Eliane Catanhêde

Eliane Cantanhêde: ‘Vai dar o que falar’

A agricultura é fundamental, mas nada justifica Bolsonaro agir como Dilma e intervir no BB

O presidente Jair Bolsonaro deu boas notícias ontem a um setor fundamental não apenas para o seu governo, mas para a própria economia brasileira: o agronegócio. A questão é que, ao agradar ao setor, o presidente está desagradando a outros setores. “Vai dar o que falar”, admitiu ele após uma das notícias. Acertou em cheio.

Depois de torrar bilhões de reais da Petrobrás por ingerência no preço do diesel e de dividir o Planalto ao vetar uma propaganda do Banco do Brasil para o público jovem, o presidente voltou à carga ontem contra a autonomia das estatais, aliás, do mesmo BB. Apelando até ao “coração e ao cristianismo” do presidente do banco, pediu a redução dos juros no crédito rural. Essa é uma forte reivindicação do setor, que adorou a iniciativa. Mas o mercado se arrepiou mais uma vez e as ações do banco sofreram.

Bolsonaro também aproveitou a Agrishow, a maior feira de agronegócio da América Latina, para anunciar que enviará ao Congresso uma proposta para isentar de punição o produtor rural que atirar em invasores de sua propriedade. Para o pessoal de Direitos Humanos, corresponde a uma licença para matar. E não só invasores, mas concorrentes e desafetos.

Por fim, o presidente anunciou R$ 1,5 bilhão para a agricultura e avisou que está fazendo “uma limpa” no Ibama e no Instituto Chico Mendes (ICMBio) e adorou a ida de policiais militares para o instituto, anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente. Como árbitro nos naturais conflitos entre agricultura e ambiente, o presidente assumiu um lado em detrimento do outro.

Bolsonaro tem muita razão em prestigiar e investir no agronegócio, um dos orgulhos nacionais e um dos propulsores do desenvolvimento brasileiro. Se não fosse a agricultura, o tombo do PIB na era Dilma Rousseff teria sido muito pior e mais drástico.

O setor responde por 23% do PIB, ou seja, por praticamente um quarto de todos os bens e serviços produzidos no País. Também é responsável por 32% da mão de obra e foi o segundo setor que mais cresceu em 2018, apesar de todas as dificuldades.

Além disso, já passou da hora de amplos setores da opinião pública e da academia deixarem de acreditar que a área rural e a agricultura são “atrasadas”. A área rural é conservadora em costumes, sim, mas a agricultura, definitivamente, não é atrasada. As gerações foram se sofisticando, estudando nas melhores escolas, especializando-se mundo afora, investindo nas tecnologias mais up-to-date. Se os patrões modernizaram-se, as condições de trabalho igualmente avançaram muito ao longo das décadas.

O Brasil está entre os três maiores exportadores agrícolas do mundo. Logo, é uma potência nessa área e só chegou lá porque trabalha com maquinário, sementes e defensivos agrícolas altamente sofisticados – e que exigem mão de obra proporcionalmente bem capacitada.

Todas essas condições já tão especiais ganharam foco e tendem a ser potencializadas no atual governo. Afinal, a agricultura foi uma das primeiras e mais decisivas áreas a aderir à campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República, no rastro do desencanto do setor e das regiões Sul e Centro-Oeste com o PSDB.

Para arrematar, Bolsonaro escolheu para o Ministério da Agricultura a engenheira agrônoma e empresária Tereza Cristina, deputada do DEM de Mato Grosso do Sul e presidente da bancada ruralista.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas nada disso pode significar liberdade para Bolsonaro insistir em imitar Dilma e continuar metendo a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é. Não pode dizer uma coisa e o presidente fazer outra. Aliás, fazer uma atrás da outra.


Eliane Cantanhêde: O ambiente para Lula melhorou, mas há ainda muitas incertezas

Regime semiaberto surge no horizonte do ex-presidente, porém o processo do triplex é apenas um dos muitos que assombram o petista

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve uma derrota e uma vitória ontem, porque a condenação foi mantida e a pena reduzida, mas a guerra judicialcontinua. Numa nova etapa, o Supremo Tribunal Federal poderá até repetir para Lula o remédio receitado para o também petista José Dirceu: mandar soltar o ex-presidente, até que a dosimetria da pena seja decidida em última instância.

Dirceu, ex-presidente do PT e ex-chefe da Casa Civil no governo Lula, foi solto pela Segunda Turma do Supremo em junho de 2018 sob o argumento de que não havia uma decisão definitiva sobre os anos que deveria cumprir de prisão. Está solto até hoje, enquanto a decisão não vem. O mesmo pode ocorrer agora com Lula.

O fato é que o ambiente em relação a Lula mudou. A unanimidade da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a favor da redução da pena, de 12 anos e 1 mês para 8 anos e 10 meses, pelo processo do triplex do Guarujá (SP), deixou no ar a sensação de um grande acordão na turma para uma solução de meio-termo: a condenação de Lula foi mantida, mas com pena menor, que pode tirá-lo da prisão em meados de setembro, após cumprimento de 1/6 da pena. Além disso, houve uma drástica revisão da multa, de R$ 29 milhões para R$ 2,4 milhões.

A defesa de Lula, que vinha perdendo todos os pedidos de habeas corpus, ganhou fôlego. Os próximos passos serão embargos no próprio STJ e novas investidas no Supremo, onde há, inclusive, um pedido de anulação da sentença de Lula, alegando suspeição do então juiz Sérgio Moro, que condenou Lula e depois trocou a magistratura pelo Ministério da Justiça no governo Jair Bolsonaro.

Se o ambiente mudou e os ventos parecem favorecer Lula, convém não esquecer que o processo do triplex é apenas um dos muitos que assombram o destino do ex-presidente, que já foi, inclusive, condenado em primeira instância pelo sítio de Atibaia. Logo, o regime semiaberto surge no horizonte de Lula, mas ainda não é uma certeza.


Eliane Cantanhêde: O culpado número 2

Com o culpado n.º 1 blindado pela reverência, a culpa sobra para o n.º 2: Onyx Lorenzoni

Na sua última conversa olho no olho com o deputado Rodrigo Maia, em 9 de março, no Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro lhe perguntou sobre as perspectivas da reforma da Previdência na CCJ da Câmara. Maia foi otimista: tudo tranquilo, a votação na CCJ seria rápida e fácil. O problema seria depois, na Comissão Especial.

Não foi isso que aconteceu. A CCJ, que é meramente formal, impõe uma derrota atrás da outra ao governo, a reforma está atrasada e paira a ameaça de mudanças na proposta antes mesmo da Comissão Especial, que é a arena adequada para isso. O resultado é natural: procuram-se culpados.

Obviamente, o culpado número um é Bolsonaro, que, em não ajudando, só atrapalha. Passou obscuros 28 anos no Congresso Nacional, não aprendeu nada e ainda por cima permite que o “louco”, “mágico”, “guru de seita”, “futurólogo”, “astrólogo” e “adivinho” Olavo de Carvalho (os adjetivos são do líder do PSL, Delegado Waldir) acabe minando o seu governo.

Como é possível divulgar na página do presidente da República um vídeo desse senhor, que mora há 14 anos nos EUA, xingando aos palavrões os militares do governo, jogando desconfiança sobre o partido do governo e multiplicando intrigas e desavenças do governo?

Apesar do absurdo, o vídeo foi divulgado também pelo filho do presidente e, ontem, o porta-voz do Planalto, depois de tentar criticar o guru, encerrou dizendo que “o presidente tem convicção de que ‘o professor’, pelo seu espírito patriótico, está tentando contribuir com a mudança e o futuro do Brasil”. Logo, a família toma partido do “louco” contra os generais e os políticos que mergulharam fundo no projeto Bolsonaro.

Com uma sinalização dessa grandeza – de que o governo está dividido, sem rumo, é uma bagunça, vive uma guerra –, o PSL se sente desobrigado de lealdade, de unidade, de discrição. E de votar a reforma da Previdência, o projeto dos projetos para tirar o País do atoleiro. Um entra com pedido de impeachment do vice-presidente da República, outro lidera uma debandada em massa do partido, o líder diz que, se os militares tiram casquinha da reforma, os delegados, como ele próprio, também têm direito.

Como o presidente reage à balbúrdia? Muda o “estilo”. Com ares de gente como a gente, visita escolinhas, abraça crianças, elogia a imprensa, distribui sorrisos, seguindo o manual mais primário do velho populismo nacional e latino-americano. Há controvérsias se tal remédio é eficaz para os males do governo.

Mas, como o presidencialismo é forte e a oposição está fraca, o culpado número 1 tem aquela blindagem forjada no constrangimento, na reverência, na psicologia pró-poder. E é aí que entra o culpado número 2, desprovido de todas essas armaduras e dando bons motivos para os adversários. Quem vem a ser? Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil e articulador político oficial do Planalto.

Com elegância e jeito, a turma do ministro Paulo Guedes já começa a se perguntar se Onyx não está “sobrecarregado” com tantas tarefas e tantas frentes no Executivo e no Congresso. Sem nenhuma elegância e jeito, o líder e delegado Waldir já também aponta o dedo e cobra resultados. Quanto a Rodrigo Maia? Bem... esse não tem muito a dizer de Onyx. Os dois já não se davam bem mesmo.

O fato é que Bolsonaro não preside, seu articulador não articula, seus líderes não lideram e seus correligionários batem cabeça. Enquanto isso, Maia tem uma tropa de 300 deputados – o Centrão –, e Guedes extrapola a trincheira técnica para atacar na seara política. A reforma da Previdência depende deles, mas com um dado cruel. Se der errado, os canhões se voltam contra eles. Se der certo, os louros e insígnias vão para os ombros de Bolsonaro.


Eliane Catanhêde: Bolsonarinho paz e amor

Presidente tenta governar para seus eleitores, mas Guedes não está nem aí para votos e gurus

O fatídico telefonema do presidente Jair Bolsonaro suspendendo o reajuste do diesel (na versão oficial, só “pedindo explicações”) pode ter chocado o mercado e surpreendido muita gente, mas não os ministros e assessores, já habituados com um argumento recorrente do presidente a favor ou contra alguma medida: “mas o meu eleitor...”, “e o meu eleitor?”

Ocorre que os eleitores já votaram e já elegeram Bolsonaro, embolados no mesmo repúdio à esquerda, ao PT e a Lula, no mesmo conservadorismo de costumes e no mesmo liberalismo tardiamente adquirido do candidato. Agora, o jogo é outro e quem estava no mesmo time na campanha pode estar em lados opostos no governo.

Exemplos mais evidentes: ambientalistas e agricultores, agricultores e caminhoneiros, evangélicos e bolsonaristas LGBT, servidores e liberais reformistas... Aliás, dois times aguerridos a favor do Bolsonaro na campanha disputam hoje o Fla-Flu do governo: os sóbrios militares e os desenvoltos “olavetes”, da seita de Olavo de Carvalho.

Incapaz de arbitrar, Bolsonaro assistiu de camarote a Vélez Rodríguez ser tragado pela própria incompetência e pela guerra dos dois grupos e, agora, vê seu sucessor, Abraham Weintraub, demitindo o brigadeiro Ricardo Machado Vieira do segundo posto do MEC. Demiti-lo significa tomar partido do time dos “olavetes”.

Petulância do novo ministro? Ou ele está simplesmente em linha com os filhos do presidente, o 01, o 02 e o 03, a maior fonte de poder do tal guru que, como todo guru, não passa de um guru.

Enquanto Bolsonaro continua atrás dos eleitores perdidos e seu governo se enrola em ideologias, numa guerra direita versus esquerda, o mercado continua iludido, querendo acreditar que o presidente é Paulo Guedes.

Alguém precisa dizer aos grandes empresários, investidores, banqueiros e economistas que o presidente se chama Jair Messias Bolsonaro. Que é como é. Sempre foi. E é quem tem a faca e o queijo, a caneta e o Diário Oficial na mão.

Enquanto Bolsonaro toma decisões tentando agradar a fantasmas desiguais do passado – “meu eleitor, meu eleitor” –, Guedes está imbuído de uma missão quase santa: a de fazer o Brasil dar certo. Mas ele não vai conseguir sozinho. Nem sem a convicção, o compromisso e a ação de Bolsonaro.

Guedes parece passional, tem lá seus entreveros, mas é determinado e frio no cumprimento de suas metas. Ainda bem, porque não está fácil atuar em tantas frentes e levar tantas bordoadas. Ou sustos.

Bolsonaro derrubar as Bolsas e derreter R$ 32 bilhões da Petrobrás num único dia, sem sequer informar a seu ministro da Economia?Para acalmar os ânimos dos caminhoneiros atiçando o dos investidores? O governo sofrer derrota em cima de derrota na CCJ da Câmara? Por incompetência do Planalto e inapetência política do presidente?

Guedes vive dizendo que não é político, não entende nada disso, mas arregaçou as mangas, aliou-se a Rodrigo Maia, assimilou Davi Alcolumbre, convocou Rogério Marinho, vai ao Congresso, abre as portas do gabinete aos políticos. Faz o que pode. Mas não pode tudo.

Enquanto Bolsonaro argumenta com “meus eleitores”, sem perceber os conflitos de interesse entre eles, Guedes, com seus erros e acertos, pensa nos 200 milhões de brasileiros, no ajuste fiscal, no futuro. Não está nem aí para votos, gurus, “olavetes”, guerras com militares. E, se alguém não pode cair, é ele. Guedes é o pilar do governo.

Nova versão
O presidente estava nos seus melhores dias na quinta-feira, em São Paulo, reconhecendo o papel da imprensa, abraçando jornalista e distribuindo simpatia. Encarnou muito bem o “Bolsonarinho paz e amor”.


Eliane Cantanhêde: Os amigos do amigo

Os apoios à investigação do STF ruíram quando Toffoli e Moraes a usaram para fazer censura

Ao sair da defesa para o ataque contra as fake news e os aloprados da internet, o Supremo virou uma metralhadora giratória que mistura, no mesmo alvo, notícia com fake news, jornalismo com linchamento das redes sociais. Nesse tiroteio, as balas ricocheteiam e atingem o próprio Supremo e diretamente seu presidente, Dias Toffoli.

Ao abrir de ofício uma investigação contra autores de fake news e de ataques que atingem a honra e a paz de ministros e seus familiares, Dias Toffoli selou uma aliança com o ministro Alexandre de Moraes que, num primeiro momento, teve a seu favor a justificativa da autodefesa e o apoio de diferentes setores também exaustos com a agressividade e a falta de limites das redes sociais. Alguém precisava dar um basta nessa escalada.

A justificativa ruiu e os apoios evaporaram quando Toffoli e Moraes usaram o inquérito não só para defender o Supremo e atacar fake news, mas para determinar uma ação incompatível com a Constituição, a democracia e, portanto, o Supremo: a censura da revista Crusoé e do site O Antagonista. E por quê? Por uma reportagem com base em documentos oficiais.

Foi assim que emergiram todas as críticas ao inquérito, aberto de ofício (sem consulta ao plenário), com um relator escolhido sem sorteio, com alvos indefinidos e burlando uma regra óbvia: quem investiga é a polícia e o Ministério Público. Nesse caso, o Supremo embolou tudo e é, ao mesmo tempo, vítima, investigador, acusador e julgador. Logo, lhe falta uma condição essencial à justiça: isenção.

A instituição se dividiu, com ministros acusando Toffoli e Moraes de usar o regimento interno a seu bel-prazer, porque o artigo 43 confere poder ao presidente de abrir inquérito de ofício quando a agressão é nas dependências do STF, o que não é o caso, certo? Mas o que detonou o bombardeio de críticas foi a censura, contrariando a Constituição e a liberdade de imprensa em favor do presidente da Corte.

Em meio a manifestações pela democracia, contra a censura, veio a operação de busca e apreensão da PF contra quem faz ameaças ao Supremo e a seus membros pelas redes, inclusive contra o general Paulo Chagas, ex-candidato ao governo do DF, que reagiu com ironia e insinuações.

O ápice da guerra, porém, foi quando a procuradora Raquel Dodge desautorizou a investigação do Supremo contra fake news, anulando todas as consequências resultantes dela, e o ministro Moraes negou. Criado o impasse, os dois lados tiveram de negociar e ceder. Moraes revogou ontem a censura aos sites, mas mantendo a investigação contra fake news e ataques ao STF. Tenta, assim, recuperar o discurso da autodefesa.

Quem deve estar soltando fogos é o presidente Jair Bolsonaro, que sai da linha de fogo, defende a liberdade de expressão e deixa o Supremo e seus ministros na mira da opinião pública. Ambos, presidente e STF, se autossabotam, com uma diferença: Bolsonaro faz um monte de bobagens, mas tem generais e economistas para apagar os incêndios, já o Supremo faz um monte de bobagens e os 11 ministros se limitam a jogar as culpas e labaredas uns para os outros.

Toffoli, aliás, cometeu um erro espetacular. A reportagem “O amigo do amigo do meu pai” só ganhou repercussão e teve impacto depois da censura, pois contém uma mera insinuação, com Marcelo Odebrecht confirmando que Toffoli – amigo de Lula, que é amigo de Emílio Odebrecht –, é o tal “amigo” da delação. Mas era acusado de quê?

Só depois da censura a coisa mudou de patamar: todos correram para ler a reportagem e as insinuações passaram a pairar como suspeitas. O “amigo” era só uma citação, agora virou suspeito. E as instituições é que pagam o pato.


Eliane Cantanhêde: Entre o bem e o mal

De um lado, homenagens a Stroessner e Pinochet; de outro, ataques a Paulo Freire

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro choca o mundo ao saudar os sanguinários Alfredo Stroessner e Augusto Pinochet, a tropa bolsonarista ataca a memória, o legado e a simbologia de um dos brasileiros mais prestigiados no mundo: o educador Paulo Freire.

Ditador do Chile por 16 anos, Pinochet foi responsável por muitos milhares de mortos, desaparecidos e torturados. Já Stroessner subjugou o Paraguai por 35 anos e, além de torturas e assassinatos de adversários políticos, entrou para a história como corrupto e até pedófilo.

E quem foi Paulo Freire? Um católico e humanista que dedicou toda a vida à educação como instrumento de inclusão social, igualdade e emancipação dos povos. Sua meta, ou seu sonho, era alfabetizar e tornar cidadãos milhões de adultos brasileiros que nunca tiveram acesso a escola, a saúde e a futuro.

Seu método, reconhecido no mundo todo, respeitava as peculiaridades e o hábitat dos alunos. Ele ensinava pedreiros a ler com a palavra “tijolo”. Dezenas de países lhe renderam homenagens e ainda hoje rendem, mais de vinte anos após sua morte. Para o mundo, um educador revolucionário. Para o regime militar no seu próprio país, um comunista perigoso.

Por que comunista? Porque defendia e se dedicava a métodos inovadores de alfabetização de miseráveis e desvalidos? Porque acreditava que as pessoas têm o mesmo direito de aprender, entender, pensar, manifestar, concordar, discordar, participar? Será que comunismo é isso? Será que uma pessoa que defendia um direito universal era “de esquerda”? E será que só a esquerda defende que as pessoas aprendam a ler e se tornem cidadãos e cidadãs plenos? Duvido. Muita gente que se autoclassifica de direita também defende e se esforça para isso. Assim como muita gente que se diz de esquerda não está nem aí para “pobres” perdidos nas grandes periferias e esquecidos nos rincões do País.

Quem acusa Paulo Freire por todas as mazelas da educação brasileira não conhece sua obra, nem quer conhecê-la. É o oposto! Se o Brasil tivesse enraizado e massificado o método de Paulo Freire, a educação estaria melhor e a situação da população automaticamente estaria muito melhor.

Em vez disso, este nosso país continental e tão desigual optou por oferecer educação de ótima qualidade para quem pode pagar (e pagar caro!), jogando uma geração atrás da outra de pobres e miseráveis à sua própria sorte, em escolas precárias, com professores mal pagos, métodos ineficientes. E, se os pais são analfabetos ou semianalfabetos, o futuro dos filhos já está virtualmente predefinido desde o berço.

Eleito com 57 milhões de votos, exalando inquestionável legitimidade, o presidente Jair Bolsonaro deveria fazer o contrário do que vem fazendo: rechaçar ditadores sanguinários e abjetos e reverenciar um educador que dedicou sua vida inteira ao bem, aos desvalidos. Nunca perseguiu, matou, torturou. Seu “crime”, pelo qual passou mais de uma década exilado, foi acreditar que as pessoas têm direitos iguais e potencial para evoluir e fazer a Nação evoluir.

Conselhos. O governo determinou a revisão dos cerca de 700 conselhos da administração pública federal, como passo para a extinção da maioria deles. A decisão tem um lado bom e outro preocupante.

Realmente, há décadas muitos conselhos só servem para complementar salários de altos funcionários. Ou seja, como “boquinhas”.

Mas há conselhos ambientais, indigenistas e penitenciários, entre outros, que são fundamentais para o debate, o confronto de ideias, a formação de consensos. Para desburocratizar e economizar, tudo bem. Para corte ideológico, como foi com Ilona Szabó, é uma péssima ideia.


Eliane Cantanhêde: Dilma ou Guedes?

Bolsonaro: entre o estatizante dos 28 anos de Congresso ou o liberal da campanha

Independência do Banco Central, ponto positivo para o presidente Jair Bolsonaro. Ingerência na Petrobrás, ponto negativo para Bolsonaro. Na primeira, ele cumpriu a promessa liberal e modernizante de campanha, afinado com o ministro Paulo Guedes. Na segunda, foi intervencionista e atrasado, repetindo um dos erros grosseiros de Dilma Rousseff.

O aumento de 5,7% no preço do diesel foi uma decisão da Petrobrás que certamente teve boas justificativas técnicas, mas na hora errada e com um forte efeito político. O anúncio foi justamente no dia em que Bolsonaro comemorava os cem primeiros dias do governo e embaçou a repercussão do pacote de medidas. Mais do que isso, foi em meio a uma ameaça que paira sobre o governo e o País: a movimentação de caminhoneiros.

Ao saber do aumento, Bolsonaro agiu a la Dilma: mandou cancelar, sem avaliar consequências. Estava pensando no impacto sobre a inflação e a economia? Na sua popularidade? Ou nos caminhoneiros? Fortes e audaciosos, eles tiveram apoio do então deputado Jair Bolsonaro no teste de força com o governo Temer. Ganharam, causaram um colapso de abastecimento e interromperam a retomada do crescimento. Agora, voltam à carga e ameaçaram nova paralisação em 30 de março. Abortaram a ideia, mas deram seu recado.

Portanto, a decisão do presidente foi política e o mercado reagiu duramente. As ações da Petrobrás despencaram 8,76% na sexta-feira, com um prejuízo de R$ 32 bilhões. E a nova semana começa com reuniões palacianas e grandes dúvidas sobre o preço do diesel, a independência da Petrobrás e o compromisso liberal de Bolsonaro. Os investidores e a opinião pública estão boquiabertos.

Em vez de ajudar, o presidente piorou as coisas ao tentar justificar sua impulsividade. Diante de microfones, ele questionou como o preço do diesel pode subir 5,7%, se a inflação ficou abaixo de 5% (na verdade, 3,9%). Logo, ele desconhece que a inflação é a média de uma cesta de preços, uns sobem, outros caem. Na campanha, chamava o “Posto Ipiranga” para socorrê-lo. Agora, decidiu da própria cabeça, mesmo dizendo, candidamente: “Não sou economista, já falei que não entendo de economia”. E lascou: “Quem entendia afundou o Brasil, certo?”

Referia-se à economista Dilma, que contaminava as decisões da economia com suas convicções políticas e ideológicas. Adoeceu a Petrobrás e, com uma canetada, desestruturou o setor elétrico e passou aos investidores internacionais a mensagem de desrespeito não só ao liberalismo, mas aos próprios contratos. Dilma, porém, nunca enganou ninguém. Até tentou se ajustar à realidade nomeando Joaquim Levy como chefão da economia, mas ela foi o que sempre foi: estatizante, intervencionista, uma brizolista estacionada na década de 1960. Bolsonaro não. Ele pode até ser tudo isso, mas se elegeu com um discurso, uma promessa e um Posto Ipiranga em sentido contrário. Daí o rebuliço no mercado e nas mentes.

Quando se fala da quebradeira da Petrobrás nos anos do PT, associa-se à corrupção, ao aparelhamento, ao fatiamento partidário da maior e mais simbólica companhia do País. Mas não foi só isso. Um dado relevante na tragédia foi a política de preços populista do ex-presidente Lula e sua sucessora. Como vender abaixo dos preços internacionais? Só de 2014 a 2017, os prejuízos bateram em R$ 72 bilhões.

O presidente Bolsonaro tem todo o fim de semana para conversar, ouvir, ler e refletir para, na terça-feira, decidir se ele quer ser o Bolsonaro intervencionista e estatizante dos seus 28 anos de Congresso ou o Bolsonaro liberal e privatizante da campanha. Vai ter de optar entre Dilma Rousseff e Paulo Guedes e, de preferência, parar de sabotar o seu próprio governo.


Eliane Cantanhêde: Mares revoltos

Mais do que metas, a grande marca dos cem dias se resume a uma palavra: ideologia

Há dois balanços dos cem primeiros dias do governo Jair Bolsonaro: o do próprio Bolsonaro, que admite “mar revolto”, mas vê “céu de brigadeiro”, e o da opinião pública, que só vê o “mar revolto” que engoliu 15 pontos na popularidade do presidente.

O pacote de medidas de ontem foi uma clara tentativa de fugir de um balanço analítico e forçar uma contabilidade aritmética. Na solenidade, Bolsonaro confirmou o 13.º salário para o Bolsa Família, a independência do Banco Central e o polêmico ensino domiciliar.

Muito além dessas questões pontuais, que geram acalorados debates, a palavra-chave dos cem dias de Bolsonaro é: ideologia. Enquanto condena o excesso de ideologia da era PT, o presidente se pauta, a cada ato, a cada fala, a cada viagem, exatamente por um excesso de ideologia. Só que do avesso.

Isso causou os piores momentos e as maiores críticas ao início do governo, com a divulgação de um vídeo asqueroso contra o Carnaval, os elogios chocantes aos ditadores sanguinários Stroessner e Pinochet, a constrangedora opinião de que o nazismo era de esquerda, a veneração quase infantil a Donald Trump, a reinvenção da diplomacia nas relações com Binyamin Netanyahu. Além de reinventar a história, Bolsonaro trouxe para a Presidência as suas crenças pessoais.

O nome mais simbólico desses cem dias não foi de nenhum ministro, como Paulo Guedesou Sérgio Moro, nem mesmo do próprio presidente. Todas as tentativas de decifrar a “nova era” passam por Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo e agora eminência parda do governo, capaz de encantar os filhos de Bolsonaro, de sentar-se no lugar de honra de um jantar para o presidente, de xingar o vice Hamilton Mourão e generais do governo. E mais: de nomear os ministros das Relações Exteriores e da Educação, grandes responsáveis pelo “mar revolto”.

É por excesso de ideologia que o MEC está como está, o Itamaraty refaz a história e promove dança de cadeiras, o vice, os generais e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, têm de consertar os erros com a China e o mundo árabe. E o que Bolsonaro ganha com isso? Nada além de dor de cabeça e apoio de quem já o apoia.

Um destaque nos cem dias é, inequivocamente, a desenvoltura dos três filhos mais velhos do presidente. Flávio recuou diante das confusões do motorista todo-poderoso. Eduardo arvorou-se chanceler e infiltrou sua turma por toda parte, até na Apex, como denuncia o embaixador Mário Vilalva, o segundo presidente do órgão a ser defenestrado em três meses.

Quanto a Carlos, que se refestelou no Rolls-Royce presidencial na posse: ele cuida da infantaria e da cavalaria da internet. A campanha acabou, mas o “menino” continua brincando de games contra inimigos de “esquerda”. Aparentemente, todo mundo que não é bolsonarista é de “esquerda”, “petista” ou “comunista”.

Intrigante é Bolsonaro querer “uma garotada que não se interesse por política”. Como assim? A política move o mundo. Aliás, seus três filhos são políticos e ele chegou a emancipar Carlos, aos 17 anos, para disputar um mandato e virar político. O que é bom para seus filhos não é bom para os filhos dos outros?

A grande aposta do presidente, porém, nada tem de ideológica: é a reforma da Previdência, que não é de esquerda, centro ou direita, nem mesmo do seu governo. É do País.

Até aqui, as previsões de crescimento da economia caem, mês a mês, enquanto o desemprego resiste, desesperador. Um sintoma de que a reforma vai ser aprovada e inverter essa tendência é a pergunta que passou a circular fortemente em Brasília: e depois da reforma, como vai ficar o governo Bolsonaro? Taí, é uma boa pergunta.


Eliane Cantanhêde: Almas penadas

Assim como Vélez, há uma fila de embaixadores esperando o ‘bilhete azul’ que não vem

A demissão de Ricardo Vélez Rodríguez do MEC foi decidida antes da viagem a Israel, em 30 de março, e anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro três dias antes de ser formalizada e finalmente publicada ontem no Twitter e no Diário Oficial. Se parece esquisito, não é caso único e não será o último.

Bolsonaro também anunciou no dia 13 de março, antes da ida aos EUA, que iria trocar 15 embaixadores, inclusive Sérgio Amaral, de Washington. Deu um motivo para o “bilhete azul” num encontro com jornalistas: “Não está vendendo uma boa imagem do Brasil no exterior”. E para ser só na volta: ficaria muito ruim às vésperas de chegar ao país.

O presidente foi para os EUA no dia 17, voltou, foi ao Chile, voltou, foi a Israel, voltou. Mas os embaixadores continuam exatamente onde estavam, como almas penadas. O que mudou, nesse meio tempo, foi o número dos que estavam com os dias contados.

Se Bolsonaro havia falado em 15, a lista que o chanceler Ernesto Araújo enviou para a Casa Civil continha três vezes mais nomes, em torno de 45 embaixadores que ocupam efetivamente embaixadas ou consulados e chefias de representações do Brasil em organismos internacionais nos diferentes continentes. Entre eles, seis estão se aposentando neste ano. Os demais entram na dança das cadeiras.

Até agora, porém, praticamente um mês depois do anúncio feito pelo próprio presidente da República, ninguém veio, ninguém foi para posto nenhum. O próprio embaixador Sérgio Amaral, nomeado no governo Michel Temer, não só continua em Washington como participou ativamente da viagem de Bolsonaro e, agora, participa da visita do vice Hamilton Mourão.

O tempo vai passando e Amaral vai ficando. Ele já estava fazendo as malas, arrumando as gavetas, cuidando das conveniências da família, quando o Itamaraty deu uma contraordem, mandou parar tudo e aguardar novas orientações. Que ainda não chegaram, provavelmente porque alguém deve ter feito as contas: quanto custa a mudança de mais de 40 diplomatas?

Sérgio Amaral não é Vélez Rodríguez nem causou tanta confusão, tanto rebuliço, tantas demissões e tantos recuos, mas sofre nesses três meses o mesmo processo que atingiu o agora ex-ministro da Educação: fica no limbo, sabendo de seu destino pela mídia.

Assim como ele, embaixadores brasileiros pelo mundo afora, na Europa, na Ásia, na África, nas Américas. E, claro, seus assessores diretos, sejam diplomatas, sejam funcionários. Em consequência, suas famílias.

Se há insegurança entre os que saem, há também entre os que podem entrar. Para Washington, o vice Mourão queria o cientista político Murillo de Aragão, da consultoria Arko Advice, um frequentador assíduo da Vice-Presidência. Já a cúpula do Itamaraty preferia o embaixador de carreira Nestor Forster, do grupo de Ernesto Araújo. Os dois enfrentam resistências e obstáculos concretos para assumir o que é, nada mais, nada menos, a embaixada mais importante do Brasil. Aliás, de todos os países.

No MEC, sai Vélez, filósofo, e entra Abraham Weintraub, um homem das finanças, mas uma coisa é certa: a ideologia fica. Além de professores universitários, ambos são também arraigadamente de direita, conservadores nos costumes, simpatizantes das ideias do tal guru Olavo de Carvalho. Lembram-se daquela velha corrente que via comunistas em toda a parte, até debaixo das camas das famílias brasileiras?

Agora, é acompanhar a montagem da equipe e identificar os impostos por Olavo de Carvalho, os indicados pelos militares e os simplesmente técnicos, que querem ver o ministério andar. Sim, porque a Educação está paralisada. Mas a guerra no ministério continua.


Eliane Cantanhêde: A ‘tropa de elite’ falhou

A tropa do PSL, com general, coronel, major e delegado, deixou Paulo Guedes na mão

Foram dois movimentos em sentido contrário. Ontem, o presidente Jair Bolsonarofinalmente recebeu em palácio os “velhos políticos” dos “velhos partidos” e da “velha política”. Na véspera, o PSL, sigla do presidente, havia lavado as mãos e abandonado o ministro Paulo Guedes na CCJ, cara a cara com os leões da oposição.
Nas conversas com presidentes e líderes de MDB, DEM, PSDB, PP, PRB e PSD – alguns deles enrolados na Justiça, como Romero Jucá e Gilberto Kassab –, Bolsonaro foi menos presidente e mais ex-colega de Congresso. Nada foi pedido, nada foi prometido, mas foi um marco mesmo assim: o presidente assumiu um firme compromisso com a reforma da Previdência. E decidiu fazer política.

Já as cenas na CCJ foram lamentáveis, com a ausência dos governistas e a esquerda despertando após um sono profundo desde as eleições. Bolsonaro vem chocando setores da opinião pública e despenca nas pesquisas, mas isso não tem nada a ver com PT, PCdoB e seus primos, mas sim com arroubos de “olavetes”, inexperiência dos aliados, agressividade da tropa da internet e erros crassos do próprio Bolsonaro e de seus filhos. Não é nem por mérito nem por culpa da oposição.

Na sessão da comissão, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, os deputados e os aliados petistas mostraram que não aprenderam nada. O importante continua sendo ganhar no grito, manter as bases em pé de guerra, trocar o debate por pegadinhas e insultos contra adversários e negar o óbvio, que os ex-presidentes Lula e Dilma estavam cansados de saber: a reforma da Previdência é fundamental para o País.

Quando Guedes se retirou da comissão, após Zeca Dirceu partir para o achincalhe, com a história do Tigrão e do Tchutchuca, a esquerda comemorou como vitória. Que vitória? O PT apenas agradou à sua militância e os convertidos e pode ter irritado todos os demais, inclusive quem já foi PT um dia e hoje não é nada.

Mas, se as esquerdas perderam, o grande derrotado foi o PSL. A oposição articulou-se antes, traçou uma estratégia, chegou cedo e ocupou todos os espaços – as primeiras cadeiras e as primeiras perguntas. Onde estavam os líder do governo, do PSL, das siglas aliadas? Ninguém sabe, ninguém viu. Para piorar, a experiência e disciplina dos petistas contrastaram com a falta de traquejo do jovem presidente da CCJ, Felipe Francischini, de 27 anos, e do relator da reforma, Marcelo Freitas, que, enquanto deputado, continua sendo um bom e articulado delegado.

Aliás, após o encontro de Paulo Guedes com a bancada do PSL, no ministério, brincou-se que, enfim, estava formada a “tropa de elite” para a defesa da reforma. Foi uma alusão clara às variadas patentes do partido do presidente, que tem general, coronel, delegado, major... E, por isso, tem muito a aprender dos meandros do Congresso, da malícia da ação parlamentar.

Ontem, a metáfora já era outra: Guedes é um bom centroavante e foi bem no ataque, o que falhou foi a defesa. Ele se apresentou à CCJ, uma semana atrasado, com a mesma cara e o mesmo estilo, sem maquiagem e sem fantasia. Paulo Guedes foi Paulo Guedes, não pretendeu ser o político que não é, o tribuno que nunca foi. Isso implica usar um tom técnico e respeitar sua própria personalidade. Em nome de quê deveria engolir calado os ataques, ironias e tchutchuquices?

O importante é mostrar incansavelmente que aquele espetáculo lamentável foi com um grupo específico e não representa a disposição do Congresso em relação à reforma da Previdência. Afinal, nem a CCJ é o plenário nem a esquerda domina a Câmara. Os ataques ao ministro, principal articulador da reforma, não foram “do Congresso”, foram “da oposição”, que é minoritária.


Eliane Cantanhêde: São decisões dele...

Quem, afinal, vai reagir aos ataques do guru do bolsonarismo aos generais?

Depois de apoiar a reeleição de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro agora apoia, com gestos, mais do que palavras, a reeleição de Binyamin Netanyahu, com quem rezou ontem no Muro das Lamentações, em Israel. Nada disso é trivial em diplomacia e política externa. Bolsonaro, porém, é Bolsonaro.

Ele toma decisões e age porque dá na telha, não exatamente por embasamento teórico, científico, histórico. Para ele, Trump e os EUA são o máximo, dane-se o resto. Netanyahu e Israel são fantásticos, os palestinos e o mundo árabe a gente vê depois.

Com esse voluntarismo, o mesmo presidente que mandou desconvidar Ilona Szabó de uma mera suplência de um mero conselho não consegue demitir o ministro que transformou o MEC num vexame. A ideologia derrubou Szabó. A ideologia mantém Vélez.

É assim também que Bolsonaro assiste impassível à avalanche de impropérios e palavrões proferidos pelo guru dos seus filhos, de Vélez e do chanceler Ernesto Araújo contra os generais que ocupam os principais cargos e têm sido um contraponto de bom senso aos excessos e aos erros do governo e do próprio presidente.

Premiado com um lugar de honra à mesa de um jantar para Bolsonaro nos EUA, Olavo de Carvalho já disse que os militares são uns... Desculpem, mas não consigo repetir. E ele chamou o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, de “idiota”, “imbecil”, “vergonha para as Forças Armadas” e “charlatão desprezível”.

Ele, o guru, também já provocou o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, pelo fato de ele dar entrevistas para a mídia e conversar com jornalistas: “Você não tem vergonha, Heleno?”

A metralhadora giratória desviou-se agora para o ministro Santos Cruz, da Secretaria de Governo. Aquele que faz a cabeça dos filhos de Bolsonaro escreve para quem quiser ler que o general “não presta”, é um “monstro de auto-adoração e empáfia” e dono de “uma mediocridade invejosa”.

Na coleção de ataques, há até um de puro sarcasmo, dizendo que, a partir de agora, quando se irritar, vai reagir gritando: “Santos Cruzes!”. Um achincalhe com um ministro, um general, uma pessoa séria, que tem gabinete no Palácio do Planalto, a poucos passos do presidente da República. E Bolsonaro não diz nada? Não acha nada?

Se não se mete com Olavo de Carvalho e não toma uma providência para salvar o MEC do desastre, Bolsonaro é corajoso ao reverenciar Trump e Netanyahu, ao atacar o presidente da Câmara e ao demitir o leal amigo Gustavo Bebianno, depois de agredi-lo pelas redes sociais, com ajuda do filho.

A guerra entre “olavetes”, militares e técnicos não é exclusiva do MEC, mas sim uma realidade no governo, com algumas exceções, como Economia e Justiça. O Brasil está assistindo a essa guerra intestina a céu aberto, à luz do dia, sem que o presidente da República arbitre.

O vice Mourão já me disse que não iria rebater mais Olavo de Carvalho e explicou: “Não se polemiza com maluco”. Mas Santos Cruz cansou de ouvir calado e revidou. O guru não saiu mais do Twitter e não parou mais de xingar. Será que é isso o que ele quer? Propaganda gratuita?

Aliás, ao insistir na comemoração do 31 de Março, que virou “rememoração”, o presidente provocou um tsunami de depoimentos dolorosos contra a ditadura militar. Não satisfeito, surgiu na lista do WhatsApp do Planalto, domingo à noite, um vídeo quase anônimo enaltecendo o golpe. Sem explicação, Mourão deu de ombros: “É decisão dele”...


Eliane Cantanhêde: Construir, não destruir

Guerra contra o establishment significa ataque ao Legislativo, ao Judiciário e à mídia?

Muita coisa começou a fazer sentido quando o jovem Filipe Martins, assessor internacional da Presidência e amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, publicou no Twitter: “O establishment acusou o golpe. Eles estão com medo. É hora de continuar batendo no sistema sem parar, sem precipitar e sem retroceder”.

O que é o “establishment” a ser combatido? O Congresso, o Supremo e a mídia independente. Isso lembra alguma coisa? Sim, lembra a Venezuela de Hugo Chávez, com sinal trocado.

Chávez, coronel da reserva do Exército, aliou-se às Forças Armadas e a parte da esquerda para combater o establishment e implantar um regime ao seu gosto. Bolsonaro, capitão da reserva, atraiu os militares, a direita e os conservadores para criar uma “nova era”.

Logo, não se trata de direita e esquerda. Em duas democracias cheias de problemas e vícios, a liga política pró-Chávez e pró-Bolsonaro foi possível em torno de costumes, nacionalismo e combate à corrupção. Só que a guinada aqui conta com um arsenal de guerra mais poderoso que os Sukhoi russos de Chávez e Maduro: as redes sociais.

A destruição da Venezuela começou com ataques frontais e uma intensa propaganda contra parlamentares, funcionários, ministros da Alta Corte, jornalistas, e aqui tudo isso é ainda mais rápido, mas as instituições são mais sólidas. Lá, não sobrou nada. A Venezuela vai demorar décadas para se recuperar.

Como Chávez, Bolsonaro também se alia estrategicamente com o capital e as forças de combate à corrupção. Entram aí as figuras decisivas de Paulo Guedes e Sérgio Moro, que são legítimos integrantes do establishment, mas ampliam aliados e conferem grandeza e bons propósitos ao regime.

Guedes é um economista liberal que passou a vida ao largo do setor público e está determinado a repor o Brasil nos trilhos do desenvolvimento. Moro é um juiz que atuou sempre no setor público e se apegou à chance de ampliar a Lava Jato para nível nacional e contra o crime organizado.

Desde a campanha, o economista Pérsio Arida, um dos cérebros mais brilhantes de sua geração, já questionava como poderia funcionar a aliança Bolsonaro-Guedes. O histórico do agora presidente expõe uma alma corporativista, estatizante e nacionalista à antiga. Já seu ministro da Economia é o oposto: liberal, privatizante, globalizante.

Logo, não é surpresa Bolsonaro despejar a reforma da Previdência no Congresso e lavar as mãos, enquanto Guedes se esfalfa com o deputado Rodrigo Maia, outro liberal do establishment, para fazer a reforma acontecer e “salvar o futuro dos nossos netos”.

Quanto a Moro, ronda uma dúvida: a Lava Jato, que foca políticos, partidos e grandes empresários, está em que lado dessa guerra dos bolsonaristas contra o establishment? Vai manter sua ação contra vícios, métodos, desvios e seus agentes, ou vai usar sua ação para engrossar o exército de Bolsonaro, seus filhos, gurus, apadrinhados e soldados da internet contra o Judiciário, o Legislativo, a mídia?

Moro é caladão, discreto, determinado, mas é um atento observador e acaba de orientar “os meninos” a baixarem a bola para a Lava Jato não assumir um lado nessa guerra. Os meninos são os procuradores, à frente Deltan Dallagnol.

Se há um exército contra as instituições, surge outro para protegê-las. Quem tem discernimento nos dois lados quer mudança, mas sem implodir Congresso, Judiciário, mídia. A reação de Rodrigo Maia contra ataques à política não é pessoal, é institucional. Ao resistir às crescentes agressões a ministros, Dias Toffoli blinda o Supremo. E Moro defende negociação: “Precisamos construir, não destruir. Ou nos unimos na beira do precipício ou nos encontramos juntos no fundo do abismo”.