Eliane Catanhêde

Eliane Cantanhêde: Metralhadora giratória

A grande dúvida é aonde Bolsonaro quer chegar e para onde isso vai nos levar

Quanto mais atordoado, mais o presidente Jair Bolsonaro dá asas ao que há de pior na sua personalidade e mais amplia suas frentes de batalha, internas e externas. O ambiente é de perplexidade com o presente e de dúvidas quanto ao futuro, enquanto vai ficando gritante o fosso entre um presidente que só cria problemas e um Congresso afinado com a área econômica para resolver problemas.

Depois de França, Alemanha, China, mundo árabe, Argentina, Cuba, Noruega, Dinamarca e mais uns tantos, Bolsonaro desvia sua metralhadora giratória para o Chile, onde uniu governo e oposição, direita e esquerda, contra ele. A imagem brasileira no exterior se deteriora na mesma proporção da popularidade do presidente.

Bachelet é presidente eleita e reeleita no Chile, tem biografia admirável, é filha de um militar respeitável e atual alta-comissária para Direito Humanos da ONU. Engana-se Bolsonaro ao dizer que se trata de um carguinho para quem não tem o que fazer. Ao contrário, tem prestígio e não é para qualquer um – ou uma.

O ataque a Bachelet, inoportuno em si, carrega agravantes. O pior é o conteúdo. Assim como remexeu a profunda dor do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai foi torturado até a morte e é listado como “desaparecido”, Bolsonaro comemora o fato de o pai de Bachelet, de alta patente, ter sido torturado e morto pela ditadura chilena, que depois torturou também sua filha.

Os “crimes” do general Bachelet – “comunista”, segundo Bolsonaro – foram patriotismo, legalismo, respeito à democracia e coragem pessoal para reagir a um golpe de Estado que se transformou no circo dos horrores, como se viu. Bem, os ídolos do presidente brasileiro são Brilhante Ustra, Pinochet e Stroessner. (Sem falar em Trump, caso bem diferente.)

Outro agravante é que, ao atingir Bachelet, Bolsonaro mexeu com os brios e as cicatrizes do Chile e empurrou o presidente Sebastián Piñera para o campo de batalha. Em pronunciamento formal, com a bandeira do país, ele declarou que não concorda, em absoluto, com o tratamento dispensado a sua antecessora (e, diga-se, adversária). E quem é Piñera? Inimigo? Esquerdista? Não, simplesmente um presidente de centro-direita que vinha tentando mediar o conflito Bolsonaro-Macron. Logo, Bolsonaro acaba de perder uma peça importante na sua mesa de operações de guerra.

Por fim, Bachelet é alta-comissária da ONU e o presidente disse que vai abrir a assembleia-geral da organização no dia 24, mesmo após a cirurgia deste fim de semana. Ele, portanto, se encarregou de desmatar as boas-vindas e de queimar o clima para seu discurso. Autossabotagem. Já imaginaram se houver boicote? Os diplomatas brasileiros nem conseguem imaginar.

No front interno, o alvo é Sérgio Moro. O presidente parece sentir um prazer mórbido em manipular publicamente seu ministro, que continua sendo a estrela do governo, mas perde em imagem e ganha a desconfiança de seus velhos aliados de Lava Jato, ao assistir passivamente à fritura grosseira do delegado Mauricio Valeixo, diretor-geral da PF.

Valeixo é servidor público, com uma cultura e uma lógica muito diferentes do economista Joaquim Levy. Atacado por Bolsonaro, Levy jogou a toalha de cara. Atacado uma, duas, três vezes, Valeixo reage com a altivez que sua instituição requer de seu diretor e joga a bola para Moro, seu chefe direto, que só tem duas alternativas: ou demite o companheiro e se demite da Lava Jato, ou sai junto com ele de onde, segundo muitos, jamais deveria ter entrado.

Uma boa pergunta é o que Bolsonaro e o Brasil ganham com tantas guerras ao mesmo tempo, mas essa tem resposta na ponta da língua. A grande, enorme, dificílima questão é aonde tudo isso vai parar. Ou melhor: para onde vai nos levar.


Eliane Cantanhêde: Papai Noel existe

Em vez de brigar com os dados e só ouvir os áulicos, Bolsonaro devia ouvir mais Terezas Cristinas

Quando os jornalistas perguntaram ontem ao presidente Jair Bolsonaro sobre a preocupante erosão de sua popularidade, com aumento bem fora da curva dos índices de rejeição, ele voltou-se para um deles e desdenhou, com seu jeitão “simples e transparente”: “Você acredita em Papai Noel?”.

Não, presidente, acreditamos nas pesquisas de opinião, como no IBGE, Inpe, Ibama, Fiocruz, ICMBio, Ancine, na ciência, nas universidades, na educação que vai além do ensino, na diplomacia dos bons modos, nos direitos humanos e, claro, na defesa do meio ambiente.

Todos os presidentes, em diferentes épocas, reagem mal a dados negativos sobre seu governo e sua popularidade e preferem se trancar nos palácios, ouvir os áulicos cheios de elogios ou circular em ambientes francamente favoráveis – como os militares e evangélicos, no caso de Bolsonaro. É uma fuga da realidade. Quem mais perde é o próprio presidente, além do seu governo.

Melhor do que filhos, generais, assessores e a legião de “amigos” que frequentam palácios e melhor do que multidões selecionadas, seria o presidente chamar políticos experientes e de bom senso, com coragem e independência, para lhe dizer as verdades que ele não gosta de ouvir e os outros não admitem falar.

Um exemplo é a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Na crise doméstica e internacional das queimadas, ela jogou um balde de serenidade para apagar as labaredas reais e de comunicação. Enquanto outros atiçavam o fogo e as guerras do presidente, ela lembrou os danos que isso causaria à imagem e aos produtos brasileiros e sugeriu: em vez de botar mais lenha na fogueira, por que não apresentar soluções práticas e agir?

Bolsonaro mudou de tom, convocou um gabinete de crise, chamou as Forças Armadase o governo passou a anunciar providências. Lucraram todos, principalmente ele e a própria Amazônia. E a guerra particular contra Macron? Bem, é outra história, que foge à alçada de Tereza Cristina. Ela não pode tudo.

É preciso que mais Terezas Cristinas se aproximem do presidente, fazendo um contraponto aos que só dizem amém e debatendo os dados do Datafolha com seriedade e vontade de captar os recados, aprender e corrigir. Pela pesquisa, a rejeição a Bolsonaro disparou para 38%, um recorde absoluto para presidentes nessa fase de mandato.

Pela primeira vez, a rejeição (ruim e péssimo) ultrapassou o regular e a aprovação (bom e ótimo), quebrando o equilíbrio anterior entre os três. Mas o mais importante é que essas conclusões não surpreenderam os analistas. Logo, não deveriam surpreender o Planalto e muito menos serem rechaçadas pelo presidente.

É só enumerar os absurdos que Bolsonaro diz, como a história do cocô, ou faz, como indicar o próprio filho, o “garoto”, para a principal embaixada do planeta. E o “herói” Brilhante Ustra? E remoer a dor do presidente da OAB diante da tortura e “desaparecimento” do pai? E as picuinhas contra a imprensa? E a manipulação, até emocional, de Sérgio Moro? E o ex-Coaf, a Receita, a PF? A cada uma delas, é natural que as pessoas se espantem e que a popularidade caia. Só o presidente e seu entorno poderiam achar que esse conjunto não afetaria sua popularidade.

Bolsonaro não admite que está errando. Ao contrário, dá de ombros, diz que ele “é assim mesmo” e tenta capitalizar a imagem de “transparência” e “simplicidade”. Como se vê, não está funcionando, mas o presidente, em vez de frear, mete o pé no acelerador, sob aplausos de quem parece que está ajudando, mas só está pensando no seu carguinho e em se manter nas graças do presidente. Assim como Bolsonaro muitas vezes não ajuda e só atrapalha seu governo, essa posição cômoda de muitos do governo não ajuda Bolsonaro, só piora as coisas.


Eliane Cantanhêde: O efeito Macron

Francês deu a Bolsonaro o discurso aglutinador de ‘soberania’ e ‘patriotismo’

Ao falar em internacionalização da Amazônia, o francês Emmanuel Macron mexeu com os brios brasileiros e deu ao presidente Jair Bolsonaro um discurso poderoso e aglutinador baseado em duas palavras mágicas: soberania e patriotismo. Mesmo antibolsonaristas convictos caíram nessa. Mexeu com a pátria, mexeu comigo.

Com esse discurso, Bolsonaro deu voz unida e reuniu novamente os militares do seu governo em torno dele. Ordem, disciplina, patriotismo. E não se fala mais de demissões de generais nem de medalha para o guru que os tratava aos palavrões.

Com o escorregão de Macron, todos perfilaram, bateram continência e respiraram aliviados por ter bons motivos para reverenciar o capitão que virou “comandante em chefe.” Ele manda, eles obedecem. Ele cobra soberania e patriotismo, eles adoram. Ele grita “a Amazônia é nossa”, eles fazem coro. O resto é passado.

Se une os militares, o presidente também usa Macron e a Amazônia para animar a sua tropa real e virtual e deve estar se divertindo à beça com os “inimigos” que tanto falaram mal de suas posições devastadoras sobre o meio ambiente e agora se sentem obrigados a reconhecer que Macron passou do ponto, é um atrevido.

Enquanto os três Poderes dão tratos à bola para reunir recursos para proteger a Amazônia e o governo toma medidas práticas contra desmatamento e queimadas, Bolsonaro vai tirando proveito político da crise e cobra pedido de desculpas de Macron, que o chamou de “mentiroso”, apesar de ele ter atacado primeiro, com a “live” cortando o cabelo na hora marcada para o chanceler francês.

Sem falar do seu filho, candidato a embaixador – e em Washington! – chamando o presidente da França de “idiota” e do próprio presidente rindo de um ataque vil, grosseiro, contra Brigitte, mulher de Macron, que é muitos anos mais velha do que ele, assim como a linda Michelle é muitos anos mais nova do que Bolsonaro. Quem pode ser a favor de uma coisa dessas?

É um círculo vicioso: Bolsonaro posta na internet ou fala alguma barbaridade qualquer no Alvorada e passa o dia se deliciando com a perplexidade geral, enquanto aumenta os ataques contra a mídia e os jornalistas. Ou seja: ele cria frases e fatos contra ele, espera a mídia divulgar e criticar e joga a opinião pública contra a mídia. Atiça a imprensa de um lado e os seus adoradores de outro. Os dois lados se engalfinham e ele reina acima de todos.

É provável que não seja uma estratégia sofisticada, mas, sim, uma personalidade, um estilo, uma agressividade e uma beligerância que passam de pai para filhos, enquanto eles vão se acertando com Judiciário e Legislativo para manter as coisas “sob controle” e a tropa defendendo o indefensável e mirando os “outros”, os “inimigos”.

Bolsonaro também se revela um craque manipulador de pessoas. Assim como botou os generais nos seus devidos lugares, calou o vice Hamilton Mourão, amestrou o ministro Sérgio Moro e vai usando seus trunfos. Ontem, anunciou para a PGR um interino, que, se não se comportar direitinho, pode ser demitido a qualquer momento. Hoje, esfrega na cara dos senadores uma foto de Eduardo Bolsonaro com Donald Trump nos EUA. Isolamento internacional? Que isolamento?

Porém, não há estratégia e esperteza que resistam à economia frágil. O crescimento de 0,4% no segundo trimestre é um alívio, mas o Brasil se arrasta feito tartaruga e precisa de agilidade de coelho para escapar dos efeitos de mais uma crise na Argentina, num momento de instabilidade global e de muita desconfiança em relação ao Brasil de Bolsonaro. A briga com Macron é quase pessoal, mas a beligerância com o mundo é bem mais grave do que isso.


Eliane Catanhede || Fim de uma era doente

Com erros e retrocessos, Bolsonaro pode virar cabo eleitoral das esquerdas e do PT

Quem brinca com fogo pode se queimar, além de incendiar a Amazônia. O presidente Jair Bolsonaro tanto fez que acabou atraindo a ira do mundo desenvolvido, jogando o Brasil no centro do debate no G7, provocando protestos mundo afora e ressuscitando os panelaços da era Dilma Rousseff. Nessa toada, ele pode virar o maior cabo eleitoral da volta das esquerdas, inclusive do combalido PT e até do presidiário Lula.

Vocês já notaram que o pau está quebrando, mas o PT e as esquerdas adotaram um silêncio ensurdecedor? Bolsonaro defende torturador, desmatador, trabalho infantil, mas não há reação à altura da oposição, que, contundida, decidiu jogar parada, assim: deixa o cara se queimar sozinho que a gente volta depois.

No discurso do governo, só as queimadas na Amazônia, que simplesmente acontecem todos os anos, desde sempre, não justificam protestos, panelaços, críticas da mídia e de cientistas e reações de França, Alemanha, Noruega, Finlândia. Pois o governo tem razão.

Essas reações não são pontuais, só pelas queimadas. Elas são uma resposta a um ataque incessante do governo e do próprio Bolsonaro aos parceiros, ao meio ambiente, aos órgãos do setor e aos ambientalistas. Isso vem desde a campanha, com a história de tirar o Brasil do Acordo de Paris.

Já empossado, Bolsonaro deu pelo menos dois sinais verdes para crimes ambientais. O Ibama não só cancelou a multa contra ele por pesca ilegal em área protegida como puniu o fiscal que aplicara a lei. E, em 13 de abril, o presidente gravou um vídeo pela internet proibindo a destruição de tratores e caminhões usados para desmatar ilegalmente a Amazônia.

Pela lei, eles podem ser destruídos, sim, se houver perigo contra agentes do Estado e se o custo para a guarda e transporte for excessivo, o que ocorre, claro, em locais distantes, em meio a florestas fechadas. Logo, o presidente mandou descumprir a lei ao vivo e em cores. Como isso soou? Como uma licença para o crime. Os desmatadores devem ter comemorado à beça.

O mesmo ocorre nessa guerra com a França. Sair do acordo de Paris e esfregar uma live cortando o cabelo após alegar “problemas de agenda” para não receber o chanceler francês é um gesto infantil e uma agressão grosseira a um país amigo. E o que dizer do indicado para embaixador em Washington xingando o presidente francês de “idiota”? Para que serve esse nível de beligerância? O que o Brasil ganha com isso?

Com as labaredas torrando a Amazônia e a imagem do Brasil no mundo, finalmente Bolsonaro mudou o tom, foi à televisão sem agredir nada e ninguém e tomou duas providências: uma, interna, chamando o Exército para apagar o incêndio; a outra, externa, telefonando para Trump, o espanhol Pedro Sánchez e o japonês Shinzo Abe, além de distribuir uma cartilha sobre a política ambiental para os diplomatas brasileiros.

A crise, porém, continua e ensina uma lição a Bolsonaro: ele não tem o direito de expor o Brasil assim, falando o que quer, fazendo o que quer, na hora que quer, abrindo mil e uma frentes de guerra e causando desgastes inúteis que não apenas prejudicam ele próprio e seu governo, mas o País.

O PT e as esquerdas assistem à tragédia e à sucessão de erros e retrocessos comendo pipoca, se divertindo, curtindo a ideia de que “quem ri por último ri melhor” e aguardando o aviso (ou ameaça?) do ministro Gilmar Mendes de que “devemos ao Lula um julgamento justo”. Já imaginaram? Uma nova guerra entre lulismo e bolsonarismo? Pobre Brasil.

A única forma de conter essa polarização insana é explorar os espaços de centro e trabalhar alternativas, diante da avaliação, ou constatação, de que o que está aí não é o começo de uma nova era saudável, mas o fim de uma era doente.


Eliane Cantanhêde || Blindagem

Fim da crise, Bolsonaro, Moro e Valeixo vivem felizes para sempre. Será?

Vamos falar claramente. É preocupante a investida simultânea do presidente Jair Bolsonaro contra a Polícia Federal, a Receita e o Coaf, além de sua estranha relação com Sérgio Moro e a dificuldade para definir o procurador- geral da República. Pior: no caso da PF e da Receita, os alvos imediatos são os superintendentes no Rio, base dos Bolsonaro e assolado por violência, milícias e “rachadinhas”.

O presidente diz que “não é um banana” e é ele quem manda. Isso, porém, não significa sair nomeando os homens da PF e da Receita nos Estados, já que são órgãos de investigação, obrigatoriamente autônomos. Bolsonaro escolher pessoalmente os superintendentes no Rio abre a porteira. Os governadores vão querer indicar, políticos e empresários investigados, também e não para mais. O que vai parar são as investigações de corrupção.

Justiça se faça. Lula foi investigado, condenado e preso, Dilma foi investigada e caiu por impeachment, mas não ousaram meter a mão na PF. E, quando Temer nomeou Fernando Segovia para a PF por apadrinhamento político, ele não durou três meses na direção geral.

Ao anunciar a jornalistas a troca da PF no Rio, com críticas ao superintendente Ricardo Saadi, o presidente acendeu o sinal amarelo. Não era um caso isolado. Ele já vinha investindo contra o Coaf, empurrado para o Banco Central, e contra a Receita, em pé de guerra com a intervenção no Rio e “otras cositas mas”. Na sexta-feira, o secretário da Receita, Marcos Cintra, já teve uma conversa séria com o chefe imediato, Paulo Guedes.

Para se blindar, a PF lançou como sucessor de Saadi o atual superintendente de Pernambuco, Carlos Henrique Souza. Mas Bolsonaro foi à tréplica, anunciando no dia seguinte que quem manda é ele e que seria o superintendente do Amazonas, Alexandre Saraiva. De amarelo, o sinal da PF virou vermelho.

O diretor-geral, Maurício Valeixo, e toda a cúpula da PF ameaçaram pedir demissão em bloco e comunicaram ao ministro Sérgio Moro que não havia meio termo: ou vingava o nome indicado pela PF, como sempre foi, ou haveria uma debandada. Valeixo é do Paraná, próximo a Moro, destaque da Lava Jato e principal estrela da PF.

Espremido entre o presidente e a PF, Moro articulou a saída: em nova entrevista, Bolsonaro esqueceu a história do “banana” e disse que, tudo bem, podia ser o delegado do Amazonas, podia ser o de Pernambuco. Bolsonaro escapa de uma crise grave, Moro sobrevive a mais uma desfeita, Valeixo fica num cargo onde está brilhando e vivem todos felizes para sempre. Será? Essas coisas deixam cicatrizes. E se as bases da PF e da Receita decidirem retaliar?

Bolsonaro é especialista em abrir frentes de atritos dentro e fora do País, incluindo agora Luciano Huck, potencial adversário em 2022. Mas que motivos o presidente tem para confrontar a PF, que mantém um rumo absolutamente profissional e acumula troféus neste ano? Prendeu dois perigosos mafiosos italianos sem um tiro, rastreou e prendeu eficazmente o “doleiro dos doleiros”, um gol. E o que dizer da operação rápida de identificação, rastreamento e prisão dos “hackers da República”?

Se há uma bronca de Bolsonaro com a PF, além das ocultas, envolvendo seus filhos, é que ele não se conforma com as conclusões sobre a facada durante a campanha, convencido de que Adélio Bispo não é maluco e não agiu sozinho. Pois vai se surpreender com o relato da extensiva e sofisticada investigação feita pelos policiais federais – aliás, comandada pela PF de Minas, não do Rio.

Isso só confirma a essência do governo Bolsonaro. As prioridades número um, dois e três são sempre pessoais: seus filhos, seus interesses, suas crenças, suas obsessões. As instituições começam a reagir e a se impor.


Eliane Cantanhêde || Pró-corrupção

A Lava Jato foi um sucesso internacional, mas o Brasil recua e volta tudo atrás

O ministro Paulo Guedes recebeu um ofício do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), vinculado à OCDE, estranhando a decisão do Supremo de vetar investigações com base em dados do Coaf, do BC e da Receita. Desrespeitar as 40 normas do Gafi projeta dificuldade de crédito, de comércio e de relações com organizações e demais países, além de ameaçar a aproximação com a OCDE. É isso mesmo que o Brasil quer?

Não adianta fingir que não sabe, não viu, não ouviu o ataque de forças poderosas e variadas às frentes de combate à corrupção no Brasil, que não se resumem à Lava Jato. Ela é a maior e mais reluzente, não a única.

Na linha de tiro estão o Ministério Público, a Receita, o Coaf (que identifica movimentações atípicas) e o Cade (que, por exemplo, avalia fusões). A Justiça não passa incólume. Veja as tentativas de desgastar Sérgio Moro e as ameaças ao Supremo – que tanto participa dos ataques como é alvo deles.

As investidas não partem só do Congresso e de ministros do Supremo, têm a participação direta do governo. O próprio presidente Jair Bolsonaro, que já deu um jeito de intervir no Coaf e dar um chega pra lá na Receita Federal, ontem causou grande alvoroço na Polícia Federal, ao anunciar: “Vou mudar o diretor da PF no Rio. Motivos? Gestão e produtividade”.

Tudo no Rio é mais complicado mesmo, com todos os ex-governadores vivos entrando e saindo da cadeia, por exemplo, mas quem muda superintendente é o diretor-geral da PF, um órgão de excelência que tem mantido invejável independência até no turbilhão do mensalão e do petrolão na era PT. Para que o presidente se meter na PF e criar mais uma confusão desnecessária?

Na versão oficial, a troca do delegado Ricardo Saadi por Carlos Henrique Sousa já estava definida havia tempos, sem dor, sem trauma, como deve ser. Com a interferência de Bolsonaro, que já ataca o Coaf e a Receita, a suavidade foi para o espaço e a corporação chiou.

O curioso é que Bolsonaro fez toda a sua campanha em cima do combate à corrupção e não titubeou ao aceitar a sugestão do economista Paulo Guedes para nomear justamente Moro para a Justiça. Um golaço. Mas, com a posse, a caneta Bic na mão e as notícias nada edificantes sobre os gabinetes políticos da família, tudo mudou.

Mais curioso, ainda, é a aliança tácita entre setores do Executivo, do Judiciário e do Legislativo. Ora eles enfraquecem ostensivamente o Coaf. Ora fazem um conchavo para montar a equipe do Cade. Agora aprovam, em tempo recorde e sem votação nominal, a síntese de tudo isso: a lei de combate ao abuso de autoridade.

O derrotado nesses três exemplos é sempre Sérgio Moro, que deixou de ser superministro e troféu. Perdeu o Coaf, fundamental contra a lavagem de dinheiro, perdeu o direito de nomear metade dos integrantes do Cade, vê o presidente metendo a mão na PF e, em vez de aprovar seu pacote anticorrupção e anticrime, tem de engolir goela abaixo o oposto: a lei do abuso, com alta carga de subjetividade.

Há, sim, exageros de agentes de Estado que se sentem acima das leis e normas e se escudam na máxima de que “os fins justificam os meios”. Logo, uma lei contra abusos, fabricação de provas, exposição desnecessária de investigados, uso de algemas a torto e a direito... faz sentido. A questão, porém, é outra.

Por que agora e tão rápido? E por que engavetar as dez medidas contra a corrupção, depois o pacote Moro e colocar no lugar justamente o oposto? A resposta é clara: a gangorra inverteu. A Lava Jato perdeu fôlego, as forças inimigas dela se fortaleceram. Não se combate a corrupção, combate-se quem e o que combate a corrupção. Isso pode sair muito caro, inclusive internacionalmente. Atenção ao Gafi. Isso é sério.


Eliane Cantanhêde: E se não?

Macri e PIB ameaçam a crença de que há dois governos: um do Bolsonaro, outro da economia

A crença, certeza ou argumento de que a economia salva o governo Jair Bolsonarorecebeu duas pancadas doídas. Uma, de fora: a derrota do liberal Maurício Macri para o kirchnerismo nas prévias da Argentina. Outra, doméstica: o risco de nova recessão.

Macri é aliado fundamental para consolidar tanto a debacle do chavismo na América do Sul quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia, tão festejado, mas tão ameaçado. Mas é improvável que ele consiga tirar 15 pontos de diferença para a chapa populista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner até outubro. Sem Macri na Argentina e com Mario Abdo Benitez em risco no Paraguai, o acordo evapora. Para piorar, Bolsonaro apostou todas as fichas na chapa errada do país vizinho.

E o que dizer da prévia do Banco Central para o PIB do segundo trimestre no Brasil? Desde a eleição de Bolsonaro, a previsão de crescimento vem minguando. Agora, 0,2% de queda no primeiro trimestre e 0,13% no segundo apontam para recessão técnica. É grave para a economia, é gravíssimo para o discurso político do governo.

Bolsonaro vai mal, mas as expectativas econômicas iam bem. O presidente fala uma barbaridade atrás da outra, mas os ministros, por obrigação, e os aliados, por falta de alternativa, têm a mesma resposta na ponta da língua: deixa o homem falar, o importante é Paulo Guedes salvar a economia e recuperar o crescimento. E se não?

Juros e inflação baixos, reformas caminhando, acordo com UE, negociações com os EUA e liberação do FGTS são um alívio para bolsonaristas desencantados, mas apegados às promessas e sonhos da economia. Esquecem-se de que o Estado está engessado pelo déficit crônico, o setor privado continua assustado, as famílias mantêm-se endividadas, a ociosidade do comércio e da indústria persiste, os empregos não aparecem.

A recuperação deve vir, mas vai ser lenta, demorada.

Enquanto Bolsonaro faz das suas, mas a crença na economia resiste, tudo bem. Mas desilusão com ele e com a economia ao mesmo tempo pode ser explosiva.

Bolsonaro cria atritos desnecessários e “relativiza” tortura, impessoalidade, armas, radares, cadeirinhas, dados científicos, desmatamento, reservas indígenas. Mas “ele é assim mesmo”. Enquanto isso, o ministro da Economia tem uma boa equipe, o da Infraestrutura aprofunda o plano de privatizações de Temer, a da Agricultura trabalha com pragmatismo, o de Minas e Energia avança. E o Congresso faz sua parte, aprovando a reforma da Previdência sem desidratá-la.

O problema é se Bolsonaro insistir em falar e fazer o que vem na sua cachola, chocando o País e o mundo, e a economia continuar patinando até passar a andar de marcha a ré. A confluência gera pessimismo e preocupação.

Para tornar esse cenário ainda mais turvo, Bolsonaro passou meses provocando a China e ameaçando históricas relações amigáveis com o mundo árabe. Quando se imaginou que recolhia as baterias viu-se que apenas desviava o alvo para Alemanha, França, Noruega, Suécia, deixando o Brasil numa situação desconfortável. Eles têm o discurso do “bem”, o Brasil assume a posição do “mal” justamente no meio ambiente. E é isso que fica na imprensa internacional.

Bolsonaro afugenta quem votou nele “só contra o PT”, reabre feridas da ditadura militar, escanteia o Coaf em favor da própria família e abre flancos na área externa – Europa, Ásia e Oriente Médio. Assim, ele se apega a dois fatores para manter o poder: sucesso na economia e inexistência de um opositor real.

Pelo andar da carruagem, só falta surgir o opositor, o antibolsonaro. Não da esquerda, mas da centro-direita. João Doria é mais afoito, mas não é o único. Quanto mais Bolsonaro balançar, mais Dorias vão surgir.


Eliane Cantanhêde: Motosserra

Que grande empresa quer colar sua marca num país que involui no meio ambiente?

Só falta agora o presidente Jair Bolsonaro incluir o agronegócio na sua lista de inimigos e a tropa bolsonarista na internet passar a chamar produtores e exportadores rurais de petistas, esquerdopatas e comunistas, por fazerem uma advertência real: proteger o meio ambiente não é coisa da esquerda nem utopia, é uma questão de competitividade internacional.

“Desenvolvimento sustentável” é o equilíbrio entre economia e ecologia. Não é moda nem supérfluo, é um conceito massificado nas democracias e exige responsabilidade das empresas. Ser “environment-friendly” é um ótimo negócio. Não ser pode custar caro.

O Brasil é um dos três maiores exportadores agrícolas do mundo, o governo aprofunda um processo de privatizações que atiça o interesse externo e a equipe trabalha intensamente para atrair investimentos produtivos fundamentais para impulsionar o desenvolvimento e gerar empregos.

As decisões e manifestações de Bolsonaro sobre meio ambiente podem interferir negativamente nisso tudo, afetando a posição de liderança do Brasil na área ambiental e gerando desconfianças desnecessárias nos demais setores, empresas e conglomerados que estão de olho no Brasil.

Ok. O capital é pragmático e pode não dar muita bola para florestas, rios e reservas ecológicas e indígenas de um país distante da América do Sul, mas é exatamente por pragmatismo que é forçado a contemplar todas essas questões na hora de fazer negócio. Não se esqueçam que, quando falamos de imagem do Brasil lá fora, não estamos nos referindo apenas a governos, mas também a parlamentos, mídia, meios científicos e sociedades. Todos têm forte influência nas empresas.

Que grande empresa quer colar sua marca num país que involui a olhos vistos na proteção ambiental? Mais: o governo mira a Europa, mas os EUA também desenvolveram uma forte consciência ambiental e uma ativa militância nessa área, com ou sem Trump.

Ao atacar o então diretor e os dados científicos do Inpe sobre desmatamento da Amazônia – em entrevista a correspondentes estrangeiros, frise-se –, o presidente fez exatamente o que ele acusa o professor Ricardo Galvão de ter feito: denegrir a imagem do Brasil no exterior numa área tão sensível.

Em setembro, Bolsonaro terá um palanque especial e uma ótima chance para abaixar a bola, amenizar suas falas e explicar ao mundo que não é bem assim como parece: que ele não quer facilitar a vida de madeireiros ilegais, escancarar as reservas indígenas a mineradoras até americanas, transformar santuários em “novas Cancúns”, liberar a pesca em áreas protegidas e desqualificar Inpe, Ibama, ICMBio.

Será que ele vai fazer isso? Leais colaboradores do presidente torcem para que sim, mas duvidam que ele o faça, porque, assim como Dilma Rousseff tinha a visão perigosa de que “um pouco de inflação não faz mal a ninguém”, Bolsonaro está empenhado em relativizar a proteção do meio ambiente em nome do que ele considera “desenvolvimento”.

Logo, não há motivo para otimismo na fala do presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU, mês que vem, em Nova York. Em vez de amenizar o discurso e a sensação de uma política retrógrada em meio ambiente, o risco é ele fazer o oposto e dobrar a aposta, sob aplausos dos áulicos domésticos.

Essa é mais uma missão para Paulo Guedes, único superministro restante. Ele transformou o estatizante e corporativista Bolsonaro em privatizante e liberal. Agora, tem novo desafio: convencer o pupilo de que cuidar da natureza não é “frescura” nem “coisa de esquerdista”, mas fundamental para a sobrevivência do planeta e o interesse nacional. Ou melhor: os variados interesses nacionais, inclusive o econômico.


Eliane Cantanhêde: E a impessoalidade?

Decisões de presidentes devem obedecer ao interesse público, não o pessoal, familiar ou de grupos

Alguém precisa avisar ao presidente Jair Bolsonaro que ele foi eleito para presidir o País, não para se tornar dono da República e fazer o que bem entende. Pelo princípio da impessoalidade, definido no artigo 37 da Constituição, o mandatário tem de tomar decisões de acordo com o interesse público, não ao sabor dos seus interesses, vontades e crenças pessoais, nem para favorecer a si, à família, aos amigos ou a grupos específicos. Há controvérsias se é exatamente assim que Bolsonaro governa, fala e age.

O exemplo mais chocante foi a indicação do filho para a mais importante embaixada do planeta, a dos EUA. Trata-se de um jovem de 35 anos que nunca pisou no Instituto Rio Branco, não é especialista na área nem um personagem de destaque na vida nacional. É filho do presidente, ponto.

E os dois exemplos mais recentes são retaliações do cidadão Bolsonaro, que aproveita o principal gabinete do Planalto e uma caneta Bic para se vingar de desafetos. Um é o cancelamento do contrato da Petrobrás com o escritório de advocacia do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Outro é a dispensa de publicação de balanços de companhias abertas em jornais. “Não precisa dar dinheiro para um cara da OAB”, aplaudiu Bolsonaro, que falou de forma cruel sobre o desaparecimento do pai de Felipe na ditadura militar, remexendo uma ferida que não é só da família Santa Cruz, mas de toda a Nação.

Onde está o interesse público no cancelamento do contrato? O escritório, especializado em Justiça do Trabalho, evitou em 2018 rombo de R$ 5 bilhões à Petrobrás em causas trabalhistas. Logo, a companhia não dá dinheiro “para o cara”, remunera um serviço bem feito.

“Retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, disse Bolsonaro, assumindo a intenção de vingança quando desobrigou a publicação dos balanços. A decisão é do governo, mas o interessado é o ex-candidato, insatisfeito com as revelações da imprensa sobre seu passado e entorno desde a campanha. Como, aliás, ela tem o dever de fazer.

Lembra a punição ao fiscal do Ibama que multou o cidadão Jair por pescar em área protegida. O fiscal cumpriu seu dever, o cidadão descumpriu a lei. Quem riu por último? Aquele que, flagrado na infração, pensou: “Ah, esse aí me paga!”. Pagou mesmo. O pescador assumiu e usou o poder contra um pobre fiscal.

Também não se pode classificar de impessoalidade a decisão do presidente de “não dar nada para esse cara”. Desta vez, não o presidente da OAB, mas o governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, um desses “paraíba” que ousam ser de esquerda. Do varejo para o atacado, o governo federal conseguiu punir o Nordeste inteiro, com apenas 2,2% dos empréstimos da CEF.

É um direito de Bolsonaro não gostar de Dino, como é dos governadores do Nordeste não gostar de Bolsonaro. Mas não é um direito da pessoa do presidente usar seu poder contra uma região, a segunda mais populosa do Brasil. O interesse dessa população está acima das birras do Jair.

E o que falar sobre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas e, assim, municia os órgãos de fiscalização e controle contra a lavagem de dinheiro, prima-irmã da corrupção? Ia tudo bem, até que o Coaf bateu os olhos numa dinheirama de um tal de Queiroz.

Esse foi o fio da meada de uma história ainda muito mal contada sobre contratações, salários, depósitos e esquemas nos gabinetes do clã Bolsonaro. Tal como o fiscal do Ibama, o Coaf está sendo punido por simplesmente fazer o que tinha de fazer. Podia pegar todo mundo, não o filho “01” do presidente, Flávio, agora senador.

Pimenta nos olhos dos outros é refresco, mas nos olhos do poder arde, causa irritação e, no caso dos Bolsonaro, gera retaliação. O problema é combinar com a Constituição. O artigo 37 é claro, preciso, um alerta.


Eliane Cantanhêde: A ricos e aliados, tudo

Bolsonaro e os ‘direitos’ dos ricos e poderosos contra os ‘deveres’ de todo o resto

O presidente Jair Bolsonaro confirma, dia sim, outro também, sua visão peculiar e sectária do que sejam direitos. Diz a Constituição que “todos são iguais perante a lei”. Dizem as democracias que os direitos e deveres são iguais para todos. Para Bolsonaro, não. No seu governo, como na sua fala, uns têm mais direitos do que outros: os ricos, donos do capital.

Num país campeão de desigualdade social, com milhões de pessoas sem direito a emprego, educação, saúde, moradia, transporte, igualdades de condições e respeito, o presidente jamais usa a palavra “social” e está preocupado é com os direitos dos empresários, que chama de “heróis”: “É horrível ser patrão no Brasil”, prega. Bem pior, presidente, é ser pobre.

Assim, Bolsonaro defende trabalho infantil, produz frases dúbias sobre trabalho escravo e estuda devolver terras desapropriadas. E corta, ops!, contingencia verbas do Ministério do Desenvolvimento Social e da Educação.

Entre a proteção da Amazônia e a ganância de madeireiros ilegais, adivinhem quem ele defende? Em desacordo com a lei, impediu a destruição de caminhões que derrubavam árvores, criminosamente, na floresta.

Entre o direito ancestral dos índios e o desejo de “tarados” americanos de explorar minérios em terras indígenas, adivinhem o que ele prefere? E a ideia de liberar Angra dos Reis para empresários criarem “uma Cancún”?

Entre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas, e o interesse do filho Flávio Bolsonaro, cujo gabinete no Rio foi um dos flagrados, adivinhem o que ele faz? O chefe do Coaf cai, o filho Flávio fica feliz da vida. Aliás, cadê o Queiroz?

Sempre crítico à política, Bolsonaro se deu o direito de estar nela há 29 anos e garantir mandatos não só para Flávio, mas também para o “02”, Carlos, e o “03”, Eduardo. Por que será? Essa pergunta, que nunca quis calar, pode estar sendo respondida pelo jornal O Globo, que identificou 286 assessores do clã nessas três décadas, 102 da família Bolsonaro ou de famílias amigas. Alguns receberam a média de R$ 7,3 mil, ou R$ 10,7 mil, durante 14, 15 anos, sem dar as caras no trabalho. Uma era oficialmente “do lar”, outra declarou-se “babá” na Justiça e vai por aí afora. Será que os salários não eram para elas? E qual o direito dos Bolsonaro de fazer isso?

Há também os cartões corporativos: a sociedade tem o direito de saber como são gastas as verbas oficiais, mas Bolsonaro mantém o “direito” de gastar sem dizer onde, para quê, com quem. E não é pouco dinheiro, não.

Quem, por ofício, checa diariamente a agenda do presidente sabe os que têm acesso a Bolsonaro e para quem ele está efetivamente governando. Ele vai a toda e qualquer solenidade militar, frequenta cultos e despacha com pastores evangélicos, leva ministros a estádios de futebol e abre as portas do gabinete a multinacionais, grandes empresários, ruralistas, políticos aliados, a “bancada da bala”. Aos aliados e ao capital, enfim.

Onde ficam as outras religiões, os ambientalistas, as comunidades LGBT, os professores, os defensores de direitos humanos, os cientistas, os cineastas, os escritores, os artistas, os intelectuais, os índios, os quilombolas, os especialistas em trânsito e em desarmamento? E os representantes de trabalhadores?

No mundo de Bolsonaro, o capital tem todos os direitos, o trabalho e as minorias só têm deveres. A uns, a defesa. Aos outros, a cobrança. Mais ou menos como no caso dos Estados: aos governadores aliados, tudo; aos nordestinos, as migalhas.

Entra aí o “direito” do jovem deputado Eduardo de ser embaixador na mais importante embaixada do planeta, a dos EUA. “Indicado tem de ser filho de alguém. Por que não meu?”, indagou papai Bolsonaro. O que responder, minha gente?!


Eliane Cantanhêde: Ufa! Um gol do Jair

Brasil seguiu a política e o bom senso ao ceder e salvar o parceiro Benítez no Paraguai

Depois de tantas declarações absurdas, posições surpreendentes e bolas fora na política externa, o governo Jair Bolsonaro fez um gol na solução da crise do vizinho Paraguai. O novo acordo de Itaipu era justo, mas o Brasil cedeu e reabriu as negociações por um objetivo maior: a questão política, que neste caso se sobrepõe à questão técnica, econômica.

O Paraguai é um país particularmente aliado, quase dependente do Brasil, e os dois atuais presidentes, Bolsonaro e Mario Abdo Benítez, são não apenas pragmaticamente parceiros, como ideologicamente identificados. Os dois, aliás, vêm da mesma Arma do Exército: são paraquedistas.

Logo, há a aproximação histórica, a questão de oportunidade e vários interesses conjunturais e estratégicos. Além das incontáveis empresas brasileiras que se instalam no Paraguai – graças às condições muito mais camaradas para os negócios – o Paraguai é, nada mais, nada menos, o país que mais cresce na América do Sul nos últimos 15 anos. O Brasil patina e passou por dois anos de recessão, enquanto o vizinho cresce à base de 4,5% ao ano.

O presidente da Republica Jair Bolsonaro, durante lançamento do programa Medicos pelo Brasil, no Palacio do Planalto Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO
Para completar, o Mercosul, que acaba de fechar um acordo histórico com a União Europeia, é formado por quatro membros plenos e, em três deles, há obstáculos, reais ou possíveis, para a implementação das medidas.

No Brasil, Bolsonaro não para de criar atritos desnecessários com os europeus, a ponto de desmarcar de última hora a audiência com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drien. Pior: alegou problemas de agenda e na mesma hora gravou um vídeo cortando o cabelo. Na diplomacia, isso é um tapa na cara.

Na Argentina, o presidente Maurício Macri vai enfrentar uma eleição difícil em outubro. E se ele não for eleito e o peronismo voltar? O Uruguai navega com mais facilidade, mas o Paraguai ganhou força e poder de negociação pelo pragmatismo, política econômica bem-sucedida e estabilidade política. Já imaginaram se Benítez passa por um processo de impeachment e cai? Seria uma tragédia para o pequeno país, má notícia para o Mercosul e um tranco nas negociações com a UE.

Com o país crescendo e a demanda de energia obviamente aumentando, os paraguaios simplesmente usam todo o excedente de Itaipu Binacional e ainda abocanham uma parte da cota garantida do Brasil – e com o mesmo preço camarada do excedente. Assim, o Brasil poderia ter batido o pé e exigido seus direitos, mas foi sensível à complexidade envolvida.

O acordo anulado ontem era justo e tanto o Brasil exigiu quanto o Paraguai admitiu, por saber disso. E por que o acordo foi secreto? Porque o governo Benítez cometeu o grave erro de esconder a negociação para tentar fugir da velha pressão de parte da sociedade paraguaia, especialmente da esquerda, que acusa o Brasil de “imperialista” e insiste há décadas que os paraguaios são sempre lesados. Nada mais falso. Não estavam, não estão.

Diante da decisão do Brasil de ceder, da anulação do acordo e da reabertura das negociações, ganham o governo Benítez, Itaipu, o Paraguai, o Brasil, os “brasilguaios”, o Mercosul e a implementação do acordo com a UE. É melhor para todos manter Benítez no governo.

Aqui vai, porém, uma advertência: isso não significa que o Brasil vá ceder em tudo e voltar ao que era. O que foi prometido pelo governo, e será exercitado, é “flexibilidade nas propostas, mas firmeza nos argumentos”. Ou seja, o Brasil cedeu para ajudar Benítez, mas nem por isso abdica de defender seus interesses.

Não seria nada mal se essa postura pragmática e de bom senso se repetisse nas relações com o resto do mundo e, principalmente, nas declarações do presidente Bolsonaro. Mas, aí, já é pedir demais...


Eliane Cantanhêde: Réquiem para os índios

Bolsonaro critica o interesse da Europa na Amazônia, mas abre mineração em reservas aos EUA

O mesmo presidente Jair Bolsonaro que definiu o Brasil como “uma virgem que todo tarado quer” é o que, agora, confirma publicamente sua disposição de fazer parcerias nos Estados Unidos para explorar minério em terras indígenas da Amazônia, particularmente a ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. O governo vai entregar a virgem para os tarados? Ou os tarados são só os países europeus?

O discurso de Bolsonaro é um para a Europa, outro muito diferente para os EUA. Ao falar sobre meio ambiente, desmatamento da Amazônia, reservas ecológicas, terras indígenas e quilombolas, ele inevitavelmente mistura um tom agressivo com pitadas de sarcasmo: o diretor do Inpe é mancomunado com ONGs estrangeiras e os europeus só defendem a preservação da Amazônia para depois explorá-la. “Na cabeça dos europeus, a Amazônia não é do Brasil.”

É curioso que, nos tempos dos militares no poder, o temor do olho gordo sobre a maior floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo não era por causa dos europeus, ou, pelo menos, não era principalmente por causa deles, mas, sim, dos irmãos do Norte, dos americanos. Na “nova era” de Bolsonaro, o tarado mudou.

E os índios? Doido para criar “uma Cancún” em paraísos ecológicos e crítico da “psicose ambiental” que assola Alemanha, França, Noruega, Suécia..., o presidente acha que “índios em reservas são iguais a animais em zoológico” e o que eles querem mesmo é “internet, médico, dentista, banho com sabonete...” Bolsonaro, aliás, disse ontem que não há “indícios fortes” de que um cacique wajãpi tenha sido assassinado por invasores no Amapá. Uma declaração que só piora as coisas.

O primeiro anúncio da disposição do governo brasileiro de abrir a mineração em reservas indígenas foi feito pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, numa palestra no Canadá. Na época, houve surpresa. Agora, é o presidente quem dá a coisa com certa. Isto é: se o Congresso deixar.

A Constituição é clara ao defender os “direitos originários” dos índios sobre suas terras. Para abrir a exploração mineral, agrícola ou de qualquer natureza em reservas ianomâmi, Raposa Serra do Sol e tantas outras, é, ou será, preciso emenda constitucional, com quórum qualificado e votação em dois turnos na Câmara e no Senado. E há questões externas.

Ontem, em Brasília, o chanceler Ernesto Araújo acertou com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drian, a criação de um grupo de trabalho para trocar informações sobre... meio ambiente. Diplomaticamente, como convinha, Le Drian falou da importância, “além do cumprimento do Acordo de Paris, também do respeito a normas ambientais e sanitárias”. E Araújo prometeu um fluxo de informações “precisas e científicas”. Com Bolsonaro jogando descrédito sobre o Inpe, o Ibama e o ICMBio, fica difícil, ministro.

Detalhe: ao falar sobre parcerias com americanos para explorar minérios em reservas indígenas, o presidente voltou a defender a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro, o “03”, como embaixador em Washington: “Por isso minha aproximação com os EUA, por isso quero uma pessoa da minha confiança para a embaixada”. Entenderam?

OAB. É inacreditável o ataque ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desrespeitando a dor de um filho e a memória de um pai, Fernando Santa Cruz, que, preso pela ditadura militar, integra a lista macabra de “desaparecidos”. Governadores, parlamentares, acadêmicos e pessoas comuns reagiram com espanto e repulsa ao jogo sujo político. Mas Felipe reagiu como ser humano, acusando Bolsonaro de “traços de caráter graves: crueldade e falta de empatia”.