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Eliane Cantanhêde: E daí, deixar pra lá?

Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina, mas oferece o que contra a covid-19?

O presidente da Câmara, Arthur Lira, interditou definitivamente a palavra “impeachment” e o do Senado, Rodrigo Pacheco, engavetou indefinidamente a CPI da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro, porém, precisa responder uma pergunta que o Brasil faz e a história ratificará: qual é a política dele para enfrentar a pandemia? Ninguém sabe, ninguém viu.

Sua ojeriza à ciência, à medicina, à pesquisa e às estatísticas é chocante e seu comportamento e suas declarações raiam o patológico. Ele é contra todas as medidas internacionalmente consensuais na pandemia, mas não contrapõe nada, não apresenta uma única proposta no lugar.

Quase um ano, 255 mil mortos e 10,5 milhões de contaminados depois, o presidente ainda trata a Covid-19 como “gripezinha”, anunciou que a doença estava no “finalzinho” exatamente quando ela disparava de novo e é capaz de levar a sério quem chama de “fraudemia” uma pandemia que matou 2,5 milhões de pessoas no planeta. 

Todos os países sérios priorizaram o isolamento social, mas Bolsonaro não seguiu estudos do Exército e da Abin e não liderou o Brasil nessa direção. Ao contrário, trabalhou contra, promoveu aglomerações até diante do QG do Exército e ameaça os governadores: quem decretar lockdown que pague o auxílio emergencial. Sem vacinas suficientes, que alternativa eles têm? Lavar as mãos para as mortes?

No domingo, em pleno caos no País, ele postou imagens de um protesto contra medidas restritivas no DF, com 97% das UTIs lotadas. Assim como os bolsonaristas comemoraram o recuo das restrições no Amazonas, que deu no que deu, os filhos do presidente defendem o recuo do DF, que vai dar no mesmo.

E quem explica a guerra de Bolsonaro – ou dos Bolsonaros – até contra máscara? Ele continua abraçando incautos ou áulicos sem ela, no Planalto e em campanha pelo interior, implicou com Roberto Castello Branco, da Petrobrás, porque ele usava e quem vai ao Planalto é constrangido a tirar a sua. Por que isso incomoda tanto Bolsonaro, como as cadeirinhas nos carros? Mistério!

Depois de o presidente lançar fakenews contra máscaras, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta me enviou uma lista de links, em português e inglês, sobre a importância dessa proteção para conter o vírus e as mortes. E, no domingo, nada mais nada menos que 45 entidades médicas alertaram que desacreditar as máscaras só “agrava a situação do País”. Logo, o presidente agrava a tragédia brasileira.

Como esquecer o empenho obstinado de Bolsonaro contra as vacinas? Ele desautorizou o general Eduardo Pazuello ao cancelar a compra “dessa vacina chinesa do Dória” e, quando um voluntário dos testes se suicidou, acusou irresponsavelmente a vacina por “morte, invalidez e anomalia”. Mas o que seria do Brasil sem a Coronavac?

O governo pendurou-se num único fornecedor, a Oxford-Astrazeneca, desdenhou da Pfizer, ignorou a Sputnik, a Moderna, a Janssen... Segundo o presidente, quem quer vender que se mexa e, para mostrar que não é “maricas” e é “imbroxável”, anunciou: “Não vou tomar vacina e ponto final”. Incrível!

Logo, o Brasil sabe que Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina. O que o Brasil não sabe é como, então, o presidente pretende combater a Covid-19. Essa resposta é fundamental para os brasileiros saberem que saída genial e original ele tem para salvar vidas, o sistema de saúde, a economia e os empregos. Andando de jet-ski?

É isso que 19 governadores, 45 entidades médicas, epidemiologistas e cidadãos querem, e precisam, saber. Aliás, um registro: na foto da reunião de domingo no Alvorada, o capitão e seus generais estão sem, mas Paulo Guedes, Pacheco e Lira estão de máscara. Que recado eles quiseram passar? Que, diferentemente do presidente, são a favor da vida?


Eliane Cantanhêde: Petistas e bolsonaristas, tudo a ver no 'nacionalismo' e na 'visão social'

Bolsonarismo e PT, tudo a ver na Lava-Jato, Moro, MP, mídia, Petrobrás, reformas e mercados 

Em nome de um “nacionalismo” anacrônico e de uma “visão social” puramente populista, vale tudo, até o PT apoiar a clara intervenção que derrubou as ações da Petrobrás e a credibilidade do Brasil mundo afora. O resultado é uma curiosa situação: o presidente Jair Bolsonaro corre para jurar que é o que não é, liberal, privatizante e respeitador das estatais, enquanto petistas defendem o que Bolsonaro realmente é, corporativista, estatizante e intervencionista. Coisas do Brasil. Coisas da polarização. 

O “novo” Congresso aproveita o ensejo. Primeiro, a Câmara pagou pedágio, confirmando a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) determinada pelo Supremo. Depois, escancarou as porteiras, não para as boiadas do ministro Ricardo Salles, mas para as suas próprias boiadas. Com o enterro da Lava Jato, sem choro da esquerda nem vela da direita, o ambiente é bem favorável. A hora é agora! 

A tal PEC da imunidade parlamentar, carimbada como PEC da impunidade, surgiu do nada, sem aviso prévio e sem passar por comissões e ritos antes de desabar direto no plenário. Seu efeito mais estridente é que deputados e senadores dificilmente poderão ser presos. Num resumo caricato, se Sua Excelência for pego, fotografado e filmado com a mão na botija, roubando dinheiro público, vai ter tempo para articular e se livrar. 

Um ministro do Supremo, digamos, Alexandre de Moraes, não vai poder mais mandar prender em flagrante um deputado, digamos, o bolsonarista Silveira, quando ele atacar a democracia e as instituições e, de quebra, cometer um crime comum: ameaçar dar uma surra num ministro da alta Corte. Qualquer decisão terá de esperar o plenário do STF e depois a Câmara. 

A intenção, como admite o novo presidente da Câmara, Arthur Lira, é evitar que a coisa chegue até onde chegou com Daniel Silveira – que está na cadeia – e estabelecer que só o próprio Congresso possa autorizar cassação ou punição a parlamentares. Deixa para o Conselho de Ética da Câmara, aquele que devidamente cassou o mandato da deputada Flordelis, ré pelo assassinato do próprio marido. E para o Conselho do Senado, que diligentemente puniu o “senador da cueca”. O quê? Não foi bem assim?! 

Na admissibilidade da PEC da impunidade, como na defesa da intervenção na Petrobrás, lá estavam juntos bolsonaristas e todos os outros “istas”: emedebistas, peessedebistas, pepistas, trabalhistas e... a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Todos abraçados ao Centrão para se autoblindarem e se tornarem mais cidadãos do que o “resto” dos cidadãos. No dia em que o Brasil chorava a marca de 250 mil mortos na pandemia, o Congresso fazia a festa da impunidade e o Planalto, a da aglomeração sem máscara para duas posses desimportantes. 

A polarização de 2018 parece sólida como uma rocha para 2022, mas os dois extremos já não parecem tão opostos como pareciam em questões centrais: Lava Jato, Sérgio Moro, Ministério Público, mídia, independência da Petrobrás, estatização, reforma da Previdência, reforma administrativa, populismo e até os arranjos “de bastidores” no Congresso. Ou alguém esqueceu que o PT estava com o pé na campanha do candidato de Bolsonaro para a presidência da Câmara? E que apoiou o candidato dele no Senado? 

A rejeição ao mercado está neste contexto. Da boca para fora, bolsonaristas e petistas atacam; entre quatro paredes, a história é outra. Tanto nos dois governos Lula quanto no governo Bolsonaro as relações com o grande capital, os maiores grupos empresariais e as eternas “elites dominantes” são bem confortáveis. Até os ataques e estranhamentos estão devidamente “precificados”, para usar um termo do próprio mercado. 

Bom 2022!


Eliane Cantanhêde: ‘Engodo liberal’

Persio Arida alertou que o liberalismo de Bolsonaro era uma farsa e Guedes não mandaria nada

Não foi por falta de aviso. Desde a campanha eleitoral, em 2018, as vozes mais brilhantes da economia, com grandes serviços prestados ao Brasil, já alertavam para o autoengano do mercado com o liberalismo improvisado do corporativista Jair Bolsonaro, que usou o “Chicago Boy” Paulo Guedes para “enganar um bobo, na casca do ovo”. 

Foi assim que Bolsonaro venceu e, presidente, joga pela janela a “nova política”, a Lava JatoSérgio Moro, as reformas, as privatizações e as regras de mercado. Só falta jogar o próprio Guedes e... a democracia. Quanto ao ministro, é considerado questão de tempo. Quanto à democracia, é melhor prevenir agora do que (tentar) remediar depois. 

Persio Arida, um dos pais do Plano Real e assessor da campanha do tucano Geraldo Alckmin, não grita, não é histriônico, nem sequer é político, mas alertou o tempo todo para exatamente tudo o que está acontecendo agora. Banqueiros, empresários, economistas e metidos a entendidos, não venham dizer que não sabiam e estão perplexos. O passado condena. O passado de Bolsonaro já dava todas as pistas do que viria por aí. 

Em entrevista inesquecível à repórter Renata Agostini, no Estadão, Arida disse que o capitão Bolsonaro era um “engodo liberal”, como o coronel Hugo Chávez na Venezuela, e alertou para a esquizofrenia da campanha bolsonarista: um candidato estatizante e corporativista escudando-se num “Posto Ipiranga” privatizante e reformista. Sua aposta: o “mitômano” Guedes não ia mandar nada. Afinal, “quem tem a caneta manda”. 

Foi um momento “Mãe Dinah” de Persio Arida? Não, ele apenas disse o óbvio, mas o capital e grandes parcelas da população estavam cegos pelo ódio ao PT e foram facilmente manipulados por uma profecia autorrealizável: só Bolsonaro venceria o ex-presidente Lula ou o candidato dele. As pesquisas diziam o contrário, mas as redes sociais tanto martelaram isso que virou verdade. A facada fez o resto e veio “o mito”. 

Cadê o R$ 1 trilhão de Guedes com a venda de estatais? Bolsonaro é contra privatizações e o gato comeu. Cadê a promessa de Guedes de zerar o déficit público em um ano? Bolsonaro nunca quis cortar nada e, quanto mais 2022 se aproxima, menos ele quer. A reforma administrativa? Bolsonaro trancou na gaveta, em favor do corporativismo e do populismo. E a tributária? Ele não entendeu nada, mas não gostou. Dá muito trabalho. E não rende voto... 

Teimoso, obtuso, o capital segue com Bolsonaro contra tudo e contra o bom senso, mas seus argumentos, ou melhor, pretextos, vão lhes escorrendo pelos dedos. Quando já não sobrava quase nada a dizer, muitos ainda tentavam manter a pose: “Ah! Deixa o Bolsonaro para lá, o importante é deixar o Guedes trabalhar”. Ainda tentam? 

Gurus e “gabinete do ódio” estão tendo um trabalhão para providenciar algum discurso para o capital e as tropas bolsonaristas da internet, depois de Bolsonaro entrar de sola na Petrobrás e rasgar o que restava dos seus compromissos de campanha. Desta vez, a um altíssimo custo: a mais simbólica companhia brasileira derreteu R$ 100 bilhões até esta segunda-feira, 22. 

A bomba na Petrobrás enterra o “engodo liberal”, humilha o “mitômano” Guedes, chacoalha o cinismo do mercado, deixa o Banco do Brasil e as estatais de barbas de molho e obriga os bolsonaristas renitentes a dar um salto mortal: de endeusadores da Lava Jato, viraram algozes de Sérgio Moro; de adeptos de Guedes, terão de virar inimigos do liberalismo. O bolsonarismo segue os passos do petismo. 

Como efeito colateral, Bolsonaro vai cooptando um general atrás do outro e, assim, embaçando a visão estratégica das Forças Armadas. Aliás, outro alerta certeiro de Persio Arida parece cada vez mais atual: “Bolsonaro é um risco à democracia”, já dizia em 2018. 


Eliane Cantanhêde: ‘Nova política’, vade retro!

Bolsonarista Daniel Silveira empurra os três poderes para um acordão e enterra a ‘nova política’

O presidente Jair Bolsonaro e o Exército fecharam a boca, os três poderes se articularam e prevaleceu o bom senso para evitar uma crise institucional e superar o episódio “Daniel, como é mesmo o nome dele?”. O Supremo cumpriu sua função, o Congresso reagiu com maturidade, o Planalto não atrapalhou e o resultado é que o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) passa uns dias em cana e está isolado na Câmara

O ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante de Silveira, que faz apologia do AI-5 e agride violentamente os ministros do Supremo; o plenário da Corte ratificou a prisão por unanimidade e em tempo recorde; o presidente da Câmara, Arthur Lira, ouviu Planalto, Senado e líderes partidários e articulou o acordão com o próprio Supremo. Duas coisas podem atrapalhar tudo: as ligações do deputado com a milícia e os dois celulares encontrados com ele

Pelo acordo, a Câmara mantém a prisão, Moraes dá um tempo e depois usa a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para relaxar a prisão e trocá-la por tornozeleira eletrônica. Resta saber o que de fato acontecerá com o bolsonarista Silveira, que é uma ameaça à democracia e à sociedade. Ele será investigado pelo Supremo e pelo Conselho de Ética da Câmara. Pode ser suspenso, cassado ou... nada. 

Por isso o STF não aceitou a primeira proposta do Congresso: a Câmara derrubaria a prisão, mas com o compromisso de abrir processo contra Silveira no Conselho de Ética. Como confiar, se o conselho lava as mãos até para a deputada e pastora Flordelis, condenada pelo assassinato do marido? 

Enquanto os poderes têm de perder tempo e energia com gente assim, vale refletir em que contexto Daniel Silveira foi eleito deputado federal, depois de expelido da Polícia Militar do Rio por 26 dias de prisão, 54 de detenção, 14 repreensões e duas advertências. Com esse currículo, ele só pôde ser eleito na onda Jair Bolsonaro, ele próprio um militar que saiu cedo do Exército por insubordinação. 

Essa onda da “nova política” tirou do Congresso (e de legislativos e governos estaduais) políticos experientes e de bons serviços prestados em comissões, lideranças e relatorias de temas essenciais. E pôs no lugar policiais, bombeiros, militares, procuradores – entre eles, toda uma gente que sempre passou ao largo da política. Pior: com horror à política e à negociação, diálogo, contraditório. Para não dizer democracia e instituições. Ao destruir a placa para a vereadora assassinada Marielle Franco, Daniel Silveira atacou o que ela representava: a política (entrou nela para destruí-la por dentro), mulheres, negros, gays, inclusão social, justiça e humanidade. 

Agora, ele está preso e foi abandonado, mas não fala sozinho. O deputado Eduardo Bolsonaro já defendeu a volta do AI-5, o mais feroz instrumento da ditadura militar, e que “basta um cabo e um soldado para fechar o STF”. E o presidente da República, além de ouvir em silêncio o então ministro da Educação propor a prisão dos membros do Supremo, atiçou e participou de atos contra as instituições. 

A “nova política”, porém, envelheceu rapidamente, com Wilson Witzel afastado do governo Rio por desvios, governadores do PSL e do PSC em apuros, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) rejeitada por multidões para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), um bando deles respondendo no Supremo por fake news e movimentos golpistas. 

O próprio Bolsonaro está saindo de fininho, abraçado à “velha política” e ao Centrão e empenhado na aproximação com o Supremo. Os filhos que votem como bem entenderem sobre a prisão de Silveira, um bolsonarista raiz, porque papai Jair está mais preocupado em se dar bem no Congresso e no Supremo. Para os Silveiras e o resto, migalhas. Ou armas e munições à vontade.


Eliane Cantanhêde: Ruído entre STF e Forças Armadas, enquanto Bolsonaro se aproxima de antilavajatistas

Ruído entre STF e Forças Armadas, enquanto Bolsonaro se aproxima de antilavajatistas

O novo foco político está no mal-estar entre as Forças Armadas e o Supremo, após o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas confirmar, em livro-entrevista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o que me disse em 4 de abril de 2018 e publiquei no Estadão: suas mensagens no Twitter contra um habeas corpus para o ex-presidente Lula sair da prisão não foram pessoais, foram combinadas com o Alto Comando do Exército.

Na reportagem, depois da forte repercussão à sua manifestação pelas redes sociais, ele me disse que a sua fala “expressa a posição do Alto Comando do Exército e é exclusivamente a da Força”. Ou seja, o general não foi ao Twitter por conta própria, e sim pelo Exército. Só fez uma ressalva: que não combinou com Aeronáutica e Marinha.”

No livro Villas Bôas: conversa com o comandante (Editora FGV, 2021, 244 págs), de Celso Castro, o general detalhou em setembro de 2019: “O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo expediente, até por volta das 20 horas, momento que liberei (para divulgação)”.

O Alto Comando reúne os generais-de-Exército, de quatro-estrelas, que chefiam as regiões militares e os principais departamentos e secretarias da Força. Foram eles quem produziram os dois textos que Villas Bôas publicou em 3/4/2018, véspera do julgamento do Supremo sobre manter ou não Lula preso – o que faria, como fez, toda a diferença na eleição presidencial, meses depois.

Primeiro tuíte do general: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” Em seguida: “Asseguro à Nação que o Exército julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia (...)”.

Assim como Villas Bôas não falou sozinho, a reação do decano do STF também não foi pessoal. Celso de Mello, hoje já aposentado, não citou o comandante, mas classificou a manifestação dele como “claramente infringente do princípio da separação de Poderes” e criticou “insurgências de natureza pretoriana que, à semelhança do ‘ovo da serpente’, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas”. Em nota de ontem, na mesma linha, o ministro Edson Fachin considerou “intolerável e inaceitável qualquer forma ou modo de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário”.

À FGV, Villas Bôas, que é da reserva e sofre de ELA, uma doença degenerativa, disse que sua manifestação foi “um alerta, antes que uma ameaça”. Ele, porém, repetiu o que também já me dissera em sua primeira entrevista como comandante do Exército, publicada no Estadão em dezembro de 2016, um ano e quatro meses antes do julgamento do HC de Lula. Segundo ele, “tresloucados e malucos” batiam às portas das Forças Armadas (FA) pedindo a volta dos militares ao poder. Algo, dizia, que tinha “chance zero”.

O livro de Villas Bôas vem numa hora de noticiário desfavorável às FA e em que Bolsonaro, contrário a Celso de Mello, Fachin e Alexandre de Moraes, já identificou um elo no Supremo: o antilavajatismo. Por essas ironias da história, ou espertezas da política, o presidente que usou Sérgio Moro como troféu se une aos algozes de Moro e defensores de Lula para proteger filhos e Centrão. E que, eleito com um empurrão dos militares, usa símbolos das FA e libera o uso do nome delas, em vão, para insinuar golpes. Podem ser meras bravatas. Ou não.


Eliane Cantanhêde: PSDB ataca Doria, DEM tira o tapete de Huck, Lava Jato engole Moro. E Luiza Trajano?

Quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas

Se parece pato, anda como pato e grasna como pato, pato é. Se o novo ministro da Cidadania, João Roma, fez toda a sua carreira no DEM, colado em ACM Neto e era seu chefe de gabinete, ACM Neto ele é. Jura que foi parar no colo do presidente Jair Bolsonaro pelo Republicanos e por Marcos Pereira, ninguém acredita. Depois de Sérgio Moro, em 2019, o maior troféu de Bolsonaro é ACM Neto, que perde o status de uma das grandes promessas nacionais e arrasta junto o DEM.

Além de, novamente, garantir mais armas e mais balas para civis, Bolsonaro está soltando fogos. O Centrão transformou o Congresso em puxadinho do Planalto e o DEM cala Rodrigo Maia, voz decisiva da resistência ao autoritarismo e ao atraso, imobiliza Luciano Huck, obrigado a procurar outra sigla, e desarticula uma saída da catástrofe pelo centro – que está descambando para a extrema direita.

Num movimento combinado, o PSDB segue o desastre do DEM, como um piloto que, em meio a forte tempestade, entra em estado de desorientação espacial. Trancado na cabine (no caso, na bolha), não enxerga nada à frente, não sabe mais se está subindo ou descendo e acelera até se esborrachar no solo logo ali. É mesmo estonteante o DEM e o PSDB elegerem João Doria e Maia como inimigos prioritários.

É hora de atacar Doria? Goste-se ou não dele, e muita gente não gosta, ele é governador do principal Estado do País, ocupa a mais importante vitrine nacional dos tucanos e merece aplausos pela visão, diligência e decisão ao providenciar as vacinas. Com legitimidade, fazia uma dupla fundamental com Rodrigo Maia para dizer “não” a investidas golpistas e medidas retrógradas.

O que seria do Brasil sem as “vacinas chinesas do Doria”? Em fevereiro, teríamos dois milhões de doses para 210 milhões de habitantes, com 9,8 milhões de contaminados, 238 mil mortos e novas variantes mais ameaçadoras, enquanto o presidente insiste no “e daí?”. E, sem Maia na Câmara e Doria no PSDB de São Paulo, quem dará voz e cara à oposição? Bolsonaro torce para Lula e Fernando Haddad.

O tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, tem lá suas qualidades, mas não pode ser séria a articulação do seu nome para a Presidência. Muito jovem, está no primeiro mandato relevante, num Estado que se especializou em torrar seus quadros políticos e nunca reelegeu um único governador. Logo, a caravana tucana pode tê-lo convencido, mas a ninguém mais.

Chutar Doria para pôr Leite no lugar tem cara de blefe, para dissimular uma outra jogada: a aproximação com Bolsonaro. Consolida, assim, a análise de que o melhor que pode acontecer ao PSDB é pôr ponto final na sua bela história, antes de um triste fim - que pode estar perto. Depois do ministro de ACM Neto, Bolsonaro busca nomes vistosos do PSDB e do MDB para o governo.

Com PSDB e DEM se autodestroçando, Bolsonaro corre sozinho, cada vez mais lépido, fagueiro, sem noção e sem escrúpulos, sustentado por Forças Armadas, polícias, milícias, os reinos de Deus, Centrão, Congresso e “oposição”. Não pensem o PT e a esquerda que isso é bom para Lula, Haddad ou quem quer que seja. Na implosão do centro, a debandada é para Bolsonaro.

Doria, Huck, Moro e Luiz Henrique Mandetta são torpedeados antes de alçar voo, mas, como não há vácuo em política, quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas, como cotas, vacinas, menos ideologia e mais resultados. Sim, Luiza Trajano, sem partido e sem traquejo político, mas instada a botar o bloco na rua e, num carnaval tão atípico, animar e atrair um grande aliado de Bolsonaro: o eleitor desiludido, ou desesperado, que só vê o buraco aumentando.


Eliane Cantanhêde: Militares podem até lucrar com Bolsonaro, mas o ônus para as Forças Armadas é imenso

Militares podem até lucrar com Bolsonaro, mas o ônus para as Forças Armadas é imenso

A conta do mergulho na política e da adesão ao candidato e agora presidente Jair Bolsonaro começa a chegar para as Forças Armadas, obrigadas a explicar milhões de reais em chiclete e leite condensado e agora a defender seus churrascos em 2020, com 700 mil quilos de picanha e, como ninguém é de ferro, 80 mil cervejas puro malte. O preço foi bem salgado, R$84,14 o quilo da carne, R$ 9,80 cada cervejinha.

Também é desanimador os hospitais do Exército e da Aeronáutica bloquearem só para militares e deixarem vazios 72% (84 de 116) dos seus leitos, segundo o UOL, enquanto 276 pacientes de Covid aguardavam vagas ontem e 529 tiveram de ser “exportados” para outros Estados e o DF desde 15 de janeiro. Leito vazio? Pago com dinheiro público, mas só para militares? Coisa feia!

O vice Hamilton Mourão anunciou que a Operação Verde Brasil 2, prevista para até 2022, vai acabar em 30 de abril, com a retirada de militares das ações contra queimadas e desmatamentos na Amazônia. Com a volta desses contingentes às suas bases, serão mantidas as montanhas de chiclete e leite condensado? E as carnes nobres e o puro malte são para quem?

A sensação é de que a retirada foi uma puxada de tapete em Mourão. Indagado se foi um pedido (ou retaliação?) de Bolsonaro, Defesa e ou Comando do Exército, ele respondeu à coluna: “Fim da missão, apenas isso”. E, assim, após pisoteados pela “boiada” do ministro Ricardo Salles, o Ibama e o ICMBio, atualmente cheios de militares, vão retomar a dianteira na proteção da Amazônia, com Inpe, Polícia Federal e Polícia Rodoviária.

Não é exclusivo do Meio Ambiente, porque o capitão Bolsonaro levou generais para a Vice e todos os cargos relevantes do Planalto, expôs um general da ativa a vexame público na Saúde numa pandemia e encheu diferentes pastas – até a pobre Secretaria de Cultura – com militares. Toma lá, dá cá de cargos com político não podia, mas com militar e agora com Centrão é uma festa.

O resultado nem sempre é engrandecedor para as FA, particularmente para o Exército, como no caso do ministro Eduardo Pazuello, todo atrapalhado e respondendo à PF, ao MP e ao Congresso por falta de oxigênio e vacinas, excesso de cloroquina inútil, descaso com seringas, agulhas e testes de Covid. O risco é um general da ativa no foco de uma CPI da Pandemia (que pode chegar até aos 73 mil militares que receberam ilegalmente o auxílio emergencial).

Pazuello gosta de cantar de galo e o secretário-geral da Saúde, coronel Elcio Franco, entrou de mau jeito na guerra política de Bolsonaro com João Doria. Quando o governador anunciou a vacinação em janeiro, o militar chamou de “devaneio” e o acusou de “estar sonhando acordado”. E ainda ensinou: “Não será com discursos de ódio ou tendenciosos que serão encontradas soluções”. Pois é...

Em meio à confusão, vem aí um livro-entrevista em que o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas confirma que o Alto Comando participou diretamente da advertência (ou ameaça) que ele fez ao Supremo, em 2018, na véspera do julgamento de um habeas corpus contra a prisão do ex-presidente Lula.

Por essas e outras, as Forças Armadas são suspeitas de atuar politicamente para tirar Lula do páreo e dar a vitória a um capitão que dá poder a generais e empregos e reformas (previdenciária e administrativa) diferenciadas para militares, enquanto discursa num ato golpista com o QG do Exército ao fundo e sobrevoa outro em helicóptero militar e com o ministro da Defesa, general de quatro estrelas.

Bolsonaro lucra muito com essa parceria, mas o ônus de médio e longo prazos para as Forças Armadas, inclusive para sua imagem, tende a ser muito maior do que o bônus fugaz para dez, cem ou milhares de seus integrantes. A História dirá.


Eliane Cantanhêde: Amigos e ministros são paus, pedras e vitrines para pandemia, vacinas, Manaus, combustíveis...

Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras

Nada melhor, e às vezes bem fácil, do que sair do alvo terceirizando culpas e responsabilidades, dando voltas, avançando e recuando, desqualificando os que denunciam, atiçando os cães de guarda, rindo dos indignados e enganando os trouxas. O presidente Jair Bolsonaro é craque nisso, mas ele só acerta porque há quem faça o jogo dele.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que abriu nove “investigações preliminares” sobre a ação, ou inação, de Bolsonaro na pandemia. Motivos não faltam, culminando com o atraso das vacinas, mas as investigações nunca saem das preliminares e quem está objetivamente na mira é o general Eduardo Pazuello. Ele bate no peito para dizer que negocia vacinas em várias frentes, sem se penitenciar por fazer em fevereiro de 2021 o que 50 países sérios fazem desde meados de 2020. Além de submisso e atrasado, ele é atrapalhado.

Em ofícios de julho, agosto e outubro de 2020, revelados pela revista Piauí, o Butantan tentou acordar Pazuello para a corrida das vacinas. Ele não deu bola, como não deu para o oxigênio de Manaus, milhões de testes que perderam a validade, a falta de seringas e agulhas, mais a MP que destinava R$ 37 milhões para a pandemia. Um espanto! Mas ele foi posto na Saúde para isso, para deixar para lá. “E daí?”

Agora, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, pressionam o ministro Paulo Guedes para reavivar o auxílio emergencial, enquanto Bolsonaro fica de espectador, falando o que o mercado quer ouvir, agradando os dois lados e pronto para capitalizar no final, como na primeira vez. O Congresso impôs, ele ficou com os louros.

Bolsonaro também foi rápido no gatilho ao dar uma “solução” para os preços dos combustíveis: mexer no ICMS, que é... estadual. Assim, lava as mãos e empurra a culpa, e a conta, para os governadores, que ficam cara a cara com caminhoneiros em pé de guerra e com a classe média estupefata diante dos R$ 5,15 da gasolina comum nos postos. Alguém tem que dizer não.

Bolsonaro também acusou a “vacina chinesa do Doria” de “mortes e invalidez”, cancelou a compra de 46 milhões de doses, não negociou nada e anunciou que não vai se vacinar, ponto final. Mas, dessa vez, pegou mal. Até seus seguidores acharam um pouco demais. Qual a saída de Bolsonaro? Consertar o discurso, repetindo o tempo todo que sempre quis comprar vacinas, desde que a Anvisa autorizasse. Então, de quem é a culpa pelo descaso e atraso? O Centrão diz que é da... Anvisa.

Na manhã de quinta, o líder do governo, Ricardo Barros, disse ao Estadão que a Anvisa “não está nem aí para a pandemia” e iria “enquadrá-la”. À noite, o Senado aprovou MP dizendo que a agência “concederá” autorização de vacinas em cinco dias. Logo, ela deixa de analisar e passa a só carimbar os pedidos. É obrigada a autorizar, mas, se houver reações adversas graves depois, é ela que responde. 

O líder do governo poria a faca no pescoço do contra-almirante Barra Torres, amigo de Bolsonaro, sem avisar ao presidente? E foi coincidência Bolsonaro incluir Barra Torres na sua live, horas depois da ameaça do líder e da aprovação da MP, para dizer que não interfere na Anvisa? Logo, Congresso e Anvisa se engalfinham, Bolsonaro finge que não é com ele e a falta de vacinas é culpa da... Anvisa.

Amigos são paus para toda obra, mas os de Bolsonaro são paus, pedras e vidraças. Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras. Perguntei a ele sobre a versões de que as investigações são só “preliminares” para não dar em nada. Ele reagiu: “Segundo meus adversários...” Soou como “eu não estou aqui para brincadeira”. A conferir.


Eliane Cantanhêde: Líder do governo contra a Anvisa e Bia Kicis para a CCJ refletem a ‘nova Câmara’ bolsonarista

Só num ambiente contaminado pelo bolsonarismo seria possível o PSL indicar deputada extremista para a principal comissão da Casa

Alguma dúvida de que está tudo dominado pelo presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarismo na Câmara? O deputado Arthur Lira (PP-AL), líder do Centrão e da “velha política”, apadrinhado de Bolsonaro e do governo, já assumiu a presidência da Casa com festança de 300 pessoas sem máscara, implodindo o bloco oposicionista e atacando o antecessor Rodrigo Maia, enquanto lia discursos sobre “harmonia” e “pacificação”. Parece alguém, não é?

Se há alguma esperança de bom senso é com o novo presidente do SenadoRodrigo Pacheco (DEM-MG), que não fez festança, não atacou ninguém e, lado a lado com Bolsonaro, condenou os “extremismos dos dois lados”, defendeu a “altivez” do Parlamento, se solidarizou com as famílias dos mortos da covid-19 e defendeu igualdade, justiça, democracia, República, federação, reformas e auxílio emergencial. O oposto do que prega Bolsonaro.

Só num ambiente tão contaminado pelo bolsonarismo seria possível o impossível: o PSL, partido que elegeu Bolsonaro em 2018, hoje rachado ao meio, indicou a deputada Bia Kicis para a mãe de todas as comissões da Câmara, a de Constituição e Justiça (CCJ). A rejeição a Kicis uniu o Supremo, toda a esquerda, parte do centro e até líderes do Centrão. Ou o PSL retira, ou vão lançar uma candidatura independente, como os deputados Lafaiette Andrada (Republicanos-MG) e Margarete Coelho (PP-PI). De direita, sim, mas não extremistas nem investigados pelo STF como Kicis.

Procuradora aposentada no DF, ativista das manifestações golpistas contra o Supremo e o próprio Congresso, divulgadora de fake news absurdas a favor de Trump e Bolsonaro e contra todos os demais, ela é também negacionista na pandemia e desfilou com uma placa replicando a reação de Bolsonaro à marca de 20 mil mortos pela covid-19: “E daí?”. Pacheco condenou extremistas. Alguém pode ser mais extremista do que isso?

E só nesse ambiente é possível uma guerra Barros versus Barra. Ricardo Barros (PP-PR) é o líder do governo na Câmara. Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, contra-almirante e amigo de Bolsonaro. Em entrevista bombástica ao Estadão, o líder ameaçou “enquadrar a Anvisa”, que “está fora da casinha” e “não está nem aí para a pandemia”. Um escândalo. É o líder do governo quem agora lidera as suspeitas que a oposição fazia de ingerência política na Anvisa. Viva-se com um barulho desses.

À coluna, depois da primeira reunião de líderes, Barros disse que seu ataque foi aplaudido por todos: “Só me deram parabéns. Ninguém falou ‘coitadinha da Anvisa’”. Oficialmente, ele quer que a agência, que é técnica, científica, apresse o rito de autorização das vacinas Sputnik V, da Rússia, e Covaxin, da Índia. Mas, como mostra a reportagem do Estadão, o imbróglio vem do governo Temer, quando ele era ministro da Saúde e comprou grande quantidade de um remédio que não foi autorizado pela Anvisa. Vingança?

Também à coluna, Barra Torres disse que o ataque do líder do governo é “estranho, desconcertante, desagradável, numa hora péssima” e, assim, “abriu um rastilho de pólvora na agência, onde todos estão se matando para fazer o melhor e o mais correto para o Brasil”. Convidado para a live de ontem com Bolsonaro, ele disse que “todos têm amigos, mas relação pessoal não interfere no trabalho” e avisou que vai continuar esse trabalho “até a hora que for possível”.

Bolsonaro assume o comando da Câmara e se prepara para aprovar todas as suas “boiadas”, armas, excludente de ilicitude, escola em casa, mineração em área indígena... Mas não pense que vai ficar barato. O Centrão está muito dono de si e, além de falar grosso com a Anvisa e atacar amigos do presidente, vai cobrar a conta em moedas mais objetivas: cargos, verbas, poder.


Eliane Cantanhêde: Dupla vitória de Bolsonaro

Aliados de Bolsonaro se unem no Congresso, adversários de 2022 se autodestroem e perdem

O que a eleição municipal de 2020 uniu a eleição para as presidências da Câmara e do Senado desuniu: MDBDEM e PSDB, os três carros-chefes de uma candidatura de centro em 2022, agora empacam, sem bússola e sem piloto. O desastre, enorme, pode ser personalizado em Rodrigo Maia, que implodiu sua corrida para um lugar ao sol entre os principais articuladores políticos do País.

A vitória do presidente Jair Bolsonaro é muito maior do que apenas a garantia de aliados cômodos e ativos na Câmara e no Senado, agora sob a condução do deputado Arthur Lira (PP-AL) e do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Já é espetacular, mas vai além. De um lado, o resultado nas duas Casas do Congresso deixa Bolsonaro numa situação bastante confortável. De outro, desmonta, já nos alicerces, a construção de uma sólida opção de centro.

O clima do Planalto, ontem, era de festa. O general Luiz Eduardo Ramos jurava que não comprou votos coisa nenhuma, apenas conduziu a distribuição “normal” de emendas. E que não trocou, nem trocaria, cargos por votos, só fez a “equalização” das vagas de governo: se o apoiador de Arthur Lira no Estado tal não tinha vaga nenhuma, mas o aliado de seu adversário Baleia Rossi (MDB-SP) tinha duas... Ora, tinha de melhorar essa balança aí.

O fato é que o governo entrou pesado, sim, e Bolsonaro se empenhou pessoalmente, sim, nas duas disputas, mas é preciso admitir que as forças políticas tiveram, como sempre têm, seus movimentos próprios, com sua dinâmica particular. Ou seja: contaram nos resultados, também, os acordos intramuros da Câmara e do Senado, as guerrinhas intestinas nos partidos, as divergências ideológicas.

Se o Planalto despejou R$ 3 bilhões em emendas “extras” para 250 deputados e 35 senadores, houve 250 deputados e 35 senadores que estavam pensando mais em suas vantagens do que em votar no que julgavam melhor para o País. Ou recebiam o favor aqui, para trair o voto ali. Vá se saber.

E o que aconteceu no DEM é uma verdadeira aula de política. Quando o então prefeito ACM Neto deu o troféu de campeão de votos a Bruno Reis, seu candidato à sua sucessão em Salvador, o que o mundo político vislumbrou foi uma forte aliança de Neto com o também eleito Eduardo Paes (Rio), Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre para amalgamar uma sólida aliança de centro para 2022.

O que se vê, dois meses e meio depois, é Maia para um lado, Alcolumbre para outro e ACM Neto liderando a maior rasteira de um partido num dos seus principais líderes – o próprio Maia. Sem a presidência da Câmara, sem fazer o sucessor, sem o seu partido, sem interlocução com Alcolumbre e histérico com Neto, ele vai precisar se reconstruir.

Se o DEM rachou, o que dizer dos parceiros potenciais para 2022? O MDB do Senado não teve o menor prurido, ou decência, ao jogar a candidata Simone Tebet (MS) aos leões e o MDB da Câmara não se uniu devidamente em torno de Baleia Rossi. O PSDB, rachado no Senado entre Tebet e as benesses de Rodrigo Pacheco, por um triz, não repetiu o passo trôpego do DEM na Câmara. Foi, voltou, foi de novo e disse que ficou com Maia e Baleia.

Política é assim. Bolsonaro foi o grande derrotado em novembro, levou um tombo com a posse de Joe Biden, outro com a falta de vacinas e um terceiro com a asfixia de Manaus e, assim, caiu nas pesquisas e passou a conviver com o fantasma do impeachment. Quanto mais ele descia a ladeira, mais a “opção de centro” subia. Pois não é que as posições se inverteram? 

Agora, é acreditar nas juras de amor à democracia, à República e à Federação que todos os candidatos fizeram. Mas Pacheco fez o discurso da unidade no Senado, Lira partiu para a guerra na Câmara. Por seis minutos. 


Eliane Cantanhêde: Com o Congresso no bolso

Bolsonaro constrói os pilares do governo sobre os escombros de suas promessas em 2018

Eleições e jogos de futebol não se ganham de véspera, mas, pelo andar da carruagem, dos cargos e emendas extras, os dois grandes vencedores na disputa de amanhã pelo comando da Câmara e Senado serão o presidente Jair Bolsonaro e o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). O grande derrotado tende a ser o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que teve importante papel na longa presidência da Câmara, mas tropeçou na reta final.

Assim como os militares aderiram à velha boquinha e à subserviência por conveniência que tanto criticavam nos políticos, Bolsonaro mergulhou de cabeça na velha política, na compra de votos, no toma lá dá cá, no Centrão e até nas mordomias que estufava o peito para condenar. Era tudo de boca para fora. Agora cai o pano, caem os pruridos, os escrúpulos.

Na mesma semana em que o governo anunciou o maior rombo das contas públicas da história, com um déficit de R$ 743,1 bilhões, ou 10% do PIB, o Estadão nos informa que o Planalto despejou R$ 3 bilhões em recursos “extras” – além das emendas parlamentares tradicionais – para 250 deputados e 35 senadores. Não é pura coincidência ser justamente agora, às vésperas das eleições no Congresso.

Dinheiro para prorrogar o auxílio emergencial não há e fórmulas para ampliar a abrangência e o valor do Bolsa Família ainda não estão no ar, mas o site Metrópoles revelou gastos de R$ 2,2 milhões com chicletes e R$ 15,6 milhões com leite condensado, para dar “energia” aos soldados. Bolsonaro, sendo Bolsonaro, reagiu atacando a imprensa e contaminando o ar com palavrões. E se fosse no governo Lula?

É sobre os escombros de suas promessas de 2018 que o presidente vai construindo a sustentação de seu governo, de suas ideias, projetos e pautas demolidoras. Foi assim que ele moldou uma vitória e tanto no Congresso, onde desfilou por 28 anos. A gente achava que não tinha aprendido nada, mas aprendeu tudo direitinho.

Com a faca e o queijo na mão, mais chiclete e leite condensado à vontade, Bolsonaro usa cargos e acena com ministérios para satisfazer a gula da turma. É preciso explicar: o Centrão está louco pelas vagas, mas Bolsonaro está louco é para cooptar parte do DEM (o próprio Alcolumbre?), MDB e PSDB para o governo. Seu objetivo é rachar o centro. A esquerda racha sozinha.

No Senado, Alcolumbre escolheu o favorito Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o levou de bandeja para Bolsonaro e viabilizou sua vitória, enquanto o MDB fazia a lambança de sempre e a senadora Simone Tebet (MDB-MS) achava possível ganhar com uma campanha de ideias, princípios e juras de independência. Um sonho de verão. 

Na Câmara, o líder do Centrão Arthur Lira (PP-AL) é favorito e única chance de mudança de última hora é que, com nove candidatos, três têm potencial para ter uns votinhos, forçar o segundo turno e se unir em torno de Baleia Rossi (MDB-S). Outro sonho de verão.

Bolsonaro perdeu a guerra da primeira vacina e da primeira foto para João Doria, mas ri à toa diante da perspectiva de vitória para Rodrigo Maia, candidato a ser o grande derrotado amanhã. Uma pena. Em três mandatos consecutivos na Presidência da Câmara, ele se superou, galgou vários degraus na hierarquia política e assumiu a cara e a voz da oposição a Bolsonaro.

Sempre pode haver surpresas (vide Severino Cavalcanti em 2005), mas Maia blefou com a reeleição no STF, demorou a definir um candidato, superestimou suas armas diante do arsenal do Planalto e, assim, ameaçou sua posição de ponte entre líderes e partidos de centro para 2022.

Ele, porém, tem 50 anos e oxigênio político nesse deserto de homens e ideias. O mundo dá voltas, a política é como nuvem e o Brasil precisa, mais do que leite condensado e chiclete, de seus principais quadros para enfrentar o que está aí.


Eliane Cantanhêde: Vitória do chiclete

Como Pazuello e Forças Armadas, Congresso adere ao ‘Bolsonaro manda, todos obedecem’

Parabéns, presidente Jair Bolsonaro! Quanto mais erra escandalosamente em todas as frentes de combate à pandemia, com um saldo macabro acima de 220 mil mortos e 9 milhões de infectados, mais ele vai se revelando um craque sem escrúpulos no jogo da velha política. Interfere em outro Poder, não desperdiça em emendas e cargos e está a dias de botar no bolso os presidentes da Câmara e Senado. De quebra, embaralhou o tabuleiro da oposição para 2022.

Centrão e a direita estão unidos e de barriga cheia, enquanto o PT trincou vergonhosamente as esquerdas no Senado e o DEM da Bahia traiu miseravelmente Rodrigo Maia na Câmara. É assim que o PT vai inviabilizando uma frente de esquerdas, ao mesmo tempo em que o DEM do ex-prefeito ACM Neto dá as mãos ao DEM de Davi Alcolumbre para queimar a largada de uma candidatura de centro em 2022. A reeleição de Bolsonaro agradece.

Nunca se viu o presidente irritado, ao menos chateado, diante do avanço do coronavírus e das mortes de milhares de brasileiros. Sempre que ele aparece bravo, aos palavrões, é porque a PF e o Ministério Público descobriram mais uma dos filhos ou porque a imprensa revelou mais um chiclete e um leite condensado milionários. O País que se dane. Só importa o que dói nele e na família.

Depois de “cuidar” dos órgãos de investigação do governo, Bolsonaro agora avança pelos outros Poderes. O ministro Kássio Nunes está a postos no Supremo, o deputado Arthur Lira (PP-AL) vai trancar o impeachment na Câmara e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) se prepara para enquadrar o Senado.

O Congresso vira a página de independência do Executivo e abre capítulos de vitórias de Bolsonaro. A CPI da Saúde é natimorta, a das Fake News perde fôlego, a “boiada” do Meio Ambiente vai passar e os retrocessos em armas, gênero e orientação sexual são favas contadas. Ficará evidente a simbiose entre Legislativo e Executivo, ou a submissão da pauta do Congresso aos interesses e crenças pessoais de Bolsonaro.

Na economia? Bem... Desde a campanha, a dupla personalidade do governo é óbvia, basta confrontar a vida e obra de Bolsonaro no Exército e na Câmara com o discurso dele como candidato e depois presidente. E, assim como Pazuello é escudo na Saúde, Ernesto Araújo na política externa e Ricardo Salles no Meio Ambiente, Paulo Guedes é na economia.

Nada anda. As reformas administrativa e tributária estão amarelando e dois símbolos das privatizações jogaram a toalha, o secretário de Desestatização e agora o presidente da Eletrobrás. Guedes engole as desfeitas do chefe e rebate a culpa para Rodrigo Maia, o Congresso, a esquerda. Todo mundo tem culpa, menos o presidente – que a vida inteira agiu na direção exatamente oposta à do seu ministro da Economia.

Quanto mais a popularidade cai e a pressão por impeachment sobe, mais Jair Bolsonaro adapta seu discurso às conveniências, joga o governo nas mãos de ministros e assessores e vai se revelando o verdadeiro Jair Bolsonaro. Bom de lábia, palavrão, velha política, estatização e ideologia de fundo de quintal. E ele tem estratégia e alvo certo, o Congresso, sem se descuidar do Supremo. Em julho, Kássio Nunes ganha reforço.

Até agora fundamentais contra as investidas golpistas e retrocessos bolsonaristas, Congresso e Supremo serão os pilares de Bolsonaro, apesar da absurda incompetência e da má-fé na contratação de vacinas, na condução da pandemia, no investimento em cloroquina, nas rachadinhas e chicletes. Em vez de impeachment, Bolsonaro colhe vitórias. Como Pazuello e Forças Armadas, o Congresso adere ao “um manda, o outro obedece”. O próximo deve ser o Supremo. Depois, não adianta chorar sobre o leite derramado. Nem condensado.