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Eliane Cantanhêde: O grande derrotado

Urnas derrotaram os candidatos, os apoiadores e tudo o que Bolsonaro fala e representa

Tal qual o verdadeiro Trump nos Estados Unidos, o Trump tupiniquim, Jair Bolsonaro, também nega a realidade, não reconhece a derrota e, como não dá para acusar a mídia desta vez, ataca a urna eletrônica e já ensaia o discurso da fraude! Nenhuma pirotecnia, porém, é capaz de anular ou esconder Suas Excelências, os fatos. E os fatos são claríssimos: Bolsonaro é o grande derrotado das eleições municipais de 2020.

Não apenas seus candidatos perderam feio e os votos do seu filho Carlos encolheram 34% na base eleitoral da família, o Rio, como tudo o que Bolsonaro representa afundou: 1) a antipolítica cedeu lugar à política, à experiência, aos partidos; 2) o PSL, que inflou e se transformou em segunda força na Câmara, murchou; 3) tanto bolsonaristas renitentes quanto arrependidos, que brilharam em 2018, apagaram em 2020.

As eleições confirmaram que o Brasil é de centro e que a chegada ao poder da extrema direita bruta, virulenta, delirante e sem programa, foi um ponto fora da curva, que vai ficando rapidamente no passado. O novo normal é normal mesmo. DEM, PSDB, MDB, PSD e Cidadania, que formam um sólido bloco de centro que não se confunde com o Centrão, vão recuperando o espaço perdido para Bolsonaro.

Assim, 2020 projeta a volta do centro e uma polarização atualizada: a direita não é exclusivamente bolsonarista e a esquerda não é mais apenas petista. A direita experiente e confiável amplia seu leque e se articula inclusive com setores da esquerda moderada. A esquerda ganha nova cara e frescor. Basta ver o desempenho no primeiro turno e as perspectivas no segundo de PSOL, PDT, PCdoB e PSB.

Mais do que a derrota de tudo o que Bolsonaro significa e de tudo que ele trouxe à cena nacional em 2018, a guinada político-eleitoral deve ter efeitos práticos e imediatos. Onde? No governo. Não dá mais para fingir que as falas e atos de Bolsonaro são normais e que os militares continuam indiferentes ou coniventes. Muita coisa está mudando e até parte dos militares já admitiu o óbvio: o rei está nu.

O resultado das eleições reforça a posição e os argumentos dos generais, almirantes, brigadeiros e assessores que mantêm os pés no chão e tentam chamar o presidente à realidade, alertá-lo para o que está ocorrendo. Com nomes, siglas, números e porcentuais, talvez alguém possa convencê-lo de que ele faz mal à saúde – dele, do governo e do País. Precisa parar e refletir.

A eleição coincide com a explicitação do racha do governo entre duas “alas”. De um lado, “os meninos” da ala ideológica, capazes de ameaçar o Supremo, ironizar o Congresso e chamar um general de quatro estrelas de “Maria Fofoca”. De outro, a “ala militar”, que mais e mais aplaude em silêncio o vice-presidente, general de Exército Hamilton Mourão.

Os “meninos” pululam em torno dos filhos de Bolsonaro, brincando de ideologia, reverenciando gurus, fazendo apologia de armas, guerreando a favor das más e contra as boas causas. Já a “ala militar” tenta dar ordem à bagunça e se descolar do linguajar do presidente: “pólvora” (contra os EUA), “maricas”, “boiolas”, “gripezinha”, “conversinha fiada”… Como reagiu o general Santos Cruz pelas redes, “é uma vergonha”. Quem há de discordar?

Assim, a derrota de Bolsonaro vem bem a calhar, para dar um choque de realidade e tentar acordar o presidente para o que de fato importa: a pandemia, a economia, a crise social. Assim como Trump perdeu nos EUA, a extrema direita, os seguidores e o blábláblá que levaram Bolsonaro à Presidência também perderam no Brasil. Bolsonaro despedaçou suas promessas e princípios de 2018 e os eleitores fizeram picadinho do que havia sobrado. Os militares estão vendo tudo isso. O Centrão também.


Eliane Cantanhêde: Haja pólvora

Sem Trump, Mourão, governadores, prefeitos e parte dos militares, quem sobra para 2022?

Se o presidente Jair Bolsonaro insistir nesse ritmo de metralhadora giratória contra tudo e todos, quem estará com ele na reeleição em 2022? Bolsonaro não deve eleger um único prefeito de capital hoje, joga o vice Hamilton Mourão ao mar, cria tensões e cisões desnecessárias nas Forças Armadas, não entrega reformas e privatizações ao empresariado e ao mercado, não gera empregos, irrita médicos, professores, o pessoal da cultura e qualquer um que defenda o verde e a vida.

Quem sobra? Por questões ideológicas, interesses diretos, conveniências pontuais ou simples incapacidade de compreender o que se passa, os bolsonaristas dirão que sobram o Centrão e uma faixa considerável das redes sociais e do eleitorado. É preciso saber, porém, até onde, e quando, o Centrão e esse eleitor fiel, ou recentemente conquistado, resistem. As urnas de hoje serão um teste. Trarão boas respostas e indícios.

O Centrão está de olho na contagem de votos não só para consolidar suas bases como para projetar os próximos passos: as eleições para Câmara, Senado, governos estaduais e Presidência em 2022. O que os líderes de PP, PTB, PL… vão fazer, se o apoio de Bolsonaro se revelar tóxico? Serão fiéis na alegria e na tristeza? As eleições, portanto, devem deixar claros os limites da aliança. É restrita ao Congresso e dura enquanto a caneta tiver tinta. Bagaço de laranja e caneta sem tinta não servem para nada.

Pelas pesquisas, muito mais confiáveis no Brasil do que nas eleições americanas, Bolsonaro vai colher derrotas significativas em São Paulo e no Rio e assistir ao fim precoce da “nova política” que, dois anos atrás, empurrou policiais, militares, juízes e promotores para governos, Congresso e assembleias. Exemplos: o juiz Wilson Witzel e o bombeiro Carlos Moisés, já afastados dos governos do Rio e de Santa Catarina.

O sonho virou pesadelo. Os eleitos na onda bolsonarista não vão bem das pernas, o PSL voltou à sua real dimensão e o presidente não conseguiu criar um partido para chamar de seu. Assim, Bolsonaro vai encerrando o seu segundo ano de governo se despindo da fantasia do Jairzinho Paz e Amor e abrindo flancos por todos os lados. Encampou a derrota de Trump como sua, ameaça o futuro presidente Joe Biden e, hoje, a perspectiva é de derrota interna também.

Sem aliados externos e internos, nas mãos do Centrão, com horizontes nebulosos na economia e segunda onda da covid-19 na Europa, era hora de Bolsonaro criar caso com os militares? A um dos muitos oficiais militares que estão preocupados, perguntei se o presidente não precisa dormir mais para parar de falar besteira. E ele: “Sim. E de tomar um remedinho”.

A moda é dizer que Forças Armadas (FFAA) “são de Estado, não de governo” e os militares não são parte da política nem querem a política nos quartéis, como repetiu o general Edson Pujol, que também estava no Seminário de Defesa, na Escola Superior de Guerra - que, aliás, não teve ninguém do Planalto. No cafezinho, ele me disse: “Não sei por que tanta repercussão. Eu falei o óbvio”. O que leva à seguinte reflexão: quando o comandante do Exército precisa dizer obviedades, é porque elas deixaram de ser óbvias.

Em nota, ontem, o ministro da Defesa e os três comandantes declararam que o presidente “tem demonstrado (…) apreço pelas FFAA, ao que tem sido correspondido”. Por que dizer isso, a esta altura? Isolado no plano internacional, Bolsonaro será derrotado hoje na eleição para prefeitos e tem contra si parcelas expressivas de governadores, juristas, cientistas, médicos, professores, ambientalistas, diplomatas, artistas e analistas. Não satisfeito, bate boca com Mourão, o que divide os militares. Aonde, afinal, Bolsonaro quer chegar?


Eliane Cantanhêde: Sem saliva, sem pólvora

Como Geisel e Aureliano, Mourão dá um choque de realidade nos absurdos

A ira despudorada do presidente Jair Bolsonaro não é só contra o futuro presidente da maior potência do planeta e o governador do principal Estado do Brasil, mas também contra o seu próprio vice-presidente, o general de quatro estrelas Hamilton Mourão, que parece, no íntimo, se divertir com o descontrole e os absurdos do presidente, que vira piada mundo afora.

“Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora.” A patética ameaça de Bolsonaro foi dirigida a Joe Biden, mas poderia ter sido para Mourão, já que os dois estão sem se falar. Acabou a saliva e sobrou a pólvora entre eles, lembrando João Figueiredo e Aureliano Chaves. A diferença é que Figueiredo era general e Aureliano, civil; Bolsonaro é capitão e Mourão, general.

O último presidente do regime militar também era destrambelhado, não raro ridículo, mas não estimulava golpistas, nunca ameaçou presidente nenhum, muito menos o dos EUA, nem pôs a saúde dos brasileiros em risco por ignorância e autoritarismo. O médico sanitarista Paulo Almeida Machado foi muito bem no Ministério da Saúde.

Figueiredo também abandonou o governo para lá, mas na ditadura não havia votos nem reeleição e ele não se lançou nos braços do “Centrão” da época e não saiu agredindo o Guaraná Jesus e as pessoas como “maricas” e “boiolas”. Quanto mais Figueiredo afundava no ridículo, mais Aureliano liderava a dissidência, civil e logo militar, pela redemocratização.

Por trás disso, impunha-se a autoridade do general Ernesto Geisel, que antecedeu Figueiredo, patrocinou sua ascensão à Presidência e depois se tornou fator decisivo para acordar as Forças Armadas contra o desmando, a bagunça e o próprio Figueiredo. Entre o Brasil e o seu apadrinhado, Geisel ficou com o País.

Em outras dimensões e circunstâncias, Mourão tem mais diplomacia do que Geisel e Aureliano, mas corrige e tenta justificar o presidente e sua força é sua fraqueza: Bolsonaro não engole as comparações com seu vice, homem culto, que morou fora, fala línguas, gosta de livros, história e geopolítica. Como não suporta as comparações, Bolsonaro não suporta o próprio Mourão.

Quando o presidente desmentiu o general Eduardo Pazuello e disse que o governo não compraria a vacina “da China” ou “do Doria”, Mourão declarou: “Vai comprar, sim. Lógico que vai”. Quando o presidente fez birra e se recusou a cumprimentar o vitorioso nos EUA, Mourão foi mais ameno: ele deve estar esperando o resultado oficial…

Do outro lado, só pólvora. Bolsonaro já descartou Mourão em 2022, disse que não gasta saliva com o vice sobre assunto nenhum e ontem atacou uma proposta feita pelo Conselho da Amazônia como “mentira” do Estadão, que a publicou, ou “delírio” de “alguém do governo”. Bem… o conselho é presidido por Mourão.

Está em estudo a expropriação de terras de quem cometer crime ambiental e o presidente, furioso, disse que “o Brasil não é socialista/comunista” e que demitiria o autor – “a não ser que seja indemissível”. Só há um indemissível no governo. Logo, a pólvora teve destino certo.

Bolsonaro diz que sua vida “é uma desgraça”, ataca tudo e todos, isola-se no mundo, no País e nas suas patologias, com pólvora, armas, ameaças e zero medo do ridículo. Sobram o Centrão, que pula fora num estalar de dedos, a “ala ideológica”, dos filhos enrolados e um punhado de bobos, e os militares, que fazem o “toma lá (cargos), dá cá (apoio)” que sempre condenaram nos políticos.

Mourão cria horizonte para o Centrão, desdenha de filhos e ideológicos e repete Geisel no fim da ditadura, dando um choque de realidade nos militares. Não é à toa que Sérgio Moro inclui o vice nas articulações que se dizem “de centro” e para 2022, mas são de resistência. Bolsonaro passou dos limites.


Eliane Cantanhêde: O impacto em 2022

Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar

Derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, fragilidade do presidente Jair Bolsonaro nas eleições municipais e total falta de estratégia para enfrentar a crise econômica e social. É nesse ambiente que viceja a articulação de uma chapa alternativa de centro para 2022, com participação de Luciano Huck, João Doria, Rodrigo Maia, Luiz Henrique Mandetta e agora Sérgio Moro, além de Fernando Henrique Cardoso. O cerco vai se fechando contra Bolsonaro.

Mais à centro-direita do que propriamente ao centro, a ambição é atrair a direita moderna, que votou em Bolsonaro, mas agora só pensa em se descolar dele, e a parcela da esquerda que cansou da hegemonia e dos erros do PT, mas tem como prioridade livrar o País de Bolsonaro. Os ventos favoráveis vêm de fora, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris, e de dentro, com as eleições municipais e as investigações sobre rachadinhas no Rio.

Como sempre, Bolsonaro vai na contramão do mundo democrático e se recusa a cumprimentar o vitorioso nos EUA, até mesmo a explicar por que não, o que só piora as perspectivas para a relação com o novo governo. Tão negacionista quanto Trump na pandemia, ele também nega os votos e a realidade, como ele. Bolsonaro acha que Trump venceu? Foi tudo fraude?

Assim, ele repete a campanha de 2018 só na forma, animando claques com muita antecedência pelo País afora, mas vai ter de inventar um novo conteúdo. O de dois anos atrás caducou: “nova política”, combate à corrupção, apoio à Lava Jato, reformas e carta-branca para o “Posto Ipiranga”, caneladas no mundo árabe e alinhamento automático com os EUA de Trump.

No governo, ele mergulhou no Centrão, derrubou Moro, botou a mão em PF, Coaf e Receita, abandonou as reformas tributária e administrativa, tirou gás de Paulo Guedes e agora fica sem Trump – e sem política externa. É bem mais complicado dar caneladas na China. Sem falar da pandemia…

Logo, Bolsonaro precisa, para se reeleger, muito mais do que fazer piadas de profundo mau gosto com Guaraná Jesus, assim como precisa mais do que Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio para escapar da derrota no domingo. Dificilmente a onda bolsonarista de 2018 se mantém agora e em 2022. O PSL foi um meteoro e passou.

O quadro que se desenha também é outro. Pela esquerda, o ex-presidente Lula, sem viço e sem discurso, já não é o mesmo. E as eleições municipais são um bom presságio do que vem pela frente, com o PT perdendo espaço para PSOL, PDT e PSB, pela ordem, em São Paulo, Rio e Recife e projetando que em 2022 é cada um por si, ou todos por um – que não será o PT.

Pela direita, Bolsonaro reina sozinho, agarrado ao mesmo Centrão que não deu para o gasto com o tucano Geraldo Alckmin em 2018. Mas ele, Bolsonaro, não é mais novidade, sofre o desgaste do poder e não tem o que mostrar. As “qualidades” eram falsos brilhantes, os defeitos se tornam mais e mais evidentes.

Há, portanto, um cenário que favorece o centro conhecido, confiável, que não dará cambalhotas, com surpresas e choques. Os articuladores de uma chapa alternativa veem insegurança por toda parte – na economia, na política, no meio ambiente, na política externa… – e chegaram a uma conclusão: a palavra de ordem de 2022 será estabilidade.

Reunir tanta gente, com tantos interesses e divergências ideológicas, porém, não será fácil. Rodrigo Maia se opõe à integração de Moro, que tenta incluir até o general Hamilton Mourão, rifado da chapa de Bolsonaro. De concreto, portanto, só é possível dizer que a derrota de Trump é um forte baque no bolsonarismo e terá impacto na eleição presidencial de 2022. Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar. Alguém acredita que seja capaz?


Eliane Cantanhêde: No Forte Apache…

Em forte sem comandante, pode faltar gás no Posto Ipiranga e tinta na caneta Bic

O embate entre o capitão da caneta Bic e o general de Exército com ordem de comando marca uma nova etapa na relação do presidente Jair Bolsonaro não só com o vice-presidente Hamilton Mourão, mas com as Forças Armadas. A unanimidade aparente ruiu, a insatisfação silenciosa emergiu e o momento é de avaliação de danos, ou de contagem de votos para um lado e para outro.

Sem noção da gravidade na saúde, na economia, no ambiente, na política, o presidente acha que pode falar e fazer o que lhe vai pela cachola, trocando a responsabilidade do cargo pelo oba-oba de uma campanha extemporânea, divertindo-se com a “boiolagem” cor-de-rosa do Guaraná Jesus, humilhando o general da Saúde, tirando o gás do ministro da Economia e guerreando contra a “vacina do Dória”.

É puro non-sense, mas Bolsonaro vai comprando lealdade com cargos e camaradagem. Qual um paizão às antigas, grita e dá umas palmadas, fingindo não ver a safadeza do caçula com o mais velho, mas resolve tudo bajulando o ofendido. A vítima dá um sorrisinho e cede: “um manda, o outro obedece”. Pergunte-se a Paulo Guedes e aos generais Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Eduardo Pazuello e todos reagem com um sorriso condescendente: “o presidente é assim mesmo, diz tudo na bucha, mas gosta muito de mim”.

O passo seguinte é descrever uma situação em que Bolsonaro, depois de mais uma bordoada, fez uma gracinha e alisou o ego do subordinado diante de um microfone. Pazuello teve direito a vídeo no leito da covid, Ramos foi paparicado com passeio de moto e num discurso em que foi tratado como “meu amigão”, não Secretário de Governo e articulador político. Comovido, deixou pra lá o “Maria Fofoca” disparado por Ricardo Salles.

Desanimado, mas tentando demonstrar o contrário, Guedes tem definido o governo como um forte apache cercado de índios e flechas, mas com todo mundo dentro guerreando entre si. Ele não diz, mas isso só ocorre em forte apache em que o comandante não comanda e soldados fazem o que querem. Um dado relevante no incômodo crescente do oficialato é a desenvoltura que Bolsonaro confere à tal “ala ideológica” dos filhos, Salles e os Weintraub que pululam no governo. O próprio, demitido da Educação, foi curtir a vida nos States, ganhando em dólar no Banco Mundial.

Em sequência, Bolsonaro disse que não vai comprar a “vacina da China” e desautorizou o anúncio feito por Pazuello aos governadores e ao País, Salles atacou Ramos como “Maria Fofoca” e o presidente da Câmara como “Nhonho”, até que o general e ex-porta-voz Otávio do Rêgo Barros alertou em artigo que o poder “inebria, corrompe e destrói” e que líderes não podem ficar reféns de “comentários babões” e “demonstrações alucinadas”.

Na contabilidade do Planalto, 90% dos militares ficaram irritados com Rêgo Barros. Nos corredores militares, a avaliação é diferente, com muitos aliviados por alguém, enfim, sair da toca para reforçar o general Santos Cruz e dizer o que precisava ser dito. A diferença é que, nos palácios, dizem o que os poderosos querem ouvir. Nos bastidores, é mais fácil ser sincero.

No fim, Mourão firmou sua independência (ou descolamento), desdenhando da briga política com o governador de São Paulo, falando pragmaticamente sobre a China e desdizendo o presidente: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai”. A reação de Bolsonaro foi de confronto: “A caneta Bic é minha”. A guerra está só começando.

O desconforto bate nas Forças Armadas, Itamaraty, várias áreas de governo e da sociedade, com reflexo no Congresso, onde nada anda e há um risco real: chegar a 2021 sem Orçamento aprovado. O Forte Apache precisa de um chacoalhão. Assim como o Posto Ipiranga está perdendo gás, a caneta BIC também pode perder a tinta.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Eliane Cantanhêde: Combater o bom combate

Enquanto militares se calam, diplomatas vão da perplexidade à indignação

De um lado, militares são tidos como corajosos e durões e, de outro, diplomatas carregam a fama de medrosos e melífluos, mas esses preconceitos estão sendo colocados à prova no governo Jair Bolsonaro. Enquanto generais resmungam em privado contra humilhações impostas aos seus pares, embaixadores engrossam a crítica à política externa e aos delírios do chanceler Ernesto Araújo.

Militares e diplomatas são carreiras de Estado, com provas de acesso e cursos que vão deixando muita gente boa para trás, até afunilar nos melhores dos melhores. Ambas são baseadas em hierarquia, disciplina e… cuidado ao falar. O que mais se espera de militares e diplomatas, porém, é paixão pelo Brasil e prioridade ao interesse nacional, porque governos vêm e vão, o Estado fica.

São conhecidos a explicação dos militares de alta patente e o interesse dos de baixa patente ao apoiar o capitão para presidente. Uns, por ideologia. Os outros, pela expectativa de ter no poder quem passou a vida, na caserna e no Congresso, cuidando de privilégios corporativos. O que não dá para entender é por que eles aceitam com tanta facilidade Bolsonaro e seus filhos batendo continência para um tal guru que xinga generais aos palavrões. Quando o general Santos Cruz reagiu aos insultos, quem perdeu a guerra, e o cargo no Planalto, foi ele.

Agora, Bolsonaro humilha o general da ativa Eduardo Pazuello, que se submete candidamente: “um manda, o outro obedece”. Muito se lê que os militares ficaram indignados, mas só Santos Cruz lembrou, ou advertiu, que hierarquia e disciplina “não significam subserviência” e tudo não se resume a “mandar varrer a entrada do quartel”. O general da reserva Paulo Chagas fez coro, ensinando que a ética militar entre superiores e subordinados não pode ser o simples “um manda e o outro obedece”.

E como assimilar que Ricardo Salles chame o general da reserva Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e seja apoiado pelo filho do presidente? No fim, Salles pediu desculpas “pelo excesso”, ao que Ramos prontamente aquiesceu: “as diferenças estão apaziguadas”. “Diferenças”?

Com Pazuello, bastou uma visitinha do presidente. Com Ramos, uma volta de moto pelo DF. Assim, coube aos políticos, à frente Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, tomar as dores de Ramos e, por tabela, dos militares: “Não satisfeito em destruir o meio ambiente, (Salles) resolveu destruir o próprio governo”, desferiu Maia.

Assim como nas Forças Armadas, há no Itamaraty, ao lado da hierarquia e da disciplina, o instinto de sobrevivência e a disputa por postos e promoções. Mas cresce a fila de embaixadores “da reserva” dizendo o que precisa ser dito. No artigo “O grande despautério”, no Jornal do Brasil, o ex-embaixador na Itália Adhemar Bahadian resumiu o discurso do chanceler para os novos diplomatas: “as palavras foram como pedras mal-educadas, rudes e tingidas de ódio” e “a diplomacia brasileira (…) foi chicoteada como em navio negreiro”.

Também já se manifestaram Rubens Ricupero, Roberto Abdenur, Marcos Azambuja, Celso Amorim, José Alfredo Graça Lima, José Maurício Bustani, Samuel Pinheiro Guimarães, Sérgio Florêncio, ex-chanceleres fora da carreira, como Celso Lafer, e embaixadores ainda na ativa, como Everton Vargas, Paulo Roberto Almeida e Mário Vilalva (licenciado).

O tom vai da perplexidade à indignação diante da subserviência ao governo Trump, a opção por um lado na guerra entre EUA e China, as caneladas em parceiros tradicionais, a prevalência da ideologia sobre o interesse nacional e o retrocesso em foros internacionais. Ao combater o bom combate, esses nossos embaixadores trazem luz e realidade não só para os diplomatas, mas para todos os corajosos e durões na defesa do Brasil.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro em seu habitat

Depois de abandonar o PSL e a 'nova política', Bolsonaro testa os generais

Com o fiasco da “nova política” nos governos estaduais e o escanteio do PSL em favor do Centrão no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro volta ao seu habitat político e apoia o “velho” também nas eleições municipais. Mas, assim como o “novo” não funcionou nos governos e no Congresso, o “velho” não está dando para o gasto na disputa pelas prefeituras. Entre o “velho” e o “novo”, tem prevalecido a experiência e a confiança.

Os “novos” e meteóricos Wilson Witzel, juiz de carreira eleito no Rio pelo PSC, e Carlos Moisés, bombeiro militar eleito em Santa Catarina pelo PSL, estão deixando a política pela porta dos fundos, afastados dos governos dos seus estados pelas vias política e jurídica. Não têm experiência e cancha para a complexidade da política e, aparentemente, não entraram nela apenas “por ideologia” e “pelo bem comum”…

Talvez por isso, talvez não, Bolsonaro desistiu de um exército (atenção, em minúscula…) que só tem dado dor de cabeça e mergulhou de volta na sua velha turma de 28 anos de Congresso. Apoia o prefeito Marcelo Crivella no Rio e o sempre candidato Celso Russomanno em São Paulo, ambos do Republicanos. Mas suas candidaturas derretem ao ritmo de Amazônia e Pantanal.

Inelegível, Crivella recorre à Justiça Eleitoral e tem um recorde: 58% de rejeição, o que sugere chance zero de vitória. Quem lidera é o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), efetivamente o que tem mais experiência. E quem emerge para disputar com ele o segundo turno é Martha Rocha (PDT), mulher, delegada e de um partido brizolista – referência política que ainda resiste no Rio. Empatada com Crivella, ela é seguida de perto por Benedita da Silva (PT).

Em São Paulo, repete-se o script das duas eleições anteriores: Russomanno dispara na frente e vai se desmilinguindo, desta vez pendurado em Bolsonaro. Revela-se um mau negócio. Depois de fotos com o presidente, ele disparou na rejeição, despencou nas intenções de votos e foi superado pelo prefeito Bruno Covas, do PSDB.

Pelo retrato de hoje, que sempre pode mudar, o segundo turno vai ser mais uma vez, como há décadas, entre PSDB e a esquerda. Mas tem novidade: Jilmar Tatto (PT) cresce a passos de tartaruga e a nova cara da esquerda é Guilherme Boulos (PSOL). Um segundo turno entre PSDB e PSOL tende a favorecer o tucano.

Sem surpresa, o PSL, que há apenas dois anos elegeu Bolsonaro, conquistou governos estaduais e formou uma das duas maiores bancadas da Câmara, vai de mal a pior na campanha. Com R$ 199 milhões do Fundo Partidário, mas sem Bolsonaro, sem protagonismo e sem lideranças no Congresso, disputa em 13 das 26 capitais com candidaturas próprias, mas só tem alguma chance em uma, Palmas, com uma mulher, Vânia Monteiro.

Eleições municipais não projetam o resultado de eleições presidenciais, mas são um bom momento de consolidar ou destruir personagens, mobilizar estruturas partidárias e militantes e jogar no ar questões fundamentais para o País. Ainda mais em tempos de pandemia, recessão, desemprego e um presidente capaz de desdenhar da pandemia, atacar o isolamento social, propagandear a cloroquina e agora desacreditar e guerrear contra a… vacina.

O PSL se esvai e o “novo” envelhece, mas o bolsonarismo fica. Além de saúde, educação, habitação, a eleição deve servir também para discutir realidade, princípios e, afinal, o que é, o que significa e o que projeta esse bolsonarismo. A semana, aliás, é excelente para isso. Depois de ficar com o tal guru da Virginia contra o general Santos Cruz e de humilhar o general Pazuello, Bolsonaro tem de optar entre Ricardo Salles e o general (Maria Fofoca) Ramos. Eleição municipal não tem nada a ver com isso? Qualquer eleição tem sim, e muito!

  • Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta

Eliane Cantanhêde: O rei sou eu

Depois de Coaf, Receita e PF, Bolsonaro vai meter a mão na Anvisa por capricho?

Luiz Henrique Mandetta foi demitido por propor o isolamento social, Nelson Teich se demitiu por não engolir a cloroquina, Eduardo Pazuello é humilhado por tentar viabilizar uma vacina em massa para o País. Estão todos errados e só o presidente Jair Bolsonaro está certo? Ou, entre a vida dos brasileiros e suas conveniências políticas, ele fica com a reeleição?

Já que os dois médicos se recusaram a fazer o jogo sujo, ele convocou o general da ativa para bater continência a tudo o que lhe vier na cachola e avisa: “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade”. Pazuello concorda, pateticamente: “É simples. Um manda, o outro obedece”.

O general diz, o capitão desdiz. E o que o general faz? Abaixa a cabeça e diz que foi “mal interpretado” ao anunciar a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac assim que obtivesse o registro da Anvisa. Como alguém desmente o que escreveu em ofício e disse em vídeo para mais de 20 governadores? Vergonha alheia. Forças Armadas, Exército e oficiais, o que acham dessa vassalagem inominável?

Ao desautorizar a aquisição de vacinas anunciada pelo ministro – que passou meses interino, em plena pandemia –, Bolsonaro falou em “traição” e digitou no Twitter: “NÃO SERÁ COMPRADA”. No dia seguinte, recorreu ao morde-e-assopra que usava com Sérgio Moro, Mandetta e Paulo Guedes: incorporou o personagem simpaticão e foi visitar o general, que está com covid e fez papel e cara de bobo ao ser paparicado pelo chefe.

É nessas horas que a gente vê quem é quem. Bastam uma visitinha e um sorriso programado para apagar a humilhação? Se o presidente mandar matar, torturar, se jogar do 20.º andar, arriscar a saúde de 210 milhões de brasileiros, a quem o general deve lealdade e obediência?

Mas vamos à vacina, que une Judiciário, Legislativo, governadores, prefeitos, entidades científicas, médicas, jurídicas. Com mais de 155 mil mortos e 5 milhões de contaminados, ninguém está interessado em briguinhas políticas, o que se espera do presidente é que tome a decisão certa. E se espera em vão.

As quatro vacinas em teste no Brasil precisam de duas doses, logo, serão necessárias de 300 milhões a 400 milhões doses e será preciso somar as vacinas, porque uma só não dará conta. E dane-se se uma é “do Doria”, outra “do Bolsonaro”, uma é “da China”, outra “de Oxford”. Aliás, corre nas redes: se contarem a Bolsonaro que os chineses inventaram a pólvora, será que ele proíbe as armas no País?

O presidente indicou e o Senado aprovou nesta semana o novo presidente, contra-almirante Antonio Barra Torres, e três dos quatro diretores da Anvisa. E se eles forem como o general Pazuello, que faz qualquer coisa para agradar ao presidente? Amigo de Bolsonaro e fotografado com ele numa “manifestação golpista” no início da pandemia, Barra Torres disse para o governador João Doria e repetiu depois, em entrevista, que a agência não cederá a pressões políticas e vai ser fiel à medicina e à ciência.

Que assim seja, porque se trata de milhares de vidas, da economia e dos empregos e, se a Anvisa ficar ao sabor da ignorância, dos ciúmes e dos interesses reeleitorais de Bolsonaro, aí mesmo é que a imagem do Brasil vai para o beleléu, já atingida por desmatamento, queimadas, boiadas e desmanche do Ibama e do ICMBio, sem falar no endeusamento de Donald Trump.

Como Bolsonaro não se constrangeu em meter a mão no Coaf e na Receita e está sendo até investigado pelo Supremo por ingerência política na Polícia Federal, é preciso confiar na consciência e na responsabilidade dos indicados para a Anvisa, que têm conhecimento e nomes a zelar. Na dúvida, Bolsonaro se antecipou e avisou que não comprará a vacina “da China” mesmo que a Anvisa aprovar. Aí, gente, só internando…


Eliane Cantanhêde: Por bem ou por mal

Para o ‘senador da cueca’ só restou se licenciar por livre, mas não espontânea, vontade

Muito se falou da vice-liderança do governo e da “união estável” do senador Chico Rodrigues (RR) com o presidente Jair Bolsonaro, mas o agora famoso “senador da cueca” é do DEM e atinge a corrida do partido para polir sua imagem, aprofundar a transição geracional, disputar prefeituras importantes e se colocar o melhor possível para 2022. Daí porque a pressão pelo pedido de licença de Rodrigues. Ou saía por bem, ou saía por mal.

O DEM é o partido dos presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, do prefeito de Salvador, ACM Neto, da ministra Tereza Cristina, do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e do presidente do Conselho de Ética do Senado, Jayme Campos. Afora Campos, todos têm planos políticos ambiciosos e optaram por um silêncio estridente sobre o vexame do correligionário, a quem só restou pedir licença, “por livre, mas não espontânea, vontade”.

A licença é um alívio para todo mundo. O plenário do Supremo por não ter de julgar amanhã se acata ou não o afastamento do senador determinado pelo ministro Luís Roberto Barroso. O plenário do Senado por não ter de votar a favor ou contra o colega. Para o DEM, a chance de sair de fininho, como Bolsonaro. O problema foi combinar com o “adversário”: Rodrigues não queria aceitar.

Ele é senador, já foi deputado e governador e é empresário bem-sucedido, logo, não é absurdo ter R$ 33 mil em casa, ainda mais porque, cá entre nós, os filhos e a ex-mulher do próprio presidente da República têm mania de pagar apartamentos, planos de saúde e escolas com dinheiro vivo… Então, por que Rodrigues escondeu a grana na cueca? Caracterizou ocultação de provas e agrediu a máxima de que “quem não deve não teme”. O que ele temia, ao ser acusado de desvios milionários na saúde?

Além de espernear diante da polícia, ele resistia também à pressão dos senadores e, particularmente, do DEM para se licenciar, mas eles colocaram a faca no pescoço: ou se licenciava ou seria cassado pelo Conselho de Ética. Nesse script, o STF derrubaria o pedido de afastamento; sem a liminar, não haveria objeto a ser votado pelo Senado e todos viveriam felizes para sempre. Ele, às voltas com polícia, MP e Justiça, mas com o filho na sua vaga.

Depois de Bolsonaro lavar as mãos e se descolar do problema, o principal interessado nesse roteiro é Alcolumbre, que tem quatro pontos em comum com o “senador da cueca”: foram deputados juntos, são senadores, representam o Norte e tentam driblar a Constituição para dar mais um mandato para Alcolumbre na presidência. Até ontem, ele agia, mas não tinha dado um A sobre o escândalo.

Enquanto isso, Bolsonaro se prepara para uma sucessão de vitórias nesta semana no Senado, com a aprovação dos seus nomes para Supremo, TCU, Anvisa, Anac. Afora um ou outro senador de oposição, e só para marcar posição contra, ele vai vencer por lavada, com destaque para o sem currículo Kassio Nunes Marques no STF e o amigão Jorge Oliveira no TCU.

Tudo caminha do jeito que Bolsonaro gosta: saia-justa no Supremo, Congresso às voltas com velhos “probleminhas”, seus escolhidos alçados a cargos-chave sem empecilhos, enquanto, como mostrou o Estadão, a paisagem nos Estados vai sendo salpicada por outdoors e fotos de Bolsonaro em campanha – uma campanha camuflada.

Tudo vai tão bem para o capitão Bolsonaro que ele já se sente à vontade para trocar o general Hamilton Mourão por um vice do Centrão – com aval dos militares. Tempos estranhos, que o DEM via como uma avenida de oportunidades para o centro responsável, mas, com dinheiro em cuecas e a direita e os militares lavando as mãos para os absurdos de Bolsonaro, vai ficando difícil. O negacionismo está em alta e o inaceitável virou moda.


Eliane Cantanhêde: Quem pode pode!

Em vez de batom, é dinheiro na cueca, mas o senador Chico Rodrigues não será afastado pelo Senado nem pelo STF

A semana passada começou com a canetada do ministro Marco Aurélio, que soltou o líder do PCC André do Rap, e terminou com uma outra liminar monocrática, do ministro Luís Roberto Barroso, afastando o “senador da cueca” do mandato e abrindo uma crise entre Judiciário e Legislativo. O presidente do STF, Luiz Fux, tem ou não razão em mirar o excesso de decisões individuais?

Marco Aurélio já beneficiou 79 presos com base na mesma lei que usou para André do Rap e, segundo levantamento do Estadão, o governo e os cidadãos brasileiros estão consumindo fortunas para recapturar 21 desses presos soltos na leva marcoaureliana. O governador João Doria (SP) calcula gastos de R$ 2 milhões só para André do Rap e desabafa: “Dá vontade de mandar a conta para o ministro!” E não é que dá mesmo?

Aliás, o traficante ofereceu R$ 8 milhões de propina para os policiais que o prenderam, o que é um agravante. Imaginem a irritação desses policiais com todo seu esforço jogado fora e um sujeito deste tipo solto por aí, no bem-bom.

De útil, esse erro serviu para acordar a opinião pública para decisões idênticas que vinham se repetindo; ratificar a posição de Fux ao derrubar a liminar de Marco Aurélio; avisar ao mesmo Fux que presidentes não estão acima dos demais e só agem assim em casos excepcionais; abrir o debate sobre a avalanche de decisões individuais num tribunal de 11 votos.

O efeito prático, porém, foi jogar luzes no artigo 316 do Código Penal. Ao contrário do que se imagina, e até com boas razões, a intenção do legislador não foi beneficiar corruptos e bandidos como André do Rap, mas sim trazer uma solução para um problema crônico: os mais de 200 mil brasileiros que neste momento estão presos provisoriamente, muitos indevida ou até injustamente. O objetivo foi evitar que provisório se eternize.

Não deu certo. Em vez de beneficiar pobres, negros e desvalidos, o artigo 316 é usado por bandidos cheios de dinheiro, como André do Rap. Por isso, o nonsense de Marco Aurélio serviu também para o plenário limitar a abrangência do artigo: ele não obriga a soltura do preso, só abre o questionamento sobre a manutenção da prisão.

Assim como soltar André do Rap causou uma comoção nacional, os R$ 33 mil na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) mobilizou mídia, redes, chargistas e gozadores em geral. E assim como Marco Aurélio não titubeou em botar um em liberdade, Barroso também não ao afastar um senador do mandato. Nova confusão!

O ministro explica que sua decisão – que só chegou ao Senado na sexta-feira à noite, obviamente para dar tempo a um acordo – não foi por causa da cueca, mas sim porque Rodrigues era simultaneamente (até então) da comissão do Senado sobre recursos da covid e investigado por desvios na Saúde em Roraima. O fato é que isso dividiu o Senado e o STF.

Rodrigues tem a cara do Professor Raimundo do Chico Anísio, mas não é fraco, não. Além da “união estável” com Jair Bolsonaro e da vice-liderança, é amigão do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que depende do Supremo e dos senadores para uma missão que, se não é, deveria ser impossível: a reeleição para o cargo.

Os dois são senadores do Norte e do DEM e Rodrigues liderava as articulações para as ambições continuístas de Alcolumbre, que quebra a cabeça, com a Advocacia do Senado, para sair da enrascada. Uma coisa é certa: com ou sem dinheiro na cueca – que é só a parte pitoresca da história –, o senador não será afastado pelo Senado, nem pelo STF.

Há três anos, a corte decidiu que só Câmara e Senado têm poder para suspender ou cassar deputados e senadores e, vamos combinar, nenhum dos dois tem pressa em julgar colegas, mesmo presos ou de tornozeleira. Não é, deputada Flordelis?


Eliane Cantanhêde: Dói na alma

A nova obsessão do Bolsonaro 4.ª versão é a ‘sua’ vacina contra a ‘dele’, Doria

Em seu quarto personagem desde a eleição e a posse, há menos de dois anos, o presidente Jair Bolsonaro vai se metamorfoseando de acordo com as circunstâncias e conveniências políticas, mas de uma coisa ele não abre mão: dobrar a aposta a toda semana, a toda hora, na sua versão da “gripezinha”. São 152 mil mortos, mais de 5,1 milhões de contaminados e o discurso do presidente do Brasil é o mesmo, inacreditavelmente, irritantemente, negacionista.

Eu estava no velório do jornalista Alberto Coura, na quarta-feira, quando Bolsonaro insistiu que a pandemia é “superestimada”. Como assim? O que mais é preciso, no Brasil e no mundo, para o presidente admitir para sua gente que o coronavírus é grave, gravíssimo, uma tragédia na história da humanidade? Ele sabe exatamente o que se passa, mas não admite por estratégia, por cálculo político. Aliás, como fez e faz seu ídolo e mentor Donald Trump nos EUA.

Beto Coura, que foi da EBC e assessorou o ministro Celso de Mello na presidência do Supremo, era muito querido em Brasília e casado com a também jornalista Vanda Célia. Tinha 63 anos, passou 84 tenebrosos dias numa UTI e morreu em função do vírus. Como falar que a pandemia foi “superestimada”? Como ouvir isso sem sentir indignação, pelo Beto, pela Vanda, pelos 152 mil mortos e suas famílias? Dói na alma.

Desde o início – quando o mundo inteiro já estava em alerta, mas ele e Trump davam de ombros – Bolsonaro não está preocupado com vírus, contaminação, mortes. Só teme o efeito na sua popularidade, no seu governo e na sua reeleição. A frase dele, ainda em março, diz tudo: “Se afundar a economia, acaba meu governo, acaba qualquer governo. É uma luta pelo poder”. Não, presidente, não é uma luta pelo poder, é uma luta pela vida.

O atual grande risco é a politização da vacina, única boia salva-vidas contra esse maldito vírus, que chega numa segunda onda e apavora novamente a Europa. Não satisfeito em relevar a obrigatoriedade de tomar a vacina, Jair Bolsonaro não acha fundamental uma vacina para acabar a pandemia, mas que a “sua” vacina chegue antes da “dele” – a do governador João Doria. Seria só mesquinho, não fosse odioso.

Ao dar ouvidos aos terraplanistas do governo, prevendo 3,5 mil mortes, e a empresários oportunistas, que imaginavam “só” 6 mil, Bolsonaro agia pensando nele mesmo. Daí vieram: “gripezinha”, “histeria da mídia”, “não sou coveiro”, “todo mundo vai morrer”, “e daí?”. Desdenhou do isolamento, promoveu aglomerações (inclusive golpistas), descartou as máscaras, demitiu dois ministros da Saúde, deixou um general interino por meses, faz propaganda de um remédio sem comprovação contra o coronavírus e, por fim, ameaça a vacina.

Bolsonaro já foi anti “velha política” e Supremo, “Jairzinho Paz e Amor”, candidato de chapéu de vaqueiro e carregando criancinha. O quarto Bolsonaro é pragmático. De almoço em almoço, café em café, ele está de volta aos braços do Centrão e virou amigo desde criancinha de ministros do Supremo, enquanto deixa o Posto Ipiranga para lá e promove o desmanche de saúde, educação, cultura, política externa e meio ambiente.

Esse “novo” Bolsonaro faz política, a velhíssima política. E não é que dá certo? Vai aprovar no Senado um sujeito com currículo todo esburacado para 27 anos no Supremo, não esquenta a cabeça com queimadas e com as angústias de Paulo Guedes com privatizações e teto de gastos e vai se consolidando nas pesquisas e construindo a reeleição. Apesar de tudo…

Inimigos 1, 2 e 3. Eis os maiores inimigos de Luiz Fux na presidência do STF: Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Lewandowski, os decanos n.º 1, 2 e 3. Nenhum deles é de brincadeira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Eliane Cantanhêde: O último a saber

Na guerra do ‘desequilibrado’ com o ‘despreparado’, Bolsonaro esquece Guedes

O presidente Jair Bolsonaro desautoriza Paulo Guedes num dia e no outro também e ontem o ministro foi o último a saber do encontro do chefe e do general Luiz Eduardo Ramos com seus dois maiores inimigos, o deputado Rodrigo Maia e o ministro Rogério Marinho. Soube por uma foto em que só aparecia Maia. À vontade, íntimo da “casa”, o fotógrafo foi Marinho.

Guedes acusa Maia de boicotar as privatizações, Maia chama Guedes de “desequilibrado” e Guedes ataca Marinho como “despreparado”, por admitir publicamente furar o teto de gastos. Logo, a coisa está animada na cúpula do governo, com o presidente no meio de uma guerra entre o “desequilibrado” e o “despreparado”. Ou melhor, no centro.

O tema da reunião, informou-se, foi de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, mas como assim? O ministro da Economia, dono da chave do cofre, não estava presente, não foi convidado, nem sequer foi comunicado. E chiou. Como anda com os erros à flor da pele, envolto em dúvidas e convivendo dia a dia com a insegurança da própria equipe, dá para imaginar que a chiadeira não foi lá das mais calmas e elegantes.

O Planalto e Bolsonaro tiveram um trabalhão para convencê-lo de que se tratava de um cafezinho inocente e que o presidente mantém inalterados tanto a defesa do teto de gastos quanto a confiança e apreço pelo seu Posto Ipiranga. Se o próprio Guedes tem lá suas dúvidas, certamente o mercado e a opinião pública não ficam atrás.

Quando se pergunta no governo qual a diferença entre Sérgio Moro e Paulo Guedes, a resposta é uníssona: Moro, segundo eles, com replique nas redes bolsonaristas, foi “desleal”, “mau caráter”, uma “surpresa”, enquanto Guedes não é nada disso e é praticamente indemissível.

Na verdade, o que ministros diziam de Moro às vésperas da queda dele é o que dizem agora de Guedes: um pilar do governo; o presidente sabe a importância que ele tem; aliás, gosta muito dele, pessoalmente; a chance de ele sair é zero… Era zero com Moro e é zero com Guedes, mas só até a próxima curva.

Paulo Guedes é teimoso e duro na queda, não vai engolir desaforo calado, como Moro, e depois sair atirando. Ele está guerreando pela sua posição a céu aberto, botando a boca no trombone e se esforçando para manter unida o que resta da equipe econômica, depois da “debandada” que lhe tirou os secretários da Receita, do Tesouro, das Privatizações e da Desburocratização.

Só conseguiu salvar o da Fazenda, que recebeu “cartão vermelho” do presidente, mas se manteve – com o compromisso de boca fechada. Esse compromisso Bolsonaro não vai arrancar de Guedes. Ficando ou saindo, ele vai continuar sendo Guedes, sem papas na língua.

O script continua como previsto: depois de perder uma atrás da outra no governo e passar a ser sistematicamente criticado no mercado e na mídia por falar muito e entregar pouco, Guedes sobe e desce, sobe e desce, numa montanha-russa. Como na queda de Moro, ministros e assessores penduram-se no telefone para jurar que Guedes está firme feito uma rocha, mas assim mesmo começa a bolsa de apostas para lhe suceder, que nem vale citar aqui, para não botar mais fogo no circo.

Mais do que nomes, aliás, tem-se uma certeza: não será nenhum nome óbvio. E por que essa certeza? Basta ver como foram as escolhas para Educação, Saúde e Supremo: Carlos Alberto Decotelli, Milton Ribeiro, Eduardo Pazuello e Kassio Nunes.

Nomes fora de qualquer lista, soprados ao ouvido sensível do presidente, que leva a sério quem toma tubaína com ele e está cada vez mais se lixando para a gritaria de robôs bolsonaristas, ou chororô de derrotados. E não se assustem com um sucessor de Guedes do Centrão, ou apadrinhado pelo grupo. Sinto informar. Guedes ainda não perdeu, mas o Centrão já venceu!