Eliane Catanhêde

Eliane Cantanhêde: E o Brasil com isso?

No maior teste da nova política externa, Brasil adota neutralidade ou assume lado?

O conflito dos Estados Unidos com o Irã é o maior teste do governo Jair Bolsonaro e já exibe duas claras guinadas, não apenas em relação aos governos petistas, mas à própria política externa tradicional do Brasil. E o pior está por vir, pois a vingança do Irã é certa, mas não se sabe quando, como e com que grau de ferocidade. O que fará o Brasil?

As duas mudanças perpassam as discussões de cúpula do governo e podem ser identificadas na nota do Itamaraty. A primeira é que o foco no Oriente Médio não é mais o conflito Israel-Palestina e sim o Irã. A segunda é que o Brasil deixa de tratar o terrorismo como uma questão distante, dos países desenvolvidos e do Oriente Médio. O terrorismo passa a ser problema nosso, sim.

No “novo Brasil”, alinhado incondicionalmente não só aos EUA, mas ao governo Trump, o Irã é a maior ameaça internacional, com seu projeto audacioso de hegemonia na região e insinuando-se até como novo líder mundial a partir do seu programa nuclear. Persa, não árabe, é o Irã quem assume a dianteira no enfrentamento a Israel, negando até o holocausto e o próprio Estado de Israel, como já se esgoelava Mahmoud Ahmadinejad, homem forte do país entre 2005 e 2013.

Tanto Trump quanto Bolsonaro têm forte base política entre judeus e evangélicos, que estão na linha de frente pró-Israel. Não por acaso, o primeiro compromisso e a segunda manifestação de Trump após o ataque que matou o principal líder militar iraniano foram em Miami, num evento evangélico.

Agregue-se à ascensão do Irã a sua proximidade com a Venezuela de Nicolás Maduro e tem-se a suspeita de apoio iraniano à instalação de células do Hezbollah na América do Sul. Bom pretexto para a mudança da posição brasileira sobre terrorismo. Não é mais “coisa dos outros”.

As primeiras manifestações do presidente Jair Bolsonaro foram bem-vindas. Ele admitiu o impacto da crise sobre o preço do petróleo, mas descartou tabelamento. Ponto com o mercado e com o Ministério da Economia. E lembrou que o Brasil não tem armamento nuclear e não pode assumir um lado, ficando sujeito a retaliações. Ponto com os militares e com a diplomacia responsável.

A nota do Itamaraty, porém, é toda em cima do combate ao terrorismo e embica para a condenação ao Irã e o apoio aos EUA, deixando em aberto qual será a posição brasileira se, ou melhor, quando o Irã retaliar. Nesse momento, Trump cobrará posição e ação. O que o Brasil responderá?

A nota não condena a ação americana e o assassinato do general Suleimani, mas sim, além do “terrorismo”, os ataques à embaixada dos EUA em Bagdá. E diz que o Brasil está pronto para participar de “esforços” para evitar uma escalada. Participar como? Como mediador neutro ou a favor de um lado?

Ouçam-se os generais e estrategistas militares e eles responderão: “não é coisa nossa”. Ouçam-se embaixadores e especialistas em política externa e eles farão coro: “não temos nada a ver com isso”. E, juntos, concordam com a primeira avaliação de Bolsonaro: o Brasil não tem tamanho para entrar nessa guerra. Melhor seguir o exemplo da França: pedir cautela e fim da escalada. Ponto.

Além da questão geopolítica e dos riscos para o planeta, a crise envolve questões internas. Trump convive com o impeachment e a reeleição neste ano. O Irã sofre rejeição em parte do Iraque e do Líbano. Logo, arrumar “inimigos externos” é conveniente a ambos, assim como Hugo Chávez recorria ao “demônio” EUA a toda hora para unir a Venezuela.

Objetivamente, o Brasil pode muito pouco num conflito ou numa guerra assim e tem de se preocupar com a ameaça imediata: o preço do petróleo. Isso, sim, tem reflexos diretos no País. Inclusive, na política interna.


Eliane Catanhêde: Coleção de retrocessos

Em 2019, Brasil avançou devagar na economia e recuou velozmente no resto

Último dia do ano, hora de discutir o que deu certo, o que deu errado, o que poderia ser melhor. No governo Jair Bolsonaro, a economia andou devagar, mas andou. O problema foi o resto, que andou rápido, mas em marcha a ré. Uma coleção de retrocessos.

A reforma da Previdência foi o grande marco político e econômico de 2019. O grande mérito do governo foi enviar o projeto e o do Congresso foi ter encaminhado, debatido e votado com razoável rapidez e com a menor desidratação possível. Bolsonaro jogou o pacote no Congresso e lavou as mãos, deixando a condução, a negociação, os ajustes e os votos por conta de dois personagens-chave no seu primeiro ano de governo: Rodrigo Maia, do Legislativo, e Paulo Guedes, do Executivo. Com a reforma da Previdência aprovada, abriu-se uma avenida de oportunidades para novas reformas e a própria economia.

A previsão do PIB foi ao fundo do poço em meados do ano, mas recuperou-se e é otimista neste 31 de dezembro. A inflação e os juros estão baixos como nunca e o desemprego continua dolorosamente alto, mas caindo. Logo, as condições são boas. O preço da carne precisa baixar e Bolsonaro tem de parar de atrapalhar.

Quando se fala (ou reclama) em recuos, pensa-se logo em Meio Ambiente, que jogou o Brasil na imprensa internacional e abriu atritos desnecessários com parceiros como França, Alemanha, Suécia. E Bolsonaro também bateu de frente com China, Argentina, Chile, o mundo árabe, além de chegar no Paraguai elogiando Stroessner.

Houve ainda recuos assustadores na Cultura, até na última semana do ano, com o veto ao projeto de incentivo ao audiovisual, e na Educação, que saiu de um ministro inútil para outro que só vê “balbúrdia” nas universidades. Cultura e Educação não são inimigas, presidente! Nem a mídia e os jornalistas.

De tudo isso, fica o histórico de manifestações do presidente da República, ora machistas, ora homofóbicas, ora pró-ditadores sanguinários, ora acusando Paulo Freire de “energúmeno”. Para que? Ninguém sabe, mas o fato é que os filhos vão atrás. Sem citar hienas e “golden shower”, ambas de péssima lembrança.

Por falar nisso, a ida do deputado Eduardo Bolsonaro para a Embaixada do Brasil em Washington foi um sonho de verão para ele e um pesadelo para muita gente, dentro e fora do Itamaraty. E o ano termina deixando em aberto a situação do senador Flávio Bolsonaro, alvo do Ministério Público do Rio de Janeiro e com muitas histórias mal contadas a explicar à opinião pública brasileira. Carlos Bolsonaro? Esse continua lá, tuitando.

Se as pesquisas registram a baixa popularidade do presidente, não captaram o esforço do Legislativo, que trabalhou muito e bem ao longo de 2019. Motivo: continua “dando Ibope” falar mal do Congresso. Faz parte.

Quanto ao Judiciário, esteve no centro da suspeita de um cerco institucional à Lava Jato. Vamos combinar que o fim da prisão em segunda instância e os meses de interrupção de investigações pautadas pelo Coaf foram ataques frontais à maior operação de corrupção, talvez, do mundo. E ambos conduzidos pelo Supremo.

No foco, o presidente Dias Toffoli, determinado a derrubar a prisão em segunda instância e autor da canetada que feriu gravemente a atuação do Coaf e suspendeu as investigações com base na inteligência financeira. O discurso “em javanês” do ministro é um dos destaques de 2019. Cada um conclua o que quiser.

No mais, o governo abriu tudo para os EUA, mas, até agora, ninguém sabe, ninguém viu, no que isso conta a favor dos interesses do Brasil. A olho nu, não se vê pragmatismo, muito menos reciprocidade. Só Trump ri. Não tem graça nenhuma.


Eliane Cantanhêde: Nervos à flor da pele

Nem tudo são espinhos para Bolsonaro, mas ele coleciona derrotas no STF e no Congresso

O presidente Jair Bolsonaro acusou o golpe ao atacar repórteres que meramente cumpriam sua função fazendo perguntas, até óbvias. Ficou evidente que a crise Flávio Bolsonaro mexeu com os seus nervos e, sem respostas, ele parte para ironias e grosserias. Esse, porém, é só um dos muitos problemas que desabam sobre a cabeça presidencial neste fim de ano.

Enquanto as revelações sobre o filho “01” borbulham no Rio de Janeiro, Bolsonaro vai colhendo más notícias ora do Supremo, ora do Congresso, e a relação entre ele e o deputado Rodrigo Maia, que nunca esteve às mil maravilhas, parece ir de mal a pior.

O mais ameaçador para Bolsonaro é o volume de informações que envolvem Flávio com funcionários fantasmas, desvio de salários do gabinete, ligações com líderes de milícias, lavagem de dinheiro em compra de loja e de apartamentos. Mas não é só isso.

Nesses derradeiros dias até 2020, o STF, que reativou as investigações do MP contra Flávio e Queiroz, reuniu também maioria para derrubar a proposta de Bolsonaro de acabar com o DPVAT, um seguro fundamental que no ano passado atendeu a quase 330 mil vítimas do trânsito ou suas famílias.

Isso remete a projetos, digamos, pessoais de Bolsonaro que foram bombardeados pela opinião pública e por especialistas e acabaram derrotadas ou esquecidos no Legislativo. O caso mais vistoso é o das armas, o primeiro projeto que Bolsonaro enviou orgulhosamente ao Congresso. Mas há outros.

São todos surpreendentes, como o que acaba com a obrigatoriedade de cadeirinhas para crianças em carros, o que suspende os radares móveis nas estradas, o que elimina dezenas de conselhos de diferentes áreas, como Educação. Pelas estatísticas nacionais e internacionais, cadeirinhas e radares salvam vidas e evitam sequelas graves. E o que falar de conselhos? São para contrapor ideias e chegar às melhores propostas.

O Congresso também engavetou o “excludente de ilicitude”, apelidado de “licença para matar” dada a policiais, e já há dois novos atritos com Bolsonaro, o fundo eleitoral e a recriação da CPMF, ops!, a criação de um imposto que não é a CPMF, mas é tão parecido que virou “CPMF digital”. Para Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a chance de passar é praticamente zero.

Se havia dúvidas, o motivo veio no meio da pesquisa CNI/Ibope que captou o aumento da desaprovação e da desconfiança em relação ao presidente. A área mais mal avaliada foi a dos impostos. É claro que a culpa não é de Bolsonaro, mas a sociedade avisa que não aceita pagar mais impostos. O Congresso já tinha entendido o recado.

E Maia foi irônico ao avisar que, se o presidente vetar a proposta que ele próprio enviou ao Congresso, de um fundo eleitoral de R$ 2 bilhões para 2020, ok, ele pode vetar, mas o Congresso também pode derrubar o veto. Guerra é guerra.

Mas nem tudo são espinhos para o presidente. Os juros estão no seu menor patamar histórico, a inflação nem faz cosquinha, a geração de empregos vem melhorando e a previsão de crescimento voltou a subir, depois de despencar no meio do ano.

Last but not least, Bolsonaro espalha que Donald Trump “desistiu” de sobretaxar o aço brasileiro depois de 15 minutos de conversa com ele, mas aqui vai um bom bastidor: desde o início, Buenos Aires e Brasília receberam sinais de Washington de que a ameaça de Trump não era para valer. Era só uma “trumpada” para inglês, ou melhor, americano ver.

O problema é que, se os fatos não correspondem às versões, danem-se os fatos. E Bolsonaro não vai desperdiçar a sua versão, que vem bem a calhar para melhorar seu humor e desviar as atenções de MP, Flávio, Queiroz, milícia, “rachadinha”. Os produtores de aço agradecem, o presidente solta fogos.


Eliane Cantanhêde: Um mito em xeque

Por que Bolsonaro jogou a família inteira na política? A resposta pode estar no MP-RJ

O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro pode estar dando agora, a menos de 15 dias do fim do primeiro ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro, a resposta a uma pergunta que há anos não quer calar: por que Bolsonaro se candidatou, passou 28 anos no Congresso, meteu os três filhos mais velhos na política e já começa a entronizar também o menino caçula, Jair Renan?

Após encerrar prematuramente a carreira militar, aliás com graves motivos, Bolsonaro enveredou pela política mantendo sempre o discurso antipolítica, antipolíticos, antissistema, antipartidos, anti-Congresso. Se tinha essa ojeriza toda, por que entrou na roda e jogou para dentro dela a própria família? As revelações do MP sobre o gabinete do primogênito, Flávio Bolsonaro, na Alerj, autorizam uma conclusão, ou suposição: porque era fácil todo mundo “se dar bem”. Com dinheiro público, frise-se.

O MP não está necessariamente certo e as investigações ainda estão em andamento, mas o que se tem publicamente até agora é chocante – e preocupante. O gabinete do então deputado estadual Flávio, agora senador da República, embolava o Queiroz, policiais aposentados, parentes de líderes da milícia e a família inteira da segunda mulher do atual presidente: pai, tios, tias, primos.

Além da “rachadinha”, quando os funcionários repassam parte do salário ao parlamentar que os emprega, há suspeita de lavagem de dinheiro do próprio Flávio na compra de apartamentos e na sociedade de uma loja de chocolates que sofreu busca e apreensão do MP, com autorização judicial.

O efeito político dessas investigações, relatórios e notícias é devastador. Já seria complicado para qualquer um, mas é pior porque se trata do filho do presidente da República e, pior ainda, de um presidente que se elegeu como o salvador da Pátria contra a corrupção, o sistema, a “velha política”. Tem algo mais velha política do que rachadinha? E que tal rachadinha com miliciano no meio?

Sem contar que havia um certo trânsito de funcionárias entre os gabinetes do filho no Rio e do pai em Brasília. Algumas, aliás, onipresentes: eram personal trainers ou vendiam guloseimas no Rio, mas recebiam salário em Brasília. Tudo mal explicado.

O ano de 2019 termina e o ano de 2020 começa com os Bolsonaros às voltas com essas histórias todas que tiram o presidente da costumeira posição de ataque e o empurram para a desconfortável posição de defesa. “Não tenho nada a ver com isso”, limitou-se a reagir Bolsonaro, que tem fugido de repórteres na saída do Alvorada e nas solenidades do Planalto. Será que não tem o que dizer?
Há dúvidas, porém, sobre o uso que a oposição pode fazer disso tudo. O ex-presidente Lula pode tripudiar, recém-saído da prisão? O PT pode fazer fila no plenário da Câmara e do Senado para apontar o dedo contra o presidente? Qual dos partidos grandes vai se declarar surpreso, chocado e indignado com a “rachadinha”?

Aliás, esse será o ponto central da “defesa” que Bolsonaro está desde quarta-feira acertando no Alvorada com os filhos, inclusive o próprio Flávio: a surrada saída de que era “só rachadinha”, que “todo mundo faz”, aliada à desqualificação de quem investiga e quem noticia, ou seja, o MP e a imprensa. A estratégia não tem efeito jurídico, mas cola onde mais interessa ao presidente: nos seus apoiadores incondicionais.

Assim como os trumpistas só ouvem e acreditam no que querem e no que convém, os bolsonaristas também só consideram o que reforça suas crenças e tapam os ouvidos (e a mente) para tudo e qualquer coisa que possam arranhar a imagem que têm do “mito”. Afinal, mito é mito. Não tem defeito, sempre está certo e pode tudo. Até quando?


Eliane Cantanhêde: Educadores, tremei!

A TV Escola vai acabar ou virar veículo de propaganda da extrema direita?

O ano vai terminando, mas o presidente Jair Bolsonaro parecer disposto a atrair chuvas e trovoadas e causar marola até o último dia, o último minuto. Xingar o patrono da Educação brasileira de “energúmeno”? Acusar a TV Escola de ser esquerdista e “deseducar”? É, no mínimo, chocante.

Energúmeno significa endemoniado, possuído, mas costuma ser usado para denegrir a imagem de alguém como idiota, louco, bobo, às vezes fanático e exaltado. Quem, em sã consciência, pode achar que Paulo Freire é merecedor de algum desses adjetivos? Um homem que dedicou a vida à educação, sonhou e trabalhou pela igualdade, pelos direitos dos mais desvalidos, pela consciência coletiva de que, sem condições iguais na largada, ou na infância, o Brasil jamais será um país igual para todos.

Fica ainda mais trágico quando quem chama Paulo Freire de endemoniado enaltece demônios como Pinochet, Stroessner, Brilhante Ustra. Freire lutou pela vida, pelo bem. Os ídolos do presidente geraram morte, tortura, desaparecimentos, destroçando vidas e famílias cruelmente.

Nada anda na educação, que acaba de perder mais um ano e acumula déficits há décadas (inclusive porque jogaram fora os princípios e métodos de Paulo Freire). Veio o patético Vélez Rodriguez, que demorou, mas caiu. Veio o performático Abraham Weintraub, que está demorando e, segundo Bolsonaro, não vai cair. E a política para o ensino básico, o ensino médio, o ensino superior? Ninguém sabe, ninguém viu. No MEC, o foco está em ideologia.

Só se ouve um ministro mandar professores e alunos decorarem e entoarem o slogan de campanha do presidente da República e o outro acusar as universidades de só servirem para “balbúrdia” e plantação de maconha, enquanto imita Gene Kelly num vídeo, faz palhaçadas em outro, ataca todo mundo e não perdoa nem Paulo Guedes.

E por que o presidente Bolsonaro avisa que não vai demitir ministro nenhum e classifica Weintraub como “excelente”? Provavelmente porque o ministro da Educação participa de um amplo plano político para 2020, quando haverá eleições municipais.

Sem partido, depois de abandonar o PSL e os laranjais, Bolsonaro pode não ter condições para viabilizar o Aliança pelo Brasil a tempo de concorrer a prefeituras e câmaras legislativas. Logo, ele precisa de um plano B para eleger os futuros militantes da nova sigla.

A campanha maciça pela internet, tão eficaz na eleição de 2018, tende a ser de novo importante, mas não tão determinante em 2020. Eleição municipal exige presença, cara, voz, líder local. E onde se encontram esses fatores de campanha? No caso de Bolsonaro e de seu futuro partido, nos templos evangélicos e nas escolas. Sempre haverá pastores, pais e professores prontos a acreditar que “ser de direita” é ser isso aí: contra a igualdade, a educação inclusiva, o respeito às diferenças, os direitos das minorias.

Enquanto xinga Paulo Freire e promove quem xinga Fernanda Montenegro, Bolsonaro fecha a TV Escola com um pretexto daqui, outro dali, mas no fundo por um único motivo: ele acha, ou foi convencido de que ali só tinha esquerdista.

A TV Escola, porém, não era de esquerda e era muito importante para divulgação de métodos, técnicas e informações relevantes para um nicho específico: professores e estudantes. Com o perfil institucional, não seria justo exigir que competisse com TVs comerciais, mas tinha boa audiência, maior do que a TV Câmara e a TV Senado.

Agora, não se sabe o que é pior: fechar a TV Escola pura e simplesmente ou transformá-la num instrumento de propagação em massa de ideologias conservadoras e virulentas. Ela não era de esquerda, mas pode vir a ser de extrema direita.


Eliane Cantanhêde: ‘Fóssil colossal’

De líder na proteção do meio ambiente, o Brasil virou alvo de chacota mundial

Definitivamente, não se pode dizer que 2019, primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, tenha sido positivo para a imagem do Brasil no exterior. O presidente atribui o mau momento à mídia, às esquerdas, a uma espécie de propaganda negativa sistemática. Mas será que é isso mesmo?

Na sexta-feira, em Madri, a Conferência do Clima da ONU (COP) conferiu ao Brasil o prêmio “Fóssil Colossal”, que, como o próprio nome diz, é uma ironia com os piores desempenhos na proteção do meio ambiente. É dramático, porque o Brasil despencou de um extremo a outro: de líder mundial de proteção para alvo de chacota.

No mesmo dia, a prestigiada revista Nature incluiu o professor Ricardo Galvão entre os cientistas do ano. E quem vem a ser? O presidente do Inpe que foi demitido e humilhado publicamente depois de Bolsonaro achincalhar os dados do instituto sobre desmatamento. E, veja bem, os novos dados coletados pelo próprio governo confirmaram depois o quanto o Inpe estava certo.

Em meio a essa sucessão de vexames, o presidente bateu boca num dia com a ativista adolescente Greta Thunberg – a quem chamou de “pirralha” – e no dia seguinte ela surgiu, toda poderosa, como personagem do ano e da capa da revista Time. O presidente bem poderia ter passado sem mais essa.

Apesar de tudo, os dados que estão para ser consolidados vão confirmar que, em 2019, o Brasil manteve o desempenho nas importações e só perdeu um pouco nas exportações. E por questões pontuais: a má performance da Argentina, um dos maiores parceiros, e a epidemia do rebanho suíno da China, que reduziu muito a necessidade de soja para alimentar os porcos. Descontados esses infortúnios, o desempenho é considerado bom, estável, e pronto a crescer.

E, afinal, o que é melhor para o Brasil? Os Estados Unidos e a China – as duas maiores potências – manterem o clima de beligerância e os ataques mútuos, ou efetivarem o acordo de paz?

Há controvérsias, mas parece prevalecer a avaliação de que é muito melhor para todo o mundo, literalmente, e para o Brasil, particularmente, que os dois gigantes se entendam, porque isso garante equilíbrio mundial, estabilidade, segurança e estanca a previsão de queda do crescimento global.

Quanto mais economia, desenvolvimento, comércio, melhor, muito melhor do que vantagens eventuais que a agricultura brasileira possa ter com a guerra. Ok. Se a China deixa de comprar produtos agrícolas norte-americanos, a tendência é de que desvie o foco para os brasileiros. Mas isso é pontual, residual, restrito a um único setor.

Ainda no cenário internacional, o Brasil perdeu e os EUA ganharam com o excesso de reverência de Bolsonaro a Donald Trump. E, no regional, o pedido de refúgio do ex-presidente boliviano Evo Morales vai consolidando a Argentina como o novo polo da esquerda sul-americana, depois que a Venezuela virou pó. A Argentina polo da esquerda e o Brasil da direita não é um cenário tranquilizador.

Apesar disso, Bolsonaro e Fernández têm trocado recados apaziguadores e promessas de pragmatismo nas relações comerciais e diplomáticas em termos mais abrangentes. Espera-se que sim, mas lembrando que Bolsonaro é Bolsonaro e que o kirchnerismo é o kirchnerismo.

Por fim, 2019 registrou ataques de Bolsonaro a Macron, sua mulher, Fernández, Bachelet, Greta, Leonardo Di Caprio, ONGs e aos povos do Chile e do Paraguai (ao enaltecer Pinochet e Stroessner), além de ter gerado temores, no mundo desenvolvido e nos nossos parceiros tradicionais, sobre as políticas indigenista, ambiental, cultural, educacional e de direitos humanos. Aos olhos do mundo, o Brasil anda para trás.


Eliane Cantanhêde: Reeleição no papo?

No cenário de hoje, Bolsonaro não é só favorito como o único candidato para 2022

Os que apoiam estão tripudiando, os que se opõem entram em pânico, mas o fato é que, neste momento, o presidente Jair Bolsonaro não é apenas fortíssimo para vencer a reeleição como o único candidato realmente à vista para 2022. Três anos são uma eternidade na política, mas uma chapa Bolsonaro-Sergio Moro soa como imbatível. Não custa lembrar que Moro é o personagem mais popular do governo, mais até do que o presidente.

A esquerda continua imobilizada pela presença do ex-presidente Lula, que está inelegível. O centro... bem, João Doria recua, Luciano Huck avança, mas os dois nem chegam perto de ameaçar o franco favoritismo de Bolsonaro, que ainda por cima tem o precedente histórico a seu favor: nenhum presidente deixou de ser reeleito depois do instituto da reeleição. Nem Dilma Rousseff, apesar de tudo.

Bolsonaro aprofunda a estratégia da campanha de 2018, mantendo o foco no combate à corrupção, recuperação da economia e dos empregos, defesa da ordem, família e propriedade, ojeriza ao “politicamente correto” e o medo - ou pretexto - da volta do PT e de Lula.

Provoque qualquer bolsonarista, seja ele "de raiz" ou de conveniência, e a primeira resposta é: "O que você quer? A volta do PT?". A segunda: "o governo já tem um ano, você ouviu uma única palavra sobre corrupção?". A terceira: "A Dilma destruiu a economia, mas o Paulo Guedes está recuperando, a economia vai bem".

Pode-se perguntar sobre o aparelhamento indecente da Cultura, o desmonte das políticas e da fiscalização do Meio Ambiente, a bagunça na educação, a falta de notícias sobre a saúde, a esquizofrenia da política externa, as ameaças de autoritarismo dos filhos do presidente. Pode-se perguntar até do terraplanismo, de gurus, do AI-5, das amizades do presidente. Sabem a resposta? Tudo é mimimi de intelectual, de jornalista, ninguém está preocupado com isso.

Aqueles da direita moderna até torcem o nariz para os absurdos ditos e feitos por Bolsonaro e cia, demarcando uma linha clara entre eles e ele, mas não arredaram pé nem estão (até agora, ao menos) buscando alternativas. Pensam assim: Bolsonaro pode não ser adequado, mas que jeito? Ruim com ele, pior sem ele.

Do outro lado, a esquerda continua com o mesmo discurso atrasado, a mesma obsessão em Lula, as mesmas divisões, sem energia para fazer uma oposição consistente no Congresso nem para mobilizar a sociedade. E a situação de Lula é incerta e não sabida. A prisão em segunda instância vai voltar? Quando? Como será o julgamento da anulação do processo do triplex no STF, que pode anular a inelegibilidade? Para onde vai a condenação pelo sítio? E os demais processos?

Já o centro, que virou uma tábua de salvação, ainda é uma miragem. Faltam líderes, convencimento, discurso objetivo, rumos, convicção, reverberação no Congresso. E há dois pontos centrais: no Brasil, o presidencialismo é fortíssimo e a política gira em torno de personalidades. Bolsonaro encarnou o anti-Lula. Para enfrentá-lo, só uma cara e uma voz tanto anti-Lula quanto anti-Bolsonaro.

É cedo para certezas e mesmo previsões, mas no cenário de hoje Bolsonaro corre sozinho, sem adversários, com boas perspectivas na economia e dono único do discurso anti-corrupção. Seus principais inimigos são ele próprio, seus filhos, ministros esquisitões e o danado do imponderável. Este pode estar em cada esquina, em cada gabinete, em cada descuido. E na CPI das fake news.

Enquanto isso, Bolsonaro fortalece sua base militar, evangélica, ruralista e ultraconservadora, dá os cargos da Cultura de mão beijada para Olavo de Carvalho, ajusta a política externa ao pragmatismo e deixa o "gabinete do ódio" do Planalto trabalhar. Todo o pacote de 2018 está ativo e muito eficiente.


Eliane Cantanhêde: Moro, Guedes e o vácuo

‘Superministros’ da Justiça e da Economia viram articuladores políticos

É injusto e incorreto classificar a votação do pacote anticrime como derrota do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que fez o que pôde pelo texto e, assim como o ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu um papel que não é dele, para o qual não foi preparado e para o qual ele próprio julgava não ter talento: a articulação política.

O presidente Jair Bolsonaro passou longos 28 anos na Câmara, meteu os filhos 01, 02 e 03 na política e agora está entronizando o 04, mas insiste em negar a política e nem se preocupa em ter uma base aliada sólida e organizada. Joga um projeto atrás do outro no Congresso e lava as mãos. Os ministros que se virem e seja o que as bancadas quiserem.

Num governo em que o chefe da Casa Civil só serve para viagens, solenidades e fotos com o presidente e o anunciado articulador político é um general de quatro estrelas, da ativa!, as negociações, conversas e o esforço de convencimento de deputados e senadores acabam sobrando para quem não é do ramo. Se dá certo, é “vitória do governo”. Se dá errado, é “derrota do ministro”.

Na Previdência deu certo porque a importância da reforma decantou na opinião pública, nos partidos, no Congresso, e as mudanças passaram com razoável facilidade e sem grandes protestos. Mesmo assim, o economista Paulo Guedes viu (e sofreu) o vazio da articulação palaciana, arregaçou as mangas e abriu as portas do gabinete para fazer as vezes de articulador.

Moro, que atuou a vida toda no Judiciário, olhou para um lado e para o outro e viu que, se não entrasse na articulação com o Congresso, o pacote anticrime não seria aprovado nem em parte e corria o risco de ir parar numa gaveta, senão no lixo. E lá se foi ele, com seu jeitão tímido, cara de mau humorado, tratar de convencer deputados e senadores da importância do pacote contra (atenção!), mais do que a corrupção, o crime organizado. Detalhe: Guedes tinha a boa vontade do deputado Rodrigo Maia com a Previdência, mas Moro não tanto com o anticrime.

O que saiu não foi o ideal, mas foi o possível e Moro sabia disso. Sabia que a prisão após segunda instância teria tramitação própria, paralela, e viu como as chances do excludente de ilicitude, que já eram mínimas, foram definhando a cada criança e jovem mortos em operações policiais. E ainda teve de engolir Bolsonaro numa “live” dando de ombros para o pacote. Logo, o ministro não foi derrotado, ele apenas conviveu com a realidade. E continua na guerra da segunda instância.

O desvio dos dois superministros para a articulação política já indica como o Planalto vai agir nas reformas tributária, administrativa e trabalhista. Se é que a coisa não vai piorar ainda mais. O presidente pode, nesses casos, ir além de apenas lavar as mãos e passar a trabalhar contra. Guedes tem pela frente um exercício de paciência diário.

Enquanto isso, Moro estará jantando, trocando telefonemas e mensagens com parlamentares pela prisão em segunda instância, que avança, mas cercada de suspeitas de jogo de cena. A maioria dos senadores desconfia das reais intenções de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e rompeu o acordo entre eles para votar na próxima terça-feira na CCJ, lembrando que os projetos são diferentes: uma emenda constitucional na Câmara, um projeto mudando o Código do Processo Penal no Senado.

E a CPI das fake news? Ela vai esquentando, especialmente após a ex-aliada Joice Hasselmann acusar os filhos do presidente e o “gabinete do ódio” do Planalto por quase dois milhões de robôs pagos pelos cofres públicos para espalhar mentiras e atingir reputações. Isso está crescendo e é uma dor de cabeça para o governo e o presidente da República. Quem vai pegar o touro a unha? Guedes? Moro? Seria pedir demais.


Eliane Cantanhêde: Infernópolis

Nove jovens mortos. Mas, com o excludente de ilicitude, vai ficar ainda mais macabro

Ao se transformar em Infernópolis, Paraisópolis confirma várias certezas num momento em que os governos e um lado doentio da sociedade aprovam e estimulam armas, polícias violentas e matanças de criminosos a qualquer custo. Não faltam “cidadãos do bem” pregando, sem um pingo de pudor, que “bandido bom é bandido morto”. Mas não são os bandidos, ou não só eles, que estão morrendo.

A palavra de ordem vem do próprio presidente da República e dos seus filhos, vai descendo para os governadores, atinge as secretarias de Segurança e, claro, chegam à ponta: os próprios policiais, que são pagos para defender vidas humanas e acabam virando ameaças à sociedade. Não raro, cidadãos e cidadãs acabam tendo tanto medo do policial fardado quanto do bandido que surge do nada.

As investigações continuam para estabelecer responsabilidades e circunstâncias, mas o fato nu, cru e cruel em Paraisópolis é que nove jovens, entre 14 e 23 anos, morreram de maneira estúpida e inadmissível numa invasão policial num baile funk de fim de semana. Mais uma vez, como já é corriqueiro no Rio, por exemplo, nove famílias, uma comunidade, uma cidade, um Estado e um país sofrem a dor da morte, da violência, do descaso com a vida. E por quem? Por agentes do Estado, pagos inclusive pelos pais, mães, amigos e vizinhos das vítimas de Paraisópolis.

Os mesmos policiais ocupariam um show de rock nos Jardins, ou no Leblon, ou em Boa Viagem da mesma forma e com a mesma agressividade com que invadiram um baile funk da periferia com 5 mil jovens se divertindo num domingo à noite? E tratariam com socos e cassetetes os filhos da elite branca como fizeram com os filhos mulatos e negros de Paraisópolis?

Se a ordem para “meter o pau” vem de cima, é natural também que policiais de Pelotas (RS) espanquem dois garotos pobres com a mesma “eficiência” com que os de São Paulo atacaram a juventude de Paraisópolis. É como se houvesse uma licença para bater, para matar. “Mira a cabecinha e... fogo!”, como disse o governador do Rio, Wilson Witzel, aquele que comemorou com pulinhos e socos no ar – como se fosse um gol, uma festa – a morte de um sequestrador. A “cabecinha” de quem?

Num país tão injusto e tão desigual como o Brasil, o endurecimento contra os bandidos corresponde a uma espécie de pacto: é chato ter uma, duas, três, 20 crianças mortas pisoteadas ou por balas perdidas, mas, bem, esse é o preço para garantir a ordem e reduzir a criminalidade. Perverso? Mas real.

A morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, com um tiro de fuzil disparado por um policial, comoveu o Brasil. De onde Ágatha era? Do Complexo do Alemão, equivalente ao Complexo do Chapadão, Comunidade da Chatuba, Bairro de Triagem e Bangu, todos no Rio, todos pobres, onde outras crianças também foram assassinadas brutalmente por balas perdidas.

Em resumo, o assassinato de crianças pobres, negras e mulatas é contabilizado como uma fatalidade, um efeito colateral do combate à criminalidade. A morte delas é o custo a pagar para que famílias brancas e ricas possam ter mais segurança...

Quanto menos direito à vida as comunidades, as crianças e os jovens pobres têm, mais o presidente Jair Bolsonaro defende o “excludente de ilicitude”, para livrar a cara de policiais que matam. Segundo ele, os bandidos “vão morrer na rua igual barata”.

O problema, presidente, é que nas democracias se matam bandidos apenas no último caso. E, na realidade brasileira, quem já está “morrendo igual barata” não são os bandidos, mas os filhos e filhas de pedreiros, empregadas domésticas, garis, pintores de parede. E sem o excludente de ilicitude... Com ele, a coisa vai ficar ainda mais macabra.


Eliane Cantanhêde: Guedes e Toffoli, os caras

Em 2020, Guedes precisa engrenar a segunda e é hora de Toffoli dar marcha à ré

Os dois grandes personagens da semana passada, não sob aplausos, foram o ministro Paulo Guedes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli. Um falou bobagens e ajudou a tumultuar o mercado e a aumentar as incertezas. O outro não só falou como fez bobagens, atraindo uma derrota fragorosa.

De pavio curto, Guedes não tinha nada que desdenhar da disparada do dólar e muito menos tratar com ligeireza do maldito AI-5, que mexe com velhas dores nacionais e o recente mal-estar institucional causado pelo filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro.

Se o País ainda se assusta, mas vai se acostumando com manifestações estapafúrdias do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, isso não ocorre em relação ao superministro da Economia. Guedes é um avalista do governo. Assim como persiste o “votei no Bolsonaro para evitar o PT”, mantém-se o “Bolsonaro pode falar o que quiser, o importante é o Guedes recuperar a economia”. Logo, frases enviesadas do ministro sobre câmbio e política causam desconforto desnecessário.

A marca de 2019 foi a reforma da Previdência, num ambiente fantasticamente calmo, mas Guedes encerra o ano sem engrenar a segunda e avançar nas reformas trabalhista, administrativa e tributária. Num governo em que o ministro da Economia precisa fazer as vezes de articulador político, Guedes foi atropelado pela pauta da prisão em segunda instância no Congresso, a falta de mínimo consenso na questão tributária e a decisão de Bolsonaro de não mexer num vespeiro, o funcionalismo público, já no seu primeiro ano.

Outro problema é que a herança bendita dos quase dois anos e meio de Michel Temer está se esgotando: a reforma trabalhista, o impulso da própria reforma da Previdência, os leilões de estradas, portos e aeroportos, além do Pré-Sal. Agora, é bola pra frente.

Quanto a Toffoli: acostumado a esticar a corda, ele jogou o STF em duas situações delicadíssimas. Na primeira, foi na contramão da antecessora Cármen Lúcia e pôs em pauta a reviravolta na prisão em segunda instância, já sabendo qual seria o placar (6 a 5) e o efeito (a soltura do ex-presidente Lula). Na segunda, causou um atraso de bom tamanho em cerca de 1.500 investigações do MP e da PF.

Juntando a primeira e a segunda, tem-se uma conta de compensação: favorece Lula, favorece o seu antagônico. E Toffoli usou um Recurso Extraordinário envolvendo a Receita Federal para meter a UIF (ex-Coaf) no meio e, numa liminar monocrática, suspender as investigações sobre o gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado no Rio. O preço foi caro: para livrar um, livrou milhares.

A questão foi ao plenário e virou um suplício para Toffoli. O voto dele foi de quase cinco horas e “em javanês”, na ironia do ministro Luís Roberto Barroso, mas isso foi só o começo. Ao longo dos demais votos, e das horas, sucederam-se dúvidas e críticas ao presidente da Corte, obrigado a ouvir lições elementares dos colegas.

A principal delas: órgãos de controle não apenas “podem” como têm a obrigação de repassar sinais de crimes para os órgãos de investigação. Elementar, meu caro Watson. Tão elementar que, no fim, para reduzir o vexame, Toffoli recuou e aderiu à maioria. Reduziu o vexame, não a flagrante derrota.

Assim, a liminar de Toffoli caiu, a de Gilmar Mendes que suspendia todas as investigações referentes a Flávio Bolsonaro também caiu e, a partir de agora, o Planalto tende a ficar exposto a revelações nem sempre bem-vindas.

Toffoli até tentou dar uma força para o presidente e seu primogênito, mas pode ter perdido nas duas pontas: não garantiu o fim das investigações de Flávio e atraiu chuvas e trovoadas, até dos próprios colegas. Que o recesso chegue rápido!


Eliane Cantanhêde: Um espanto!

Negros contra negros, índios contra índios, aparelhamento da cultura, Funai e Ambiente

Um negro que nega o racismo, uma índia contrária aos movimentos indígenas, um diretor da Funai aliado aos ruralistas, a estrutura de Meio Ambiente descolada do Meio Ambiente, um secretário de Cultura que xinga Fernanda Montenegro, uma secretária de Audiovisual distante do cinema e da televisão. Sem falar em ministros.

O que que é isso, minha gente? O presidente Jair Bolsonaro vive criticando os antecessores pelo “excesso de ideologia” e rejeita indicações de políticos eleitos tão democraticamente quanto ele próprio, mas não faz outra coisa senão nomear pessoas que simplesmente se classificam “de direita”, mesmo que não tenham nada a ver com os cargos. Boa governança?

O que dizer de Sérgio Camargo, que foi nomeado para a Fundação Palmares, apesar de negar o racismo, atacar a “negrada militante” e reduzir a injustiça e as humilhações contra os negros a um “racismo nutella?” Até o próprio irmão desse senhor, o músico e produtor cultural Oswaldo Camargo Júnior, abriu um abaixo-assinado contra a nomeação. Para Oswaldo, Sérgio é um “capitão do mato”. Um capitão do mato na Fundação Palmares...

Assim como pinçou um negro para desqualificar os movimentos negros, Bolsonaro levou para a abertura da Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, a youtuber índia Ysani Kalapalo, que vive entre São Paulo e sua aldeia no Xingu (MT). Isso tem nome: “Lugar de fala”. Brancos não podem atacar os movimentos, mas um negro contra negros e uma índia contra índios faz toda a diferença.

Tratada como troféu, a jovem se diz “80% de direita”, considera as queimadas “um acidente” e ataca os líderes como “índios esquerdistas que fazem baderna em Brasília”. Exultante, Bolsonaro decretou o fim do “monopólio do sr. Raoni”. Referia-se a um ícone, indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Famoso por chamar Fernanda Montenegro de “sórdida e mentirosa”, o diretor de teatro Roberto Alvim foi nomeado secretário de Cultura e não apenas define a política cultural como nomeia direitistas por serem direitistas. Exemplo: Katiane Gouveia, da Cúpula Conservadora das Américas, manda na estratégica área de audiovisual.

No prestigiado ICMBio, o PM Homero de Giorge Cerqueira. Na resistente Funai, o delegado da PF Marcelo Augusto Xavier, com apoio da bancada ruralista – amiga de Bolsonaro, inimiga das comunidades indígenas. Ele substituiu o general Franklimberg Freitas, que é indígena.

O embaixador júnior Ernesto Araújo virou chanceler depois de sabatinado pelo filho do presidente e jurar que é a favor de Deus, da família e de Trump e contra o “globalismo” e a China (que, segundo ele, quer destruir os valores cristãos do Ocidente).

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi escolhido por conhecer pouco o setor, não saber nada de Amazônia e se comprometer a entupir o ministério de militares da reserva, escanteando ambientalistas atuando há décadas em mares, rios, florestas e reservas. Ruralistas e parte do empresariado estão felizes. Não se pode dizer o mesmo de especialistas e da comunidade internacional.

Damares Alves deu um salto de uma obscura assessoria do Congresso para um ministério que reúne Direitos Humanos, família, mulher e sei lá mais o quê. Assim, roda o mundo com visões muito peculiares, não raro estranhas, sobre família, gênero, educação infantil. Todos eles têm a mesma credencial poderosa: são “de direita”.

Na era Lula e PT, “nós contra eles”, “cumpanheirismo”, ideologia e aparelhamento do Estado, que deu no que deu: desmandos, incompetência, corrupção. Saiu o aparelhamento de esquerda, entrou o de direita. A esquerda pela esquerda, a direita pela direita. Pobre Brasil.


Eliane Cantanhêde: É guerra?

Para Gleisi, conflitos chegam ao Brasil; Bolsonaro lança ‘GLO do campo’. Onde nós estamos?

Quando o torniquete apertou em torno do PT e do mandato da então presidente Dilma Rousseff, seu patrono Lula ameaçou “chamar o Stédile”. Nem completou ainda um ano de mandato, agora o presidente Bolsonaro tem a audácia de anunciar que quer chamar o Exército para reintegrações de posse no campo. Lembra do “chama o (general) Pires” da ditadura, mas fora de foco, de tempo e de lugar.

“Quero paz e democracia, mas também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas”, falou Lula há cinco anos, quando petistas e aliados entraram em confronto com manifestantes contra Dilma no Rio. Poderia ser só mais uma dessas bravatas típicas de Lula, mas continha uma clara ameaça.

Ameaça nunca cumprida, aliás, nem mesmo quando Gleisi Hoffmann, presidente agora reeleita do PT, disse que ia “ter de matar gente” se Lula fosse preso. João Pedro Stédile, principal líder do MST, não apenas nunca acionou suas tropas como saiu de fininho dos holofotes para se distanciar das denúncias de corrupção que passaram a bater firme no PT e a respingar em toda a esquerda. E ninguém matou ninguém na prisão de Lula.

No caso de Bolsonaro, que anunciou ontem um projeto para chamar o Exército nas reintegrações de posse – a “GLO do campo” –, não há bravata, mas, sim, uma intenção clara e um triplo objetivo: agradar à bancada da bala e à bancada ruralista e atender aos interesses dos proprietários de terra. O projeto, ainda em elaboração no Planalto, tem de passar pelo Congresso. Agora, é rezar.

Qual o risco se Lula reativar a fantasia de acionar o “exército do Stédile”, se os Stédiles do MST estiverem dispostos a bater continência e cumprir a ordem e se, enfim, o Congresso aprovar a tal “GLO do campo” de Bolsonaro? O risco é de uma guerra, com oficiais e soldados armados de um lado e os militantes do MST com seus porretes e facões, do outro. Sem contar os jagunços das próprias propriedades.

Mais uma vez, Gleisi Hoffmann entra na história para piorar as coisas. Ao assumir mais um mandato de presidente do PT olha o que ela disse, numa referência aos confrontos sangrentos no Chile, na Bolívia, no Equador e na Colômbia: “Quando as grandes manifestações ecoarem no Brasil, porque vão ecoar, nós temos de estar preparados para ajudar a conduzi-las.”

É de uma irresponsabilidade enorme a presidente de um dos maiores partidos do País falar assim, como é igualmente irresponsável Bolsonaro querer o Exército nos conflitos e fazendas pelo interior. Está todo mundo ficando louco?

A Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prevista na Constituição, é uma medida em casos muito graves e específicos, quando as forças policiais não dão conta de crises e os governadores pedem socorro à União. É algo, portanto, para exceção, emergência, não para jogar tropas daqui para lá, sob qualquer pretexto, a qualquer hora.

No caso da “GLO do campo”, há dois agravantes. O primeiro é que, como Bolsonaro deixou claro ontem, não se trata de agir com os governadores e a favor deles, mas passando por cima deles (que, ao ver do presidente, não cumprem as determinações judiciais de posse).

O segundo é que o presidente só usa seu poder e instrumentos de poder para defender os já poderosos: os desmatadores, que não têm mais seus tratores destruídos; os que pescam em reservas ecológicas, livres para fazer o que quiserem; os policiais que exorbitam; os patrões, cujos direitos se sobrepõem aos dos empregados.

Um alerta, porém: as Forças Armadas são disciplinadas e cumprem ordens, mas já têm resistência a jogar seus oficiais e soldados para atuar como policiais em favelas, contra bandidos comuns. O que acham da ameaça, e o risco, de vê-los enfrentando à bala acampamentos com homens, mulheres e crianças?