quer entrar nela, disparando-as como se fossem rojões de réveillon. Sabe-se que ele padece de um sono irregular. Em março passado, intitulou-se recordista brasileiro de apneia, com 89 interrupções do sono a cada hora. Tomara que resolva esse problema, pois ele mesmo reconhece que fica “saturado”, a ponto de não querer ouvir o que houve no Enem. Uma anomalia do sono pode explicar suas saturações, mas não consegue justificá-las, até mesmo porque, dando-se conta do erro, às vezes dá meia volta.
O exercício de uma presidência espetaculosa é um direito de seu titular e em algumas ocasiões funciona. Tendo nomeado Regina Duarte para a Secretaria da Cultura, Bolsonaro colocou-a debaixo dos holofotes. Por enquanto, a presença da atriz no governo é uma reaparição da Viúva Porcina, da novela “Roque Santeiro”, num cenário vetusto. Como Porcina agradou a uma geração, nada impede que ache um nicho na Secretaria de Cultura. Se não achar, o problema será dela, nem tanto dele. Seu êxtase durante a execução do Hino Nacional numa cerimônia militar em que tinha ao lado o doutor Paulo Skaf pode ter refletido a fé patriótica de uma nova dramaturgia.
Bolsonaro pode continuar fazendo o que acha melhor, mas evitará as cascas de banana que sai espalhando pelos lugares onde pretende pisar se tomar uma simples providência: diga o que quiser, mas espere entre seis e 12 horas.
Elio Gaspari: O vexame da patrulha contra McCloskey
Não se pode saber como vai acabar a lambança do Enem, mas exemplos mostraram que as redes sociais são uma das boas coisas deste século
Dizer que a terra é plana ou que o nazismo foi de esquerda fazem parte de um bestiário incontrolável, mas entra-se no caminho do vexame quando uma empresa como a Petrobras cancela uma palestra da economista Dreirdre McCloskey porque ela disse que os governos de Donald Trump e de Jair Bolsonaro são “qualquer coisa, menos liberais”.
Trata-se de um vexame pela falta de educação, pela truculência e pelo obscurantismo. Falta de educação porque os áulicos da Petrobras cancelaram a palestra sem dizer uma só palavra à professora.
Pela truculência, porque o ex-Robert McCloskey teve coragem para mudar de sexo e com isso já enfrentou paradas bem mais duras do que pitis de burocratas amedrontados. É dela a mais sólida resposta às patrulhas que associam Milton Friedman à ditadura chilena do general Pinochet. (O texto da palestra está na rede com o título “Ethics, Friedman, Buchanan, and the Good Old Chicago School”.) Pelo obscurantismo, porque a professora é uma economista respeitada
internacionalmente.McCloskey veio da cepa da universidade de Chicago e trabalhou com Friedman.
Seus três livros sobre as virtudes, a igualdade e a dignidade dos burgueses são aulas de História para quem quer conhecer as raízes do mundo moderno. Em poucas palavras (dela), nada a ver com a luta de classes de Marx, com os protestantes de Max Weber, com instituições ou com as teorias matemáticas da acumulação de riquezas. Foi tudo coisa das ideias: “Comércio e investimentos sempre foram rotinas, mas uma nova dignidade e a liberdade das pessoas comuns foram únicas dessa época”. O construtor do mundo moderno foi o burguês.
Bolsonaro não é liberal, finge mal e, se quiser sê-lo, terá muito chão pela frente. Cancelar uma palestra de McCloskey porque ela criticou o capitão foi atitude de quem passa por qualquer vexame para ficar bem na nominata das cerimônias.
Se esse triste episódio levar alguma editora a publicar a trilogia burguesa de McCloskey, a patrulha terraplanista terá prestado um serviço ao país.
O MEC está deseducando uma geração
A ruinosa gestão do Enem de Abraham Weintraub cravou mais um prego na juventude de milhões de brasileiros. No seu primeiro contato relevante com a máquina do Estado, a garotada não soube que haviam sido cometidos erros na correção de suas provas. Aprendeu que a máquina não aceitava reclamações. Felizmente, percebeu que a mobilização das redes sociais poderia dobrar a máquina.
É o caso de se procurar entender como um jovem de 19 anos recebe a informação de que a lambança foi uma “inconsistência” e tudo não passou de um “susto” (palavras do doutor Weintraub). Centenas de milhares de estudantes saíram desse Enem com um gosto amargo na boca, até porque as regras dos educatecas dificultam os recursos em busca da revisão das notas.
O ruinoso do Enem de Weintraub junta-se a outro desastre, com o qual ele nada teve a ver e, pelo contrário, já denunciou. É o caso dos inadimplentes do Fundo de Financiamento Estudantil. Invenção dos ministros da Educação petistas, para gosto dos donos de faculdades privadas, o Fies transferiu para a Viúva o risco de inadimplência dos estudantes da rede privada.
Hoje, o rombo está em R$ 32 bilhões. Isso aconteceu porque os financiamentos eram dados sem um fiador verificado e os educatecas não analisavam os empréstimos que o Fies concedia.
Weintraub apontou o pior lado dessa desgraça, o moral:
“São 500 mil jovens começando a vida com o nome sujo”.
Com o nome sujo e estimulados a não pagar o que devem, porque foram induzidos a isso pelos espertíssimos donos de faculdades.
É sempre bom lembrar que um estudante da faculdade de Direito de Harvard formou-se em 1991 e só quitou sua dívida depois de 1996, com o que ganhou publicando seu primeiro livro. Chamava-se Barack Obama.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e vai a Brasília para tentar convencer Jair Bolsonaro a manter Onyx Lorenzoni na chefia da Casa Civil.
Não foi Lorenzoni quem teve a ideia de colocar Vicente Santini na Casa Civil. Também não foi ele quem o mandou num jato da FAB para Davos e, de lá, para Délhi.
Também não foi Lorenzoni quem sugeriu a Bolsonaro que, depois de demiti-lo, o colocasse noutra função.
Todo mundo sabe que Lorenzoni estava de férias, mas foi ele quem acabou na frigideira.
Se o doutor pode ser frito por tanta coisa com a qual nada teve a ver, seria melhor mantê-lo e, sempre que acontecer uma trapalhada, dá-se uma fritadinha no Lorenzoni.
Os pés de Zema
Com mais de 50 mortos e 50 mil desabrigados nas enchentes de Minas Gerais, o governador Romeu Zema foi entrevistado na Globonews e, por quase uma hora, falou bem de si e mal dos outros, inclusive de algumas vítimas. Revelou que é candidato à reeleição e que, no Brasil, há muita coisa errada, à espera de um novo tipo de administrador (ele). Até aí é o jogo jogado, mas Zema inovou.
A certa altura, contou que foi à cidade de Governador Valadares (15 mil desabrigados) e teve que levar dois pares de sapatos, porque havia muita lama.
Zema descobriu que enchentes sujam sapatos.
Corrupção legalizada
O doutor Gustavo Montezano, presidente do BNDES, deu-se a um voo de ciência política e ensinou:
“A gente construiu leis, normas, aparatos legais e jurídicos que tornaram legal esse esquema de corrupção. A conclusão é essa”.
A gente quem, cara pálida? Machado de Assis já ensinou que “a ocasião faz o roubo, o ladrão já nasce pronto”.
Para ficar num caso ocorrido durante o atual governo, as leis mandam que as compras para o serviço público sejam feitas por licitações e que compete à Controladoria-Geral da União fiscalizar a lisura desses certames.
Em agosto passado, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação anunciou um pregão para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para escolas da rede pública. Coisa de R$ 3 bilhões.
A CGU sentiu cheiro de queimado e descobriu que numa escola de Minas Gerais cada um dos 255 alunos receberia 118 laptops. Soado o alarme, o edital foi suspenso e depois revogado.
As leis e as normas foram seguidas, mas até hoje ninguém explicou como esse edital foi concebido, armando a ocasião para interessados que, na visão de Machado, nasceram prontos. Parece falta de educação falar do assunto.
Fiesp
De um empresário abatido pelo desembaraço político de Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo.
“Do jeito que estão as coisas aquele prédio da avenida Paulista podia passar por um retrofit. O térreo e o espaço do rés-do-chão poderiam ser entregues às moças que vendem milho e aos rapazes do yakissoba. Nos andares superiores ficaria o museu da indústria e o auditório seria entregue aos músicos e malabares”.
Elio Gaspari: Os indemissíveis são dispensáveis
Funaro e Golbery foram asfixiados e pediram demissão
As relações do presidente Bolsonaro com seu ministro da Justiça, Sergio Moro, estão estragadas, e não há sinal de que eles voltem a se encantar. Estão afastados pelos projetos e sobretudo pelos temperamentos. O que acontecerá se eles se separarem?
Marco Maciel, o sábio vice-presidente de Fernando Henrique Cardoso, já respondeu a esse tipo de questão. Pode acontecer isso ou aquilo, mas sobretudo pode não acontecer nada.
A ideia de que, como ministro do Supremo ou mesmo como candidato, o xerife da Lava-Jato sofreria as inclemências do sol e do sereno pode parecer estranha, mas, olhando-se para o outro lado, nenhum presidente pagou caro pela dispensa de um ministro indemissível. Pelo contrário, a conta ficou cara para o presidente que não usou a caneta.
Guardadas todas as diferenças, passaram por Brasília três ministros indispensáveis. O último foi Dilson Funaro, o herói do Plano Cruzado de José Sarney. Sua gestão começava a dar sinais de cansaço e ainda era o ministro mais popular do governo, quando um conhecedor do Planalto informou que ele seria docemente asfixiado. Funaro saiu e virou asterisco.
Indispensável mesmo era o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do presidente João Figueiredo, que lhe devia a arquitetura da própria nomeação. Em 1981, na crise do atentado do Riocentro, o presidente alinhou-se com a “tigrada”, e Golbery foi-se embora. Pensava-se que seria impossível substituí-lo. Esmeralda, a mulher do general, que lhe atribuía poderes paranormais, cravou: Ele vai chamar o professor Leitão de Abreu. Não deu outra, e o ex-chefe da Casa Civil do governo Médici manteve o barco à tona. Golbery afundou com a candidatura de Paulo Maluf à Presidência.
Funaro e Golbery foram asfixiados e pediram demissão, já o general Sylvio Frota, ministro do Exército do presidente Ernesto Geisel, foi mandado embora. Frota tinha o peso do cargo, invicto em todos os confrontos com a Presidência. O general supunha-se presidente de um conselho de administração (o Alto Comando do Exército), capaz de emparedar o CEO (Geisel). Quem sabe uma parte dessa história é o ministro Augusto Heleno, ajudante de ordens de Frota. Na tensa jornada de 12 de outubro de 1977, a pedido do chefe, o capitão Heleno fez uma ligação para o general Fernando Bethlem, comandante da tropa do Sul, em quem Frota via um aliado. Se os dois conversaram, é quase certo que Bethlem já soubesse que era seu sucessor. No dia seguinte, Frota estava em seu apartamento do Grajaú.
Nesses três casos, os indispensáveis foram dispensados. Houve outro, no qual o presidente medrou. Em 1965, Castello Branco manteve o general Costa e Silva no Ministério da Guerra, apesar de ele ter estimulado o lançamento de sua candidatura à Presidência da República. Castello cedeu, para contrariedade de seus mais diretos colaboradores. Quando se deu conta de que Costa e Silva levava o país para uma ditadura escancarada, preparou-se para desafiá-lo, mas foi ao Ceará, embarcou num aviãozinho, caiu e morreu.
Os ministros são indispensáveis até a hora em que são dispensados. Afinal, como também ensina Marco Maciel, as consequências geralmente vêm depois.
Elio Gaspari: Rebecca e Vitor, dois jovens do século XXI
Graças às redes sociais, e só a elas, Rebecca e Vitor conseguiram ser ouvidos
Rebecca Ferreira, de 18 anos, quer ser jornalista, e Vitor Brumano, de 19, quer ser engenheiro. Durante alguns dias tenebrosos, a incompetência dos educatecas que comandaram o Enem triturou seu sonhos de estudantes. Graças às redes sociais, e só a elas, conseguiram ser ouvidos pelos maganos do Ministério da Educassão. Numa época em que se discutem as “fake news”, eles mostraram que as “real news” existem e são capazes de dobrar os poderosos.
Vitor surpreendeu-se ao ver que suas notas do Enem não faziam sentido. Rebecca foi informada que havia sido eliminada porque seu celular tocou durante a prova. Ambos reclamaram e não havia quem os ouvisse.
Uma das fontes de inspiração do escritor George Orwell para o seu “1984” foi a experiência que teve num colégio inglês. Lá ele percebeu que “era possível cometer um pecado sem saber que o cometera, sem querer cometê-lo, mas sendo incapaz de evitá-lo”.
O celular de Rebecca não havia tocado durante o exame. Tanto era assim que ela concluiu a prova e foi para casa esperar a nota.
Vitor procurou os canais competentes e, quando teve resposta, como veio apenas um blablabá, foi às redes. Rebecca enviou dezenas de mensagens ao Inep e sua família procurou um advogado. A jovem recorreu ao Twitter:
“O Sisu começa amanhã e estou desesperada. Por favor me ajudem.” Horas depois, publicou um vídeo no Instagram. Segundo o repórter Rodrigo de Souza, em 24 horas o tuíte teve 30 mil compartilhamentos e o vídeo, 28 mil.
A reclamação de Vitor Brumano foi um dos fatores que levou o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, a admitir que o seu Enem, o “melhor de todos os tempos”, estava bichado. A mobilização conseguida por Rebecca levou o presidente do Inep a reconhecer o erro. Ainda bem, pois a mãe de outra Rebeca, cujo celular tocara e tivera que abandonar a prova, já fornecera à jovem uma declaração autenticada, informando o que aconteceu.
As “real news” da encrenca atropelaram as “fake news” triunfalistas dos hierarcas que se julgam parte do Ministério da Verdade do “1984” de Orwell.
Só um propagador da Ingsoc (a ideologia do Grande Irmão) seria capaz de fazer o que fez o ministro Abraham Weintraub às 8h21 da manhã em que o portal do Sistema de Seleção Unificada começou a receber inscrições de estudantes:
“Bom dia! O Sisu está rodando normalmente nesta manhã. (...) Boa sorte a todos!”.
Àquela hora, o ministro não poderia dizer que o sistema estava rodando normalmente. Se tivesse tentado entrar no portal, saberia que ele atolara, estava lento e transmitindo informações erradas.
Um estudante escreveu: “O Sisu já me deu mais erro dos que eu já cometi em toda minha vida”. Outro divertiu-se: “Faz arminha com a mão que consegue acessar”.
Não se pode saber como vai acabar a lambança do Enem, mas os exemplos de Vitor e Rebecca mostraram que as redes sociais são uma das boas coisas deste século.
Roberts é um exemplo para o STF
Depois do barraco dos ministros-plantonistas Dias Toffoli e Luiz Fux em torno da criação do juiz de garantias, só um milagre de Santa Dulce dos Pobres devolverá ao Supremo Tribunal Federal o clima de cordialidade que convém a um plenário de onze adultos.
Nem todo mundo está obrigado a sofrer com as batidas de cabeça das excelências. Há um refrigério nos Estados Unidos, na figura e na conduta de John Roberts, o presidente da Corte Suprema que preside o julgamento de Donald Trump pelo Senado.
Seu cargo no tribunal é vitalício, sua função no julgamento é secundária e ele já disse que os juízes são como os árbitros de competições esportivas, pois ninguém vai aos estádios para vê-los. Mesmo assim, repreendeu senadores dos dois partidos pela má qualidade de suas retóricas. Esta é a segunda vez em que ele cruza com o destino de um presidente americano. Em 2000, foi um dos conselheiros da equipe de Bush, o Jovem, na disputa judicial que derrubou Al Gore.
Não se sabe se Roberts interferirá na blindagem com que os republicanos querem proteger Trump, desprezando novos documentos ou novas testemunhas.
O juiz completará 65 anos amanhã e está na cadeira desde 2005. É um tremendo sujeito, conservador de vitrine. Ri de boca fechada, não fala abobrinhas e parece ter decidido ir para a Corte Suprema quando ainda era um estudante em Harvard. Bom aluno, bom atleta (luta livre), ia à missa aos domingos, foi assessor de grandes juízes, trabalhou na Casa Branca e ganhou algum dinheiro na banca privada (litigou 39 casos na Corte Suprema e prevaleceu em 25). Visto pela biografia, seria um juiz carimbado. Nasceu numa das localidades mais segregadas dos Estados Unidos e não gosta de políticas afirmativas, mas surpreendeu o país ao dar o voto decisivo para a sobrevivência do Obamacare, que redefiniu a estrutura da saúde pública americana.
Como Roberts não gosta de holofotes, uma vinheta de sua vida mostra quem é esse católico, casado com uma bem-sucedida advogada, também católica e militante contra o aborto. Eles se casaram quando tinham mais de 40 anos, não conseguiam ter filhos e decidiram adotar uma criança. Um dia, quando já tinham combinado a adoção de um bebê que nasceria em poucos meses, receberam um telefonema de outra agência, informando que um menino nasceria no dia seguinte e a mãe escolhera o casal Roberts para adotá-lo. Adotaram os dois. Joe e Josephine estão com 16 anos.
O VOTO DE FUX
Pelo andar da carruagem, o relator Luiz Fux levará ao plenário do STF seu voto sobre a criação do juiz de garantias ainda neste semestre.
O pleno decidirá se o instituto é constitucional. Se achar que é, poderá fixar um prazo para sua entrada em vigor.
Se isso acontecer com o mínimo de barracos, todo mundo ganha.
GREENWALD
Se o juiz Sergio Moro ou o procurador Deltan Dallagnol tivessem conversado nos termos em que o repórter Glenn Greenwald conversou com os hackers da Lava-Jato, a Vaza-Jato não existiria. Em quatro momentos de sua conversa com o hacker, Greenwald disse que, como jornalista, não podia se envolver com as operações de interceptação. Num momento, ele informa que “eu não posso te dar conselhos”.
GUEDES E MAIA
O ministro Paulo Guedes diz que em fevereiro mandará ao Congresso a primeira etapa de sua reforma administrativa.
Para que ela ande, serão necessárias duas condições:
A ekipekonômica precisa ouvir o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Tendo ouvido, precisa cumprir o que combinou.
De vez em quando os doutores acham que esses detalhes são irrelevantes. Quando eles decidiram taxar o seguro-desemprego, conseguiram apenas alavancar a própria impopularidade.