Eliane Catanhêde

Eliane Cantanhêde: Para frente ou para trás?

Recuo no combate à corrupção, na diversidade, na inclusão; o mundo está de olho

Tudo embolado: o julgamento da restrição aos dados da Receita e do Coaf, a reviravolta na prisão em segunda instância, o pacote anticrime empacado. E é por isso que o presidente do Sindifisco, advogado e engenheiro mecatrônico Kleber Cabral, adverte, dentro e fora do País, para os graves efeitos dessa investida não mais apenas contra a Lava Jato, mas contra todos os avanços no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

“Essa é a percepção generalizada e qualquer decisão que restrinja o trabalho da Receita e o compartilhamento de dados de órgãos de controle tem impacto inclusive no desenvolvimento. Se o Brasil for carimbado como ‘não cooperativo’ no combate a ilícitos, isso será um forte obstáculo aos investimentos internacionais”, diz ele.

O Sindifisco, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais, já entrou com representações em quatro órgãos internacionais para denunciar e tentar brecar os avanços contra os órgãos de controle, Receita, Polícia Federal e UIF (Unidade de Inteligência Financeira, ex-Coaf). E esses ataques não se limitam a apenas um Poder.

Além dos julgamentos do Judiciário sobre segunda instância e compartilhamento de dados, há também decisões do Executivo e do Legislativo atravancando todo um processo que havia jogado luzes positivas sobre o Brasil, criando uma expectativa do fim da impunidade e uma onda de confiança nos brasileiros. Com tudo isso em risco, a decisão do Congresso sobre segunda instância também se torna crucial. A ver.

Não apenas os recuos no combate à corrupção, porém, preocupam, incomodam, irritam. Um professor universitário xingado de “macaco” e esfaqueado na rua por ser negro em plena semana da Consciência Negra? Um deputado federal vandalizando uma exposição contra o racismo? Um outro falando em “negrinhos bandidinhos”?

Depois da ditadura, destampou-se no Brasil a panela de pressão política e o vapor da democracia trouxe ao ambiente os grupos, interesses e confrontos tão reprimidos em duas décadas. A unidade de esquerda, centro e parte da direita para recuperar a normalidade perdida foi aos poucos cedendo terreno às divergências e nuances próprias das democracias.

Agora, o fim da era PT com a sucessão de mensalão e petrolão destampou uma nova panela de pressão: o que há de pior na pior direita, o discurso assassino das armas, a falsa religiosidade que rouba dos pobres e infelizes, a crueldade contra negros e a comunidade LGBT, a posição retrógrada sobre gênero disfarçada como defesa da família. Os recuos no combate à corrupção e essa barafunda vieram acompanhados de retrocessos em Meio Ambiente, Cultura, Direitos Humanos, pesquisa, educação, política externa. E não se fala aqui do governo, ou não apenas do governo, mas de toda uma classe média que saiu do armário para se assumir armamentista, racista, homofóbica... cruel.

Em meio à balbúrdia, sobressai-se o Ministério da Economia de Paulo Guedes. Ele e Rodrigo Maia trazem racionalidade a um ambiente de preocupante irracionalidade, mas eles podem muito, não podem tudo. A economia tem enorme peso na política e os índices inegavelmente favoráveis escamoteiam os demais problemas, mas a economia também depende da política, da percepção, dos ventos e da sociedade, tanto quanto a sociedade depende da economia.

O Brasil é um país imenso, amistoso, cheio de potencialidades, que tem tudo para se desenvolver e incluir os milhões de miseráveis que sobrevivem por aí não se sabe como. Mas, para isso, é preciso andar para frente, não para trás. Avançar na economia, no combate à corrupção, na igualdade de oportunidades, no respeito às diferenças, na dignidade de todos, não importa o sexo, a cor, a religião, o saldo bancário. Aliás, princípios básicos de humanidade.


Eliane Cantanhêde: Morde e modula

Sob pressão, STF discute com demais Poderes 'modulação' de decisões incômodas

A sensação em Brasília é de que todos estão, ou estamos, paralisados e com a respiração suspensa à espera de quarta-feira, quando o Supremo começa a discutir e pode até concluir o julgamento sobre o que o Ministério Público e a Polícia Federal podem ou não fazer com dados de milhares ou milhões de cidadãos na Unidade de Inteligência Financeira (UIF, ex-Coaf).

Essa decisão diz respeito não só aos milhares de alvos de processos que fizeram festa com a decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, mas também à força-tarefa da combalida Lava Jato, aos órgãos de investigação em geral e à própria sociedade brasileira, exausta com a impunidade.

Quatro meses depois de parar quase mil investigações, Toffoli repete uma prática que vai se tornando corriqueira em julgamentos de grande impacto: a busca de uma tal de “modulação” – que no fim não dá certo. Fala-se muito em modular, mas na hora “H” não se modula nada. Melhor exemplo: o drástico recuo, por um voto, na prisão após segunda instância. Sem meio-termo, a decisão foi pura, direta. E tirou Lula da prisão.

O que é “modulação”? É a tentativa de votar a favor dos investigados e contra a vontade da sociedade, mas tentando maneirar e reduzir a avalanche de críticas. Ou seja: o STF se prepara para decidir contra o compartilhamento de dados, tão importante para o trabalho do MP e da PF, mas já pedindo desculpas e amenizando a decisão. Além de dividir responsabilidades.

No voto sobre segunda instância, Toffoli desistiu de última hora de buscar uma inviável modulação, mas empurrou o abacaxi para o Congresso, compartilhando a pressão e as críticas com o outro Poder. Aliás, um parênteses: em artigo ontem no Estado, o ministro Sérgio Moro bem destacou que, ao admitir que o Congresso poderia alterar o Código do Processo Penal e a própria Constituição, o presidente do Supremo admitia também, automaticamente, que a presunção de inocência não é cláusula pétrea da Constituição. Logo, está sujeita a “uma conformação diferente” da decisão do STF.

Assim como a segunda instância dizia diretamente a Lula, mas também a milhares de condenados e presos, a decisão de amanhã sobre o Coaf diz respeito a Flávio Bolsonaro, mas igualmente a milhares de sujeitos a investigações. Se não conseguiu soltar Lula sem favorecer também os demais, dificilmente o STF vai livrar Flávio sem beneficiar os outros milhares.

Apesar de muito difícil, Toffoli tenta uma modulação que evite um efeito tão abrangente e votos envergonhados. É por isso que ele vem conversando e ouvindo muito, inclusive Augusto Aras (PGR), Roberto Campos Neto (BC) e André Mendonça (AGU), enquanto o ministro Gilmar Mendes se reúne com o secretário e o procurador da Receita.

A intenção é buscar informações e compreender o sistema de troca de informações da nova UIF, da Receita e do próprio BC, para não apenas e simplesmente proibir a remessa de dados para o MP e a PF sem autorização judicial – como decidiu Toffoli originalmente no caso de Flávio. “Serão normas de organização e procedimento, o que não pode é continuar essa terra de ninguém”, disse à coluna Gilmar Mendes.

Pode-se concluir que o STF tenta chegar a fórmulas um tanto milagrosas para a UIF e a Receita compartilharem dados de uns, não de outros, dados tais, não quais. No caso da segunda instância, não funcionou. Vamos ver se agora funciona.

Ainda amanhã, o ministro Alexandre de Moraes recebe do deputado Rodrigo Maia a proposta da Câmara para “modular” o pacote anticrime de Moro e se antecipar ao Senado, onde as medidas estão na pauta de amanhã na CCJ. Toffoli já desistiu de brincar de “Grande Irmão” e tudo pode acontecer nesta quarta. A pressão da sociedade não é em vão.


Eliane Cantanhêde: É ‘toma lá, dá cá’?

Toffoli e Bolsonaro precisam afastar a suspeita de ‘toma lá, dá cá’ entre Executivo e Judiciário

O ano está terminando? Depende para quem, porque o Supremo, que está passando por 2019 sob pressão, ainda tem longos dias pela frente até o recesso de fim de ano e promete um 2020 também agitado. Desde já, 2019 está adentrando 2020 no STF. Isso, aliás, vale não só para o Supremo, mas particularmente para seu presidente, Dias Toffoli.

A percepção da sociedade sobre a mais alta corte do País já foi muito boa, em especial no julgamento do mensalão, considerado o mais importante da história no combate à corrupção. Mas essa percepção foi amarelando e não anda lá às mil maravilhas.

Há uma forte incompreensão sobre a liberação em série de presos e às vezes corretas e necessárias advertências contra o excesso de prisões preventivas e temporárias, nem sempre deferidas dentro da estrita legalidade e geralmente se estendendo além do razoável, ou permitido.

A isso se some a divisão do STF, o ambiente belicoso e a exposição pela TV Justiça das trocas de desaforos e insinuações entre aqueles senhores tão solenes em suas togas e nem tão elegantes na manifestação de suas divergências. Todos esses fatores somados, o resultado é uma suspeita que se consolidou por toda parte: a de “acordão” para esvaziar a Lava Jato.

O caldo entornou de vez, principalmente no caldeirão das redes sociais, com a reviravolta na autorização da prisão após condenação em segunda instância, com um voto estranho e desconfortável de Toffoli, que foi quem levou a questão à pauta apesar de não haver fato novo nem mudança no plenário e, no fim, num voto mais do que estranho, jogou a confusão no colo do Congresso.

Câmara e Senado que se virem para trazer de volta a regra, confirmada pela terceira vez e agora derrubada pelo mesmo plenário do STF, o que torna tudo ainda mais irritante para uma opinião pública aflita e exaurida com a eterna impunidade e injustiça quando se trata de réus ricos e poderosos.

Nesse mix de erros, de condução, de decisões e de comunicação, confundindo os cidadãos, desgastando a imagem da instituição e subtraindo confiança na Justiça, só faltava uma coisa: o presidente do Supremo personificar esses erros e concentrar a ira das redes. Não falta mais.

A revelação de que Toffoli exigiu do Banco Central o acesso aos relatórios financeiros produzidos nos últimos três anos pelo Coaf, agora em novo endereço e rebatizado como Unidade de Inteligência Financeira (UIF), joga muito mais lenha na fogueira.

Para piorar, essa decisão de Toffoli veio a reboque de seu ato monocrático que suspendeu centenas de investigações da PF e do Ministério Público com base em dados fornecidos pelo então Coaf sem autorização judicial, beneficiando alvos de toda a natureza.

E... Toffoli assim agiu atendendo pedido justamente da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República.

Enquanto Toffoli se recusa a considerar o recurso do procurador-geral da República, Augusto Aras, e desistir de ter acesso a dados financeiros de 600 mil cidadãos, o plenário do STF se prepara para julgar nesta quarta-feira, dia 20, se mantém ou não aquela primeira decisão do presidente da Casa, favorecendo o senador Flávio e os investigados com base no Coaf.

Esse julgamento é mais um importantíssimo neste 2019 sem fim, porque traz de volta o já bem conhecido Queiroz e joga o foco em Flávio Bolsonaro, Toffoli, Supremo e o próprio presidente Jair Bolsonaro. Ele alardeia que não se rendeu ao “toma lá, dá cá” do Executivo com o Legislativo, mas o que precisa muito é afastar a suspeita de que o “toma lá, dá cá” passou a ser com o Judiciário. Mais grave ainda: dele com Toffoli.


Eliane Cantanhêde: Fogo no circo

A polarização do Brasil extrapola fronteiras e incendeia a região

A Bolívia ia bem à esquerda, o Chile era um exemplo na centro-direita e, de repente, os dois regimes implodem, com o povo na rua, a oposição fortalecida, os governos acuados. O que há em comum entre eles? A insatisfação crônica da sociedade, que agora usa o poder das redes sociais e cria falsos mitos para por fogo no circo.

Foi-se o tempo dos movimentos que se alastravam em ondas e na mesma direção na América do Sul. Hoje é de cada um por si, com eleições incertas no Uruguai, a volta do nefasto kirchnerismo na Argentina e protestos grandiosos no Chile, Bolívia, Equador e Peru. Sem falar na estraçalhada Venezuela.

O mundo abriu os olhos. E, quando se olha para a América do Sul, depara-se com o Brasil, o maior, mais rico e mais populoso país da região, o que costumava dar as cartas e agora vive suas próprias tensões internas, sujeito aos reflexos das crises ao redor.

Aqui também se dá, como nos vizinhos, mas sem confrontos de rua, tiros e mortes, o grande embate entre a velha esquerda e a nova direita, entre o populismo de Lula e um Bolsonaro que tenta se equilibrar entre o seu reacionarismo e o neoliberalismo de Paulo Guedes.

Os 13 anos de Evo Morales na Bolívia trouxeram desenvolvimento e inclusão social. Enquanto o Brasil passou por dois anos seguidos de recessão e patinou em 1% de crescimento ao ano, a pequena Bolívia, país mais pobre da região, atingiu a média de 4,9%. E, se o Brasil atravessa governos e regimes à direita e à esquerda sem efetiva inclusão social, organismos internacionais atestam que a Bolívia reduziu a miséria à metade.

Então, o que deu errado? O grande erro de Evo Morales, o mais pragmático dos “bolivarianos”, foi institucional. Foi a crença de que só ele é capaz de “salvar” o país. Foi assim, seguindo os passos de Hugo Chávez, que ele driblou a decisão popular contra um quarto mandato e ganhou num Judiciário amigão o direito de concorrer. Daí à denúncia de fraude foi um pulo.

A sociedade reagiu dando palanque para os líderes de oposição e pedindo a interferência ainda velada das Forças Armadas. Mas a guinada começa mal. Além do gesto da renúncia, Morales pediu aos adversários que pacifiquem a nação, mas o oposicionista Luís Camacho radicalizou, exigindo a prisão dele e seus aliados. Para que? Se Morales, o vice, o governo e a cadeia sucessória ruíram por inteiro, isso só serve para acirrar os ânimos. Vitoriosos devem ter grandeza.

No Chile, como já explorado, a questão não foi política e social, na medida em que os indicadores iam bem, mas o povo ia mal. Diz-se que quem tem fome tem pressa. E quem está na base da pirâmide grita que as fórmulas de crescimento não estão gerando igualdade e inclusão.

Os ingredientes e as palavras de ordem já pipocavam no Brasil e emergem com força quando Lula sai da cadeia atacando os três pilares do governo: Bolsonaro, Guedes e Moro. O governo contra-ataca com uma arma válida contra Cristina Kirchner na Argentina, mas é acessória no Chile e na Bolívia: o combate à corrupção. Lula acusa o regime Bolsonaro de antipovo, Bolsonaro e Moro martelam que Lula é “condenado” e “criminoso”.

Não se trata de um debate sobre o que é melhor para o País e para todos, mas uma guerra de acusações e de desconstrução de adversários, em que vale tudo, principalmente o jogo sujo das fake news. Isso piora muito porque Lula precisa de Bolsonaro para reanimar sua tropa e Bolsonaro usa Lula para reaglutinar o bolsonarismo.

A reunião dos Brics começa hoje em Brasília com a Rússia acusando a direita de ter dado um “golpe” na Bolívia e os investidores pisando no freio. Quem quer investir numa confusão dessas, que vem de fora para dentro, mas encontra campo fértil dentro do próprio Brasil?


Eliane Cantanhêde: Corredor polonês

Com sociedade entre Lula e Bolsonaro, centro progressista produz tertúlias e ‘papers’

Já nos primeiros instantes do fim da prisão após segunda instância, com a volta da impunidade, confirmou-se que o objetivo não era o princípio da “presunção de inocência” nem favorecer cinco mil, mil, cem ou dez condenados, mas apenas um: Luiz Inácio Lula da Silva. Todas as peripécias, jeitinhos e ousadias foram em nome do “Lula Livre”, que embaralha o jogo político e recrudesce a polarização entre a velha esquerda e a nova direita.

O símbolo desse esforço concentrado é o ministro Gilmar Mendes, que de petista não tem nada, mas produziu as mais sinceras manifestações ao longo do ano. “Chega, já está na hora de tirar o Lula da cadeia.” “O País está devendo um julgamento justo para Lula.” E, na véspera, quando o resultado de 6 X 5 era dado como líquido e certo, mas havia fiapos de dúvidas quanto à “modulação”, o ministro só tinha uma certeza: “Lula vai ser solto”. E foi.

Os obstáculos ainda não acabaram, porém. Lula está solto, mas continua condenado em primeira instância, pelo TRF-4 e pelo STJ no caso do triplex do Guarujá e responde pelo sítio de Atibaia, Instituto Lula e apartamento vizinho em São Bernardo, tráfico de influência na compra dos Gripen da FAB, “quadrilhão do PT” na Petrobrás e propinas da Odebrecht. Ufa! A Justiça e o Supremo terão um trabalhão para completar o serviço.

Em paralelo, o Congresso tende a deixar em segundo plano as essenciais reformas fiscal, administrativa e tributária para se digladiar em torno de uma Emenda Constitucional que reintroduza a prisão após a segunda instância e encerre o brusco vai-e-vem do Supremo, que derrete a credibilidade da justiça na sociedade brasileira.

Assim, o Judiciário vai continuar dando tratos à bola para garantir Lula livre, leve e solto e Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre vão se esfalfar para, em movimentos opostos, assegurar que as reformas de Paulo Guedes andem e a prisão em segunda instância suma de vista. Enquanto isso, confirma-se que a balança se inverteu. A Lava Jato afunda e Lula emerge bradando contra a “banda podre” do Estado, que ele nomeia: Polícia Federal, Ministério Público, Receita Federal e a Justiça que agora arrisca sua própria credibilidade e a confiança da sociedade para livrá-lo do cárcere.

Atenção, porém: Lula pode sair por aí em caravana pelo País, desancar Sérgio Moro e a Lava Jato, condenar o governo e provocar o presidente Jair Bolsonaro, mas não pode, ao menos por enquanto, se arvorar candidato a coisa nenhuma. A decisão de quinta-feira do Supremo foi suficiente para soltá-lo, não para anular a condenação e a inelegibilidade de oito anos. Para isso, o Supremo teria de ter a incrível audácia de aprovar a suspeição de Sérgio Moro no caso do triplex e anular a condenação. Nem o presidente Dias Toffoli, lendo reportagens de jornais em julgamentos históricos, seria capaz de tanto.

Ou seria, nesse ambiente surreal?

Bolsonaro no Planalto e Lula livre são uma combinação explosiva. O presidente é o que a direita insana sempre pediu a Deus: um líder populista civil (no caso híbrido), que sabe pouco, fala muito e não tem pruridos para defender os maiores absurdos e abrir fogo contra a cultura, o meio ambiente, a mídia, os direitos humanos e parceiros internacionais tradicionais. O outro é o único que a esquerda conseguiu produzir: também populista e sem pruridos, boa lábia, capaz de mover as massas.

E o tal “centro progressista” de que Fernando Henrique tanto fala? Vai continuar fazendo tertúlias intelectuais, “papers” teóricos, entrevistas racionais que atraiam aplausos. É bonito, mas nada prático quando o pau está comendo. Cidadãos do sul ao norte estão num corredor polonês entre Lula e Bolsonaro, sem ter para onde correr. Salve-se quem puder.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro passa a ter algo novo, a oposição

Juntando as duas pontas, significa que a polarização política do País, já forte e irracional, deve atingir níveis praticamente insuportáveis

O ex-presidente Lula já saiu da prisão chamando o presidente Jair Bolsonaro para briga. Depois de correr solto neste seu primeiro ano de governo, digladiando contra a mídia e inimigos imaginários, Bolsonaro passa, portanto, a ter finalmente oposição. E não uma oposição qualquer.

Juntando as duas pontas, significa que a polarização política do País, já forte e irracional, deve atingir níveis praticamente insuportáveis. De um lado, as esquerdas reunidas em torno de Lula, tentando se livrar e erros e acusações que não evaporam com o "Lula Livre". Do outro, a direita pendurando-se em Bolsonaro, fingindo que não há nada demais na defesa de tortura e AI-5 nem nos ataques ao meio ambiente e aos aliados históricos do Brasil no mundo.

O que ainda não está claro é em que arena esse embate vai ocorrer. Lula terá força para arregimentar multidões nas ruas das capitais e grandes cidades? Bolsonaro conseguirá reagir à altura? E até que ponto pode contagiar o Congresso, numa época de votações de grandes reformas estruturais?

Os precedentes não indicam uma guerra campal, depois que o impeachment de Dilma Rousseff ocorreu sem grandes manifestações pelo País ou protestos diante do Congresso Nacional. Na prisão de Lula ninguém matou, ninguém morreu, como previra a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. E até a reforma da Previdência passou tranquilamente, sem oposição de rua (ou gramados).

No seu discurso a militantes, logo ao sair da carceragem da PF em Curitiba, Lula elegeu aliados e inimigos. Os aliados são os de sempre, o PCdoB, o PSOL, a CUT, o MST... Os inimigos são Bolsonaro, tratado com provocações, e a força-tarefa da Operação Lava Jato, acusada de "banda podre" do Estado. Aí incluídos Justiça, Ministério Público e Polícia Federal, que, segundo ele, "não prenderam um homem, tentaram matar uma ideia".

Foi uma repetição praticamente literal do que o mesmo Lula já tinha dito quando da prisão, 580 dias antes. Isso reforçou a sensação de que ele entrou e saiu com o mesmo discurso, os mesmos alvos e os mesmos amigos do peito, como a própria Glesi. Aliás, Lula confirmou que vai casar com a socióloga Rosângela Silva e não dedicou uma única palavra a Dona Marisa, companheira de décadas, mãe de seus filhos.


Eliane Cantanhêde: A guerra continua

Não terá quebra-quebra, mas Dodge vê 'triplo retrocesso' em decisão do Supremo

O Supremo finalmente cumpriu a ameaça de derrubar a prisão após condenação em segunda instância – instrumento importantíssimo contra os crimes, em especial de colarinho branco –, mas é bom que se saiba que a guerra continua. Agora num outro foro também improvável, mas igualmente legítimo: o Congresso Nacional.

“Sim, a guerra continua”, concordou ontem a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge, descartando o frágil argumento de que o “trâmite em julgado”, que se contrapõe à prisão em segunda instância, é cláusula pétrea da Constituição. Não é. Logo, pode ser mudada por Proposta de Emenda Constitucional (PEC).

Se fosse cláusula pétrea, argumenta ela, o Supremo jamais poderia ter admitido a prisão após a condenação em segunda instância, como até ontem, e, aliás, teria votado por unanimidade contra sua aplicação.

Como PGR (aliás, a primeira mulher a ocupar o cargo), Dodge assinou longo parecer contra nova mudança de entendimento. E, muito antes, quando a prisão em segunda instância voltou, era procuradora junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atuou para o cumprimento antecipado da pena passasse a valer rapidamente.

Dodge, que tem no currículo também três anos na prestigiada universidade de Harvard, elogia a firme decisão da ministra Carmen Lúcia que, em seus dois anos de presidência do STF, se negou peremptoriamente a colocar em pauta, mais uma vez, uma questão já decidida pelo plenário em três oportunidades muito recentes.

“Não há fatos novos nem mudança na composição do plenário”, diz a procuradora, repetindo quase que literalmente os argumentos de Carmen Lúcia, que enfrentou ameaças, agressões, insinuações e ironias, inclusive de colegas e em sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça, mas não arredou pé da sua convicção. Seu sucessor na presidência, Dias Toffoli, esperou mais de um ano para fazer o oposto e por em votação, mas já assumiu determinado a fazê-lo. Tardou, mas não falhou.

Como vem dizendo Dodge, o fim da prisão após segunda instância é um triplo retrocesso: falta de estabilidade, com idas e vindas; perda de eficiência do sistema, com a volta de processos penais infindáveis, recursos protelatórios e prescrições; risco de perda de credibilidade junto à sociedade, pela eterna sensação de impunidade, principalmente de réus ricos e poderosos.

Assim como os especialistas militares defendem pesados investimentos em Defesa e Forças Armadas para garantir o “papel dissuasório” dos países, mesmo os mais pacíficos, como o Brasil, Raquel Dodge lembra da importância da “força inibitória” da Justiça. Uma justiça efetiva, ágil e realmente justa ( pleonasmo necessário) é fundamental para inibir ímpetos criminosos e, portanto, os próprios crimes. A estabilidade e a credibilidade são fatores inalienáveis nessa direção.

Quanto à questão política, sobre a qual Dodge não fala, há que se destacar que se pode apoiar ou discordar da decisão do Supremo, mas esqueçam a possibilidade de rebeliões, manifestações imensas, tumultos.


Eliane Cantanhêde: Cai mais um general

Há um temor de uso político de umas das principais marcas do Brasil: a das Forças Armadas

Os dois governos Bolsonaro estarão mais uma vez em choque hoje, quando o ministro Paulo Guedes entrega ao Congresso a segunda onda de reformas, enquanto os militares, perplexos, contabilizam a perda de mais um general sob o comando do capitão. E não uma perda qualquer. O general de quatro estrelas Maynard Santa Rosa é tão preparado quanto querido entre os colegas de farda.

A queda de Santa Rosa da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) por falta de suporte do Planalto já seria em si um bom motivo para insatisfação entre os disciplinados militares. Mas se torna ainda mais potencialmente explosiva pela sequência de generais que saíram do governo já no primeiro ano, por demissão ou decisão.

A demissão mais mal digerida foi a do general Carlos Alberto dos Santos Cruz da Secretaria de Governo. Assim como Santa Rosa, ele também despachava no Planalto, a passos do gabinete presidencial. Logo, gozava de confiança do presidente Jair Bolsonaro. Essa confiança, porém, esbarrou na força de Olavo de Carvalho, o guru, ideólogo ou seja lá o que for, que mora na Virgínia (EUA) há anos e, de lá, emana seu poder sobre os filhos de Bolsonaro, o chanceler, o ministro da Educação, o assessor internacional e o futuro embaixador nos EUA. Entre um general de primeiríssima linha e um guru de quinta, o presidente optou pelo guru.

Também foram defenestrados os generais Jesus Corrêa (Incra), Juarez Cunha (Correios), Franklimberg de Freitas (Funai), um atrás do outro, sem que se ouvisse um pio da Defesa, do Exército, muito menos da Marinha e da Aeronáutica, primas pobres e com baixa representação no governo.

O silêncio, porém, não pode ser confundido com amém, concordância, aplauso. Muito pelo contrário. Trata-se de uma cultura, de uma educação, de um comportamento construído ao longo de décadas de história militar e de aprendizado nas casernas e ratificados pelas oito diretrizes traçadas pela Defesa no início do governo. A primeira estabelece que militar não fala.

Longe de microfones e câmeras, o clima é outro. Há surpresa e muitas conversas entre velhos companheiros de farda, que dividiram cursos sofisticados, passaram por provas difíceis, missões duras, não raro em locais inóspitos e longínquos, muito diferentes de suas cidades de origem, do seu habitat. Impera a disciplina, mas não morreu a crítica – e a autocrítica.

Como se sentem os oficiais que conhecem bem a integridade e a força moral de Santos Cruz? E a competência de Santa Rosa, que sobreviveu a um curso do Exército no qual só 20% a 25% dos inscritos chegam ao final? Felizes, certamente eles não estão.

A retumbante declaração do deputado Rodrigo Maia sobre o general Augusto Heleno ecoou em setores das Forças Armadas. Não exatamente por discordância. Segundo o presidente da Câmara, Heleno “virou um auxiliar do radicalismo do Olavo de Carvalho” e acrescentou: “É uma pena que um general da qualidade dele tenha caminhado nessa linha”. O chefe do GSI, muito querido entre os colegas, nem imagina quantos deles podem estar pensando assim.

Líder natural, com um currículo invejável, o que se esperava de Heleno é que agregasse inteligência, bom senso e equilíbrio ao governo e ao presidente. Ao contrário, suspeita-se que ele esteja ajudando a atiçar o pior lado de Bolsonaro.

Nesse clima, o presidente da República poderá cometer um grande erro se emprestar o nome, a força do cargo e o capital eleitoral para um tal Partido Militar Brasileiro. É o fim da picada. Só vai reforçar a sensação, que começa a se espraiar entre os militares, de que Bolsonaro está fazendo uso político de uma das marcas de maior credibilidade no Brasil: a marca Forças Armadas.


Eliane Cantanhêde: Leões, hienas e abutres

As feras estão à solta, mas quem é mais perigoso: hienas ou leões pró-ditaduras?

Assim como o vídeo das hienas, os movimentos do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos têm um objetivo: mobilizar os “leões conservadores e patriotas”, ou seja, os bolsonaristas. Não exatamente para defender a Pátria, mas para guerrear contra os inimigos, reais ou imaginários.

Bolsonaro e seu filho Carlos brincaram de empurra-empurra no caso do vídeo, retirado das redes depois de poucas horas e muitas reações. Na peça, Bolsonaro é um leão atacado por “hienas”, bichos de péssima reputação: Supremo, partidos, mídia, OAB, ONGs e até a ONU. No final, o “leão conservador e patriota”, representando os bolsonaristas de toda ordem, vem unir-se a ele contra as feras.

Há dúvidas, porém, sobre quem são as feras, principalmente depois que o líder do PSL na Câmara Eduardo Bolsonaro, ex-quase embaixador em Washington, dispensou metáforas e filmetes ridículos e ameaçou o País com a volta do AI-5, o mais demoníaco instrumento formal da ditadura militar, que permitiu fechar o Congresso, perseguir ministros do STF, censurar a imprensa, suprimir as garantias individuais.

Os dois depoimentos nebulosos do tal porteiro do condomínio de Bolsonaro no Rio serviram de carne aos leões e de munição para a guerra contra as instituições. A longa reação do presidente, de madrugada, num país longínquo, saiu da seara da legítima defesa para a do ataque à “hiena” mídia e ao governador Wilson Witzel. Mais uma vez, soou como chamamento irado aos “leões conservadores e patrióticos”.

Em sua fala, Bolsonaro referiu-se ao que considera uma perseguição implacável contra ele, seus filhos, sua mulher, seus irmãos, seu governo, apontando motivos eleitorais no caso de Witzel e ideológicos no da mídia. Se o ex-presidente Lula chegou a ver, da prisão, deve ter no fundo concordado com tudo, já que ele, tirando o nome de Witzel, tinha exatamente as mesmas reclamações dessa mídia “canalha” que divulga o que eles não querem.

Nas redes, Carlos juntou “abutres” às “hienas”. Na CPI das Fake News, Eduardo guerreava com o deputado Alexandre Frota, um ex-“leão conservador e patriótico” que virou tucano e acaba de ser convertido em hiena. Um zoológico cômico, não fosse trágico.

Tira o foco dos resultados econômicos e comerciais da viagem do presidente a países asiáticos e árabes. Ninguém mais fala de mudar a embaixada de Israel para Jerusalém e ele volta para casa com promessas de investimentos de US$ 10 bilhões só da Arábia Saudita. Uma ditadura brutal, mas isso é outra história.

Enquanto Bolsonaro e os filhos guerreiam contra as instituições, Paulo Guedes e os ministros sérios se articulam exatamente com as “hienas e abutres” da Câmara, Senado e STF, para retomar o desenvolvimento, destravar a economia, reduzir o dirigismo estatal e, em consequência, como eles esperam, gerar inclusão social.

Todo esse otimismo com um círculo virtuoso ocorre apesar dos Bolsonaro, que parecem aguardar ansiosos os dois próximos capítulos para defender autoritarismo e convocar os “leões”.

Primeiro, o fim da a prisão em segunda instância no STF, cutucando onças e leões, conservadores ou não, com vara curta. A leãozada já estará então a ponto de bala para o capítulo final: o Lula livre. Nada mais forte e eficaz para desenjaular de vez os “leões conservadores e patrióticos” do que soltar essa hiena gigante.

Ninguém jamais dirá isso no Planalto, mas para quem adora AI-5, Ustra, Pinochet e Stroessner é uma festa o STF derrubar a prisão de segunda instância e livrar Lula, criando o ambiente ideal para os leões. Nesse script, o porteiro da Barra seria o novo Márcio Moreira Alves: apenas um pretexto. Ainda bem que tudo não passa de pura ficção.


Eliane Cantanhêde: Macron, Macri...

Depois da França, nova guerra ideológica de Bolsonaro é com a fundamental Argentina

Quem atacou primeiro, Bolsonaro ou Macron, Bolsonaro ou Alberto Fernández? Cada um tem sua versão, mas o resultado é que as relações do Brasil com a França se deterioraram e com a Argentina têm um horizonte sombrio. E para que? Quem lucra com isso?

O presidente Jair Bolsonaro não deveria se meter nas eleições da Argentina, apoiando um candidato já então virtualmente derrotado e destratando a chapa favorita e afinal vitoriosa. Nem por isso Fernández deveria, já no primeiro instante, lançar o “Lula livre”. Uma provocação boba, além de um desrespeito ao Judiciário brasileiro. E a guerra continua.

Brasil e Argentina são parceiros inseparáveis, gostem ou não seus presidentes. Juntos, lideram o Mercosul, somam dois terços do território, da população e da economia de toda a América do Sul e, apesar de muito menor do que os gigantes China e EUA, a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial brasileiro, logo atrás dos dois. Crises nesses casos cruzam fronteiras.

As ondas na América do Sul são historicamente coordenadas: o populismo a la Peron e Vargas, as ditaduras militares monitoradas por Washington no Uruguai, Paraguai, Argentina, Brasil e Chile, a redemocratização com hiperinflação de Alfonsin e Sarney, a estabilização econômica (ou “neoliberalismo), liderada pelo Brasil e disseminada por toda parte.

A onda seguinte foi um tsunami, o “bolivarianismo” de Hugo Chávez na Venezuela, que arrastou Bolívia, Equador, Argentina, Uruguai e, rapidamente, também Paraguai, mas deixando de fora Colômbia, Chile e Peru, que se mantiveram fiéis à abertura do mercado, à desestatização e à globalização.

Com a debacle venezuelana e os desvios da esquerda no Brasil, os “neoliberais” pareciam o paraíso, soprando ventos conservadores que, de certa forma, reforçaram e vitória de Bolsonaro na potência regional. O paraíso, porém, não era tanto assim e o Chile, sempre citado como exemplo de estabilidade política, econômica e social, virou um verdadeiro inferno com o governo Sebastián Piñera. A classe média, e não só ela, tinha sido expulsa do paraíso.

A guinada à direita, desde o Cone Sul até os Países Andinos, excluía a Venezuela, conferia ares pragmáticos à Bolívia de Evo Morales e deixava o México falando sozinho à esquerda no Norte. Entretanto, não parece ter ido muito longe. E o que se tem é que a hegemonia da esquerda foi fugaz com Chávez, Lula, Kirchner, Mujica, Lugo e Rafael Correa e, de certa forma, Bachelet. E a direita não se consolidou com Bolsonaro, Piñera e afins.

Há uma polarização em que ninguém tem razão, ninguém ganha, todos perdem. Assim como o Brasil não enxerga vida além de Lula e Bolsonaro, o subcontinente se digladia entre uma esquerda populista e oportunista e uma direita mesquinha, atrasada, reacionária. Que tal tentar equilibrar responsabilidade fiscal com inclusão social? Rigor com generosidade? Deveres para os poderosos e direitos para os mais desvalidos?

Enquanto a guerra ideológica corre solta, o maior problema do Brasil e dos países à sua volta continua sendo o mesmo, onda atrás de onda, regime atrás de regime, governo atrás do governo, líder atrás de líder: a desigualdade social. A maioria parece conformada, mas costuma produzir surpresas. As lições do Chile são preciosas para todos os vizinhos da região, particularmente para Bolsonaro e Paulo Guedes.

Alerta
Bolsonaro fala em criar o Partido da Defesa Nacional, para chamar de seu e abrigar a leva de majores, delegados, generais e capitães do PSL. Nada poderia ser pior para as Forças Armadas, que não estão sabendo avaliar devidamente os riscos da contaminação política dos quartéis. Isso nunca deu certo.


Eliane Cantanhêde: Laranjal e rachadinha

Quadro partidário desolador: o velho caducou, o novo ainda não nasceu

Na “velha política”, o governo de José Sarney alçou o MDB à condição de “maior partido do Ocidente” e os de Fernando Henrique, Lula e Dilma inflaram o PSDB e o PT, que, aliás, se digladiam por décadas. Mas, na “nova política”, ocorre o contrário: já no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, o PSL está às turras e sob risco de voltar a ser nanico, como antes de 2018.

A única comparação possível é com o governo Fernando Collor, que inventou o meteórico PRN de triste memória e ambos afundaram juntos, rapidamente. A diferença é que Bolsonaro e PSL se desvencilham um do outro, mas à tona. O presidente tem o governo, a popularidade e atrai para São Paulo a CPAC, o maior evento da direita internacional, um “Foro de São Paulo” do lado oposto. Mas, na partilha, o PSL fica com a grana.
O quadro partidário é desolador. Com o recorde (talvez mundial) de 32 siglas registradas no TSE, o Brasil não tem partidos reais, programáticos, com líderes fortes. Quantidade não é qualidade. O gigante MDB está à míngua, o PSDB e o PT não são nem sombra do que já foram, o PSL não dá para o gasto.
Se o “velho” caducou, o “novo” ainda não nasceu. Bolsonaro precisava de um partido, o PSL precisava de um candidato. Foi um casamento de conveniência. O divórcio é só uma questão de tempo. Bolsonaro, que pula de galho em galho, já foi do PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC e, só “por enquanto”, está no PSL, onde entrou de última hora, abandonando o Patriotas (PEN) na porta da igreja.
O presidente até já recebeu ostensivamente seu consultor para assuntos de partidos – ou melhor, de troca de partidos – e, aparentemente, tem pouco a perder. Já o PSL vai perder quadros, bancada e pode voltar à insignificância, mas tem algo literalmente precioso: muitos milhões do Fundo Partidário e do fundo eleitoral. Já seria ótimo, mas com uma eleição municipal bem aí, em 2020, é excelente.
Agora é saber o que o presidente pretende criar: uma sigla para chamar de sua ou juntar duas já existentes, como o PEN a outro “nanico”. O PSL tem 53 deputados federais e quem sai de um partido fora da “janela partidária” pode perder o mandato, a não ser que saia por “justa causa”. Por isso, Bolsonaro pede auditoria interna: para descobrir corrupção e criar a tal “justa causa”. Até lá, só 20 dos 53 (ou seja, menos da metade) assinaram uma nota meio tortuosa, criticando a cúpula do PSL e exigindo “novas práticas”. Logo, assumindo o lado de Bolsonaro contra Luciano Bivar.
Enquanto isso, a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, namora o DEM; o líder do partido no Senado, Major Olímpio, dispara contra os filhos do presidente; Alexandre Frota troca desaforos impublicáveis com eles; e Janaina Paschoal defende “candidaturas avulsas”. Isso só em São Paulo, onde, aliás, João Doria está pronto para acolher o espólio. Mas tem o laranjal de Minas, de Pernambuco e do Rio, onde Wilson Witzel quer ser o novo Bolsonaro do PSL em 2022. Aliás, Bolsonaro tenta a versão heroica de que quer distância de laranjas, mas e das “rachadinhas”, outra praga típica da “velha política” muito ativa na “nova”? Lembram do Queiroz?
A popularidade de Bolsonaro está nos ricos e a de Lula e do PT, no lado oposto, nos pobres. O Data Popular, especializado na classe C, ou média baixa, muito importante para consumo e eleições, acaba de fechar uma pesquisa mostrando que a percepção sobre corrupção é acachapante: 97% acreditam que há corrupção no Legislativo; 96%, nos empresários; 94%, no Executivo e no Judiciário. Ou seja: governos vêm, governos vão, partidos sobem, partidos descem e o “povo” continua com a certeza de que a corrupção é incurável. Bolsonaro está perdendo a marca do combate à corrupção.

Eliane Cantanhêde: Brasil first?

Lula com Sarkozy, contra os EUA, e Bolsonaro com Trump, contra a França. E o Brasil?

Donald Trump está para Jair Bolsonaro assim como Nicolás Sarkozy esteve para Lula e essas duas situações comprovam a máxima da política externa: amigos, amigos, negócios à parte. Na hora de prometer mundos e fundos, é fácil. Na hora de cumprir o prometido, a história é bem outra. O que vale para Trump é “America first”, assim como o que valia para Sarkozy era “La France avant tout”.

Lula se encantou com Sarkozy, caiu na lábia dele e por pouco não atrelou todo o arsenal brasileiro a uma única fonte: a França. Depois de fechar com os franceses o ambicioso Prosub, programa de submarinos da Marinha, inclusive o submarino de propulsão nuclear, Lula atuou o tempo todo para renovar a frota da FAB com jatos supersônicos do país.

Havia três concorrentes, o Rafale da francesa Dassault, o F-18 da norte-americana Boeing e o Gripen NG da sueca Saab. Depois de se encontrar três vezes com Sarkozy num único ano, coisa rara em relações bilaterais, Lula chegou a criar uma saia-justa ao anunciar a vitória do Rafale antes do fim do relatório técnico da FAB. O então ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez um malabarismo para desmentir o presidente.

Concluído o relatório, com milhares de páginas, o Rafale ficou no terceiro e último lugar, atrás do F-18 e do Gripen, que acabou sendo finalmente escolhido – mas só no governo seguinte, de Dilma Rousseff, quando o namoro de Lula com Sarkozy já tinha terminado melancolicamente.

A obsessão de Lula teve dupla motivação: a empatia pessoal com Sarkozy e a crença de que uma tal “aliança estratégica” do Brasil com a França seria decisiva para combater o “mundo unipolar” – algo como “colocar os EUA no seu devido lugar”. A fantasia ruiu quando o Brasil e a Turquia operaram juntos o acordo do Irã, contra o armamento nuclear do país. Um dos pilares da estratégia era o voto da França no Conselho de Segurança, mas, na última hora, Sarkozy tirou o corpo fora, votou com Washington e deixou Brasil e Turquia a ver navios.

Há que se aprender com a história, principalmente quando se trata de dois lados da mesma moeda: a ideologia empurrava Lula para a França contra os EUA; a ideologia trocada de Bolsonaro joga o Brasil no colo dos EUA, contra a França. E onde fica o interesse do Brasil nesses dois casos?

Diplomatas de diferentes gerações estão perplexos com o excesso de reverência, até de encantamento, de Bolsonaro com Donald Trump, que já foi até comparado a Deus num agora famoso artigo do chanceler Ernesto Araújo. Trump passa, mais cedo ou mais tarde, mas os EUA ficam, o mundo fica e nunca se inventou nada melhor em política externa do que o velho e bom pragmatismo. Adotado, aliás, pelos excelentes diplomatas dos governos Geisel e Figueiredo, no fim da ditadura.

Ao receber Bolsonaro no Salão Oval da Casa Branca, em março, Trump disse vagamente que apoia a entrada do Brasil para a OCDE, mas não disse como nem quando. Saltitante, feliz da vida, o presidente brasileiro se precipitou e já saiu pagando a dívida antes de contraí-la. Aceitou, inclusive, abdicar da classificação de país em desenvolvimento da Organização Mundial do Comércio (OMC), mesmo perdendo condições camaradas de tarifas. Foi temerário, como se vê agora.

Trump apoiou a Argentina (além da Romênia) para a OCDE, mantendo o apoio ao Brasil, mas só depois. Alegou que a Argentina pediu primeiro, sem considerar a grave situação social e econômica e a volta do peronismo.

Após Lula cair como um patinho na tal “aliança estratégica com a França”, Bolsonaro não pode cair no conto da “aliança estratégica com Trump”. Está na hora de parar, pensar e assumir o “Brasil first”.