eliane catanhede
Eliane Cantanhêde: ‘Não tem de onde tirar’
Num redemoinho, Guedes não agrada a Bolsonaro, ao Congresso, ao mercado e à opinião pública
O ministro Paulo Guedes se debate em mares revoltos, ora emerge, ora afunda, fazendo tudo para sobreviver, numa situação comum em Brasília, quando autoridades entram no redemoinho, sem forças para sair, e raramente chegam a um porto seguro. De superministro, ele agora luta para se manter à tona, com o desafio de cumprir as ordens e fazer as vontades, quase impossíveis, do chefe Jair Bolsonaro.
Com a mesma obsessão com que defende os filhos da PF, do MP, da mídia e da verdade, o presidente agora trata da sua própria campanha e mandou Guedes se virar e arranjar recursos para o “seu” Bolsa Família, com o nome de Renda Cidadã, maior valor e mais abrangência, sem mexer no teto de gastos nem criar novo imposto. Dinheiro, porém, não cai do céu nem dá em árvore – mesmo que desse, as árvores estão virando carvão.
De onde tirar o dinheiro? “Não tem de onde tirar”, responde com clareza o vice Hamilton Mourão. Não tem mesmo e tudo o que os técnicos do Ministério da Economia conseguem produzir são soluções… técnicas. Mas o mundo é político, o ano é de campanha e o presidente está no modo populista-eleitoral e “não vai tirar do pobre para dar a paupérrimo”.
Guedes está num mato sem cachorro. A primeira ideia foi garfar do eleitor aposentado ou pensionista para dar para o eleitor do Bolsa Família. Bolsonaro matou a tiros. A segunda foi impopular e de legalidade duvidosa: sacar dos precatórios, decididos pela Justiça, e do Fundeb, prorrogado a duras penas e sob a resistência do Planalto. Aí quem atirou foi o próprio Guedes. Mas foi também um tiro no pé.
Perdendo aval de Bolsonaro e atraindo desconfiança no mercado e na opinião pública, o ministro-âncora do governo está como um náufrago de apoios. Perdeu o chão quando a pandemia contaminou e derrotou a prioridade fiscal – sua especialidade –, exigindo gastos. Frágil, atraiu a cobiça de ministros, ressuscitou a alma estatizante dos militares, encolheu. Depois de derrotas internas, críticas externas e sucessivas evidências de não estar agradando, a gota d’água foi o tal “cartão vermelho”. Não foi coisa de Rogério Marinho, de Tarcísio de Freitas, e sim do presidente.
Foi aí que Paulo Guedes aprendeu que superministro não existe e convocou uma imersão, ou retiro espiritual, para ensinar o básico do poder à sua equipe: quem foi eleito, tem voto, entende de política e manda é o presidente. O que ele quer e diz é uma ordem. Ponto. E Guedes ressurgiu das cinzas decidido a recuperar prestígio e liderança na onda do Centrão. Durou pouco.
No primeiro grande lance desse “recomeço”, Guedes deu com os burros n’água. Na segunda-feira, ele participou da reunião e do anúncio, com o presidente, ministros, assessores e líderes do governo (ou seja, do Centrão) da proposta de tirar dos precatórios e do Fundeb para dar para os paupérrimos do Bolsa Família. Na quarta, o mesmo Guedes foi a público negar tudo e descartar o uso de precatórios. Tirou o corpo fora. O dito pelo não dito.
Assim como a procuradora Lindôra Araújo denunciou e “desdenunciou” o deputado Arthur Lira, nome do Planalto à presidência da Câmara em 2021, Guedes assumiu e depois renegou o uso dos precatórios, que havia afetado câmbio e Bolsa e agitado o mundo jurídico – afinal, esse dinheiro não é do governo, é dos credores do governo. A ideia é (era) dar calote?
E, assim como Bolsonaro culpa os governadores pelos seus erros absurdos na pandemia, Guedes tenta arranjar um culpado para a falta de privatizações, reformas, recursos, ações e soluções: Rodrigo Maia, que chamou o ministro de “desequilibrado”. Maia sai da presidência da Câmara em fevereiro. E Guedes, até quando fica no Ministério da Economia? Abraço de afogados.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Eliane Cantanhêde: Outubro efervescente
Eleição, economia, pandemia e o novo ministro terrivelmente amigo no STF
Outubro será agitado, com as campanhas eleitorais aprendendo a contornar a pandemia (que ainda mata mais de “dois Boeings” por dia), o governo e o Congresso convergindo para desoneração da folha de pagamentos compensada por um novo imposto e o presidente Jair Bolsonaro se divertindo com a aflição dos muitos candidatos à vaga de Celso de Mello no Supremo, porque ele já tem dois nomes no colete: Jorge Oliveira e André Mendonça.
Bolsonaro está no centro de toda essa efervescência, mexendo as peças sem se queimar e entrando no jogo apenas em caso, e na hora, da vitória. Só apoiará candidato para ganhar, só apoiará o novo imposto depois de Paulo Guedes e o Centrão garantirem o resultado e só vai anunciar o novo ministro do STF depois de ter sugado o possível dos candidatos frustrados.
Até aqui, ninguém deu bola para a eleição municipal e o interesse do eleitor continua caindo a cada pleito, mas a tendência é esquentar, com foco óbvio em São Paulo, pelo seu peso político e econômico, no Rio, pela chocante situação de governador e prefeito, e nos neófitos, como o próprio Wilson Witzel, que caíram de paraquedas pelo sopro do bolsonarismo. Elegerão seus candidatos?
Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) conta com Bolsonaro para fugir da sina de sair na liderança e acabar fora até do segundo turno. O prefeito Bruno Covas (PSDB) precisa driblar a frustração pelo segundo lugar e evitar perda de votos para Márcio França (PSB). Jilmar Tatto empurra o PT para o balaio dos nanicos e para o apoio a Guilherme Boulos (PSOL), a novidade de 2020. No Rio, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) está inelegível. Conseguirá reverter a decisão no TSE e manter o apoio de Bolsonaro?
Na economia, Bolsonaro lavou as mãos: Paulo Guedes que se vire. Se articular apoio para a “nova CPMF”, não vai atrapalhar. Guedes recupera liderança e força, o governo comemora a troca dos novatos do PSL pelo trator Centrão e a pergunta que não quer calar é: como desonerar a folha, como Guedes quer, e encorpar o novo Bolsa Família, como Bolsonaro exige, sem furar o teto de gastos nem aumentar a carga tributária? A conta fecha?
Enquanto isso, Bolsonaro acompanha com prazer o rebuliço em torno da indicação para o Supremo, com as decisões do procurador-geral Augusto Aras sempre sob suspeita por algo que ele jura que não quer e que não vai acontecer, o juiz do Rio Marcelo Bretas repreendido por participar de atos políticos e o plenário do STJ em alvoroço, como sempre, diante de uma vaga na alta Corte.
O ministro “terrivelmente evangélico”, porém, afunila para Jorge Oliveira, advogado e policial militar sem credenciais jurídicas compatíveis com o Supremo, mas secretário-geral da Presidência e filho de grande amigo de Bolsonaro. E para André Mendonça, advogado, pastor presbiteriano, ex-advogado-geral da União e atual ministro da Justiça. Transformou a Justiça em órgão de defesa do presidente, mas ainda é bem aceito no STF.
Celso de Mello deixa a Corte em 13 de outubro, após 31 anos, à frente da investigação do presidente por intervenção na PF. Celso, decano que sai, determinou depoimento presencial para Bolsonaro. Marco Aurélio, o novo decano, jogou para o plenário virtual e defendeu depoimento por escrito. O lance seguinte pode ser tirar do virtual (votos por escrito) para o plenário real (ao vivo).
Logo, Bolsonaro vai trocar um ministro ostensivamente crítico por outro terrivelmente amigo e um decano adversário por outro nem tanto e, na presidência, entrou Luiz Fux com a expectativa de maior independência em relação ao Planalto do que Dias Toffoli. O que se sabia de Supremo não se sabe mais. Exemplo: e a prisão após segunda instância, que caiu por um único voto?
Eliane Cantanhêde: Realidade paralela
Bolsonaro vai ser Bolsonaro hoje na ONU, mas, fora do Brasil, quem acredita no que ele diz?
Seria exagero de retórica dizer que o mundo inteiro estará de olhos e ouvidos abertos para o discurso do presidente Jair Bolsonaro hoje, na abertura da Assembleia-Geral da ONU, mas não há como contestar que raras vezes o mundo esteve tão atento, perplexo e preocupado com o Brasil, insistentemente chamado de “pária internacional”. Em vez de amenizar, o risco é Bolsonaro aprofundar os temores de governos, sociedades e investidores.
O tema da ONU neste ano é multilateralismo, mas Bolsonaro deve entrar na contramão, ao lado de seu mentor Donald Trump, com críticas à própria ONU, à Organização Mundial da Saúde (OMS), à Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao debate sobre questões de gênero. E, claro, ele não perderia a chance de dizer que o Brasil é “um sucesso” (?!) no combate à pandemia, na recuperação da economia e na preservação do ambiente.
Ninguém se surpreende mais com as falas de Bolsonaro, o surpreendente é que, quanto mais estrangeiros se chocam, mais brasileiros acreditam e até replicam as barbaridades sobre a covid-19, meio ambiente e uma tal ameaça comunista. O documentário O Dilema das Redes explica muita coisa, mas não como tanta gente com diploma, carreira, livros nas estantes e acesso a múltiplos meios de informação compra o que ele diz – sem ruborizar.
A covid-19 já atinge 196 países em todos os continentes, com 31 milhões de casos confirmados (na realidade, são muito mais), e vai atingir um milhão de mortos ainda em setembro, mas eles dizem que não é pandemia, só histeria da mídia. Jura? Se não é pandemia, é o quê? E, no Brasil, já estamos chegando a 140 mil mortos, mas o presidente, sem máscara, sorridente, foi aplaudido por produtores rurais ao dizer que o “Fica em casa” é “conversinha mole para os fracos”.
Amazônia e Pantanal estão em chamas e o avião do presidente teve de arremeter abruptamente por excesso de fumaça em Mato Grosso. O que ele diz? Que há “alguns focos” de incêndio, mas o Brasil é “um exemplo” de preservação. Em fila, o vice Hamilton Mourão e os ministros batem continência. A verdade, porém, é que está muito quente e seco e o risco de incêndio aumenta muito, mas há sérios indícios de incêndios criminosos e o governo foi displicente, imprevidente.
O Brasil, os fundos internacionais, oito grandes democracias, ex-ministros da Economia, ex-presidentes do Banco Central, os maiores grupos do agronegócio nacional e, evidentemente, ambientalistas das mais variadas tendências e regiões do mundo cobram ações, mas na realidade delirante do presidente, as críticas têm origem “oculta”, com o objetivo de derrubá-lo – como disse ontem o general Augusto Heleno.
Por fim, o discurso na ONU, gravado, ocorre em meio a mais um fuzuê na política externa, com a visita do secretário de Estado Mike Pompeo a Roraima, de onde lançou ameaças a Nicolás Maduro. Afora Gleisi Hoffmann e um petista ou outro, ninguém apoia Maduro e o regime da Venezuela, mas daí permitir que um terceiro país use o Brasil para atacar um vizinho? A 46 dias das eleições americanas? E quando os EUA vão presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), após 66 anos? Rodrigo Maia considerou uma “afronta”. Fernando Henrique Cardoso e ex-chanceleres classificaram como “utilização espúria do solo nacional”. E o ministro Ernesto Araújo, que serviu de escada para Pompeo, reagiu com populismo e o “sofrimento do povo venezuelano”. Não colou. E serviu para acordar Câmara, Senado, diplomatas, academia e a mídia.
Assim, o discurso de hoje não é só mais um de presidentes brasileiros abrindo, ano a ano, a Assembleia-Geral da ONU, mas uma boa chance para Bolsonaro expor ao mundo quem ele é. Aliás, será que ele acha que a Terra é plana?
Eliane Cantanhêde: E se Joe Biden vencer?
Na ONU, Bolsonaro vai fazer dobradinha com Trump e listar os ‘sucessos’ do Brasil
O que pretende o presidente Jair Bolsonaro ao abrir, na próxima terça-feira, por videoconferência, a Assembleia-Geral da ONU? Defender os interesses nacionais, ou fazer o jogo dos Estados Unidos? Seguir a regra internacional de não ingerência em assuntos políticos de outros países, ou reforçar nas entrelinhas a campanha à reeleição de Donald Trump? Badalar o Brasil e seu enorme potencial, ou o seu governo e ele próprio?
Essas perguntas podem parecer sem sentido, pois os presidentes de todas as democracias usam os palcos internacionais para defender os interesses dos seus países. Mas tudo é peculiar com Bolsonaro, inclusive na política externa. Para piorar as coisas – e as expectativas – Trump falará logo depois do “amigo” brasileiro. Ora, ora, se não vai pintar uma dobradinha entre os dois, a um mês e meio da eleição americana…
O tema da assembleia-geral deste ano é multilateralismo, o que ajuda o pas-de-deux, com Trump e Bolsonaro metendo o sarrafo em organizações internacionais fundamentais para reduzir a desigualdade, ainda mais aguda na pandemia, entre regiões, entre países e nos próprios países. Ambos tendem a criticar a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e, por que não?, a própria ONU e seus organismos de direitos humanos e meio ambiente.
Se é para apostar, o presidente também vai entrar em questões internas, para dizer ao mundo, via ONU, que o Brasil é um sucesso no combate à pandemia, no controle das queimadas e na recuperação econômica. A covid-19 já praticamente acabou, ok? E é mentira o que os brasileiros, os EUA, a Europa e o planeta sabem e os satélites confirmam: que as queimadas cresceram mês a mês na Amazônia e estão dizimando a fauna do Pantanal.
O mundo poderá, assim, assistir ao vivo e em cores a aliança entre Bolsonaro e Trump, inclusive contra a realidade. O último lance foi o Planalto ceder à Casa Branca e manter por mais três meses a isenção de tarifas para o etanol americano, prejudicando os produtores brasileiros, mas ajudando o apoio dos americanos a Trump em 3 de novembro. Indiretamente, sem saber ou querer, o setor de etanol do Brasil está pagando um preço para reeleger o republicano.
E a lista de favores de Bolsonaro a Trump, contra o Brasil, não para aí. Essa decisão, contrária aos interesses nacionais e ao Ministério da Agricultura, não foi pragmática, foi ideológica, e não é nova nem única. O Brasil já tinha aceitado também uma cota de 750 mil toneladas de trigo americano sem Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul.
Mais: o ministro Paulo Guedes havia lançado o brasileiro Rodrigo Xavier para disputar a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mas foi surpreendido duplamente: quando Trump anunciou candidato próprio, seu assessor Mauricio Claver-Carone, e quando o Planalto e o Itamaraty passaram a trabalhar pela candidatura americana e contra o adiamento da decisão para depois da eleição à Casa Branca.
Além de ser mais uma derrota de Guedes, o que é só detalhe, essa manobra tem potencial explosivo. Rompe a tradição de que os EUA não entram no rodízio para a vaga, promove um assessor de Trump sem saber se ele fica ou não na Casa Branca. E o grande temor é de que os EUA, com ajuda do Brasil, usem o BID como instrumento de pressão para jogar os países da América Latina contra a China.
E o que dizer de Bolsonaro seguindo Trump, passo a passo, na pandemia? É uma “gripezinha”, não precisa máscara, não ao isolamento social, está “no fim” (quando nem tinha chegado à metade), a culpa é dos governadores e a cloroquina é a salvação da lavoura. Tudo errado, tudo copiado, e deixa não uma interrogação, mas um grito no ar: e se Joe Biden vencer.
Eliane Cantanhêde: De retrocesso em retrocesso
Sem Lava Jato e com ‘fiscais do Messias’, logo chegaremos a 1980. Viva o Centrão!
Além da pandemia, que parece arrefecer, mas já matou mais de 125 mil brasileiros, o Brasil convive neste momento com ameaças a vários alvos bem definidos: Lava Jato, reforma administrativa, ministro Paulo Guedes e liberalismo do governo, vacinação em massa contra a covid-19 e preços de alimentos. Pairando sobre tudo isso, um mesmo fantasma que insiste em rondar o País: retrocesso.
O cerco à Lava Jato une a esquerda de Lula à direita de Bolsonaro, PGR, ministros do Supremo, cúpula e líderes do Congresso e parte da mídia, com tudo caminhando para um gran finale de efeitos explosivos: o julgamento sobre a suspeição do ex-ministro Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula, que passaria de réu a vítima e de preso a candidato.
O aperitivo foi quando a Segunda Turma do STF, por empate, que é pró-réu, anulou as condenações do Banestado e depois sustou ação penal contra o ministro do TCU Vital do Rêgo. A sobremesa, em cascata, será quando os advogados entrarem aos montes com recursos (que já devem estar prontos) pedindo “isonomia” para os seus presos e condenados.
“Se estava tudo tão errado assim na Lava Jato, vamos ter de soltar o Sérgio Cabral e devolver o dinheiro, mansões, lanchas, joias e diamantes do Sérgio Cabral?”, adverte um ministro do próprio Supremo, refletindo um temor que cresce na opinião pública na mesma rapidez com que caem os instrumentos e agentes da Lava Jato.
Já a reforma administrativa, que nove entre dez autoridades reconhecem como “fundamental”, mas só de boca para fora, está sem pai e sem mãe. O presidente Jair Bolsonaro, que trancou a proposta por dez meses, não quer e vai querer cada vez menos mexer com o funcionalismo – ou qualquer coisa que possa ameaçar sua reeleição em 2022. E Paulo Guedes e Rodrigo Maia, ambos fortemente a favor da reforma, romperam bem na hora decisiva.
Ex-Posto Ipiranga e ex-superministro, Guedes promete muito, entrega pouco, perdeu as graças do presidente, rompeu com a ala forte do governo e agora se mete numa briga juvenil com o homem-chave das reformas e do seu futuro no governo. E de um jeito ridículo. Proibir seus secretários de conversar com o presidente da Câmara?! Bem, Maia apresentou uma reforma da própria Câmara e foi cuidar da reforma tributária. Guedes que se vire. Com quem? Não se sabe.
E que tal ter na Presidência alguém que usa o cargo para fazer propaganda de um medicamento sem comprovação científica em nenhuma parte do mundo e para desestimular o uso obrigatório da vacina para livrar o País da maldição da covid-19? Por quê? Porque ele governa o Brasil misturando seus achismos com conselhos de terraplanistas que apostavam em no máximo 2.100 mortos. Já chegam a 125 mil, mas Bolsonaro continua firme com eles.
A última do presidente é apelar para o “patriotismo” dos donos de supermercados para segurar os preços. É evidente que a disparada dos preços já começou, em função de pandemia, dólar, estoques da China. E que o governo não tem ideia do que fazer. Além de apelar a empresários, talvez seja hora de orar. Milhões de pessoas sem emprego, com alta de preços de arroz, feijão e óleo… Boa coisa isso não dá.
Como alertou o colega José Fucs, é a volta aos anos 1980. A polícia (ou o Exército?) laçando bois no pasto, “fiscais do Messias” prendendo gerentes nos supermercados ao som do Hino Nacional. Nada com liberalismo, tudo com populismo e perfeitamente de acordo com cegueira ideológica, meio ambiente, Educação, saúde, política externa, cultura, inclusão, respeito à divergência, combate à corrupção e… censura quando se trata de Flávio Bolsonaro. De retrocesso em retrocesso, logo chegaremos a 1980. E viva o Centrão.
Eliane Cantanhêde: Na frigideira com Moro
Bolsonaro tem os votos e as decisões, Guedes tem duas opções: engolir em seco ou cair fora
Desta vez, o presidente-candidato Jair Bolsonaro acertou duplamente, no conteúdo e na forma. O que resolve a questão do desenvolvimento e da renda é mesmo o emprego e foi uma bela sacada anunciar que não vai “tirar de pobres para dar a paupérrimos”. Quem há de discordar? De quebra, é bom slogan de campanha, pois atinge quem tem um mínimo de bom senso e os alvos do presidente, o Nordeste e os de baixa renda, ou seja, o eleitorado que parecia cativo do PT.
De fato, causou espanto a “mágica” do ministro Paulo Guedes para financiar os devaneios populistas e a campanha à reeleição do presidente: tirar de abono salarial, salário-família, seguro-defeso (para pescadores artesanais) e até do Farmácia Popular (remédios grátis para, por exemplo, hipertensão e diabetes). A explicação dos burocratas é que há muita fraude, muito rico tirando ‘casquinha’. Ou seja: se a água da banheira está suja, jogue-se o bebê fora.
Bolsonaro disse “não” para Paulo Guedes, que já reclamou da “debandada” do seu time e ainda tem de ouvir calado a crítica pública do presidente a quem sobrou. E foi antes de a assessora Vanessa Canado responder à pergunta que não queria calar: o “novo imposto” de Guedes é, sim, a velha CPMF. E isso balança o tripé da política econômica: Bolsonaro, Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que ora se alia a Guedes, a favor do teto de gastos, ora a Bolsonaro, contra a CPMF.
Com o técnico Guedes em baixa, Bolsonaro e Maia ficam mais à vontade em seus planos políticos. Um só pensa em 2022, o outro finge que não, mas vai tentar se reeleger à presidência da Câmara em fevereiro de 2021. E os dois podem se ajudar. Bolsonaro vai inclusive abandonando o “Jairzinho Paz e Amor”, reassumindo sua verdadeira identidade, das armas e da guerra, e encenando a mesma peça da fritura de subordinados.
Planalto e Economia dão a mesma versão: o presidente adora Guedes, Guedes adora o presidente e ninguém sai. Mas os fatos jogam o ministro na fogueira onde já arderam Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Joaquim Levy, Ricardo Galvão, Regina Duarte. Sabe-se lá por que, Bolsonaro não resolve as coisas no seu gabinete, olho no olho. Parece que a fritura só tem graça com público, claque, câmeras. O presidente dá um solavanco no sujeito numa entrevista. O mercado treme, os setores envolvidos tomam as dores e vem o deixa-disso. No fim, ou a vítima se demite, como Moro e Levy, ou é demitida, como Mandetta e Galvão.
O fato é que o presidente descobriu, aliviado, que ninguém é mesmo insubstituível. Diziam que, se Moro caísse, o governo caía junto. Moro se foi e nada aconteceu. Mito por mito, os bolsonaristas jogaram fora o ministro junto com a Lava Jato e ficaram com o capitão. Dizem agora que, se Guedes cair, o mercado abandona o barco. Que nada! Com outro Paulo Guedes, o mercado se acomoda direitinho.
A questão não é só política e econômica, é também aritmética. Nem o Guedes que aí está nem um outro Guedes qualquer tem poderes mágicos para somar dois mais dois e dar três. Nem para manter o teto de gastos e ao mesmo tempo fazer o que Bolsonaro quer. Mas Bolsonaro é quem tem voto e quem decide as prioridades para gastos e cortes. Se Guedes não gostar, tem duas alternativas: engolir em seco ou jogar a toalha. A ver.
R$ 1 bilhão
Enquanto o STF não anula a delação premiada de Joesley e Wesley Batista, a PGR analisa uma repactuação que pode custar caro aos irmãos da JBS: R$ 1 bilhão. E justamente quando o ex-presidente Temer é inocentado em primeira e segunda instâncias e surge o estranhíssimo envolvimento de quase R$ 10 milhões dos Batistas com Frederick Wassef.
Eliane Cantanhêde: Sem dó nem piedade
Faltaram tochas e máscaras brancas nos gritos de ‘assassina’ para a pobre menina pobre
É de chorar copiosamente de raiva, vergonha e desânimo quando um bando de enlouquecidos usa o nome de Deus para transformar uma pequena e sofrida vítima em vilã, aos gritos de “assassina”. É de uma crueldade sem limites, que faz recrudescer uma angústia que só aumenta: a audácia dessa gente que saiu das trevas não tem fim?
A pobre menina pobre tinha seis anos quando passou a ser abusada por um tio, na casa onde morava com os avós. O pai? Não se sabe. A mãe? Também não. Sem os pais e sem o olhar, o cuidado e a piedade dos adultos, responsáveis, amigos e vizinhos, que não viram nada ou não quiseram “se meter na vida dos outros”, o que e quem sobrou? Nada, ninguém. Só o medo, a solidão, a dor do corpo e da alma.
Histórias assim ocorrem o tempo todo, por toda parte, contra milhares de meninas e meninos pobres e desamparados neste nosso Brasil tão lindo, de gente tão alegre e sol o ano inteiro, invejado por natureza pujante. Um Brasil tão solar que abriga um Brasil tão obscuro, soturno, onde a Justiça não é igual para todos, juízas injustas se referem à “raça” do suspeito para condená-lo e crianças não têm o direito de serem crianças. Abandonadas pela família e pelo Estado.
A nossa brasileirinha, tão sofrida, menstruou cedo e engravidou aos 10 anos do criminoso que usava da intimidade da casa para destruir o corpinho, a autoestima e a vida dela. A lei autoriza o aborto em caso de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. Ela se encaixa em dois dos três critérios e a Justiça autorizou, mas médicos no Espírito Santo lavaram as mãos e ela teve de ser acolhida em Pernambuco, num hospital que interrompeu uma gravidez que poderia tê-la matado, depois de longa tortura que ninguém viu, ou não quis ver. The end? Não, foi só mais um capítulo dessa novela macabra. O drama dela continua, assim como o dos quase 70 mil estupros por ano.
Almas do mal rondam a desgraça alheia, como a blogueira que desfilava de peito de fora quando feminista e agora, depois de se metamorfosear em bolsonarista, é alvo da Justiça por jogar fogos de artifício contra o Supremo e capaz de divulgar o nome da criança grávida e o endereço do hospital. Que pessoa é essa? Que mente deturpada é essa? É preciso responsabilizá-la pelo crime, previsto em lei, de expor menores de idade em situações adversas. Além de investigar quem vazou para uma pessoa com essa índole os dados da menina e do seu destino para a execração pública.
É demoníaco, mas mulheres e homens que se dizem religiosos, até pastores, atenderam à convocação e se aglomeraram diante do hospital para aprofundar a dor, a vergonha e a humilhação daquela criança. Só faltaram máscaras brancas e tochas para reproduzir a Ku Klux Klan, reencarnação do nazismo nos Estados Unidos condenada em todas as democracias saudáveis.
Parabéns ao médico Olímpio de Moraes, que cumpriu a autorização judicial e enfrentou a hipocrisia e os ensandecidos para defender, com coragem e generosidade, o direito à saúde e à vida. “Obrigar uma criança a ter uma gravidez forçada é um absurdo”, disse ele. Sim, absurdo, maldade, escândalo, uma desumanidade. Como Nação, não podemos compactuar com perversidades assim. Não se trata de ser contra ou a favor do aborto, mas de humanidade.
Que a violência contra essa brasileirinha acorde a sociedade para esses abusos que acontecem com uma frequência assustadora sob as nossas barbas. É preciso proteger nossas crianças, incentivar as denúncias de quem finge que não vê e punir os culpados. Para as seitas que chamam a pequena vítima de “assassina”, convém lembrar que o real criminoso está solto, ao lado de milhares de outros prontos a destruir a vida e o futuro de crianças como ela.
Eliane Cantanhêde: Mais Brasília, menos Brasil
Bolsonaro entre Guedes e gastança, liberalismo e grotões, ‘zona de impeachment’ e risco à reeleição
É falso o dilema sobre Jair Bolsonaro ser ou não ser liberal. Ele nunca foi, não é e nunca será liberal, aliás, em nenhum sentido. Ao contrário, é um típico populista, além de corporativista e estatizante como os filhos, a grande maioria dos ministros e os militares do governo. Quanto mais 2022 vai chegando, mais essa essência vai se evidenciando e menos o governo se preocupa em dissimular.
Na atribulada travessia entre 2018 e 2022, Bolsonaro joga ao mar Sérgio Moro e o combate à corrupção; o PSL, os aliados neófitos e o discurso contra a “velha política”; as manifestações golpistas contra Supremo e Congresso; as funções maçantes de presidente da República. Por que não jogar ao mar também Paulo Guedes, o teto de gastos e a promessa de enxugamento do Estado?
O candidato de 2018 foi um, o de 2022 é outro e vai saindo do armário em 2019, 2020, 2021, mas, às vezes, é preciso disfarçar. Foi o que ocorreu na quarta-feira, quando, reencarnando temporariamente a persona presidente, Bolsonaro reuniu presidentes da Câmara e do Senado, ministros, líderes e, tal qual Dom Pedro I, avisou: “Digam ao povo que fico, fico liberal”. Faltou acrescentar: “Por enquanto”.
Bolsonaro e Guedes são como água e azeite. Um nacionalista às antigas, outro globalista. Um pró-Estado gastador e empregador, outro desestatizante, pró-iniciativa privada azeitada; um na linha de frente de salários, vantagens e privilégios de militares, policiais e funcionários, outro guerreando por uma administração que gaste menos e produza mais. O casamento foi por interesse. Para Bolsonaro, o objetivo era vencer as eleições. Guedes tinha o sonho genuíno de mudar o País, à sua maneira. A massificação de que era preciso erradicar o PT da face da Terra selou o contrato.
Já no primeiro ano, Bolsonaro falhou com Moro ao atacar Coaf, Receita e Polícia Federal, lavar as mãos para o pacote anticrime e defender armas para todos, excludente de ilicitude, juiz de garantias. Mas o presidente se manteve firme com Guedes até… passar a priorizar a reeleição. O alerta piscou na segunda fase das reformas. Se não ajudou, Bolsonaro se esforçou para atrapalhar o mínimo possível a da Previdência. Mas, na hora da tributária, balançou. E, na administrativa, empacou. Ficou claro, para Guedes e equipe, que o liberalismo de Bolsonaro tinha limite: as próximas urnas. Mexeu nos votos dos servidores, mexeu comigo.
O momento crítico da “debandada” da Economia foi justamente com a saída dos secretários de Privatização e de Desburocratização e Gestão, duas áreas emblemáticas, mas freadas no Planalto. O grito de guerra de Guedes foi ouvido longe: se Bolsonaro optar pelo populismo barato, implodir o teto de gastos e sair comprando votos à custa da estabilidade fiscal, vai entrar numa “zona sombria, numa zona do impeachment”.
Bolsonaro não entende que implodir as contas públicas atinge ainda mais a economia e ameaça a própria reeleição. Ele tem seu exército (com minúscula e com maiúscula) contra a política liberal, mas Guedes também tem o seu: o setor privado e a cúpula do Congresso. Pelo menos até fevereiro, quando mudam os presidentes.
A situação está no seguinte pé: Bolsonaro reafirmou seus votos liberais e a crença no Posto Ipiranga, mas o passado condena e seu senso de sobrevivência vai na direção oposta. O presidente se soma ao candidato para fazer os cálculos entre a “zona do impeachment” e os riscos à reeleição, entre manter o grande capital com Guedes ou atrair os grotões com o Centrão. É questão de tempo ele optar ao tudo pela reeleição. O que significa jogar Guedes ao mar, em companhia de Sérgio Moro. Será o fim do Jair Bolsonaro de 2018 e a consolidação do Jair Bolsonaro de 2022.
Eliane Cantanhêde: Cavalo de pau
O presidente é um, o candidato é outro, mas Bolsonaro será sempre Bolsonaro
Se dá de ombros para 100 mil mortos pelo coronavírus, passou décadas defendendo torturadores como Pinochet, Stroessner e Brilhante Ustra, criou atritos em série com parceiros tradicionais do Brasil e nunca deu bola para inclusão social e combate ao racismo, à homofobia e ao machismo, o agora nova e prematuramente candidato Jair Bolsonaro deu um cavalo de pau e mudou tudo em favor da reeleição em 2022.
Os dois novos exemplos são a surpreendente manifestação do presidente em defesa do entregador de aplicativo ofendido por um grandalhão racista e, também, sua decisão de enviar uma missão humanitária em grande estilo para o Líbano. Decisão tão acertada, principalmente do ponto de vista do marketing, que ele vai a São Paulo amanhã para o embarque da missão – ao vivo, em cores e pronto para fotos.
Em 2017, Bolsonaro prometeu que, se eleito, “não teria um centímetro demarcado para reserva indígena e quilombola”. E explicou: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais (…) Se eu chegar lá (à Presidência), não vai ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar”.
Com Bolsonaro de volta ao palanque, o papo é outro. Foi por isso, e porque seus assessores lhe deram o texto mastigadinho, que ele saiu em defesa do motoboy Matheus Pires, negro, 19 anos, alvo de Mateus Prado Couto, que, mostrando a própria pele, muito branca, atacou: “Você tem inveja disso aqui”.
Se Bolsonaro fosse falar de improviso, não ia dar certo. Então, ele assumiu o texto do Planalto: “Atitudes como esta devem ser totalmente repudiadas. A miscigenação é uma marca no Brasil. Ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua cor, crença, classe social ou opção sexual”. Nem parecia Bolsonaro. E não era mesmo. Era o assessor.
Na campanha de 2018, Bolsonaro também criou dificuldades diplomáticas para o então presidente Michel Temer e uma confusão dos diabos com o mundo árabe ao anunciar que acompanharia Donald Trump e trocaria a embaixada brasileira em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém – o centro da disputa entre judeus e palestinos.
O Egito cancelou uma visita do chanceler de Temer, a Liga Árabe se rebelou, mas, apesar disso, e da ameaça às exportações de U$ 5 bilhões em carnes para os países árabes por ano, Bolsonaro manteve a ameaça após a posse. Até os generais brasileiros entraram em ação para explicar ao presidente algo de geopolítica, diplomacia, interesse nacional, questões de Estado e importância das exportações. A ideia foi adiada.
Hoje, com a embaixada mantida em Tel-Aviv e após viagens e salamaleques para os árabes, Bolsonaro tem um gesto de grandeza – ou de oportunismo – e envia uma missão humanitária para Beirute. Um avião da FAB levará medicamentos e equipamentos médicos, sob comando do próprio Temer, filho de libaneses. Só para lembrar, há mais libaneses no Brasil do que no próprio país. Um oceano de votos.
Bolsonaro vai trocando a indumentária incômoda de presidente pela fantasia agradável de candidato. Em vez de tortura e crises diplomáticas, missão humanitária; em vez de arroubos racistas, machistas e homofóbicos, discurso inclusivo; em vez de tudo para ricos e grileiros, ajuda emergencial e um novo Bolsa Família para chamar de seu. E, em vez de bater na “velha política”, um abraço no Centrão.
Só não peçam para Bolsonaro voltar atrás na negação da pandemia. Aí, já seria demais. No sábado, dia em que o Brasil chorava mais de 100 mil mortos e de 3 milhões de contaminados, Bolsonaro estava em outra galáxia, comemorando na redes: “Parabéns Palmeiras, campeão paulista 2020!” O presidente é um, o candidato é outro, mas Bolsonaro será sempre Bolsonaro.
Eliane Cantanhêde: Fardas, armas, dúvidas
Fazer dossiês contra policiais críticos do governo soa como extensão do ‘gabinete do ódio’
Que a relação do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos com armas, munições, milicianos, policiais e militares é um tanto complexa, todo mundo sabe. Mas nunca ficou claro quais são seus reais planos para as polícias estaduais e é exatamente por isso que o ministro da Justiça, André Mendonça, deve explicações ao Judiciário, ao Legislativo e à sociedade brasileira para dossiês contra “antifascistas”, ou antibolsonaristas. O principal alvo desses dossiês são... policiais.
De um lado, prospera a suspeita de infiltração bolsonarista nas polícias, aumentando a influência do presidente e reduzindo a dos governadores. De outro, surgem esses dossiês sobre policiais que se opõem a Bolsonaro e à ingerência de cima. Quem faz dossiê contra adversários e críticos é porque pretende usá-lo para perseguição ou chantagem, como uma extensão do “gabinete do ódio” do Planalto. Coisa de ditaduras, não de democracias.
Não bastasse o Ministério da Justiça, também o Ministério Público do Rio Grande do Norte produz dossiês de policiais, com fotos, dados, manifestações e posts nas redes, produzindo um banco de dados de quem está “conosco”, quem está “contra nós”. Sabe-se lá em quantos outros Estados a produção de dossiês está virando moda. Se fossem sobre fascistas, até daria para entender, mas são contra “antifascistas”. Ser contra antifascista é ser o quê?
Quando se trata de polícia, instituição fardada e armada, isso se torna particularmente intrigante – ou preocupante. No contexto brasileiro, mais ainda. Na política há três décadas, o presidente da República jamais se preocupou com Economia, Educação, Saúde, Meio Ambiente ou mesmo estratégia de Defesa, geopolítica. Seus mandatos foram consumidos na defesa de aumentos salariais para policiais e militares. Por trás disso, eleição, eleição, eleição.
Hoje presidente, Bolsonaro não se dedica só a garantir votos nos setores armados, mas a articular algo mais complexo, que não está claro. Não bastam os votos de policiais, é preciso manipulá-los, dominá-los? Com que objetivo? Nessa direção, Bolsonaro só sancionou a lei que proíbe reajustes salariais de servidores públicos, por causa da pandemia, após o aumento dos policiais da capital da República – os mais bem remunerados do País.
E as investidas nas polícias não são isoladas, vêm junto com projetos para ampliar porte e posses de armas, a derrubada de três portarias do Exército sobre monitoramento de armas de civis, a disparada de munições. E, enquanto prestigiava solenidades militares, o presidente ia cooptando as polícias. Sem falar nas ligações dos Bolsonaros com milicianos no Rio...
Desde o motim de PMs no Ceará, em fevereiro, os governadores suspeitam de infiltração bolsonarista nas polícias. Naquele motim, Bolsonaro não deu uma palavra de repúdio, determinou envio da Força Nacional a contragosto e só prorrogou a operação depois que governadores de São Paulo, Rio, Pernambuco e Bahia, pelo menos, se articularam para emprestar tropas e equipamentos para o governador Camilo Santana (PT).
Os amotinados saíram fortalecidos e um dos mais destacados agitadores do movimento, Capitão Wagner (PROS), é candidato a prefeito de Fortaleza, parte da tropa bolsonarista nas eleições municipais. Terá ou não o apoio, declarado ou por baixo dos panos, do presidente, que vai tragando para a política cabos, sargentos, capitães, majores, coronéis e até generais?
Evasivo, o governador João Doria diz que “no caso de São Paulo, não há infiltração bolsonarista nas polícias, que são muito profissionalizadas”. E no resto do País? “O risco existe e por isso exige a atenção dos governos, dos Poderes e da opinião pública”, admite. Dá para acrescentar: antes que seja tarde.
Eliane Cantanhêde: Bobos são os outros
Desastre de PT e PSDB elegeu e pode reeleger Bolsonaro, que faz pirueta de 2018 para 2022
Soa fora de propósito, da razão e do tempo o ex-presidente Lula continuar, ainda hoje, com tudo isso acontecendo, atirando contra o ex-presidente Fernando Henrique e o PSDB. Com toda sua decantada genialidade política, Lula não consegue ver e entender o óbvio: o PT e o PSDB estão no fundo do poço, não ameaçam mais ninguém e o inimigo comum é outro. Sim, ele, Jair Bolsonaro. Não “apesar”, mas exatamente por tudo o que representa.
O PT já afundava, com mensalão e Lava Jato, quando Joesley Batista detonou Aécio Neves e, com ele, o PSDB. Sem PT e PSDB, o que sobrou? Pois é. Sem a polarização que norteou a política brasileira desde 1994, surgiu “o novo”. E o “novo” é o que há de mais velho, corporativista, armamentista, inexperiente, ignorante e com o discurso oportunista do combate à corrupção.
O cenário é desolador. Lula envelhecido, sem discurso e sem horizonte, mirando nos alvos errados e imobilizando o PT e as esquerdas. Aécio, José Serra e Geraldo Alckmin, os três candidatos tucanos à Presidência ainda vivos (Mário Covas morreu em 2001), embolados com a Justiça, a polícia e a descrença da sociedade diante dos políticos e da política. Todos viraram passado.
A história, no seu tempo, vai recolocar as coisas nos devidos lugares: o PT, criado em 1980, no rastro da redemocratização, e o PSDB, que surgiu em 1988, junto com a nova Constituição, tiveram um papel fundamental, Lula e Fernando Henrique à frente, para modernizar o País, debelar a inflação infernal, criar programas de renda, elevar o Brasil no mundo, atiçar a cidadania e a inclusão.
Os dois projetos se esgotaram sem sanar as mazelas nacionais e seus líderes e foram tragados por guerras políticas, ganância, impunidade e um sistema político que engole até biografias respeitáveis. O desafio era resistir à tentação de extrapolar o caixa 2 de campanha para o enriquecimento pessoal. Como conviver com mais de 30 partidos? Desmascarar quem fala à alma, não à razão? Enfrentar a pressão das corporações em detrimento da população? Financiar campanhas hollywoodianas? E como vencer sem elas?
Assim o Brasil chegou a Jair Bolsonaro, que driblou todas essas questões. Já pulou em dez partidos, até tentar um para chamar de seu; usou templos, cultos e pastores como palanques; em vez de enfrentar, liderou as corporações policiais e militares; financiou suas campanhas com seus gabinetes, não com empresas privadas. E venceu os adversários na internet e para o W.O. Eles se derrotaram sozinhos.
O resultado é um espanto: o único foco do presidente é ele mesmo e os filhos, a economia parou, a ação na pandemia é acusada de criminosa, a visão de meio ambiente é destrutiva, a educação é inimiga, a diplomacia virou guerra, a cultura desapareceu e a imagem dos militares está em risco. O anormal virou normal: rachadinhas, funcionários fantasmas, Queiroz escondido da polícia na casa do advogado da família presidencial.
E daí?, como diria Bolsonaro. Assim como Maduro sobrevive à destruição da Venezuela, Bolsonaro supera seus erros com a falta de adversários, sustentação militar e da polícia e apoio popular dentro do limite. Continua sendo não só o mais forte, mas o único candidato na sucessão presidencial e faz uma pirueta entre a eleição e a reeleição: joga ao mar o discurso moralista, o PSL e os neófitos vindos do ambiente policial e jurídico e navega com o Centrão, os experientes e os espertos, parando de atacar Congresso e Supremo.
Conclusão: o triste fim da polaridade PT x PSDB, que elegeu o inacreditável Jair Bolsonaro em 2018, corre o risco de reeleger o absurdo Jair Bolsonaro em 2022. E ele continua dando um banho de marketing e estratégia eleitoral. Bobo? Bobos são os outros.
Eliane Cantanhêde: Salles e Araújo, peixes miúdos
Sem culpa na pandemia, militares têm tudo a ver com políticas para Amazônia e China
A pressão dos fundos de investimento contra o desmatamento e as ameaças às comunidades indígenas e quilombolas pôs o foco na política, na visão catastrófica e nos erros de execução para o meio ambiente, mas também jogou luzes numa outra ferida aberta no Brasil: a política externa do governo Jair Bolsonaro, que é pautada pela beligerância e oscila entre o incompreensível e o pernicioso.
A culpa, mais uma vez, é do mordomo, ops!, do ministro de plantão. Assim como o mundo desabou na cabeça do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, está desabando também na do chanceler Ernesto Araújo. Não que eles sejam santos nessa história, mas nenhum dos dois caiu de paraquedas no cargo e ambos executam a política que vem de cima, de Bolsonaro. Como o próprio general Eduardo Pazuello, da Saúde.
Salles nunca tinha pisado na Amazônia, Pazuello nunca tinha sido apresentado pessoalmente a uma curva epidemiológica e Ernesto Araújo, um embaixador júnior, jamais havia comandado uma embaixada antes de assumir o Itamaraty. Logo, a ascensão dos três tem algo em comum: eles não foram colocados lá por terem grande experiência e expertise nessas áreas, mas para fazer tudo o que seu mestre mandar.
Se, apesar do general Pazuello, os militares têm pouco a ver com as decisões na pandemia, eles têm tudo a ver com a avaliação do governo sobre Amazônia e China. Assim como Bolsonaro, mas com muito mais conhecimento, os generais também consideram um exagero, típica coisa de esquerda, manter praticamente intocadas a Amazônia e as imensas reservas indígenas. Se a Europa virou potência destruindo tudo, por que “essa frescura” no Brasil? Ricardo Salles é peixe miúdo nesse debate.
Quanto à China, a visão que Ernesto Araújo manifesta publicamente coincide com a que os generais defendem internamente: a estratégia de Pequim é não apenas desbancar os Estados Unidos e virar a maior potência econômica, mas dominar e impor o regime comunista ao mundo. Como os militares não se cansam de lembrar, o gigante asiático é liberal na economia, mas uma ditadura inquestionável.
A questão, tratada de forma primária e grotesca pelos filhos e aliados do presidente, merece reflexão mais qualificada nas áreas estratégicas. A China começou a “infiltração” pela via comercial, comprando matéria-prima e vendendo de quinquilharias a fortes manufaturados, enveredou pela área industrial, sofisticando ao máximo sua produção, e chegou à fase agressiva de aquisição despudorada de companhias e terras na África e na América Latina – o chamado “quintal” de Washington.
Como o governo Bolsonaro digere e reage? Pulando de corpo e alma no governo Trump, polêmico, condenável sob vários aspectos e agora sob risco de derrota. Ou seja: entra de gaiato numa guerra de gigantes, não ganha nada com isso e pode perder muito em caso de vitória dos democratas.
Aí, o peixe miúdo é Araújo. Quem decidiu e executou a aliança com o “amigão” Trump foi Bolsonaro, que foi também quem atacou França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, mundo árabe… E está esfarelando a imagem do Brasil com suas crenças, idiossincrasias e erros grosseiros em áreas fundamentais.
Os generais, diplomatas e ministros alertas, porém, acertam num ponto: empurrar com a barriga a decisão sobre o 5-G. A chinesa Huawei tem a melhor tecnologia, mas é ilusão achar que seria viável para todos e ingenuidade pensar que se trata de puro negócio. Não é. A Huawei é estatal e tende a se transformar num poderoso instrumento chinês do que os generais brasileiros veem como dominação do mundo. Quem tem informação tem poder. Quem tiver os dados de todos os cidadãos de todos os continentes terá o controle do planeta.