Eliane Brum
Eliane Brum: “Empresários não podem ser batedores de carteiras”
Respeitado por povos da floresta amazônica, o industrial Jorge Hoelzel Neto é um exemplo que o Brasil precisa enxergar com urgência
Décadas mais tarde, em 2015, eu participava de uma expedição a remo, a bordo de canoas, promovida pelos indígenas do povo Juruna, da aldeia Mïratu, e pelo Instituto Socioambiental, para constatar e refletir sobre a destruição promovida pela usina hidrelétrica de Belo Monte na região conhecida como Volta Grande do Xingu, no Pará. Avistei um homem muito branco, que remava silenciosamente ao lado de um adolescente que depois eu descobriria ser seu filho. “É o Jorge”, esclareceu um ribeirinho da Terra do Meio. “Ele sempre tá com a gente.” Era Jorge Hoelzel Neto, um dos acionários da terceira geração da Mercur, empresa familiar que neste ano completou 95 anos.
Fiquei intrigada. Soube então que a bolsa de água quente que eu costumava usar no inverno é hoje feita com a borracha produzida pelas reservas extrativistas da Terra do Meio, uma das regiões mais espetaculares da Amazônia brasileira. E, hoje, uma das mais pressionadas pela grilagem que explode em toda a floresta, estimulada e autorizada pelas declarações e ações do Governo Bolsonaro. E, no Pará, também pelas ações e declarações do governador Helder Barbalho (MDB).
Em mais de 30 anos de jornalismo, me mantive saudavelmente desconfiada com relação a representantes do que se chama de “mercado”. Mais ainda na Amazônia, vítima preferencial de projetos grandiloquentes que resultaram em catástrofes ainda mais grandiosas, concebidos pela iniciativa privada em parceria com diferentes governos, em especial na ditadura militar (1964-1985). Mas não só. A Amazônia guarda as cicatrizes de vários desvarios, como Fordlândia, cidade que Henry Ford construiu à beira do Tapajós para produzir borracha para os pneus de seus carros, entre os anos 20 e 40, no século passado.
Assim, preferi observar Jorge Hoelzel por anos antes de me arriscar a escrever sobre ele e sua atuação. Talvez a observação tenha sido mútua, porque na primeira vez em que abordei o assunto, ainda naquela canoada de 2015, ele deixou claro que não se pavonearia por fazer qualquer coisa de bom na Amazônia. Quem o conhece sabe que Jorge tem alergia a ternos, autoelogios e jargões do meio corporativo. Aos 58 anos, ele se autodefine como um “homem família”, ao lado da esposa e de dois filhos. Gosta mesmo é de ficar quieto, ouvir muito e curiosar com os olhos bem azuis de sua ascendência alemã acomodados embaixo de um boné. Tudo isso depois de meditar, a primeira coisa que faz a cada manhã.
Poderia se dizer que o dono da Mercur ama a Amazônia. É um fato. Mas acho que nunca se ouviu alguém admitir o contrário. É mais exato afirmar que Jorge Hoelzel é um empresário brasileiro que não odeia a Amazônia. A maioria dos empresários brasileiros parece ter raiva da floresta, onde atuam com mentalidade do século 20, ou talvez ainda do século 19. Tudo o que fazem é arrancar os recursos minerais da floresta, usando-a como um corpo para exploração e deixando destruição ambiental e humana em seu lugar. Ou transformando uma das maiores riquezas do planeta em soja ou pasto pra boi. São tragicamente poucos os empresários como Jorge que alcançaram os desafios do século 21 e compreendem tanto que a floresta é estratégica para o controle do aquecimento global quanto que a Amazônia pode definir que tipo de futuro a nossa e as outras espécies terão nas próximas décadas. Compreenderam também que a maior riqueza da floresta é justamente a floresta, ela mesma, com toda a sua diversidade biológica e também humana.
A Mercur se tornou um laboratório de boas práticas na pequena (e conservadora) Santa Cruz do Sul, cidade gaúcha mais conhecida pelas plantações de tabaco que se espalham pela região. E também pela contaminação por agrotóxicos conectada a um número alarmante de suicídios de agricultores. A cada ano, Jorge se desloca do Sul ao Norte para acompanhar a Semana do Extrativismo da Terra do Meio (SEMEX), em geral promovida numa das reservas ou numa aldeia indígena do Médio Xingu, a alguns dias de viagem de barco de Altamira, no Pará.
Durante dias, indígenas, ribeirinhos e empresários como Jorge debatem a produção coordenada por uma rede de 27 cantinas, uma parceria de várias organizações e órgãos socioambientais com associações de extrativistas e de indígenas e pelo menos uma de agricultura familiar. Entre 2018 e 2019 foram produzidos e comercializados quase 925 quilos de borracha, na forma de manta, e 5.551 quilos na forma de blocos; 1.410 quilos de farinha de mesocarpo de babaçu; e 1.800 quilos de copaíba. Em 2018, houve uma produção recorde de castanha: quase 16 mil caixas, o que rendeu às comunidades quase 1,8 milhão de reais. É importante sublinhar: tudo isso mantendo a floresta em pé, mantendo a biodiversidade e mantendo o modo de vida dos povos indígenas e ribeirinhos. Iniciativas como essa, que se espalham por diferentes partes da Amazônia brasileira, mostram que é possível e urgente produzir para a vida – e não para a morte.
Quem sabe suas palavras possam espanar a poeira de algumas mentes que se ocultam sob o jargão do mercado. Desde a redemocratização do país, a Amazônia nunca esteve tão ameaçada por um Governo como hoje. A floresta e seus povos, humanos e não humanos, precisam de todo o apoio possível para combater tanto a ignorância quanto a ganância, irmãs siamesas que hoje dominam o Planalto.
Durante as duas horas de entrevista feitas na cidade de Altamira, os olhos de Jorge orvalharam algumas vezes. Ele sabe que por melhor que seja a borracha, nossos erros não podem ser totalmente apagados. Na Amazônia, eles viram sangue e fogo.
“Nós queremos atuar em coisas que criem vida – e não morte”
Pergunta. Como sua família foi se envolver com borracha lá em Santa Cruz do Sul, numa época em que a borracha vinha da Amazônia?
Resposta. A nossa família tem um jeito meio peculiar. A gente nunca teve aquela ideia de que enriquecer era importante. Nunca foi essa a nossa batida. A Mercur é uma empresa familiar, fundada por meu avô e meu tio-avô. Os dois eram muito inquietos. Eles sempre tinham a impressão de que estava faltando coisas. Meu avô falava com o mundo inteiro com rádio amador, era um cara meio de vanguarda. Estava sempre atrás de coisas que não existiam. E tinha uma pegada espiritual forte, de cura. Às vezes tinha fila de gente na frente de casa para ele dar passe. O irmão dele tinha problema com os pneus, que rasgavam e eles não tinham como consertar. Tudo era importado. E cada pneu que estragava era uma peça enorme que tinha que ser importada. Isso na década de 20, logo depois da Primeira Guerra. Aí eles foram tentar entender de borracha pra resolver esse problema. E pegaram gosto, porque a borracha não é uma coisa certa. A borracha, ela é uma coisa viva.
P. Viva?
R. Sim. Principalmente a borracha natural. Significa que ela trabalha com o tempo. Ela não é como o plástico, que se conforma e só vai terminar daqui a 500 anos. A borracha está sempre se transformando.
P. Quando você se formou na universidade, estava com a cabeça formatada para fazer o que todos fazem: lucrar e crescer. Como foi mudando?
R. Eu percebi que eu estava num movimento meio que indo pra outro lado, né. Eu comecei a trabalhar na Mercur em 15 de janeiro de 1986. E eu estava meio incomodado, porque a gente aprende na faculdade que precisa crescer, né? E eu vim com todo gás pra crescer, pra expandir. Começamos então a construir uma equipe comercial muito forte. Convenci o meu pai que nós tínhamos que juntar as cinco empresas e criar uma só. Aí surgiu a Mercur S.A. E estávamos começando a alicerçar um modelo de crescimento forte mesmo. Criamos outros produtos escolares, como cola. Começamos a importar coisa da China. Nós tínhamos todas as licenças para crianças, como Barbie, Disney... Tudo o que passava na televisão. A gente passava o tempo inteiro dentro de avião. Uma equipe grande, viajando e consumindo. Começamos então a fazer um trabalho forte para o reposicionamento da marca. Mas, quando acabou, parecia que faltava alma. A marca estava bacana, mas não era a Mercur. Queriam que eu fizesse um lançamento em São Paulo e botasse um terno bonito, sei lá, um Armani. Mas eu não sou um cara de terno, né? A Mercur não é isso! Então fui apresentado ao Sérgio Esteves, um consultor de São Paulo que trabalha alinhado com as questões da sustentabilidade. Descobrimos então que fazíamos tudo errado. A gente achava naquela época que, pegando um pedaço do lucro e doando pra uma instituição de velhinhos, crianças, sei lá, pronto, deixava todo mundo em volta feliz. Aí ele nos mostrou que sustentabilidade era trabalhar para que as pessoas se sustentassem por conta própria.
P. Que ano era isso?
R. Isso já era 2007. E eu estava muito insatisfeito, porque todo mundo trabalhava demais na Mercur. E eu não acho que a vida é só escritório. A vida é muito mais do que isso. Aí um dia liguei pra ele: “Sérgio... Assim, ó, eu não vou conseguir dormir fazendo uma coisa legal num lado e uma coisa não legal no outro lado. Eu quero fazer tudo junto". Aí ele disse: "Bom... Aí o trabalho é maior”.
P. E como foi?
R. A gente tinha lá nosso quadrinho de valores cheio de pó, mas a gente nem olhava pra aquilo ali. Nosso negócio era ganhar dinheiro. Aí começamos a retomar as questões de princípios e de valores. Tipo... Qual é que é o nosso legado? O que a gente quer construir para a sociedade e com a sociedade? Pra que que serve uma empresa? Então a gente começou a se dar conta que a empresa não serve pra tirar dinheiro da sociedade, ela serve pra promover algum bem estar pra sociedade. E isso mexeu muito com a gente. Tanto que, na primeira vez que eu fui falar sobre a Mercur, fiz uma lâmina para o powerpoint que mostrava um cara batendo uma carteira. A gente se sentia batedor de carteira. Por quê? Porque a nossa estratégia toda de mercado era chegar o mais cedo possível no bolso do consumidor, antes do concorrente, pra esvaziar a carteira dele. E ele nem ter dinheiro pra comprar do concorrente depois, né. Essa sempre tinha sido a nossa estratégia.
P. Você acha que a maioria das empresas são batedoras de carteira?
R. Eu acho que são. Acho que são mesmo. E nem se dão conta disso. E a sociedade não se dá conta que funciona assim. Tentamos então nos enxergar do outro lado do balcão. Num período do dia, eu sou o empresário que quer vender o máximo de produtos possível, ao maior preço possível, com o maior lucro possível. Quando eu dou a volta no balcão, eu passo a ser o consumidor, eu quero ter o melhor desconto e o melhor produto. Como é que esses dois vão se entender, né? A gente percebeu que precisava construir uma coisa que nos fizesse querer estar também no outro lado, no lado do consumidor. Então, voltamos aos princípios dos fundadores e da família. E um dos nossos princípios é atuar em função da vida. Nós não queremos atuar em função de coisas que não criem vida. Ou que criem morte. Isso não pode ser só uma plaquinha presa na parede. Ela tem que fazer parte do dia a dia da empresa. Fomos então para São Paulo, juntamos um monte de pedagogos, professores, pra entender o seguinte: quando a gente faz bem pra educação e quando a gente faz mal pra educação? Aí eles foram diretos: “Olha, vocês são bacanas, os produtos licenciados são muito bacanas, mas tudo isso é um terror pra educação. Além de não servir para nada, ainda gera bullying para as crianças. E gera desperdício. E gera gasto desnecessário para os pais. Porque um produto que custa 1 real, com o rótulo da Barbie vai custar três. Aquilo mexeu com a gente, porque nós ganhávamos muito dinheiro com aquele negócio de importação da China. Era muito fácil, né? E quando você tem a licença, é só você que vende aquele produto. Não precisa nem fazer esforço de venda.
P. Quanto os produtos licenciados representavam no faturamento da Mercur?
“Não podemos iludir as crianças e fazer os pais gastar dinheiro à toa”
R. Cerca de 12%,13% do faturamento. Mas mais porque eles carregavam os produtos da Mercur junto, né? A lucratividade era muito maior, porque eram produtos que chegavam baratos, da China, e se colocava um preço ainda maior do que o produto de linha da Mercur, com a marca Mercur. Levamos mais de um ano até decidir tirar de linha. Quando acabou o período escolar de 2014 anunciamos que não trabalharíamos mais com produtos licenciados. Foi um terremoto. “Vocês são loucos! Tão rasgando dinheiro! Vocês não querem mais ganhar dinheiro?” Começamos então a visitar os clientes para explicar o que estávamos pensando e fazendo. Naquele momento foi muito importante uma característica da Mercur que a empresa nunca perdeu. Sempre tivemos um relacionamento muito forte com os clientes. Quase uma amizade. A gente faz as reuniões na cozinha. Não é restaurante chique. Não precisa nem de mesa. Tu tem a perna, bota o pedido em cima da perna. Isso foi importante.
P. Mas mesmo assim o faturamento caiu? Quanto?
R. De um ano pro outro, foi 15% de faturamento. Então, foi forte. Muita gente dentro da empresa não estava conformada com isso. Perguntavam: “Vamos ter um outro personagem da Mercur, né?”. Não, gente. Nós não queremos ter um personagem pra iludir as pessoas que elas estão comprando uma coisa que não podemos dar. Elas vão comprar uma borracha de apagar, e não um personagem. Imagina. Nós chegamos a ter a licença da Hot Wheels. Lançamos então uma coleção de carrinhos. A criança podia ter 15 borrachinhas de apagar. Que loucura! Ela precisa de duas no ano, pra que vai comprar 15, né? E claro que a criança pede isso pro pai e pra mãe. Então, não dá. Nosso papel não é o de iludir as crianças e fazer os pais gastarem dinheiro à toa. O nosso papel é fazer um produto que cumpra a função dele. Passamos a ter um sistema próprio de criação de produtos. Entra lá o usuário, o distribuidor, o lojista. Nós temos produtos pra educação, vêm pedagogo, professor, ajudar a criar produto. Na área da saúde, que a gente atua também, vêm fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, médicos, usuários. Todo mundo ajuda a construir nossos produtos.
P. Dá um exemplo.
R. As pedagogas nos disseram numa reunião que era preciso criar produtos para pessoas com deficiência, porque estas pessoas, que antes eram escondidas em casa, estavam entrando na sociedade e precisavam de produtos adaptados a elas. E o que existia era importado e muito caro. Criamos então um projeto que nós chamamos "Diversidade na Rua". A gente queria entender a diversidade. Foi um processo de co-criação. Se os dedos da pessoa não têm movimento, por exemplo, é possível criar um dispositivo para que ela possa segurar a caneta. Nós éramos uma empresa de engenheiros e contadores. De repente, nos tornamos uma empresa com pedagogos, antropólogos, fisioterapeutas etc. A empresa precisava ter a diversidade do mundo dentro dela. E todo esse caminho novo fez com que começássemos a tirar produtos de linha.
P. Como o quê?
R. A gente desenvolveu uma esteira de borracha para a indústria do tabaco, por exemplo. Porque as esteiras eram de PVC e isso podia ser tóxico. Então nós desenvolvemos, porque Santa Cruz do Sul é a terra do tabaco. E começamos a exportar. Aí um dia eu fui dormir e acordei pensando: “Gente, nós vamos ganhar dinheiro com esteira de tabaco? Não faz o menor sentido pra nós”. Nós não queremos estar em negócios de tabaco, bebidas alcoólicas, armamentos, produtos que produzam maus tratos aos animais nem, obviamente, empresas que tenham trabalho infantil. A gente está fora desses negócios aí, né? Aí fomos comunicar pra empresa de tabaco que a gente não faria mais aquele produto... Aquilo foi um terremoto na cidade. Era um negócio ainda pequeno, mas, por baixo, estávamos estimando chegar a 50 milhões de dólares por ano. Tive que explicar para os amigos que não queria quebrar a indústria de tabaco, só não queríamos participar disso.
P. Que outro produto vocês desistiram em nome de princípios?
R. Um pessoal pediu uma peça que seria vendida para o Exército argentino. Perguntei: “Essa peça é pra quê, mesmo?”. Era para o cara escorar o braço pra segurar a metralhadora, ou a bazuca... ou não sei o quê... “Ah! Nós fazer um troço pro cara segurar uma bazuca?”. E me diziam: “Bah, mas tu vê, assim ele não vai se machucar!”. Mas não é para esse tipo de bem-estar que queríamos trabalhar, né.... Imagina. O bem-estar do cara pra dar tiro no outro. A gente também vendia muita peça técnica, para equipamentos agrícolas. Marcas grandes. Mas a gente nunca foi muito a favor daquelas plantações enormes, aqueles equipamentos agrícolas que espalham veneno por tudo quanto é lugar. Então vendemos essa parte do negócio pra uma empresa em São Paulo. Assim, a Mercur vem encolhendo de uns anos pra cá.
P. Quanto?
R. Na verdade, a gente não diminuiu. O que aconteceu é que nós paramos de crescer. Estamos com o mesmo faturamento de 2012.
P. Quanto é o faturamento de vocês?
R. Hoje nós estamos com 130 milhões de reais por ano e 650 empregos diretos. E a gente não vai mais pra banco aplicar o dinheiro. Essa foi uma solução importante que demos para a nossa caminhada. Tiramos o que não queríamos mais e vamos nos dedicar a desenvolver produtos nas áreas da saúde e da educação.
P. Dá um exemplo?
R. Nós temos uma linha de muleta, bengala, andadores, de alumínio. Mas nós queríamos diminuir o alumínio, porque a gente não acredita que o alumínio seja uma coisa boa pra saúde. A gente queria tirar o alumínio, porque aquilo também consome muita energia, né? Aí a gente montou um projeto chamado "Colabora". Pra desenvolver produtos novos, como essa muleta com o mínimo de alumínio . Houve um grupo que se saiu muito bem, a gente pegou a ideia deles. É como se fosse uma pequena startup. Estamos desenvolvendo pra produzir no Brasil. Estamos montando a fábrica agora lá em Santa Cruz pra isso. Uma outra linha de produtos é de educação. Nós temos aquela cola branca. De criança, né? Bem tradicional. Mas a gente quer ter uma cola que não tenha petróleo. Estamos trabalhando pra desenvolver uma cola completamente atóxica, sem petróleo. E assim a gente vai indo.
P. Como a floresta amazônica entrou nesse projeto mais amplo de transformação da empresa?
R. O nosso projeto na Terra do Meio começou em 2010. A gente só comprava a borracha de São Paulo e, eventualmente, importava um pouco, quando faltava no Brasil. Meus avós compravam da Amazônia, mas, depois, a produção da borracha na floresta se desestruturou. E houve um grande incentivo para comprar a borracha no interior de São Paulo, porque uma grande estrutura foi montada, com grandes plantios. Tornou-se natural comprar borracha de São Paulo. Fui então conversar com o (socioambientalista) André Villas-Bôas, no Instituto Sociambiental, em São Paulo. Aí começamos a mandar gente nossa para as reservas extrativistas da Terra do Meio, para entender como poderíamos comprar a borracha dos ribeirinhos. Aí, em 2012 ou 2013, eu mesmo comecei a ir, porque queria entender.
“Encontrei na Amazônia gente que não quer tirar nada de ti, mas está pronta pra oferecer tudo o que tem”
P. A Terra do Meio não é um lugar comum. Mesmo para quem conhece outras Amazônias, ela é muito impactante. Como foi para você?
R. Foi quase um êxtase pra mim. E a maravilha de fazer a viagem de barco... Foi o máximo dos máximos. Dormir nas redes, andar de canoa. Parecia que aquilo já estava dentro de mim. Foi mágico, mesmo. Saí todo mordido de bicho. Mas foi mágico. Passei então a ir todo ano para entender o processo. Passei a refletir sobre como eu vinha me conectando com essa coisa do ser humano, da natureza. Encontrei ali o ser humano que não encontrava mais na cidade. Foi um encontro com gente. Gente que não quer tirar de ti, mas que tá pronta pra te oferecer tudo o que tem. (Os ribeirinhos) dão tudo pra ti, né? Eles abrem a casa. Chega uma canoa com 15 pessoas, eles abrem a casa, recebem a gente, dão a comida deles, que muitas vezes faz falta pra eles, eles te dão. Então, assim, sabe? Aquilo me chocou de uma certa forma. Nossa! Que mundo diferente é esse, né? Que coisa diferente é essa que tem aqui que a gente não consegue mais viver na cidade. Foi assim... Só fui comprovando que a gente estava certo. Aqui (na floresta) é a vida, né? Como é que a gente leva essa vida de novo pra cidade?
P. Essa mudança tem alguma relação com uma ideia de reparação? No passado a Mercur, como outras empresas, deixaram de repente de comprar a borracha da Amazônia porque o preço da borracha produzida na Malásia e depois no interior de São Paulo era mais baixo. Não houve nenhuma preocupação social naquele momento, apenas o lucro...
R. Não acho que seja uma questão de reparação somente pelo que a gente fez lá atrás, mas sim por toda uma economia regenerativa. A gente está em busca de regenerar a nossa economia, de regenerar as nossas possibilidades de obter matérias-primas naturais. Nada mais justo do que acessar matérias-primas a partir de onde elas nasceram. E a borracha nativa nasceu na Amazônia. Este é o caminho que estamos tomando para fazer esse resgate, que é um resgate da economia como um todo, e não simplesmente da Mercur. Sim, a Mercur participou desse movimento de comprar borracha mais barata da Malásia e tal, então tem uma culpa nossa nessa questão toda. Mas acho que é regenerar não apenas a nossa culpa, mas o modelo econômico. Como a gente vai em busca de um modelo econômico que se sustente ao longo do tempo? E a gente percebe que esse modelo econômico de buscar sempre o mais barato não tem sustentação.
P. Ainda é bem pouca a borracha que vem da Amazônia, né?
R. Só 2%. O restante ainda vem do interior de São Paulo.
P. E há perspectiva de aumentar isso?
R. Eu acho que tem, sabe? Eu acho mesmo. A gente tem feito um movimento lá no Acre, também.
P. Por que que é tão pouco ainda?
R. Eu acho que os ribeirinhos estão recém voltando para a borracha. Não é um trabalho fácil. O cara normalmente vai sozinho pra dentro da floresta. Passa no mínimo uma manhã ali cortando, e depois tem que buscar o látex. Quando ele volta pra casa, ele tem que logo produzir ou a manta ou o bloco, porque senão a borracha coagula, e aí já não serve mais pra nada. É um trabalho duro comparado à pesca e à coleta de castanhas, por exemplo. Mas a borracha dá sempre. E a castanha nem sempre. Chegamos a conversar se deveríamos botar meta para os ribeirinhos ou dar prêmio visando ao aumento da produção. Mas eu acho que não. Acho mesmo que isso não seria justo. Acho que eles têm a vida deles. E eu não quero que eles transformem a vida deles pra coletar borracha pra Mercur, sabe? Acho que borracha tem que ser um dos produtos da vida deles. Eles vão caçar, vão pescar, vão colher outras coisas, como a copaíba... Tem tanta outra coisa pra eles fazerem na floresta. A borracha é mais uma.
P. Se desse premiação ou botasse metas, estaria impondo a lógica do sistema capitalista a uma realidade totalmente diferente e, assim, violando o modo de vida ribeirinho...
R. Exatamente! E isso é tudo o que a gente não quer.
P. Em 2018, pela primeira vez a SEMEX (Semana do Extrativismo da Terra do Meio) foi numa aldeia indígena, a Tukaya, do povo Xipaya. Como foi essa experiência para você?
R. Há uns dois ou três anos, o Marcelo Salazar (coordenador do Instituto Socioambiental em Altamira), me perguntou: “Tem problema se os indígenas entrarem? Eles estão querendo colher borracha e tal”. Eu disse: “Ô, Marcelo...Se a Funai permitir que a gente compre deles, eu não tenho absolutamente nada contra! Que bom, que bacana, né, que eles possam entrar também!”. E aí, de uns anos pra cá, eles começaram a participar. E, no ano passado, quando o encontro foi lá na aldeia Tukaya, nossa! A borracha deles é a de melhor qualidade que nós recebemos até hoje. É impressionante a dedicação, o cuidado deles. E eu acho que isso acontece porque estão juntos, sabe.
P. Sei que a borracha da Amazônia sai mais caro para vocês do que a de São Paulo. Quanto?
“Pagar barato pode custar algo muito mais caro, que é a vida”
R. A da Amazônia custa quase o dobro do preço.
P. E por que que você resolve pagar duas vezes mais por uma borracha que você podia ter pela metade do preço?
R. Porque precisamos pensar mais no que é caro – e no que é barato. Nos significados disso. Primeiro: a qualidade da borracha, num seringal nativo, é muito superior à qualidade da borracha num seringal cultivado. Esse é o primeiro ponto. Segundo: no seringal cultivado, a produção é de larga escala. É uma arvorezinha plantada do lado da outra. Não nasce mais nada no meio daquele seringal. Na Amazônia, o seringal é uma estrada no meio da floresta. Nessa estrada tem a seringa, tem a castanha, tem a caça, tem a pesca. É uma comunicação completamente diferente do seringueiro com a vida dele. É uma floresta.
P. O seringal cultivado é tipo um latifúndio de soja, só que com seringueiras?
R. É. Numa cultura de grande escala. E eu não sou muito a favor de uma cultura única na terra. Eu acho que a terra precisa de mais coisas. Para fazer aquele cultivo de larga escala tu vai ter que matar um monte de outras coisas na volta, né? Então a terra não é mais uma coisa natural ali. É uma coisa construída. O cara que corta a seringa nesses cultivados é um assalariado. Na floresta, o seringueiro é o dono da situação. É ele que resolve quando é que vai descansar, quando é que ele vai dar a cochilada dele, se vai dar, se ele precisa acordar às cinco, às seis ou às sete... Essa é uma decisão dele, né? O trabalhador do seringal cultivado é contratado pra tantas horas, pra trazer tantos quilos de borracha. Então é diferente. Este é outro ponto. E este ponto é importante. Uma outra questão é que, para fazer a seringa cultivada lá no interior de São Paulo, tu precisou antes derrubar uma floresta nativa. Na Amazônia, não derruba nada. Pelo contrário, tu mantém a floresta em pé. E, quanto mais diversidade tiver, melhor até, porque mais coisas o ribeirinho tem pra coletar, pra levar junto pra casa dele. Essa diversidade é importante. É por isso que a gente acha importante extrair a borracha na floresta amazônica.
P. Me parece que a maioria das pessoas não entende que há um valor na floresta em pé. Ou melhor. Entendem o valor. Mas não entendem que vão precisar pagar por isso. Ou não entendem que o que parece barato, que em geral implica a destruição da floresta, vai custar a vida logo adiante. E não só a vida do ribeirinho ou do indígena, mas a deles também. Não dá mais para pensar o barato e o caro sem colocar o custo socioambiental na equação, sem colocar a crise climática no cálculo.... O valor hoje precisa ser pensado em outros termos.
R. É a própria diversidade, né? Quando se cultiva uma coisa na floresta não precisa derrubar todo resto que está na volta. Como é que tu cria uma população mais diversa de plantações ali, que te dá mais vida, que te traz mais vida? Esse é o papel da borracha nativa, da seringueira nativa. É estar no meio dos outros.
P. Estar no meio dos outros é a chave para viver nesse mundo, né? Mas, Jorge, me fala mais sobre o custo de manter a floresta em pé, porque acho que a maioria dos teus colegas empresários está bem longe de entender isso.
R. Me vem essa questão da finitude do nosso planeta. Quando eu digo que todo mundo tem que pagar pela floresta em pé, é isso mesmo. A Amazônia não é só do Brasil. A Amazônia é de todo mundo. Tudo é de todo mundo. O campo, lá no Rio Grande do Sul, onde se cria gado, também é de todo mundo. Então, se a gente não tiver um acordo mundial do que a gente vai fazer pra cuidar do nosso planeta, como é que nós vamos viver aqui? Parece que a gente está separado em tribos, né? A tribo de lá, a tribo de cá. E aquele lá diz que aquilo é dele, esse aqui diz que aquilo é dele. Mas não é. Na verdade, não é. Tudo o que a gente faz aqui reflete lá, o que faz lá reflete aqui. Quando é que a gente vai ter essa consciência de que nós precisamos nos unir mais como seres humanos que somos, pra cuidar do que que a gente está fazendo? A gente está só botando mais gente, estamos procriando numa velocidade feroz. Não sou contra nascer gente, não é isso. Mas nós vamos ter que aprender a viver. Está cada um olhando pro seu umbigo. Olhando pra suas posses, olhando pra como vai fazer o que tem crescer e como vai ganhar mais. Mas não é meu, né? Isso não é meu. Essa é a questão.
P. E como um empresário pode colaborar para o resgate do sentido de comunidade?
R. Quando um empresário define que precisa fazer o negócio dele servir à sociedade, ele precisa entender essa sociedade que ele quer servir. E essa sociedade tem que dizer pra ele como é que ela quer que ele sirva a ela. Como é que a gente começa a construir uma vida realmente mais comunitária? Acho que a gente esqueceu das comunidades. No ano passado, estando lá na aldeia Tukaya, me veio muito forte essa questão da comunidade. Eu conversei com o cacique um pouquinho, eu queria entender o que que eles faziam naquela oca lá no meio. Ele me disse: “Aqui a gente faz as cerimônias da gente, faz as danças da gente. E, quando as pessoas se desentendem, eu pego os dois desentendidos e levo lá pra dentro. Fico olhando eles conversarem. Eles só saem dali quando tiverem resolvido a confusão entre eles”. Eu disse: “Puxa vida, como a gente tá longe desse verdadeiro cultivo da comunidade, né?”. Então eu acho que ser comunidade é o que está faltando pra nós. A crise climática é resultado daquilo que nós desentendemos. Dessa individualidade muito forte, em que cada um está pensando só em si próprio e ninguém está querendo conversar com o outro para saber o que ele está pensando. Nós nos isolamos. Só que faltam pedaços neste quebra-cabeça.
P. Que pedaços?
R. Tenho percebido que as pessoas fazem leituras em que faltam pedaços. Como um quebra-cabeça que a pessoa quer fechar de qualquer jeito, só que está faltando uma peça. Tipo o rosto de alguém. Mas falta a orelha, né? E aí, como faz sem orelha? Aí dizem: “Não faz mal, fecha assim mesmo”. É assim que parece que tem funcionado o raciocínio hoje. Me parece que muitos empresários não percebem que há um custo na pecinha que está faltando. Por exemplo. Eu pego a borracha petroquímica porque ela é mais barata. É mais barata porque não é viva como a borracha natural, então não vai deteriorar tão rápido. Tudo parece mais fácil. Maravilha, né? Mas não. Como ela é produzida? É extraída do petróleo? Qual é o custo do transporte? Qual é a energia necessária para beneficiar esse petróleo e transformá-lo em borracha? E para tirá-lo da terra? Esses custos a gente não está enxergando. E precisa enxergar. É a orelha que falta no rosto. O que a gente precisa é trazer a orelha de volta. Aí vai saber o custo real, o quebra-cabeça completo. Porque alguém paga por esse custo. E, no caso da floresta, está todo mundo pagando por ele. Só que as pessoas não percebem. Só começa a perceber quando chegam as mudanças climáticas. Mas então já é difícil mudar o curso. E o que eu percebo é ainda pior, porque isso não está nem sendo colocado para as pessoas enxergarem. Um número extremamente reduzido de pessoas enxerga, e são estas que têm o controle. Somos nós, os empresários, que temos o controle disso. Mas muita gente está passando a mão, dizendo para esquecer isso, para ir por um caminho mais fácil, ou afirmando que a tecnologia vai encontrar a solução para todos os problemas. Acho lindo toda essa tecnologia. Mas será que é isso que precisamos? Eu fico pensando assim: se a gente colocar todos os custos sociais e ambientais de uma cadeia inteira da borracha sintética, será que ela vai custar mais barato que a borracha natural? Será que é isso mesmo?
P. Porque é só eliminando o custo socioambiental que fica mais barato, né? E, hoje, o custo socioambiental é a diferença entre viver num planeta ruim ou num planeta hostil.
“As ONGs que eu conheço na Amazônia trabalham com a dignidade das pessoas”
R. Exatamente.
P. Que impacto teve essa experiência amazônica em outros negócios?
R. O modelo de fazer negócio muda. Muda também onde a gente vai buscar a matéria-prima que a gente usa. A gente usa muito tecido de algodão para alguns produtos da área da saúde, como tipoias, por exemplo. Então: “Gente, onde é que está o algodão orgânico no Brasil?”. E aí a gente foi conhecer em Porto Alegre, mesmo. Tem uma associação lá, nas vilas atrás do aeroporto. Tem uma associação de mulheres que se chama “Justa Trama”. Elas têm uma ligação com agricultores do Ceará que plantam algodão agroecológico. Uma empresa em Minas Gerais faz a fiação, faz o tecido, e elas compram esse tecido e fazem produtos. Então, através delas, nós fomos conhecer, e acabei indo parar no interior do Ceará. Estamos sempre em busca de encontrar onde é que estão esses movimentos de vida. Pra gente poder traduzir isso e levar pra cidade.
P. Como é o movimento de vida nas reservas extrativistas da Terra do Meio?
R. Eu acho que está muito bem construído e muito bem pautado. Gosto muito de elogiar as instituições, as organizações não governamentais que trabalham na região, como o Instituto Socioambiental e o Imaflora, por exemplo. Porque essas organizações trabalham com a dignidade das pessoas. Conheci um garoto uns anos atrás. Ele tinha deixado a floresta, foi para a cidade e se drogou. Então percebeu que não era por aí, que precisava voltar para a floresta. E voltou. Esse é o tipo de movimento que essas organizações fazem. De mostrar caminhos que não sejam os da violência e da ilegalidade, caminhos que respeitam a autonomia e a dignidade das pessoas. Dão escolha para as pessoas, mostram que elas podem escolher por si mesmas por onde preferem andar. Isso eu acho que é muito importante. Há alguns anos atrás, ribeirinhos e indígenas não sentavam à mesma mesa. Estavam um apontando a arma para o outro, o arco e flecha um para o outro. Hoje estão juntos, construindo algo. Testemunhar isso me emociona muito.
“A verdade só aparece quando todo mundo está junto”
P. Como você avalia o atual contexto político brasileiro, no qual o governo Bolsonaro defende a abertura das áreas protegidas da floresta, como a dos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, para a exploração do agronegócio e para a mineração?
R. Eu acho que esse Governo não tem sensibilidade, né? Porque ou eles não conhecem a realidade ou não querem conhecer.
P. Qual das duas opções você acha que é?
R. Eu acho que eles teriam meios para conhecer. Então, se não conhecem, é porque não querem, né? O governo está tomando algumas decisões sem conhecer a realidade, sem conhecer o impacto das decisões que eles estão tomando. Na empresa, quando a gente quer desenvolver um produto, nós juntamos todo mundo que está envolvido com aquele produto. Por quê? Porque todo mundo traz o seu problema. O lojista traz o problema dele, o usuário traz o problema dele, a indústria traz o problema dela, o fornecedor traz o problema dele. Pra gente conseguir chegar numa coisa que se sustente minimamente pra todo mundo. Não vai ser 100% pra ninguém. Se for 100% pra um, deu errado! Todo mundo tem que abrir mão de alguma coisa. Eu olho pra esse governo e penso: “Gente, esses caras pelo menos têm que entrar na floresta, eles têm que conhecer, eles têm que ver a realidade”. Talvez tenham que estudar um pouco mais, talvez tenham que viver um pouco mais, né?
P. E por que é assim?
R. Parece que um é contra o outro, parece que o outro é visto como barreira. Enquanto o governo não enxergar que está governando pra todo um povo, não interessa se votou ou se não votou nele, será difícil. Se quer ser um governo de um país, ele tem que olhar pra tudo. Não pode se colocar na situação de dizer: “Ah, eu vou fazer agora como eu penso!”. Não. Senão, não é governo. Tanto faz o lado que está, vai ser uma ditadura. Porque vai impor a verdade dele. E a verdade de ninguém é uma verdade absoluta. A verdade só aparece quando todo mundo está junto. É quando os livros se abrem. Aí aparece a verdade. De certa forma, todo mundo no Brasil vinha conquistando o direito de colocar sua palavrinha na história, né? O que me parece é que esse governo está tirando a oportunidade de algumas pessoas escreverem a sua parte na história.
“É na diversidade que a gente vive, e não no individualismo”
P. E como você analisa os seus pares, isso que se chama “mercado”? Uma parte importante do empresariado foi protagonista do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e depois apoiou Jair Bolsonaro (PSL)...
R. Acho que há uma ilusão, e acreditamos nessa ilusão. E essa ilusão nos mostra caminhos que fazem com que pareça que não há outra escolha. O caminho do avanço econômico e financeiro, me parece, é de que a solução seria continuar crescendo. O modelo econômico é de crescimento infinito. Promete um crescimento infinito. E isso não é verdade. Não existe crescimento infinito. Tudo para de crescer em algum momento. E o planeta é finito. Então, como é que a gente espera manter um crescimento infinito num planeta que é finito? Qual é a tecnologia que vai existir que vai conseguir dar conta disso? Pode ser que eu seja muito burro e não entenda de tecnologia, mas não consigo acreditar que isso vai dar certo. Acho que a tecnologia ajuda um monte, mas não é só ela. Precisamos entender que nós somos uma comunidade. E não é só a comunidade humana. É a comunidade humana vivendo com outras comunidades. Parece que nós somos o dono do campinho, né? Podemos fazer e acontecer e dominar tudo. Mas a realidade está mostrando que não temos tanto domínio assim. Sabe o que eu acho? Quando eu disse antes que a Mercur era uma empresa de engenheiros e contadores, é isso. Antes a gente só tinha essa visão do engenheiro e do contador. Então a gente começou a trazer outros olhares e passamos a enxergar mais. Mas, como assim? Uma fábrica de borracha com antropólogo? O que vocês querem com isso? É, gente, mas é que a vida não é a fábrica de borracha. Tem mais coisas na volta dela, né? Assim como a floresta não é uma única árvore. Há várias árvores em volta dela. E essas outras árvores é que dão a sustentação para que aquela árvore possa sobreviver o tempo que ela precisa sobreviver, e ela também dá condição para as outras sobreviverem. É na diversidade que a gente vive, e não no individualismo.
P. Você é um empresário que não quer crescer?
R. Não é que eu não queira crescer, mas não é o meu foco. Não é a minha busca. Não é pra isso que eu trabalho. Se crescer é porque alguém está achando bom o que eu estou fazendo. E desde que o meu crescimento não atrapalhe outras coisas. Mas, se não puder crescer, não tem problema nenhum. A nossa responsabilidade, hoje, é muito maior. Se a responsabilidade é crescer, é fácil. Derrubando os outros, tu vai crescendo. Agora, a responsabilidade de fazer as coisas de uma forma que se sustente economicamente, ambientalmente, socialmente e humanamente, é muito mais difícil. É isso que queremos que dê certo. Não é crescer. Minha busca atual é viver conforme. E é muito difícil a gente viver numa conformidade com tudo o que a gente acredita.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: MBL usa o aborto para reposicionar a marca
Na disputa da direita com a direita, pelas almas, pelos cliques e pelos votos, a milícia enfrenta dificuldades para mudar a imagem sem perder poder de pressão
O Brasil tem apenas três possibilidades de aborto legal: em caso de estupro, risco de morte da mãe e feto anencefálico. Ao propor um projeto na Câmara de Vereadores de São Paulo para dificultar a interrupção da gestação nestes casos, um dos mais conhecidos membros do Movimento Brasil Livre (MBL), Fernando Holiday (DEM), sabe que o projeto pode ser contestado na Justiça porque extrapola a competência do município. A constitucionalidade, porém, não importa. Não importa se o projeto vá adiante ou não, importa ser relacionado por eleitores à “defesa da vida”, mesmo que isso comprovadamente signifique a morte de mulheres. Importa manter seguidores que começam a se afastar e importa também conquistar seguidores novos, especialmente entre evangélicos neopentecostais. Nem que para isso seja necessário defender a tortura das mulheres. O cinismo se torna cada vez mais – literalmente – criminoso no Brasil.
A estratégia de Holiday e do MBL não é nova. Mas costuma funcionar. Nas eleições de 2010, o então candidato José Serra (PSDB) usou o aborto como moeda eleitoral. Para se manter competitiva, Dilma Rousseff (PT) recuou vergonhosamente de suas posições. Sob orientação de Lula, aceitou a “ajuda” de Eduardo Cunha (PMDB) junto aos evangélicos, o contingente que mais cresce no Brasil, para conquistar a presidência. O que aconteceu depois com os personagens todos sabem.
Desde então, as mulheres têm visto seus direitos serem leiloados no Congresso. No momento em que Jair Bolsonaro deve grande parte de sua eleição a líderes evangélicos do nível de Silas Malafaia e tem como principal interlocutor junto à bancada no parlamento o deputado federal e pastor Marco Feliciano (Podemos), chantagear com a vida das mulheres se tornou um esporte ainda mais popular.
O MBL tem usado essa tática desde 2017, quando percebeu o potencial de usar os temas chamados “morais” para manter o ódio ativo e os seguidores mobilizados. A estratégia funcionou (muito) bem quando uma massa de brasileiros se deixou convencer de que o grande problema do Brasil eram os pedófilos nos museus. Durante semanas, a falsa controvérsia ocupou as redes sociais. Protestos diante de centros culturais foram organizados contra artistas e curadores de exposições. O ataque era também contra a cultura e o financiamento da cultura, sempre relegados no Brasil, mas ainda assim alvos de ódio.
A estratégia foi usada primeiro em setembro de 2017, na exposição do “Queer Museu”. Os ataques levaram ao cancelamento da mostra pelo Santander Cultural, em Porto Alegre. Dali em diante, a estratégia foi replicada por semanas, em diferentes episódios pelo Brasil, provocando ataques contra artistas, que correram o risco de morte. Alguns até hoje estão juntando os pedaços de suas reputações destruídas pelo incitamento do ódio por milícias como o MBL.
Michel Temer tornou-se verbete de corrupção no dicionário, mas os manifestantes anticorrupção não encheram as ruas para pedir seu impeachment
Por que naquele momento? Porque Michel Temer (MDB) tornava-se um verbete de dicionário para político corrupto. Primeiro foi mala de dinheiro. Mais adiante, seu comparsas criariam a figura do “apartamento de dinheiro”. O MBL liderou as ruas pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) sacudindo a bandeira da anticorrupção. Mas foi bem mais compreensivo com a corrupção exponencialmente mais explícita de Temer e demorou a pedir sua renúncia nas redes sociais. Não houve manifestações gigantes exigindo o impeachment de Temer.
Quando o governo Temer completou um ano, em agosto de 2017, Kim Kataguiri, um dos principais líderes do MBL, deu uma entrevista à revista Exame. O jornalista perguntou: “Por que vocês não foram às ruas na votação da denúncia contra o Temer?”. E Kataguiri respondeu: “Em primeiro lugar porque, diferente do que aconteceria com Dilma, Temer será julgado pelos crimes pelos quais foi denunciado. A votação na Câmara apenas resulta numa suspensão. Perdendo o mandato de presidente da República, Temer será julgado como um cidadão comum. Além disso, não há alternativa. De que adianta tirar Temer para colocar Rodrigo Maia, que também é investigado e, para piorar, foi eleito presidente da Câmara com apoio do PT e do PCdoB?”.
Hoje, Kim Kataguiri é deputado federal pelo DEM de Rodrigo Maia, que é novamente presidente da Câmara. Já naquele momento, porém, até mesmo os seguidores mais obtusos eram capazes de enxergar que algo não fechava. Nenhum fato relacionado a Rousseff, a presidente destituída, chegava sequer perto do que já era evidente na conduta de Temer desde o início do governo. Tanto que, depois de sair da presidência, ele já foi preso duas vezes e ela nenhuma. Os líderes do movimento “anticorrupção”, porém, pareciam muito menos revoltados.
De um dia para o outro, em 2017, o grande problema do país cheio de problemas tornou-se “pedófilos em museus”
Como explicar o inexplicável? Como explicar não liderar movimentos de rua contra a corrupção explícita do presidente que ajudaram a catapultar para o poder? Criando um falso inimigo. Tática velhíssima que aqueles que são chamados de “nova” direita usam abertamente, apostando na estupidez de parte da população. E assim, em 2017, com o povo perdendo direitos, o desemprego e a pobreza aumentando e a popularidade de Temer despencando, de um dia para o outro o grande problema nacional virou a pedofilia nos museus. Parece uma insanidade, mas aconteceu. Funcionou. O MBL conseguiu.
Serviço feito, a campanha eleitoral de 2018 começou muito antes do início oficial, os ódios foram mobilizados pelo bolsonarismo e pela disputa se Lula poderia ou não ser candidato a presidente. Os pedófilos que nunca foram pedófilos, mas sim vítimas de uma campanha de ódio, sumiram do noticiário de mentira das redes sociais das milícias.
Com o ódio canalizado para falsos monstros em 2017, o Brasil elegeu a criatura Bolsonaro em 2018
Com o ódio calculadamente canalizado contra falsos monstros em 2017, os homens que pregam e praticam monstruosidades aumentaram suas chances de serem eleitos em 2018. O resultado da ampliação da base eleitoral a partir da criação de monstros foi a eleição de uma criatura humana bem real chamada Jair Bolsonaro. O “mito” – ou o “coiso”, conforme o interlocutor – deve parte de sua vitória eleitoral às milícias, e especialmente ao MBL, mesmo que a organização não tenha apoiado o candidato de extrema direita explicitamente na eleição de 2018.
Politicamente espertas, lideranças do MBL tiveram o cuidado de, ao mesmo tempo, reforçar o antipetismo sem se comprometer por completo com um candidato imprevisível como Bolsonaro. "Voto no Bolsonaro, mas é voto útil. Não é o cenário ideal, existem pessoas mais preparadas, mas infelizmente é o que a gente tem", afirmou Kataguiri após ser eleito deputado federal por São Paulo. "Não dá para a gente arriscar ter o programa do Haddad, um cenário de totalitarismo assustador.”
Em 2019, o MBL dá sinais de buscar o reposicionamento da marca. Depois dos grandes protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, alguns de seus principais líderes, como Kim Kataguiri e Fernando Holiday, passaram a disputar eleições e foram eleitos por um partido de política tradicionalíssima como o DEM. Aliar-se explicitamente a Bolsonaro não lhes interessa. Primeiro, porque é um governo cujo futuro é imprevisível, e que tem como estratégia se opor ao Congresso, espaço onde Kataguiri quer alcançar proeminência. Segundo, porque seriam engolidos pelo bolsonarismo, o que enfraqueceria o grupo que se empenharam em construir e que lhes garante tanto a sobrevivência quanto um lugar na disputa pelo poder. O bolsonarismo já tem vários personagens disputando protagonismo, além da própria criatura que dá nome ao fenômeno.
O DEM, partido de Kataguiri e de alguns membros do MBL que se candidataram a cargos eletivos, lidera a Câmara e o Senado, o que soa muito mais promissor. Kim Kataguiri voltou a se concentrar nas bandeiras de fato liberais, buscando ganhar destaque na aprovação da reforma da Previdência. Tem apostado na construção do personagem do conservador moderado. Parece estrategicamente importante se opor também na estética aos conservadores da linhagem de Olavo de Carvalho e sua turma – barulhentos, sem limites e muito parecidos com o que o MBL era até bem pouco tempo atrás, e explicitamente contra o Congresso.
O MBL compreendeu que, com Bolsonaro no poder, era necessário diferenciar as direitas para manter protagonismo
O MBL compreendeu que, com Bolsonaro no poder, era necessário diferenciar as direitas para manter protagonismo. Para isso, é necessário também deixar de se comportar como milícia. No quesito “milícia”, o bolsonarismo liderado por Carlos Bolsonaro nas redes sociais se tornou imbatível. O MBL tenta virar menos uma milícia e algo mais parecido com um partido, mas sem tornar-se formalmente um partido, para poder seguir criticando todos os partidos e tomar partido (e deixar de tomar partido) do que for mais conveniente para a ocasião.
Em 2019, o MBL parece outro, como foi apontado por parte de seus seguidores em manifestações na internet – e também nas ruas. Aparentemente ficaram para trás os tempos de chamar artistas de “pedófilos”, destroçar reputações (e vidas) de opositores nas redes sociais com informações forjadas, chamar todos os que contrariavam seu projeto de poder de “esquerdopatas”, converter qualquer pessoa que deles discordasse num inimigo a ser destruído. Pelo menos temporariamente, já que milícias como o MBL agem por conveniência e são capazes de realinhar suas táticas rapidamente se o momento exigir.
A palavra que têm usado para justificar a mudança é “amadurecimento”. O vereador Fernando Holiday declarou em abril que passou a olhar os professores com melhores olhos. “Amadureci”, disse ele. Depois de invadir escolas públicas e incitar alunos a gravar aulas de professores que, segundo ele, pregavam ideologia, declarou-se “arrependido”. "A forma como eu defendia o projeto (“Escola Sem Partido”) estava absolutamente errada, que é transformar o professor em um dos maiores problemas da nossa educação”, afirmou à Folha de S. Paulo. "Uma parte da direita realmente deu início à perseguição (aos professores). A principal diferença no projeto está entre quem vê a maioria dos professores como doutrinadores e quem vê uma minoria como doutrinadores. A maior parte dos professores dá sua aula sem colocar sua opinião. Vi isso na minha vida escolar. Essa parte que enxerga a maioria dos professores como doutrinadores vê como problema grave, a ponto de querer o direito de filmar as aulas. É um grande equívoco.”
Quando o MBL declarou que não apoiaria as manifestações a favor de Bolsonaro – e contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso –, ocorridas em 26 de maio de 2019, Holiday tuitou: “A direita não é uma coisa uniforme, e isso é bom. Existem várias vertentes, e usar guerrilhas digitais contra quem pensa diferente não ajuda a convencer o outro. Não vamos às manifestações porque consideramos um erro estratégico. Mas isso não significa que ficaremos parados”. Sim, é isso mesmo. O MBL estava acusando as “guerrilhas digitais” de atuarem contra quem pensa diferente.
Dias antes das manifestações de 26 de maio, em entrevista ao jornal O Globo, Kim Kataguiri mostrou-se abismado por estar sendo chamado de “comunista”: “Estão me chamando de comunista. (...) Todo mundo que se posiciona contrário é comunista. Quem discorda do Bolsonaro é comunista. Essa é a definição histórica de comunismo, discordar do Bolsonaro. É um discurso do Olavo (de Carvalho) demonizar qualquer pessoa que discorde do discurso dele”. Kataguiri também se revelou chocado com a “demonização” dos políticos e da política.
Sim, vivemos para ver isso.
A guinada do MBL tem sido rechaçada por parte de seus apoiadores, que passaram a chamá-los de “traidores” nas redes e nas ruas
Aqueles que compõem o terço da população que, segundo as pesquisas de opinião, têm demonstrado apoio incondicional a Bolsonaro, independentemente das bobagens que ele faz e diz como presidente, reagiu. O MBL foi acusado de “traidor” nas redes sociais e nas ruas por seguidores fiéis até ontem. Mesmo sem apoio do grupo, as manifestações de apoio a Bolsonaro foram maiores do que seus líderes calculavam que seriam, o que mostrou tanto que poderiam perder mais seguidores do que supunham quanto que a multidão não está sob seu controle.
Em março de 2016, às vésperas de uma manifestação “anticorrupção”, Kim Kataguiri fez uma analogia entre as massas nas ruas e a série de TV Power Rangers, em artigo na Folha de S. Paulo: “Com seis anos, eu lutava contra monstros que eram derrotados e voltavam gigantes. Lula, depois de ter sido derrotado no mensalão, voltou ainda maior no petrolão. Os Rangers uniam-se e fundiam seus veículos para compor o robô gigante. Precisamos de algumas centenas de milhares de brasileiros para montar o nosso”. Em 2019, o MBL está descobrindo, como o PT descobriu anos antes, que o “robô gigante” é fora de controle. Em algum momento, Bolsonaro também descobrirá.
Nas manifestações convocadas pelo MBL e outros movimentos, em 30 de junho último, realizadas para apoiar Sergio Moro, a Lava Jato e a reforma da previdência, parte dos apoiadores compareceu, mas alguns chamaram o MBL e seus líderes de “traidores”. Houve violência física no Rio de Janeiro e gritos de “Ei, MBL, vai tomar no cu”, em São Paulo. Essa parcela da direita, treinada por milícias como o MBL a odiar qualquer opositor de ideias, exige que o MBL apoie o governo Bolsonaro contra os “esquerdopatas” e “comunistas”. A “Marcha para Jesus”, ocorrida em 20 de junho, mostrou de forma inequívoca o quanto os evangélicos neopentecostais vão se tornando mais e mais importantes, agora que ocupam pela primeira vez o centro do poder com Bolsonaro.
Reposicionar a marca MBL e manter seguidores de direita é espinhoso quando um terço da população considera de centro tudo o que não é extremo
Reposicionar a marca MBL e manter os apoiadores não é uma tarefa fácil num momento em que cerca de um terço da população considera de centro tudo o que não é extremo. A direita mais moderada não teve nenhuma chance nas eleições presidenciais de 2018. Foi vista como de “centro”. E essa parcela da população que se mantém fiel a Bolsonaro não quer “centro”, quer extremo. Afirmam que são a “direita verdadeira”. MBL e outros, acusados de não ser “de verdade”, a chamam pejorativamente de “direita true”.
O que fazer então para conquistar esse público, sem ter que se alinhar a Bolsonaro? Como a reforma da previdência está longe de ser um dos temas mais populares do país, o mais óbvio, e que já deu certo antes, é apelar para os temas “morais”. Manter o ódio ativo. E, principalmente, deslocá-lo para longe de si.
É neste contexto que pode ser compreendida a segunda ofensiva do MBL no chamado “campo dos costumes”, (que está mais para campo do ódio), representada pelo projeto de Fernando Holiday. Apesar de ser um projeto de vereador, ele conseguiu enorme destaque no noticiário nacional. O tema do aborto é um dos que mais mobiliza as paixões nacionais e um dos que mais encontra adesão nas camadas da população que se definem pela religião, como os evangélicos. Kataguiri disputa protagonismo na defesa da reforma da previdência no Congresso, Holiday age nos temas morais na Câmara de Vereadores da maior cidade do país. Tudo é notícia e mobilização.
Holiday parece achar que não basta a mulher ter engravidado de um estuprador, ela precisa sofrer um pouco mais
O que defende Fernando Holiday em seu projeto contra as mulheres? Criar dificuldades para aquelas que engravidaram do estuprador ou que podem morrer se continuarem a gestação ou que estão gerando um feto incompatível com a vida, caso da anencefalia. Aparentemente, para o MBL, não basta o sofrimento de gerar um bebê do estuprador, o sofrimento de ter que escolher interromper a gestação para não perder a própria vida, o sofrimento de gerar um filho que vai morrer antes mesmo de nascer ou minutos ou horas depois de nascer. Não. É preciso que as mulheres sofram um pouco mais, impedindo-as de exercer o seu já tão restrito direito assegurado por lei. Pesquisa recente mostrou que o aborto legal é negado em quase 60% dos hospitais públicos listados pelo governo para fazer a interrupção da gestação, o que torna o acesso ainda mais difícil para mulheres já numa condição extremamente difícil.
O projeto de lei 01-00352/2019 (leia aqui), de Fernando Holiday, determina que as mulheres só tenham acesso aos seus direitos depois de emitido um alvará judicial, que será submetido à Procuradoria-Geral do Município. Ainda assim, antes de poder realizar a interrupção da gestação (em caso de estupro, risco de morte da mulher e feto anencefálico), a mulher tem que esperar 15 dias e obrigatoriamente se submeter aos seguintes procedimentos: “I) atendimento psicológico com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento; II - atendimento psicossocial que explique sobre a possibilidade de adoção em detrimento do abortamento; III - exame de imagem e som que demonstre a existência de órgãos vitais, funções vitais e batimentos cardíacos; IV - demonstração das técnicas de abortamento, com explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como sobre a reação do feto a tais medidas”.
Sim, é isso mesmo. A liderança do MBL quer que a mulher que foi estuprada e engravidou do estuprador, a mulher que se encontra em situação de risco de morte e a mulher cujo filho não vai poder viver por conta de uma malformação incompatível com a vida seja obrigada a ouvir o coração do feto, a ver a sua imagem e a assistir a demonstrações de “atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como à reação do feto a tais medidas”.
O projeto reativa a ideia de que a mulher que deseja fazer aborto é “louca” e deve ser internada
Mas não é só isso. O artigo sexto do projeto diz o seguinte: “Se, em qualquer caso de atendimento médico, for detectada uma gravidez em que as condições sociais e psicológicas da gestante indiquem propensão ao abortamento ilegal, o Município requererá medidas judiciais cabíveis para impedir tal ato, inclusive a internação psiquiátrica”.
Sim, Holiday quer fazer a sua parte para o retorno dos manicômios e quer mandar as mulheres para lá. Como a reação negativa ao projeto de lei foi grande, inclusive porque é um projeto claramente contra a lei e contra tratados aos quais o Brasil é signatário, Holiday afirmou ao repórter Felipe Betim, do EL PAÍS, que pretende rever alguns pontos do projeto.
Também repetiu o discurso do “amadurecimento”, que busca ancorar o reposicionamento da marca MBL: “Acredito que a gente (MBL) ajudou a simplificar o debate político de uma forma perigosa, resumindo tudo a memes e aumentando a tensão política. Nesse sentido, acho que o MBL precisa e já está fazendo essa autocrítica de tentar qualificar o debate político como um todo, algo menos simplificado e não tão polarizado como a gente fez no passado. Nos nossos encontros regionais temos escutado nossa militância e feito autocrítica diante de nossa militância. E acho que faz parte do caminho natural do crescimento e do amadurecimento político pelo qual estamos passando”. Como compatibilizar o “amadurecimento” com o projeto para dificultar o aborto legal protocolado em maio, não explicou.
Mesmo que Holiday altere o projeto, até porque vários juristas disseram ser inconstitucional, o objetivo já foi alcançado. As ideias nele contidas já foram lançadas, e as camadas da população as quais ele e o MBL querem agradar já as ouviu e já se manifestou sobre elas. O MBL já fez, mais uma vez, o serviço de criminalizar inocentes, neste caso mulheres num momento de intenso sofrimento, tentando exercer um direito legal que o Estado falha em garantir.
O próprio Holiday admite ter se inspirado em legislações de estados americanos conservadores, “especialmente o Alabama”. Vale a pena ver o que aconteceu no Alabama recentemente. Em dezembro, Marshae Jones, 27 anos, estava grávida de cinco meses quando foi baleada no ventre durante uma discussão. O tiro atingiu o feto, que morreu. A polícia entendeu que a mulher que puxou o gatilho tinha cometido homicídio involuntário. Mas o grande júri da cidade de Jefferson decidiu que a atiradora não tinha responsabilidade. Ao contrário: condenou a mãe do bebê por assassinato, argumentando que foi ela quem iniciou a discussão e, portanto, é ela a culpada pela morte do feto.
Barrar o acesso ao aborto legal é condenar ainda mais mulheres negras à morte
É esse tipo de raciocínio mais do que tortuoso que vem sendo construído. Em maio, o Alabama aprovou uma lei que restringe o direito ao aborto apenas aos casos em que a vida da mãe está em risco. No conservador estado do sul, quem foi estuprada ou foi vítima de incesto já não pode interromper a gestação. Médicos que não cumprirem a nova lei se arriscam a pegar até 99 anos de prisão. Estas são as fontes onde a liderança do MBL foi buscar inspiração no seu período de “amadurecimento”.
O novo ataque do MBL, agora em disputa com a ultradireita bolsonarista pelas almas de direita do país, é desferido contra as mulheres. É obrigatório observar, porém, que as mulheres não são um genérico. Quem precisa dos hospitais públicos para abortar no Brasil são as mulheres mais pobres. E as mulheres mais pobres no Brasil são negras. Segundo o relatório “Entre a morte e a prisão – quem são as mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro”, da Defensoria Pública do Rio, entre 2000 e 2012 o número de mulheres negras mortas por aborto cresceu de 34 para 51 mortes por 100 mil partos. No mesmo período, o número de mulheres brancas diminuiu de 29 para 15 mortes por 100 mil partos.
A falta de acesso ao aborto legal é também resultado do racismo estrutural do Brasil. Propor uma lei para dificultar ainda mais o acesso das mulheres ao aborto legal é propor uma lei para barrar principalmente o acesso das mulheres negras ao aborto legal. É ainda colaborar ativamente para que mais mulheres negras morram ao fazer abortos. E mais crianças negras fiquem órfãs porque perderam as mães por falta de acesso à saúde. E, então, mais famílias negras ficarão socialmente vulneráveis, como mostram as pesquisas nessa área. E assim segue o genocídio. Holiday, vale lembrar, também já protocolou na Câmara de Vereadores um projeto contra as cotas raciais e para acabar com o Dia da Consciência Negra.
Em junho de 2018, ele gravou um vídeo, disponível no YouTube, para reafirmar aos seguidores que “o MBL é oficialmente contra o aborto”. Nele, reproduz imagens de um vídeo anterior de Kim Kataguiri, no qual o hoje deputado mostra a imagem de um feto e diz que só “um psicopata” chama aquilo de “amontoado de células”. O MBL já estava preocupado com acusações de seus seguidores de não ser a “direita verdadeira”.
Quem converte o corpo das mulheres em moeda ideológica, e no Brasil é principalmente o corpo das mulheres negras, está defendendo a cultura da morte. E não a da vida. A guerra da direita com a direita pelas almas e pelos votos já mostrou quais são os corpos que serão sacrificados. Mais uma vez.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Ei, Bolsonaro, até o pênis está diminuindo
Ao liberar agrotóxicos numa velocidade inédita, o governo envenena o Brasil
O que faria Jair Bolsonaro ouvir o que não quer ou pelo menos prestar atenção no que dizem aqueles que não pertencem ao seu clã? Como a urgência dos acontecimentos exige medidas extremas, alguém pode fazer a gentileza de informar ao antipresidente sobre uma pesquisa que causou barulho no Twitter no final de semana, ao ser divulgada pelo Canal History. Realizada por cientistas da universidade de Pádua, na Itália, ela mostra que jovens expostos ao composto industrial tóxico PFOS (sulfonato de perfluorooctano) têm comprovadamente o pênis menor e mais fino do que a média, além de problemas de fertilidade. Outro efeito colateral seria o aumento de hormônios femininos em homens. Desde 2009, o uso deste veneno é restrito entre os 182 países que fazem parte da Convenção de Estocolmo. Ainda assim, o Brasil é um dos grandes produtores mundiais de sulfluramida, um agrotóxico usado para combater formigas que, quando se degrada no ambiente, resulta na formação de PFOS. Até quando? Tudo indica que até muito. E cada vez mais.
O que poderia ser mais importante do que o que estamos respirando, comendo e bebendo?
O que poderia ser mais importante do que o que estamos respirando, comendo e bebendo? Como não enxergamos o veneno que comemos, bebemos e respiramos, nem o que está ao redor de nós, disseminado no meio ambiente, essa percepção não ganha a dimensão de alarme que deveria. O que pode causar doenças fatais e até mutações genéticas entra no nosso corpo pela boca, pelos pulmões e pelos poros sem que percebamos. Muito pouco, talvez nada. Só que a população é pouco educada para compreender a ciência que repercute no cotidiano, diretamente sobre a saúde. Os nomes complicados dos compostos químicos já dificultam o entendimento. Assim, é dada pouca atenção à contínua aprovação de venenos publicada no Diário Oficial da União e aos debates em torno do tema dos agrotóxicos travados no Congresso.
A pesquisa feita com jovens da bucólica região do Vêneto, na Itália, foi publicada no The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, em novembro de 2018. Mas só ganhou repercussão no último fim de semana nas redes sociais no Brasil. Os cientistas analisaram 212 jovens expostos ao veneno, comparando-os a um grupo de controle, de não expostos, de 171. A média de idade era de 18 anos. Embora seja um grupo pequeno, a investigação foi conduzida dentro dos critérios corretos, por uma equipe respeitável. O trabalho aprofunda aspectos que já vinham sendo investigados por outros cientistas. Os jovens expostos aos produtos tinham pênis menores, menor contagem de espermatozoides, menor mobilidade dos espermatozoides e uma redução da “distância anogenital” (distância entre o ânus e a base dos testículos), uma medida que os cientistas consideram uma marca de saúde reprodutiva. A porcentagem de espermatozoides de formato normal no grupo exposto era pouco mais da metade comparada ao grupo de controle. Como os produtos químicos são transferidos das mães para os bebês, é provável que os jovens tenham sido contaminados antes do nascimento.
Como se sabe, a palavra “pênis” é poderosa. Atrai especial atenção nos dias atuais por conta da obsessão de Bolsonaro, que não para de criar oportunidades para falar de pinto e de tamanho de pinto. Os japoneses que o digam. Em 15 de maio, Bolsonaro foi abordado por um homem com traços asiáticos no aeroporto de Manaus. O estrangeiro disse duas palavras: “Brasil” e “gostoso”. O antipresidente reagiu com “Opa!”, levantou os braços, aproximou o polegar do dedo indicador e perguntou: “Tudo pequenininho aí?”.
Dias depois, ao comentar a reforma da Previdência, apresentada ao país como a cura para todos os males da terra com todos os males, afirmou: “Se for uma reforma de japonês, ele (o ministro da Economia Paulo Guedes) vai embora. Lá (no Japão), tudo é miniatura”. No Carnaval, o antipresidente postou no Twitterum vídeo de dois homens fazendo “golden shower” (modalidade sexual em que um urina no outro), para tentar provar que a festa mais popular do Brasil – e que satirizou todas as trapalhadas do seu governo – era uma versão contemporânea de Sodoma e Gomorra. Não colou – e Bolsonaro passou (mais uma) vergonha.
A recorrente referência a pintos segue por mais episódios do que há espaço em um artigo sobre o risco dos agrotóxicos. A inclinação foi amplamente analisada pelo jornalista Naief Haddad, na Folha de S. Paulo de 2 de junho: “De 'golden shower'; a piada com japoneses, obsessão fálica marca Bolsonaro. Especialistas comentam fixação do presidente com genitais e sexualidade”.
Quando a notícia de que havia um agrotóxico relacionado a redução do tamanho e da largura do pênis repercutiu no Twitter, criou-se a expectativa de que talvez fosse possível chamar a atenção antipresidencial para o que seu governo anda fazendo. Afinal, nada poderia ser mais promissor: pinto e Twitter, duas obsessões de Bolsonaro finalmente juntas. Aparentemente, porém, não completou-se a sinapse no cérebro antipresidencial. Informações que atrapalham as conveniências da família e os lucros dos aliados funcionam como uma espécie de criptonita. Se forem científicas, pior ainda. O fato de jovens poderem estar sofrendo alterações no pênis e na fertilidade já antes do nascimento não parece ser um assunto capaz de interessar Bolsonaro. Importante mesmo é “golden shower” e “piada” com japoneses.
Bolsonaro demonstra obsessão por falos, mas não parece se importar que o pênis de jovens possa diminuir por exposição à agrotóxico
O Brasil é o único país sob a tutela da Convenção de Estocolmo que tem permissão para produzir a sulfluramida. Sharon Lerner, jornalista especializada em saúde e meio ambiente, afirmou em artigo no jornal The Intercept que, com a proibição em outros países, a fabricação nacional da substância cresceu. Entre 2004 e 2015, a produção resultou em até 487 toneladas de PFOS liberadas no meio ambiente, uma porção considerável da contaminação global. Além disso, por uma brecha no tratado, o país também consegue exportar o agrotóxico para vários países.
“Enquanto grande parte do mundo se esforça para acabar com a contaminação do composto industrial tóxico PFOS, o Brasil ainda está ajudando a aumentar a bagunça ambiental com sua produção em larga escala, uso e exportação de sulfluramida, um pesticida que, ao se degradar, forma PFOS. Ligado ao baixo peso de recém-nascidos, ao enfraquecimento da imunidade, a efeitos hepáticos, ao colesterol elevado, à disfunção da tireoide, aos cânceres e a outros problemas de saúde, o PFOS não é mais fabricado ou utilizado na maioria dos países”, escreveu Lerner. “A Convenção de Estocolmo abriu várias brechas para o PFOS, incluindo uma para seu uso com o objetivo de matar formigas cortadeiras. A sulfluramida é feita de PFOS e, ao se quebrar, divide-se no próprio PFOS e em outros produtos químicos dentro de poucas semanas. O Brasil, único país sob a tutela do tratado que tem permissão para produzir o pesticida, conseguiu exportá-lo sem notificar a convenção porque o acordo restringe o PFOS, mas não faz menção à sulfluramida, que hoje é amplamente usada em países como Uruguai, Brasil, Argentina, Paraguai, Colômbia e Venezuela, entre outros.”
A lambança da sulfluramida não foi provocada por Bolsonaro. Com um governo explicitamente pró-veneno, porém, não será enfrentada por ele sem enorme pressão popular. A aprovação de agrotóxicos é um termômetro fiel do poder da banda podre do agronegócio brasileiro e seus lobistas em cada governo. É preciso dizer também que a banda podre é a mais influente no agronegócio brasileiro e está relacionada à indústria do agrotóxico e ao desmatamento de biomas como a floresta amazônica e o Cerrado. Suas digitais estão no governo Lula e, de forma francamente despreocupada em deixar marcas, no de Dilma Rousseff. Dominou já no processo de impeachment da ex-presidenta e, com Temer, assumiu o governo.
Com Bolsonaro, a banda podre do agronegócio não está no governo: é o governo. E, como se sabe, só aumenta seu poder no Congresso. O ministro contra o meio ambiente, Ricardo Salles, é só o office-boy deste pessoal. Salles, ele mesmo um agroísta, é um subalterno que faz o serviço sujo de desmantelar o sistema de proteção ambiental, concentrando as atenções e as reações. Os mandantes, como nos crimes de sangue ocorridos nas favelas e na floresta, preferem se manter mais discretos, para circular com mais desenvoltura nas negociações estratégicas de cúpula.
Robotox, o robô que tuíta a cada novo veneno liberado pelo governo
A sanha do governo Bolsonaro em aprovar agrotóxicos é tamanha que as agências de jornalismo investigativo Repórter Brasil e Pública decidiram criar o Robotox, um robô que tuíta a cada novo veneno liberado pelo governo. Também fizeram um mapa para que cada um possa descobrir com quantos agrotóxicos é feita a água que bebe. Entre janeiro e 14 de maio, um levantamento das duas organizações revelou que 166 agrotóxicos foram liberados, segundo o Diário Oficial da União. Destes, 48 são considerados “extremamente tóxicos”. Apenas 5% são fabricados inteiramente no Brasil, o que significa que o país continua sendo um grande importador de agrotóxicos produzidos por países como China, Índia, Japão e Estados Unidos.
Segundo o Greenpeace, 25% dos produtos aprovados pelo governo neste anosão proibidos na União Europeia. "O que a gente está vendo é que o Brasil acabou virando um depósito de agrotóxicos que são proibidos lá fora", disse ao G1Marina Lacôrte, especialista em agricultura e alimentação do Greenpeace. De todos os venenos aprovados em 2019, oito são moléculas ou misturas de glifosato, herbicida associado a um tipo de câncer em processos milionários, nos Estados Unidos, e alvo de controvérsias também no Brasil. Hoje, segundo o @Robotox, já são 197 agrotóxicos liberados desde o início do ano.
O progressivo envenenamento do país tem provocado notícias cada vez mais alarmantes. Entre dezembro e fevereiro, mais de 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas em quatro estados brasileiros, 400 milhões delas no Rio Grande do Sul. O principal responsável apontado por cientistas foi o contato com agrotóxicos à base de neonicotinoides e de Fipronil, produto proibido na Europa há mais de uma década. Aplicados por pulverização aérea, os venenos se disseminam pelo ambiente.
As abelhas são as principais polinizadoras das plantas. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no planeta dependem destes insetos, que pulverizações de pesticidas estão matando às centenas de milhões. Caso o massacre continue, não é preciso ser cientista nem ter uma inteligência acima da média para prever o próximo capítulo.
Nos anos 90, surgiram as primeiras investigações sobre suicídios provocados por agrotóxicos aplicados na lavoura de fumo do Rio Grande do Sul, em municípios produtores de tabaco como Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul. Desde então, esta tem sido uma linha de investigação de pesquisadores de diferentes universidades. Em 2018, o jornalista Solano Nascimento, professor da Universidade de Brasília, cruzou o número de suicídios dos últimos dez anos registrados pelo Ministério da Saúde com o censo do IBGE de todos os municípios brasileiros com mais de 100.000 habitantes. Santa Cruz do Sul aparece em primeiro lugar no Brasil, com média anual de 16 suicídios a cada grupo de 100.000 habitantes. A média no Brasil é de 5 por 100.000 habitantes.
A partir da Lei de Acesso à Informação, da pesquisa em cartórios e da entrevista com familiares, o jornalista seguiu cruzando dados. Descobriu então que, analisando apenas a população de fumicultores de Santa Cruz do Sul, o número de suicídios se multiplica de forma alarmante: são 67 por 100.000 habitantes. O método mais utilizado é o enforcamento. A reportagem publicada na revista Vejaem 26 outubro de 2018, às vésperas do segundo turno eleitoral, recebeu muito menos atenção do que deveria. Dois dias depois, o Brasil elegeria o presidente que poderá se tornar o recordista no número de liberação de venenos.
A linguagem é usada também para exilar aqueles que os donos do poder preferem afastar das decisões. Tanto como para encobrir o que está em jogo. Este é um dos objetivos do projeto de lei 6.299/02, conhecido como “pacote do veneno”, que tramita no Congresso. Se for aprovado, a palavra “agrotóxico” será deletada das embalagens dos produtos e dos documentos oficiais e substituída por “pesticida”, “defensivo agrícola” e – a máxima falta de vergonha na cara –“defensivo fitossanitário”.
Segundo a ministra do veneno, liberar agrotóxicos rapidamente é combater a ideologia que “atrasava” o processo
Assim, o agricultor que usar um destes produtos poderá se esquecer que está se envenenando e envenenando àqueles que consumirem os alimentos que produz, assim como o meio ambiente. Como a linguagem já foi pervertida no Brasil, os defensores do PL afirmam que “agrotóxico” é uma palavra “ideológica”. A velocidade com que os agrotóxicos têm sido aprovados é defendida pelo governo com palavras como “desburocratização” e “flexibilização”. Segundo a ministra do veneno, é preciso combater a “ideologia”. "Não se tem nenhuma insegurança na liberação desses produtos, que estavam lá numa fila enorme e que eram represados por problemas ideológicos", afirmou a agroísta, na abertura de uma feira em Uberaba, Minas Gerais.
O Brasil usou quase 540.000 toneladas de agrotóxicos em 2017. Veneno que vai para o ar, para a água, para nossos corpos. Tudo indica que, sem a “ideologia” atrapalhando e atrasando o processo, o governo Bolsonaro poderá melhorar essa performance, aprimorar o envenenamento da população e aumentar os lucros das multinacionais de agrotóxicos. Há uma lista de mil venenos aguardando a liberação.
Em nome do “combate à ideologia”, a Anvisa deslocou servidores de outras áreas para o setor de agrotóxicos, para acelerar o processo. Como as ações demonstram, o governo Bolsonaro acredita que é de mais veneno que o Brasil precisa. O que está aí, no nosso estômago e nos nossos pulmões, é pouco. É preciso expor os brasileiros a mais para arrancar a ideologia de dentro das nossas barrigas. Talvez com um câncer.
O bolsonarismo tem intoxicado o Brasil de tantas maneiras. As relações interpessoais foram envenenadas, as redes sociais estão contaminadas, as pessoas sentem o ódio como um sintoma de uma doença persistente. A violência da eleição, seguida pelo governo que mantém o clima de guerra civil como estratégia de ocupação de poder, têm causado efeitos profundos na saúde física e mental das pessoas. Como o Brasil se colocou além das metáforas, porém, é preciso acordar em pé para o fato de que o governo Bolsonaro está também – e literalmente – envenenando a população.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: A potência da primeira geração sem esperança
Os adolescentes que lideram a greve climática encarnam a mais importante adaptação ao planeta em colapso e demonstram ser mais próximos dos povos da floresta do que de seus avós de tradição europeia
Em maio, encerrei uma palestra sobre a Amazônia e a criação de futuro, na universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirmando que a esperança, assim como o desespero, é um luxo que não temos. Com um planeta superaquecendo, não há tempo para lamentações e para melancolias. Precisamos nos mover, mesmo sem esperança. Assim que terminei, um grande empresário brasileiro fez uma manifestação apaixonada em defesa da esperança e foi aplaudido entusiasticamente por parte da plateia. A esperança, e não a destruição acelerada da Amazônia ou a emergência climática global, foi o assunto do debate que veio a seguir. Alguns entenderam que eu era uma espécie de inimiga da esperança e, portanto, uma inimiga do futuro (deles). A reação é reveladora de um momento em que a novíssima geração, a das crianças e adolescentes, tem enfiado o dedo na cara dos adultos e mandado eles crescerem.
A esperança tem uma longa história, e espero que algum dia alguém a escreva. Das religiões à filosofia, do marketing político ao mundo das mercadorias do capitalismo. Num planeta com chão cada vez mais movediço, em que os estados-nação se desmontam, a esperança tem progressivamente ocupado o lugar da felicidade como um ativo de mercado. Lembram que até bem pouco tempo atrás todo mundo era obrigado a ser feliz? E quem afirmava não ser tinha uma deformação de alma ou estava doente de depressão?
A “felicidade” como mercadoria já foi bem dissecada por diferentes áreas do conhecimento e pela experiência cotidiana de cada um. Convertida em produto do capitalismo, no qual era objeto de consumo que supostamente se garantia por mais consumo, hoje perdeu valor de mercado, ainda que continue eventualmente a abarrotar as prateleiras de livros de autoajuda. A esperança vai ocupando o seu lugar num momento em que o futuro se desenha sombriamente como um futuro num planeta pior.
Minha investigação pessoal sobre a esperança se iniciou em 2015. E volto a ela daqui a alguns parágrafos. O que levei para a parte final da minha palestra foi o que me parece o mais fascinante desta época: aquela que talvez seja a primeira geração sem esperança. Ao mesmo tempo, é também a geração que rompeu o torpor desse momento histórico marcado por adultos infantilizados, que alternam paralisia e automatismo, também no ato de consumir. Ao romper o torpor, essa geração deu esperança à geração de seus pais. O impasse em torno da esperança é revelador do impasse entre a geração que levou ao paroxismo o consumo do planeta, a dos pais, e a geração que vai viver no planeta esgotado por seus pais.
“Nossa casa está em chamas. Eu não quero a sua esperança. Eu quero que vocês entrem em pânico”
A geração sem esperança tem a imagem de Greta Thunberg, a garota sueca que, em agosto do ano passado, com apenas 15 anos, iniciou uma greve escolar solitária em frente ao parlamento em Estocolmo. E, de lá para cá, já inspirou duas greves globais de estudantes pelo clima,levando para as ruas do mundo centenas de milhares de crianças e adolescentes em cada uma delas. Greta, que se tornou uma das pessoas mais influentes do planeta em menos de um ano, é reconhecida por declarações tão brilhantes quanto afiadas. Em uma delas, responde aos adultos que olham extasiados para seu rosto de boneca de souvenir e confessam de olhos úmidos que ela e sua geração os enche de esperança. A adolescente, hoje com 16 anos, diz:
“Nossa casa está em chamas. Eu não quero a sua esperança, não quero que vocês sejam esperançosos. Eu quero que vocês entrem em pânico, quero que vocês sintam o medo que eu sinto todos os dias. Eu quero que vocês ajam, que ajam como se a casa estivesse em chamas, porque ela está”.
Em geral, depois do susto inicial, os adultos retomam o enamoramento, dando “um desconto à juventude” de Greta – “ela ainda vai crescer...” (e quem sabe se tornar esperançosa como eles?). E, assim, tentam ignorar o que ela diz sobre a esperança – e sobre agir. Mesmo cientistas e ativistas do clima, que conhecem a realidade da emergência climática e têm os números da catástrofe na ponta da língua, têm dificuldades com essa afirmação. Eles temem que, se não houver esperança, as pessoas paralisem e não reajam nem pressionem as autoridades por políticas públicas de combate ao superaquecimento global, tampouco consigam se adaptar às mudanças (para pior) que já começaram a se impor sobre o cotidiano.
Em 24 de maio, na segunda greve estudantil global pelo clima, cerca de 30 crianças e adolescentes brasileiros que protestavam foram recebidos pelo assessor de mudanças climáticas da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Oswaldo Lucon, que é também membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU, afirmou, segundo a Folha de S. Paulo, que “passar para os mais jovens mensagens de total desesperança pode não ser o melhor caminho”. Diante do sentimento de urgência dos jovens, disse que é “importante brigar mas também tentar trazer soluções para os problemas”. Que deveriam se preocupar em crescer para ocupar cargos públicos e também nas empresas para então tomar decisões que produzam mudanças. O problema, para seus jovens interlocutores, é que só há 11 anos para impedir que o planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius, o que parece tremendamente difícil com o atual quadro de adultos no comando. Os estudantes em greve climática sabem que não há tempo, que precisam mesmo é sacudir esses homens e mulheres crescidos, mas atarantados, antes que seja tarde demais.
A declaração do adulto na sala foi bem intencionada, como são bem intencionados muitos adultos que enfrentam aquele que é o maior desafio da nossa espécie em toda a sua trajetória: a alteração do clima do planeta provocada por ação humana. A questão que os adultos parecem não compreender é que há uma mudança no modo de pensar. E é uma mudança profunda. Minha hipótese é que, não fosse essa mudança no modo de pensar, adolescentes da geração de Greta não conseguiriam fazer o que fazem. Refiro-me a Greta, por ela ser o principal ícone dessa geração, mas outras lideranças da juventude pelo clima colocam a esperança num lugar menos estratégico que a geração de seus pais. Não me parece que tenham questões com a esperança nem que ela esteja no seu horizonte imediato de preocupações. Apenas ela não é importante na vida deles como é na de seus pais. A esperança aparece no discurso porque provocada pelos adultos.
Ao dizer que não têm esperança e que não querem dar esperança para ninguém, muito menos para aqueles que são em grande parte responsáveis pelo legado de um planeta exaurido, os adolescentes demonstram uma aguda intuição. Eles recusam o discurso hegemônico e também a ideia de um discurso hegemônico. A Europa, que é de onde vem Greta e a maioria das lideranças estudantis pelo clima, é aquela que fez um discurso sobre o que é não só a própria Europa, mas o que são todos os outros, um discurso sobre a humanidade, e também sobre civilização e barbárie. A esperança está embutida nesse pacote da “tradição ocidental”. Ao recusar à ideia fácil da esperança, os adolescentes intuem – ou concluem – que, se quiserem enfrentar a vida no planeta que virá, terão que recusar essa matriz de pensamento – ou não terão chance.
Recusam-se também a ser consumidos pelos adultos assustados, mas sempre ávidos por corpos jovens, como é toda geração que envelhece e passa a temer a morte. A dos adultos atuais tem a particularidade de ser uma geração fortemente influenciada pelos Estados Unidos e sua esperança de exportação, embalada por Hollywood primeiro, pelo Vale do Silício depois. Se tornarem-se fontes de esperança, os estudantes pelo clima passam a ser bibelôs fofos em tempos de trevas, miniaturas vendidas nas lojas para fazer companhia aos pinguins de geladeira. Greta seria então reduzida a um rostinho redondo de porcelana – e não alçada à potência que efetivamente é.
Recusar-se a ser objeto de esperança é recusar-se a ser consumida pela engrenagem que já engoliu rebeldes muito mais velhos e experientes e mastigou insurreições usando todos os dentes, apenas para cuspi-las na sequência. De alguma maneira, a juventude pelo clima parece intuir também que é preciso fazer esses adultos abrirem mão da muleta da esperança, porque com ela seguem em seu longo torpor num sofá metafórico enquanto, como Greta diz, “nossa casa está em chamas”.
Deve ser assustador ter como pais a minha geração ou a imediatamente posterior, que é ainda mais fraca
Posso imaginar o quanto deve ser assustador ter como pais a minha geração e a geração imediatamente posterior a minha, que me parece ainda mais entorpecida porque mais mimada pelo suposto “direito” de consumir. Essas crianças e adolescentes veem a casa queimando, sentem o calor do fogo e o gosto acre da fumaça tóxica invadindo os pulmões. E os pais lá, cuidando de outros assuntos. Percebem então que, se não fizerem algo, estão ferradas, porque são elas que vão viver num planeta muito pior. Ao mesmo tempo, são estes adultos que estão no poder e (não) tomando as decisões necessárias. Quando finalmente são confrontados, os adultos ou agem com repressão, ao sentirem-se atingidos em sua autoridade conferida pela idade, ou demandam esperança. É, no mínimo, enervante.
O ponto mais interessante é que a demanda por esperança dos adultos esbarra na lógica. O discurso geral é de que, sem esperança, as pessoas não lutarão contra o superaquecimento global. E a realidade mostra que as pessoas que estão mudando o paradigma da luta climática, fato reconhecido pelos cientistas e ativistas do clima mais veteranos, afirmam não ter esperança – ou que ter esperança não é o mais importante neste momento. Quem rompeu o torpor da espécie são esses adolescentes que querem que os adultos entrem em pânico imediatamente e comecem a agir já.
Testemunhamos, sem reparar na grandeza do fato, a mais fascinante adaptação à emergência climática do planeta
Em vez de recusar o que dizem, os adultos deveriam estar escutando-os com toda a atenção. O que testemunhamos é talvez a primeira geração a perceber que não tem tempo para esperar os pais resolverem o problema que até hoje só agravaram – e muito. Como já escrevi em artigo anterior: “Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso ter amanhã”.
Dito de outro modo. O que testemunhamos é uma nova forma de pensamento adaptada à nova realidade do planeta. Minha hipótese é que testemunhamos uma adaptação à emergência climática. Produzida em nível subjetivo, essa adaptação está produzindo acontecimento no planeta. Depois de cientistas e ativistas do clima berrarem sozinhos por décadas, o mundo finalmente começa a escutar que a casa está queimando porque a nova geração, esta que prescinde da esperança, é quem está dizendo.
E dizendo com novas palavras. Em maio, o jornal britânico The Guardiananunciou que mudaria seu manual para conferir mais precisão à linguagem usada na cobertura: em vez de “climate change” (mudança climática), passou a usar “climate emergency, crisis or breakdown” (emergência climática ou crise climática ou colapso climático); em vez de “global warming” (aquecimento global), “global heating” (expressão de difícil conversão ao português, que estou traduzindo como “superaquecimento global”). A pressão pelas mudanças operadas na linguagem foi produzida, em parte, por novíssimas lideranças como Greta Thunberg.
Movimento e esperança, como os (extremamente) jovens ativistas do clima provam, dia após dia, não estão conectados. É possível agir sem esperança. Mas, como me disse Anuna de Wever, a liderança belga da juventude climática, com a alegria de estarem juntos, de fazerem juntos. Sua resposta remete a outra urgência: a de tecer o “comum”, a de fazer comunidade. Não clã, nem nação. Mas comunidade. É também comunidade que a nova geração de ativistas climáticos está fazendo no mundo, a cada greve estudantil do clima. Derrubando as fronteiras e botando os muros abaixo em nome de um “comum”: a luta contra o superaquecimento global, a batalha contra os senhores do mundo que estão esgotando o planeta e fazendo com que não exista amanhã para os que vêm em seguida, o enfrentamento da lógica capitalista do consumo engolidor de mundos.
Testemunhamos, muitos sem perceber a grandeza do que veem, a espécie se reinventando para sobreviver em ambiente hostil. E fazendo isso não apenas enquanto a casa queima, mas enquanto no planeta comandado por adultos multiplicam-se os governos populistas de extrema direita dedicados a construir muros e armar as fronteiras. A luta do presente pode ser resumida entre aqueles que estão tecendo um comum e aqueles que rasgam a possibilidade do comum, como o governo de ódio de Jair Bolsonaro no Brasil, o governo de muros de Donald Trump nos Estados Unidos, e todas as crias monstruosas dos novos fascistas.
Os populistas de extrema direita negam o aquecimento global porque morrem de medo da criação do comum
Não é por mero acaso que os populistas de extrema direita negam a emergência climática. Eles sabem que é na luta contra o superaquecimento global que a humanidade pode se unir para tecer um comum. Hoje, tremem de medo diante das crianças que botam o dedo na sua cara, e então tentam torná-las objetos de consumo. Quando não conseguem, inventam conspirações para desqualificá-las, como tem feito tanto a extrema direita quanto a extrema esquerda, sempre tão parecidas. É também nesse ponto que entra a demanda por esperança. “Não é que essas crianças não têm esperança, é que elas ainda são muito jovens, não entendem o mundo”, escuto dizerem. Claro, quem entende o mundo são esses seres experientes que destroem o planeta a cada dia com mais afinco.
Em um belo texto publicado na revista de psicanálise “Percurso”, do Instituto Sedes Sapientiae, um dos adultos mais interessantes vivendo no Brasil, o filósofo Peter Pál Pelbert, escreve lindamente sobre o “comum”:
“Talvez o desafio seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da Alteridade, e resgatar a lógica da Multiplicidade. Não se trata mais, apenas, do meu direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição. Nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência entre nós, onde cada um está preso à sua identidade feito um cachorro ao poste, e portanto nela encastelado. Trata-se de algo mais radical, nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada”.
Essa passagem me evocou de imediato essa nova geração de ativistas do clima que ainda está no que chamamos de puberdade. Essa nova geração que não é apenas “nova” porque nasceu neste século, mas que é nova porque reivindica o novo, porque mais do que reivindicar o novo “é” o novo. Aponta também o quanto é necessário deixar de ser esse cachorro amarrado ao poste de que fala o filósofo para se arriscar a outras identidades possíveis num mundo bafejado pelo impossível. O quanto é preciso se deslocar de si para experimentar outra experiência de ser – e de ser junto. Começando por compreender que meu arcabouço de experiências não dá conta do mundo. É também por isso que preciso do outro, para que ele possa me ensinar a ver, e ao ver com ele assumo seus traços sem temer perder os meus.
Ao final, o filósofo escreve, referindo-se a Mahmud Darwish, poeta palestino. “A melhor resposta está ainda no poema de Darwish, que a coloca na boca de Saïd. ‘Se eu morrer antes de você, deixo como legado o impossível’. E Darwish pergunta: ‘Está muito longe o impossível?’. E a voz de Saïd responde: ‘a uma geração de distância’. É quase Kafka: ‘Há muita esperança, uma esperança infinita, mas não para nós’”.
Penso que o impossível é a condição dessa geração que já não está mais à distância. Penso que, diante do impossível, precisamos criar um ser novo, fazer algo que nunca fizemos, nos arriscar a ser o que não sabemos.
A história não acaba enquanto tivermos memória
A questão da esperança apareceu, para mim, enquanto acompanhava a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a destruição do rio Xingu, na floresta amazônica. Uma – a construção – resultando na outra – a destruição. Vi pessoas que lutaram contra a morte e que viram seus companheiros tombarem a tiros nas lutas do passado pela floresta, mas que só naquele momento sentiam como se houvessem chegado ao fim da história. Belo Monte se erguia violando todas as leis e violando também os corpos dos mais frágeis – o que faz ainda hoje –, num governo do partido que haviam ajudado a fundar. As casas eram destruídas e incendiadas, a floresta queimava, os bichos morriam afogados, em convulsão. O mundo amazônico se transfigurava.
O que vimos e vivemos foi excesso de lucidez, uma submersão, quase afogamento, no escuro mais fundo dos arranjos de poder e das estruturas de submissão, da política de controle dos corpos, de todos os corpos, o do rio, o das árvores, o dos animais, o dos humanos.
Mas a história não tem fim enquanto temos memória. E então eu, como outros, temos nos dedicado à memória. Percebi ali que me tornara uma outra eu, junto com os outros que também se tornavam eu e outros. Me descobri um eu sem esperança. E descobri que não era triste, tampouco desesperada. Essas oposições já não reverberavam em mim. A esperança não era mais uma questão porque não a sentia nem como falta, porque já não me faltava. A esperança desimportava-se em mim, e eu me desimportava dela.
O que me fascinava naquele momento, e me fascina ainda hoje, era a alegria de estar junto mesmo na catástrofe, um “fenômeno” que primeiro vi, depois experimentei, junto com os ribeirinhos expulsos por Belo Monte, os refugiados dentro de seu próprio país, como os chamei. A alegria como ato de insurreição, como o dedo enfiado no olho do furacão, cavoucando a córnea do opressor. Não substituí a esperança pela alegria, digo antes de ser mais uma vez mal entendida. Me tornei outro tipo de ser/estar no mundo. Um que ri nem que seja por desaforo e que é capaz de lutar mesmo sabendo que vai perder. Fui possuída pela vida feroz.
Em 2015, pensei em contar sobre isso neste espaço. Escrevi uma coluna intitulada “Em defesa da desesperança”. Hoje parece um passado tão distante e o que era ruim virou pior, mas no Brasil de 2015 as pessoas temiam que o ano nunca acabasse, e eu pensei que poderia colaborar contando o que tinha percebido e aprendido. Escrevi assim: “Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido. Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético”.
Como os anos seguintes mostraram, a maioria dos brasileiros, à direita mas também à esquerda, preferiu não enfrentar os conflitos e as contradições, mas colocar no seu lugar o ódio e a falsificação. O resultado estamos vendo. E vivendo.
Lembro que um ano antes, na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP de 2014, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse: “Os índios entendem de fim de mundo porque o mundo deles acabou em 1500”. Sua provocação referia-se ao fato de que, talvez, se tiverem esse desejo, os indígenas possam nos ensinar a viver depois do fim do mundo representado pela emergência climática, porque entendem de fim de mundo, já que o deles acabou com a invasão europeia.
Ao mergulhar no rio de pensamentos outros, entendi que a catástrofe não é o fim, está no meio
A frase impactou a mim e a tantos que lá estavam, mas só fui compreendê-la por completo quando passei a viver na Amazônia e a me expor a outros modos de vida. E outros modos de vida são também outros modos de pensamento. Ao mergulhar nesse rio de pensamentos outros, entendi que a catástrofe não é o fim, está no meio. Entendi isso com o meu corpo, o que faz toda a diferença, ao conviver com pessoas que tinham vivido várias catástrofes, pessoas para as quais o mundo havia se transfigurado várias vezes, e a vida se inventava pela resistência. Mas uma resistência com uma dimensão diferente da que conhecemos a partir da experiência ocidental branca. Uma resistência que não é a do fardo ou a da cruz, a da resignação martirizada, nem a da vingança e a da espada. O riso de desaforo era parte dessa resistência, que Viveiros de Castro chama de “rexistência”: “Os povos indígenas não podem não resistir sob pena de não existir como tais. Seu existir é imanentemente um resistir, o que condenso no neologismo rexistir”.
No Xingu, onde o Estado e a Norte Energia S.A construíram ruínas de grandes dimensões, eu vi – e vivi com – pessoas que existiam porque resistiam – e resistiam para existir. O que me impressionou, ao começar a escutar as garotas e garotos da greve estudantil pelo clima foi como essa juventude europeia, majoritariamente branca e de classe média, se aproximou tanto do pensamento dos povos da floresta sem nunca tê-los conhecido. Por que caminhos invisíveis seus pensamentos se encontraram, como foi feito esse diálogo que aconteceu sem jamais ter acontecido?
Talvez, mas apenas talvez, porque só estou começando a minha investigação, seja a catástrofe no meio das vidas, a catástrofe que não é vivida como o fim da história. A dos povos da floresta, que já viveram a catástrofe e estão ameaçados de viver mais uma vez, a dos adolescentes que sabem que terão que viver num planeta pós-catástrofe – ou “em-catástrofe”. Essa percepção de mundo, a da vida “em-catástrofe”, altera o corpo inteiro – e também o modo de colocar esse corpo no mundo. Este é um corpo em estado de movimento. Ou de “movências”.
O que se disputa hoje não é o futuro, mas sim passados que nunca existiram
Escrevi, meses atrás, na minha coluna no jornal El País de Madri, que hoje a disputa se dá sobre os passados. Do Brexit ao trumpismo e ao bolsonarismo, o debate do presente abandonou o horizonte do futuro para se dedicar a passados que nunca existiram. Caricaturas como Donald Trump e Jair Bolsonaro conseguem tanta adesão (também) porque a dificuldade de imaginar um futuro em que se possa viver alcançou níveis inéditos: pela primeira vez, o amanhã se anuncia como catástrofe. Não como catástrofe possível, como no período da Guerra Fria e da destruição pela bomba atômica. Mas como catástrofe dificilmente evitável, já que o aquecimento de no mínimo 2 graus Celsius da temperatura da Terra é quase certo. Mas isso num modo otimista. Os fatos indicam que estamos nos dirigindo para 3 ou 4 graus, o que terá um impacto absolutamente tremendo.
A sensação de “nenhum futuro” tem como efeito subjetivo a invenção de passados para os quais supostamente se poderia voltar. Os britânicos que votaram pelo Brexit acreditam que poderão retornar a uma Inglaterra poderosa e sem imigrantes. Os cidadãos brancos do interior dos Estados Unidos creem que Trump pode lhes devolver uma América onde os negros eram subalternos e, assim como eles, cada “coisa” estava no seu lugar e cada um podia viver sabendo qual era o lugar de cada coisa. Os eleitores de Bolsonaro negam toda a tortura e os assassinatos praticados por agentes do Estado na ditadura, ou a justificam, porque preferem se iludir que viviam num país onde havia “ordem” e “segurança” – “e homem era homem e mulher era mulher” e homem não transava com homem nem mulher com mulher – e podem voltar a viver nele.
Como se sabe, esses passados nunca existiram imunes a vastos conflitos e enormes violências, mas quem vai dizer o que existiu? Assim, o populismo de extrema direita disputa o passado como estratégia de ocupação de poder enquanto trabalha na destruição sistemática da memória – nem que para isso seja preciso destruir os corpos que a abrigam.
Populistas como Bolsonaro recebem a adesão de seguidores que se comportam na política como crentes religiosos, e isso mesmo quando ateus, porque, pela primeira vez na trajetória humana, o futuro, em grande medida, está dado. Sabemos que viveremos num planeta muito pior. O que se disputa, de fato, é se as condições de vida na Terra serão ruins ou hostis, o que faz uma enorme diferença. O que se disputa também é como vamos lidar com isso. Aqueles que negam a realidade, porém, disputam um passado para colocá-lo no lugar do futuro que não conseguem encarar. A negação, em geral, é desesperada. E o desespero é um grande ativo do ódio.
Mas o que é o futuro, afinal? O futuro precisa também se desinventar como conceito de futuro para voltar a ser imaginado. Ou o futuro precisa se descolar dos conceitos hegemônicos de futuro para se abrir a outras possibilidades de ser pensado como futuro. Talvez não tenha nem mesmo o nome de futuro, mas outros. É necessário se desgarrar das matrizes de pensamento europeias e das estruturas lógicas estabelecidas pelos inventores da civilização que nos trouxe até esse momento limite. Esse futuro desinventado de futuro está sendo tecido por experiências de minorias vindas de outros territórios cosmopolíticos. Entre tantas más notícias, há uma ótima: por caminhos surpreendentes, a nova geração de suecas está vindo como índio.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: O golpe de Bolsonaro é pela família, contra a nação
O antipresidente ataca o país para defender os interesses do seu próprio clã
Entre os tantos momentos graves vividos pelo Brasil desde que Jair Bolsonaro(PSL) foi eleito presidente e passou a governar como antipresidente, este em que ele e sua família pregam abertamente um autogolpe é possivelmente o pior. E, a depender de como for enfrentado pela sociedade, outros piores virão. Se aqueles que ocupam as instituições brasileiras ainda têm respeito pelos seus deveres constitucionais, é hora de resgatar o que resta de democracia e usar a Constituição para responsabilizar o ato golpista antes que seja tarde. Não há democracia possível se aquele que foi eleito para governar estimula o autogolpe, incitando seguidores que falam abertamente em fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não há democracia possível se aquele que foi colocado no Planalto pelo voto está disseminando panfletos pelo seu próprio WhatsApp, em que a população é convocada para ocupar Brasília e as cidades do país no próximo domingo, 26 de maio. Se as instituições brasileiras, todas elas, assim como a sociedade, apenas assistirem passivamente ao antipresidente rasgar abertamente a Constituição, acordaremos na próxima segunda-feira em outro país. E, posso garantir: não será um lugar bom.
Mesmo que as manifestações pelo autogolpe fracassem no domingo, o fato de um presidente incitá-las já é um passo largo demais na escalada autoritária. É um pode tudo que numa democracia não pode. Se puder, e parece que está podendo, porque Bolsonaro está fazendo abertamente diante dos olhos de todos, é porque no Brasil o que resta de democracia já não segura mais nada. É este o autogolpe – e já está agindo como golpe, ao escancarar que pode tudo mesmo antes de poder tudo.
A marcha do próximo domingo tem o DNA de Bolsonaro em todas as partes de seu corpo monstruoso
Depois de incitar e panfletear aquela que está sendo chamada de “marcha da loucura”, Bolsonaro tentou fazer o que sempre faz. Recuou, saiu da oposição ao próprio Governo e temporariamente voltou a ser situação. Anunciou ter desistido de ir pessoalmente à marcha e avisou aos ministros que também não deveriam ir. Tarde demais. A marcha tem o DNA de Bolsonaro em todas as partes do seu corpo monstruoso. Cada ato do próximo domingo será feito em seu nome.
É preciso compreender muito bem o que Bolsonaro e o bolsonarismo são e fazem. Apesar de se venderem como “nacionalistas” e falarem em defesa da “nação”, seus atos mostram que estão contra a nação. E não estou aqui esgrimando com retórica. É contra a nação porque seu golpe é feito em nome da família, do clã. E é feito pela família, pelo clã. Ainda que nação seja um conceito em disputa, com uma história longa, a ideia de nação se opõe radicalmente à ideia de clã. Bolsonaro tem governado abertamente contra a nação, pelo clã. Ele e seu clã querem expulsar do país todos aqueles que não fazem parte do clã. Seja porque defendem propostas diferentes no campo da política, seja porque representam ideias diferentes no campo dos costumes.
O que é o clã Bolsonaro? É primeiro sua família, depois seus seguidores. E nisso aqueles que se sentem parte do clã, os que hoje são chamados de “bolsominions” e eu prefiro chamar de “bolsocrentes”, deveriam prestar bem atenção. O núcleo duro, em qualquer clã, é a família, é o sangue. São zerodois (Carlos, vereador que controla as redes sociais do pai), zerotrês (Eduardo, deputado federal) e zeroum (Flávio, senador). Nessa ordem. Não por coincidência, os garotos zerodois e zerotrês receberão mais uma medalha do pai, a da Ordem do Mérito Naval. A informação foi publicada no Diário Oficial desta terça-feira, 21. Menos de um mês atrás, o antipresidente já tinha mimoseado os filhos com a Ordem Nacional de Rio Branco, a mais alta condecoração do Itamaraty. Tudo (o que é público) em família.
O que aconteceu com o ex-ministro Gustavo Bebianno, que se achava parte do núcleo duro do clã até bater de frente com o segundo garoto, o mais influente junto ao pai, deveria ter deixado os bolsocrentes mais espertos. Ainda que os laços de sangue não signifiquem total garantia neste tipo de organização, eles são muito mais difíceis de romper num clã do que qualquer outro laço. Bebianno compreendeu isso tarde demais e possivelmente vários outros ainda o seguirão na desgraça.
Bolsonaro prega o autogolpe no momento em que uma investigação das atividades do filho zeroum pode atingir toda a família
De forma alguma é coincidência que Bolsonaro tente um autogolpe no momento em que o filho zeroum é investigado por desvio de dinheiro público, lavagem de dinheiro e organização criminosa. E no momento em que essa investigação pode alcançar outros familiares e também o chefe do clã. No momento em que essa investigação, que apenas começou, pode revelar um envolvimento criminoso com as milícias que dominam o Rio de Janeiro.
Atenção, policiais honestos, o clã Bolsonaro não é a favor de vocês. Os Bolsonaros já demonstraram publicamente que apoiam não as polícias, mas sim as milícias. Na lógica do clã, tornar-se policial parece ser apenas rito de passagem para a conquista de poder e território. Em 2005, vale a pena lembrar, o então deputado Jair Bolsonaro fez uma defesa enfática de Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão da Polícia Militar, suspeito de chefiar a milícia de Rio das Pedras e ser articulador do Escritório do Crime, o maior grupo de matadores de aluguel do Rio. Bolsonaro defendeu Adriano, hoje suspeito de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e foragido, no plenário da Câmara. Quatro dias antes do pronunciamento, Adriano tinha sido condenado por homicídio. Meses antes, havia sido condecorado pelo filho zeroum com a medalha Tiradentes, a mais alta honraria do estado do Rio. Bolsonaro defendeu o miliciano e chamou-o de “brilhante oficial”.
É fundamental fazer a distinção. O autogolpe está em andamento não porque o projeto de Bolsonaro para o país está ameaçado. E sim porque o projeto de Bolsonaro para o seu próprio clã está ameaçado. Primeiro pelas investigações que, se não forem barradas, possivelmente alcançarão outros membros do clã. Como impedir então que as investigações continuem? Pelo golpe. Botando os crentes na rua para, como eles próprios gritam nas redes sociais, fechar o Congresso e fechar o STF, a instância máxima do judiciário.
Ninguém está impedindo Bolsonaro de governar, além dele mesmo e de seu clã
Não há ninguém impedindo Bolsonaro de governar para o país, além dele mesmo e de seu clã. A questão é que eles nunca quiseram governar para o país, porque a nação não lhes interessa. O que eles sempre quiseram foi governar para o clã e, assim, transformar o território da nação no território do clã. Agora o clã está ameaçado porque as instituições democráticas funcionam mal, mas ainda funcionam. Funcionam o suficiente para investigar se o filho zeroum cometeu os crimes dos quais é suspeito e apurar quem mais está envolvido.
Esta é a principal razão para Bolsonaro ter divulgado pelo WhatsApp um texto em que o autor afirma que o Brasil é “ingovernável” fora dos “conchavos” e que teme que o governo possa “ser desidratado até a inanição”. Num trecho, Paulo Portinho, funcionário público e candidato derrotado a vereador pelo partido Novo, afirma: “Que poder, de fato, tem o presidente do Brasil? Até o momento, como todas as suas ações foram ou serão questionadas no Congresso e na justiça, apostaria que o presidente não serve para NADA, exceto para organizar o governo no interesse das corporações. Fora isso, não governa”. Bolsonaro divulgou o texto classificando-o como de “leitura obrigatória”. Fez isso após as manifestações contra os cortes na educação terem levado centenas de milhares de pessoas para as ruas de mais de 200 cidades do Brasil, tornando-se o maior protesto feito contra um presidente no início de mandato.
O clã Bolsonaro vai para o tudo ou nada, o que neste caso significa arregimentar seus fiéis para uma demonstração de força no próximo domingo, porque quer impedir uma investigação que só eles sabem até onde pode chegar e o que vai aparecer. Como só eles sabem, agora nós também podemos saber, pelo menos, que é muito fundo e muito grave o que os investigadores poderão encontrar, caso não forem impedidos. Fundo e grave o suficiente para merecer a convocação de um autogolpe com menos de cinco meses de governo eleito.
É isso que Bolsonaro está nos dizendo sem dizer. Este é o único ocultamento. Todo o resto é explícito, como sempre foi. Estamos testemunhando um autogolpe bem diante dos nossos olhos e timelines. Só um ditador pode impedir uma investigação contra si mesmo e sua família. Contra o seu clã.
Bolsonaro não é um presidente, mas um chefe de clã ocupando a presidência
Quando escolho chamar Bolsonaro de antipresidente, como já expliquei em artigo anterior, é conceito. Bolsonaro é um presidente contra a presidência, algo totalmente novo na história do país. Para governar, ele ocupa o espaço da situação e da oposição, como apontei. Está fora e dentro, ao mesmo tempo. Isso é método, não incompetência. A incompetência está em outro lugar. É importante compreender que Bolsonaro não é um presidente, mas sim um chefe de clã na presidência.
Quem comparecer à convocação do antipresidente no domingo estará fazendo aquele tipo de escolha que pode definir uma vida. Estará escolhendo o clã – e não a nação. E aí pode começar a rezar para saber quanto tempo durará dentro da paliçada, sem nenhuma lei que não seja a do chefe, antes de se indispor com a família de sangue e ser jogado para fora numa piscada.
Setores da extrema direita e da direita que apoiaram Bolsonaro já entenderam a dinâmica. É o caso de articuladores dos movimentos de rua que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff , como o MBL. O deputado federal Kim Kataguiriexplicou claramente – em live, tuítes, posts e entrevistas – por que o Movimento Brasil Livre não apoiaria nem estaria na manifestação: “Fechar o Congresso e o STF é coisa de revolucionário. Quem é liberal e conservador defende a separação dos Poderes, e não o fechamento dos Poderes”. Outro protagonista das manifestações pelo impeachment, o Vem Para a Rua, também se posicionou: "Sendo um ato pró-governo, não vamos aderir, porque vai contra um dos nossos pilares, que é ser um movimento suprapartidário".
“Se as ruas estiverem vazias (no domingo), Bolsonaro terá de parar de fazer drama para TRABALHAR”, diz Janaina Paschoal
Personagens centrais do impeachment, como a deputada estadual pelo PSL, Janaina Paschoal, têm feito oposição enfática à convocação do próximo domingo. “Estão causando um terrorismo onde não há! As pessoas estão apavoradas, escrevendo que nosso presidente está correndo risco. Ele não é amado pela esquerda, pelos formadores de opinião? É verdade. Mas quem o está colocando em risco é ele, os filhos dele e alguns assessores que o cercam. Acordem! Dia 26, se as ruas estiverem vazias, Bolsonaro perceberá que terá que parar de fazer drama para TRABALHAR!”, defendeu Paschoal numa série de tuítes. "Essas manifestações não têm racionalidade. O presidente foi eleito para governar nas regras democráticas. (...) Pelo amor de Deus, parem as convocações! Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações! Raciocinem!".
Muitos dos que apoiaram a candidatura de Bolsonaro por serem contra o PT ou por quererem emplacar seu próprio projeto de extrema direita ou direita no poder já perceberam a dinâmica da família Bolsonaro, apelidada nas redes sociais de “familícia”. O que o domingo mostrará é quantos crentes o clã Bolsonaro conseguirá mover na tentativa de barrar as investigações do filho zeroum.
A tentativa de autogolpe de Bolsonaro tem sido comparada a do então presidente Jânio Quadros, em 1961. Que deu bem errado, como sabemos. Para ele, não necessariamente para o projeto de outros golpistas, como os anos seguintes mostraram. Mas, se há algumas semelhanças com a tentativa de Jânio Quadros, há um número muito maior de diferenças. Entre elas, a forma de operação da política do Brasil contemporâneo.
Quando me refiro a bolsocrentes, não estou tentando fazer graça. Também é conceito. Em 2016, escrevi um artigo intitulado: “Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus”. Meu principal argumento nesse texto é o de que a antipolítica demanda uma adesão pela crença, e não pela razão. Essa operação beneficia o bolsonarismo, mas o precede. E poderá ser mais longeva do que ele, a depender dos próximos capítulos.
Quando me refiro a crentes, não estou me referindo apenas a fiéis religiosos evangélicos, que majoritariamente deram seu voto a Bolsonaro. Mas a algo mais amplo, que é a adesão a um projeto político pela fé. Basta acompanhar as discussões nas redes sociais para perceber que há muitos ateus que se comportam como crentes na política.
Pela razão, Bolsonaro não consegue incitar uma manifestação para promover seu autogolpe. Por isso ele demanda fé. Pela razão é fácil perceber que quem mais causa problemas ao Governo é o seu clã. Pela razão é fácil conferir que Bolsonaro, que tanto critica os partidos e a política tradicional, acabou de anistiar 70 milhões de reais da dívida dos partidos, num momento crítico para o país. Pela razão é evidente que as dificuldades dos primeiros meses decorrem da incompetência de Bolsonaro. Pela razão, portanto, não dá.
Por isso Janaina Paschoal, insuspeita de ser de “esquerda”, tem clamado nas redes sociais: “Raciocinem! Reflitam!”. Mas como, se ela mesma exigiu tanta fé dos eleitores para votar num homem que se manifestava claramente contra os valores humanitários mais básicos e contra a própria democracia? Ela também invoca a fé de seus eleitores para que acreditem que só agora ela percebeu o que Bolsonaro queria ser – e dizia que seria.
A adesão à política pela crença – e não pela razão – é a marca deste momento histórico no Brasil e no mundo
A adesão à política pela crença é uma marca deste momento histórico no Brasil, e também no mundo. E, como não custa repetir, ela atinge fiéis de todas as religiões e também de religião nenhuma. E, como também não custa repetir, precede e pode ser mais persistente do que o próprio bolsonarismo. A adesão à política pela fé é um modo de operação que marca a antipolítica.
Por outro lado, também é preciso dizer que o crescimento do fundamentalismo evangélico no Brasil, representado pelas igrejas neopentecostais, se articula com esse modo de operação. Já desenvolvi essa ideia no artigo chamado “Bolsonaro e a autoverdade”. É possível que o Brasil esteja sendo mais impactado pela religiozisação da política do que pela politização da justiça.
A retórica bíblica do bem contra o mal atravessa fenômenos como o bolsonarismo. Quando me refiro a essa palavra feia, “religiozisação” da política, chamo a atenção para a adesão à política pela fé. Esse fenômeno vai muito além dos fiéis evangélicos, mas é influenciado pelas empresas da fé e seus CEOs que se autointitulam pastores e bispos.
Mais de uma geração de brasileiros já foi formada numa interpretação tosca da Bíblia, na luta do bem contra o mal. Mais de uma geração já foi e está sendo educada na visão maniqueísta do mundo. Produtos de entretenimento como as novelas e os filmes supostamente bíblicos de uma rede de TV como a Record, colaboram para formatar um determinado olhar sobre a dinâmica da vida, criando um terreno fértil para arregimentar fiéis para um projeto político, ao deslocar a fé para um campo que não é o da fé, mas se torna.
O grupo de comunicação Record é o melhor exemplo, ao ser ao mesmo tempo o braço de difusão da ideologia do projeto empresarial-religioso aplicado à política e a TV oficial, ainda que não formal, do bolsonarismo. Ou uma delas, já que Bolsonaro quer o apoio, mas não a sombra do bispo Edir Macedo. Ele sabe que em algum momento os clãs chegarão a um impasse. Não custa ainda lembrar que nada mais Velho Testamento do que um clã.
Bolsonaro divulga vídeo em que pastor afirma que, se o povo não sustentar o “escolhido por Deus”, “a queda do Brasil será terrível”
Depois de divulgar um texto que mencionava um Brasil “ingovernável”, Bolsonaro mostrou que entende muito bem a dinâmica da religiozisação da política. Postou em seu Facebook o vídeo de um pastor congolês que fundou uma igreja evangélica na França. Steve Kunda começa dizendo: “Eu não faço política, eu sou pastor”. E então desanda a fazer política em prol de Bolsonaro, mas com retórica bíblica. “Na história da Bíblia, há políticos que foram estabelecidos por Deus”, diz. Afirma então que, assim como Deus escolheu Ciro como rei da Pérsia, “Deus escolheu Jair Bolsonaro”.
Segundo o pastor, ele teria recebido essa informação do próprio Altíssimo. “Gostando ou não, sendo de esquerda ou de direita, Deus escolheu Jair Bolsonaro como o Ciro do Brasil”. E segue: “Juntem suas forças! Sustentem esse homem (...) Ele é muito oprimido, Deus falou que seus primeiros dois anos não vão ser fáceis, mas a mão de Deus está com ele”. Caso o povo não apoie Bolsonaro, o pastor garante, “a ruína chegará ao Brasil”: “Se o Brasil não assegurar esse tempo, a queda do Brasil será terrível... E eu falo como profeta”.
Antes que os bolsocrentes me acusem de “comunista”, me limito a reproduzir a reação da deputada Janaina Paschoal, do mesmo partido de Bolsonaro, no WhatsApp: “E esse vídeo maluco de Messias? O que ele quer com isso?”.
A resposta parece bastante clara até mesmo para apoiadores arrependidos.
Depois de cinco meses de governo, a disputa de Bolsonaro agora é com a realidade
No próximo domingo veremos o quanto essa operação tem força. E o quanto a realidade se impõe. A razão não está em alta numa população que está sendo educada no maniqueísmo religioso. Mas a realidade é irredutível à falsificação. Pode demorar mais ou pode demorar menos, mas ela se impõe. E a realidade é desemprego crescente e a economia se aproximando da recessão. Até o neoliberal Paulo Guedes, ministro que recentemente afirmou nos Estados Unidos que o Brasil está disposto a “vender tudo, até o palácio presidencial”, já anunciou que a economia está “no fundo do poço”. A sobrevivência é um impulso atávico que precede até mesmo a fé. Será difícil a população absolver o presidente da responsabilidade pelo seu mal-estar cotidiano.
Não é a surpreendente oposição de direita, não é a esquerda ou o “comunismo” e muito menos qualquer “conspiração” que podem esvaziar o autogolpe de Bolsonaro. Depois de quase cinco meses de Governo, a sua disputa agora é com a realidade. Não fosse o destino da nação em jogo, seria interessante observar o quanto a adesão pela fé ainda é potente – ou não – contra a corrosão dos dias. Mas, mesmo que o autogolpe fracasse, o que só saberemos no próximo domingo, o fato de Bolsonaro poder planejá-lo, articulá-lo, propagandeá-lo livre e abertamente de sua cadeira no Planalto já condena o Brasil talvez de forma irreversível.
Bolsonaro começou sua campanha presidencial em 17 de abril de 2016, naquele momento terrível em que votou pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Violou a lei e não foi responsabilizado. Ao contrário, continuou propagando a homofobia, o racismo e o ódio, assim como defendendo a ditadura, a tortura e o assassinato de opositores. E seguiu sem ser responsabilizado. Tornou-se presidente do Brasil. E, neste momento, incita a população para um autogolpe. Em nome do clã, contra a nação. Se, mais uma vez, não for responsabilizado, o último limite pode cair. E então descobriremos como é viver sem qualquer limite.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: EU + UM + UM + UM+
A responsabilidade de cada um na luta contra a destruição do Brasil
Aprendi com o poeta Elio Alves da Silva. Ele era pescador, mas a hidrelétrica de Belo Monte roubou-lhe o rio. Como pesca o pescador sem rio? Poderíamos estender a pergunta. Como pesquisa o estudante sem bolsa? Como ensina o professor sem condições de trabalho? Como se mantém a universidade sem recursos? Como vive no presente o trabalhador sem perspectiva de futuro por um projeto de previdência que pune os mais pobres? Como os povos da floresta protegem a Amazônia quando o ministro contra o Meio Ambiente destrói o sistema de proteção para arrancar lucro privado de terras públicas? Como se protege a paz quando o antipresidente do país arma uma parte da população para a guerra? Como se salvam os mais frágeis quando Jair Bolsonaro autoriza o assassinato sem punição? Como se defendem os cidadãos quando o grupo no poder estimula o ódio e a divisão do país como estratégia? Como comem as pessoas se o ministério da Agricultura é liderado pela “musa do veneno” e o governo libera, literalmente, quase um novo agrotóxico por dia que vai envenenar nosso corpo e o de nossas crianças? Como vivem os brasileiros diante do desafio da crise climática quando o governo nega a ameaça apontada pelos principais cientistas do mundo, para justificar o avanço de poucos sobre a Amazônia de todos? Como os pais protegem o acesso à educação e à cultura quando os filhos do antipresidente se comportam como “garotos” maus e disseminam informações falsas e burrice calculada? Como os mais pobres podem viver sem a garantia de aumento real do salário mínimo? Como se mantêm vivos aqueles que dependem da saúde pública se o governo vai arruinando as políticas de saúde pública? Como fazem para não morrer aqueles que podem ser vítimas dos matadores absolvidos por estarem “sob forte emoção”, como quer o projeto anticrime que é a favor do crime? Como os brasileiros defendem o Brasil do grupo que em menos de cinco meses destruiu direitos e sistemas de proteção construídos por décadas e ainda há 1326 dias pela frente?
Se você só conta como um, para o governa você não conta
Mais tarde, eu leria uma conversa entre o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o jornalista italiano Ezio Mauro, publicada em livro. A certa altura, eles falam do cidadão que “só conta como um”. E portanto não conta. “Ele não compreende que, no momento em que sua liberdade se torna assunto privado e ele começa a exercer seus direitos somente como indivíduo, no momento em que liberdade e direitos são ambos incapazes (de construir) qualquer projeto com os outros, ambos se tornam irrelevantes aos olhos do poder, já que perderam sua capacidade de por o que quer que seja em movimento”, diz Mauro. “O Estado sabe que estou estatisticamente presente, mas também sabe que eu só conto como um e não tenho capacidade de me somar aos outros.”
O poeta oral, já que analfabeto da escrita, e dois pensadores reconhecidos do mundo acadêmico, com vários livros publicados, chegaram à mesma conclusão por caminhos diferentes. Usaram a filosofia, esse exercício intelectual que parece tanto ameaçar Jair Bolsonaro. E que ameaça porque trata de perguntas e só pode existir na honestidade, ameaça porque não teme as respostas que produzem novas perguntas, ameaça porque persegue as dúvidas e as ama porque elas levam a lugares novos. A filosofia, que o antipresidente tanto teme, e por temer quer acabar com ela junto com todas as humanidades, é maravilhosa porque nos alarga por dentro. Porque nos deixa mais inteligentes e atentos, porque nos ensina a enxergar o que vemos. E está ao alcance de todos os homens e mulheres de coragem. Como Elio, como Zygmunt. E deve estar nas escolas e nas universidades, porque é a linha que costura todos os outros campos do conhecimento.
Não dá para terceirizar luta e posição na vida
Desculpa, mas não há desculpa. Não basta você ficar no sofá tuitando ou feicibucando enquanto os direitos são apagados e o autoritarismo se instala no Brasil. Não dá para terceirizar luta e posição na vida. O problema também é seu. O que está em curso não acaba em quatro anos. O que se destrói hoje levou décadas para ser construído. As consequências são rápidas, algumas imediatas. Destroem primeiro os mais frágeis, depois (quase) todos. E, a não ser que você concorde com o que o presidente contra o Brasil está fazendo em seu nome, é com você ser +um e chamar +um.
Sabe por que é com você? Quem explica é uma filósofa, essa categoria que faz os bolsocrentes tremerem de medo. Sim, eles têm um guru que se autoproclama filósofo, mas ele literalmente fala “bosta” e “merda”. Podemos questionar filosoficamente o porquê dessa obsessão, mas temos questões mais importantes no momento. A alemã Hannah Arendt descreveu muito bem algo que também foi abordado por outros pensadores respeitados e que se chama “responsabilidade coletiva”. Ela explica que somos coletivamente responsáveis pelo que é feito em nosso nome. No passado, mas podemos dizer que também no presente.
Se você aceita os benefícios de viver em comunidade, precisa aceitar também a responsabilidade de viver em comunidade
Mesmo que você não tenha votado em Jair Bolsonaro, ele foi eleito pelo voto. Isso significa que o que ele faz no poder é da responsabilidade de todos. Significa também que, quando o governante se comporta como déspota, os cidadãos precisam dizer coletivamente que não aceitam o que é feito em seu nome. Isso é tão parte da democracia quanto aceitar o resultado das urnas. E isso não pode ser terceirizado. Se você aceita os benefícios de viver em comunidade, você precisa aceitar também a responsabilidade de viver em comunidade.
Isso significa que, se você considera que as universidades são fundamentais para um país e para formar as gerações futuras, você precisa se posicionar contra o governo que está atacando as universidades, cortando verbas que eram escassas porque já tinham sido amputadas antes e tirando bolsas de alunos e de pesquisadores. Se você considera que proteger a Amazônia e o meio ambiente é obrigatório para o presente e para o futuro, você precisa se posicionar contra o governo que está destruindo a proteção ambiental e quer abrir as terras protegidas para soja, gado, mineração e grandes obras. Se você considera que matar um outro alegando legítima defesa por estar “sob forte emoção” é autorizar a matança e ampliar os mortos, num país onde já se mata e se morre demais, você precisa se posicionar contra esse projeto a favor do crime. Se você considera que armar a população não é uma medida racional para pacificar um país, você precisa se posicionar. Se você considera que essa não é a reforma da previdência mais justa para a população, você também precisa se posicionar.
O que os déspotas mais temem é que você seja +um
Junto com os outros. Tudo o que os déspotas temem é que sejamos +um. E tudo o que querem é que sejamos apenas um. O neoliberalismo incutiu nas mentes das pessoas que ser “um” é melhor. Você é um, faz o que quer e todos os outros que se explodam. Essa é a racionalidade que sustenta os atos de Bolsonaro e do seu grupo. Vale o eu, só importa o meu. Ou só importam eu e a minha família. Ou eu e a minha turma. A comunidade que se exploda.
O neoliberalismo também infiltrou nas mentes que ser +um é ser desimportante. Porque ser +um é ser junto com o outro, é ser na comunidade, é exercer a solidariedade, é fazer soma para ser mais forte conjugando o coletivo. Ser +um é ser na relação com outro. Já ser um é consumir sem limites, sem se importar com o planeta que todos habitam, é esgotar o hoje sem se importar com o amanhã. Ser um é tão abominável que nem com o futuro dos próprios filhos é capaz de se importar, porque sua satisfação contínua como indivíduo é tudo o que importa. Ser +um é saber que todos os outros importam. O um constrói fronteiras e muros. O +um derruba cercas para alcançar a mão do outro, mas negocia limites mútuos porque sabe que não pode nem quer viver sozinho.
Já reproduzi em coluna recente um trecho do livro da Pussy Riot Nadya Tolokonikova. Vou repetir mais uma vez, porque é um diagnóstico preciso da nossa situação e inspirador para o momento: “(O que se rompeu foi a) ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras”.
Se você pensa que as redes sociais são ruas onde você protesta e exerce a cidadania, está equivocado
E cá estamos nós. Como está uma parte cada vez maior do mundo governada pelos “déspotas eleitos pelo voto”.
Já escrevi no passado recente que acreditava que as redes sociais eram ruas também. Ruas de bytes era como eu me referia a elas. Percebo que estava equivocada. As redes sociais não são ruas. Para ser rua é preciso corpo. O que se passa nas redes sociais é importante e têm definido nosso cotidiano. O que se passa nas redes sociais têm muitos impactos sobre a vida e sobre a percepção da vida. Já podemos criar uma biblioteca inteira de livros que refletem sobre esse fenômeno. É necessário investigar o que as redes sociais são, em seus múltiplos significados. Tanto quanto saber o que não são. E as redes sociais não são rua.
O que se passa nas redes sociais tem efeitos sobre o corpo de cada um. Mas o corpo de cada um não está lá. Ir para a rua, ocupar as ruas, o imperativo ético deste momento, só é possível com encontro. A rua pressupõe encontro real. Pressupõe se arriscar ao outro. Pressupõe conviver de corpo encarnado. Pressupõe negociação de conflitos para dividir o espaço público. A rua é onde estamos com nossos fluidos, enfiados na nossa própria pele, carregando nossas fragilidades diante do outro sem nenhum botão de curtir ou de raiva para acionar. A rua é onde nos arriscamos a nos refletir no olhar do outro e nos reconhecer num corpo que não é o nosso. Nos reconhecer na humanidade e também na diferença.
A ânsia de “ir para a rua” protestar contra a tirania que se anuncia com atos de ódio explícito, com gestos de destruição, é também a ânsia de romper com a perversão de uma realidade sem corpo, mas que atinge os corpos. E por que parece que é tão difícil esse “vamos para a rua” justamente quando temos tantos motivos para ocupar as ruas? Justamente quanto já viramos a esquina histórica rumo ao autoritarismo?
Há várias hipóteses e algumas razões, uma delas o medo. Da polícia, que em vez de proteger os corpos, destrói os corpos. Outra o medo do contágio, já que o outro foi convertido num inimigo. Mas a melhor hipótese que escutei nestes últimos dias foi proposta pelo jornalista Bruno Torturra, em seu “Boletim do Fim do Mundo”, de 9 de maio. Ele faz uma analogia entre a libido sexual e a libido política. O que faríamos todos, ao despejarmos nossa revolta nas redes sociais, seria uma espécie de masturbação. Não falta material na internet para excitarmos e darmos vazão a essa libido política, como não falta material na internet para darmos vazão à libido sexual 24 horas por dia.
Não esgote a sua libido política nas redes, assim como não esgote sua libido sexual na masturbação
Nenhum problema moral com isso. A questão é que masturbação não é relação sexual. Não estamos com o outro, com o corpo do outro. Não estamos ali em relação a um outro, nem estamos ali numa relação com um outro que não somos nós. Nas redes sociais, mesmo que estejamos dentro de um espaço com vários falando e desabafando e protestando, não são nossos corpos que estão presentes, mas nossos avatares. Ao final, o que restaria seria um extremo cansaço da ação sem ação. E, sugere Torturra, o sentimento de impotência. Esse gozo masturbatório promove um alívio momentâneo, mas não a satisfação (e também o risco) de uma relação com outro corpo. E, assim, não nos movemos. Nos mantemos permanentemente ocupados com nossa indignação e terminamos o dia esgotados, sem que exista um único toque real de um+um.
Que o primeiro protesto de rua significativo contra o governo de Bolsonaro tenha partido das universidades, segundo Torturra, é revelador. É no espaço das universidades que os estudantes, e também os professores e funcionários, convivem com seus corpos, entre corpos. Ali há compartilhamento real, há negociação, há debate. Há conversa. E há, principalmente, relação. E, assim, há também movimento. É também por essa razão que Bolsonaro e seu ministro contra a Educação decidiram usar o poder conferido pelo voto para destruir a universidade e, assim, perverter o poder conferido pelo voto ao perverter a própria democracia. Qual é o projeto de educação dessa antipresidência? O mesmo projeto que busca transformar a floresta em pastagem, lavoura de soja transgênica e cratera de mineração. O projeto neoliberal. O um.
É preciso resistir também ao esgotamento da libido política nas redes sociais. Ou, dito de outro modo, é preciso manter seu desejo pulsante para se arriscar ao convívio das ruas. É preciso sair do umbigo de si e alcançar o vasto corpo do outro. É preciso estar junto. Não se dê desculpas. Não custa repetir mais uma vez. Posição e luta não se terceiriza. O que você deixar de fazer não será feito por nenhum outro. Sua ausência será sentida. Você fará falta no combate à tirania que já começou a se instalar no Brasil. Você é +um, mas este um+ que é você só você é. No neoliberalismo que nos governa, o um é sempre substituível. No um+um, cada +um é insubstituível e singular. Mas é preciso um outro que o reconheça, é preciso o + que marca a relação entre dois, entre muitos.
Como diz Elio, o poeta nascido da catástrofe: “Com +um a história pode seguir”.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: O “mártir” governa
Quem aponta “paralisia” na antipresidência de Bolsonaro está cego – ou se faz de cego – para a velocidade assombrosa da implantação do projeto autoritário
Olavo de Carvalho, o guru do antipresidente Jair Bolsonaro, segue apostando na estratégia de falsificar a realidade para criar realidades. Desde que seu mais famoso olavete assumiu a presidência, o escritor tem tentado plantar a mentira de que Bolsonaro estaria sendo impedido de governar. São várias as afirmações neste sentido ao longo dos mais de 100 dias do Governo. Em vídeo divulgado no canal de Bolsonaro no YouTube, no final de semana, o guru repetiu mais uma vez seu repisado mantra: “Bolsonaro é um mártir”.
Explicou: “Obviamente ele é um homem bem intencionado, limpo, ele quer fazer as coisas direito, mas como é possível com essa turma em volta?”. Em seguida atacou os militares e os “novos” políticos, em seguida o vídeo foi apagado “por pressão da ala militar”, em seguida o porta-voz de Bolsonaro fez uma declaração afagando seu guru por um lado, criticando-o por outro, em seguida o filho zerodois, que obviamente é a voz do pai nas redes sociais, disse o contrário... E lá se foi o Brasil discutir o Governo da situação e o Governo da oposição, a ala militar, supostamente a menos ideológica, e a ala “olavista”, supostamente a mais ideológica, com particular atenção para o romance caliente entre o vice Hamilton Mourão e o filho zerodois, até agora entre tapas e nenhum beijo.
O general da ativa Otávio Santana do Rêgo Barros, coitado, parece cada vez menos um porta-voz de presidente e cada vez mais uma espécie de louro José de Bolsonaro. Aos 58 anos, uma carreira militar exitosa, e vai dizendo coisas assim: "De uma vez por todas o presidente gostaria de deixar claro o seguinte: quanto a seus filhos, em particular o Carlos, o presidente enfatiza que ele sempre estará a seu lado. O filho foi um dos grandes responsáveis pela vitória nas urnas, contra tudo e contra todos". Sério. Enquanto o novelão se desenrola, capturando e desviando a atenção do país, o “mártir” governa. E como governa. O projeto autoritário que Bolsonaro representa avança a cada dia sobre o Brasil com velocidade assombrosa.
Os milhares de indígenas que desde 2004 ocupam Brasília em abril para o Acampamento Terra Livre, uma tradição que Bolsonaro chamou de “encontrão de índios”, neste ano estão sendo “recepcionados” pela Força Nacional. O Mártir decidiu com seu general favorito, Augusto Heleno. Seu ministro de estimação, Sergio Moro, assinou. Por 33 dias a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios serão defendidas do povo por uma força especial. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
O Mártir quer abrir as terras indígenas para soja, gado, mineração e grandes obras. Em vez de floresta amazônica um lindo pasto, uma soja a perder de vista, uma ferrovia gigante, uma cratera de mineração ainda mais fabulosa, com artísticas montanhas de resíduos tóxicos como legado para a posteridade. O planeta agradece e frita como resposta, mas aquecimento global, segundo o chanceler do Mártir, é “complô marxista”. Para os sábios do governo do Mártir, qualquer pessoa sensata pode perceber que o clima está como sempre foi, o Rio de Janeiro que o diga. Por isso Ricardo Salles, aquele que atende pelo nome de ministro do Meio Ambiente, mal entrou e já foi extinguindo a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas. Não precisa, né? Ele também já explicou de cara que “a discussão sobre aquecimento global é secundária”. Isso com os cientistas mais importantes do mundo afirmando que temos apenas 11 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Mas o Brasil segue sendo uma democracia.
Porque é muito magnânimo, o Mártir assegurou aos indígenas que eles são humanos como ele
Na semana passada, o Mártir promoveu um encontro transmitido em uma “live” nas redes sociais, com indígenas escolhidos a dedo, onde assegurou, mais uma vez, que eles são humanos como ele. “Com todo o respeito, alguns querem que vocês fiquem na terra indígena como se fossem um animal pré-histórico. Não é pré-histórico não, vocês são seres humanos. Na minha cabeça tem exatamente o que tem na tua cabeça, o teu coração é igual ao meu coração”, garantiu. Aparentemente os indígenas tinham dúvidas sobre se eram humanos ou não até o Mártir, magnânimo como todo Mártir, esclarecer.
Antes do início da “live”, os indígenas foram orientados a “evitar usar a palavra garimpo e usar mineração”, palavra muito mais palatável para os propósitos de derrubar a floresta para explorar o subsolo. Os escolhidos foram apresentados como lideranças, mas o povo yanomami já enviou uma carta avisando que o indígena que apareceu por lá não representa nenhuma comunidade. Da boca do Mártir só saíram pérolas. Como esta: “Por exemplo. Tem uma terra indígena aí que possa fazer uma usina hidrelétrica. Se vocês concordarem, é coisa rápida! A decisão tem que ser de vocês, sem intermediários. (...) Não tem problema nenhum. Faz o negócio, faz o preço, faz seguro. E toca o barco. (...) Vocês têm bastante terra. Vamos usar essa terra. (...) Nós queremos a liberdade de vocês”. No meio da conversa, lembrou : “Tem que mexer em leis, lógico, vai depender do parlamento, a gente vai buscar leis para mudar isso aí”. “Isso aí” é a Constituição. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
Com um canetaço, o Mártir decidiu deletar centenas de conselhos sociais com participação popular. Estes conselhos – formados por representantes da gestão e representantes da sociedade civil, gente com experiência nas respectivas áreas, entidades com atuação reconhecida – acompanhavam, debatiam e influenciavam as políticas públicas. São especialmente importantes em áreas invisibilizadas, como as relacionadas à população de rua, indígenas e LGBTI. Sem serem remunerados para isso, os conselheiros só recebiam transporte e diária. Eram a voz da sociedade no Governo. E a voz da sociedade foi silenciada. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
A reforma da Previdência é apresentada como a salvação do país. Tudo indica que o Armageddon pode ser antecipado caso a reforma não for aprovada. Mas quando é exigido que o Governo apresente os dados técnicos em que se baseou para construir a proposta levada ao legislativo, o Mártir, pelas mãos do Posto Ipiranga Paulo Guedes, decreta sigilo sobre o material até a aprovação. A lei altera a vida de todos os brasileiros, mas aos brasileiros é negado o direito de conhecer as informações que poderiam justificar a lei. São informações públicas, obtidas por funcionários públicos com dinheiro público, mas o Mártir determinou que nem os legisladores nem o povo podem vê-las. Aprova primeiro, prova depois. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
A indústria da pesca tem despachado centenas de animais aquáticos para a lista de ameaçados de extinção. Mas a lista está atrapalhando os lucros das companhias pesqueiras, que não podem destruir livremente. Como então resolver o problema? Tereza Cristina, a ministra da Agricultura do Mártir, pediu ao seu office-boy, Ricardo Salles, que atende pelo nome de ministro do Meio Ambiente, que desse um fim na lista. Simples assim. Deste modo, os animais poderão ser extintos sem qualquer “entrave burocrático” atrapalhando o “setor produtivo”. Mas não podemos esquecer que o agronegócio brasileiro é “moderno” e preocupado com a perda da biodiversidade e com a crise climática. Nem podemos esquecer que o Brasil continua sendo uma democracia.
Como se preocupa muito com a Amazônia, o Mártir prefere punir os funcionários do IBAMA aos criminosos que desmatam a floresta
Em vídeo, o Mártir desautorizou a operação do IBAMA que queimou caminhões e tratores de criminosos que atuavam no desmatamento da floresta amazônica, numa unidade de conservação no estado de Rondônia. Com sua precisão habitual, afirmou que “não é esse o procedimento, não é essa a orientação”. Avisou também que o office-boy de Tereza Cristina já tinha aberto “procedimento administrativo” para verificar os responsáveis. No caso, os responsáveis pelo cumprimento da lei, não os responsáveis por destruir a floresta, já que para o Mártir, trator é mais importante que árvore. A lei permite sim a destruição de equipamentos, maquinário e veículos, em casos específicos e se for impossível retirá-los do local durante fiscalização ambiental. Mas como o Mártir acredita que ele é a lei, colocou os funcionários do IBAMA em risco de morte ao expô-los em área de alta tensão. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
Antes de assumir o Governo, o Mártir quis extinguir o Ministério do Meio Ambiente, mas o anúncio causou muita repercussão negativa fora e dentro do país. Logo o Mártir descobriu que, para abrir as áreas protegidas para o agronegócio e a mineração, melhor do que extinguir o ministério seria colocar um homem da estirpe de Ricardo Salles no comando. Ele trazia para o Governo o currículo perfeito. Quando era secretário do Meio Ambiente do Governo de São Paulo, na gestão de Geraldo Alckmin (PSDB), Salles já tinha sido condenado por improbidade administrativa por favorecer, entre outros interesses, o de mineradoras. Também já tinha tentado se eleger deputado federal financiado pela indústria de armas e empresários do agronegócio. Com essa folha corrida de serviços prestados à desproteção ambiental, era o office boy ideal para Tereza Cristina, a ministra da Agricultura. Salles não decepcionou. Antes mesmo de o Governo completar 100 dias, ele já prestou serviço ao Mártir: exonerou José Augusto Morelli, o fiscal do Ibama que, em 2012, autuou Bolsonaro, então deputado, por pesca ilegal. Uma foto mostra o Mártir faceiro de sunga branca pescando numa estação ecológica, mas ele jura que estava no aeroporto naquele momento. Recentemente, Ricardo Salles decidiu punir também os funcionários do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade que não compareceram a uma reunião que fez com parlamentares ligados ao agronegócio, arbitrariedade que levou o presidente do ICMBIO a pedir demissão. Mas o Brasil segue sendo uma democracia.
O Brasil segue sendo uma democracia especialmente porque tem “instituições fortes”, capazes de manter aquele famoso sistema “dos pesos e contrapesos”. Foi o que provou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Disposto a superar Gilmar Mendes na missão de ridicularizar a mais alta corte do país, tarefa na qual tem se mostrado competente, Toffoli decidiu pedir ao colega Alexandre de Moraes, outra sumidade, que censurasse a revista Crusoé e o site O Antagonista, retirando do ar reportagens e notas que mencionavam um documento em que o empreiteiro condenado pela Operação Lava Jato, Marcelo Odebrecht, referia-se a Toffoli como “amigo do amigo do meu pai”. Devido à reação, Moraes voltou atrás dias depois. Graças à sanha autoritária, porém, Toffoli conseguiu tornar-se “amigo do amigo do meu pai” para sempre, e o Supremo teve sua imagem ainda mais corroída. Fato que muito alegrou o Mártir, cujo garoto zerotrês já havia dito em 2018 que, para “fechar o Supremo”, não precisava “nem jipe”, bastava “um soldado e um cabo”. Tão contente ficou que até defendeu a imprensa que ataca todos os dias, colocando jornalistas em risco ao açular seus seguidores contra eles. O Mártir pode achar agora que nem de um soldado e um cabo precisa, basta o “amigo do amigo do meu pai”. Mas o Brasil segue sendo uma democracia.
E como o Brasil segue sendo uma democracia, o mesmo “amigo do amigo do meu pai” Dias Toffoli também continua com um inquérito aberto por ele mesmo, a pedido de si mesmo, numa relação de si para si, que investiga a publicação de ofensas e notícias falsas contra ministros do STF, bloqueando contas de redes sociais, invadindo casas de pessoas e tomando computadores dos outros. Toffoli consumou a façanha de converter o STF em vítima, investigador e juiz, tudo ao mesmo tempo, como explicam juristas. E tudo no mais restrito respeito à lei e às liberdades democráticas, porque o Brasil, como se sabe, segue sendo uma democracia.
O filho zerotrês, que também é deputado federal, não gosta apenas de ameaçar fechar o Supremo. Como diz o Mártir, pai orgulhoso de seus “garotos”, (embora sobre zeroum ande meio calado), ele também “gosta muito de viajar”. Por isso andou pela Itália e Hungria na semana passada. Contou numa rede social que aprendeu muito com o presidente de extrema direita Viktor Orbán, especialmente “no trato da imprensa sem o politicamente correto”. Orbán construiu uma imprensa formada majoritariamente por aliados, transformando grande parte da mídia independente em porta-voz do governo. Ou seja: a liberdade de imprensa na Hungria é uma ficção e o Governo autoritário tem controle sobre a divulgação das informações. Orbán também criou uma corte paralela, sob o controle do seu ministro da Justiça, que, vejam só que conveniente, lida com questões como eleições, corrupção e direito a manifestações. O Governo do Mártir tem dois chanceleres, um deles é zerotrês, sem oficialidade no cargo mas com muita efetividade na prática, um garoto que gosta muito de viajar para conhecer a democracia de países como a Hungria.
Porque o Brasil é uma democracia, os eleitores do Mártir têm toda a liberdade para afirmar que foram “enganados”, como muitos, cada vez mais, têm afirmado. Nesta semana mesmo, ouvi de um evangélico: “Ele mentiu! Ele enganou o pastor. Ninguém sabia que ele ia fazer isso”. E, quem tem apreço pelos fatos, precisa defender até mesmo o Mártir. Ele não mentiu. Bolsonaro não cometeu estelionato eleitoral. Está sendo exatamente o que sempre foi, fazendo exatamente o que disse que faria. Com método e com velocidade.
A “paralisia” do Governo por conta das “crises” provocadas por Bolsonaro e sua corte, apontada por alguns analistas, não está contando nem a rapidez do desmonte das políticas públicas nem o atraso proposital dos compromissos assumidos anteriormente que o Governo atual não quer cumprir. Olavo, o guru, é tudo o que já percebemos, mas burro não é. Escolheu a palavra “mártir” com muito propósito. Mártir é aquele que se sacrifica pela causa. Temos aí mais uma perversão. Bolsonaro não se sacrifica pela causa – ele sacrifica a causa em nome próprio.
Pela contagem regressiva, há mais 1.347 dias. Caso termine. O tamanho e a profundidade do martírio dependerão da nossa capacidade de sair da frente da “live” do novelão e passar a ser protagonista do Brasil real.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Cem dias sob o domínio dos perversos
A vida no Brasil de Bolsonaro: um Governo que faz oposição a si mesmo como estratégia para se manter no poder, sequestra o debate nacional, transforma um país inteiro em refém e estimula a matança dos mais frágeis
Os 100 dias do Governo Bolsonaro fizeram do Brasil o principal laboratório de uma experiência cujas consequências podem ser mais destruidoras do que mesmo os mais críticos previam. Não há precedentes históricos para a operação de poder de Jair Bolsonaro (PSL). Ao inventar a antipresidência, Bolsonaro forjou também um governo que simula a sua própria oposição. Ao fazer a sua própria oposição, neutraliza a oposição de fato. Ao lançar declarações polêmicas para o público, o governo também domina a pauta do debate nacional, bloqueando qualquer possibilidade de debate real. O bolsonarismo ocupa todos os papéis, inclusive o de simular oposição e crítica, destruindo a política e interditando a democracia. Ao ditar o ritmo e o conteúdo dos dias, converteu um país inteiro em refém.
Este artigo é dividido em três partes: perversão, barbárie e resistência.
1) A Perversão
Tanto a oposição quanto a imprensa quanto a sociedade civil organizada e até mesmo grande parte da população estão vivendo no ritmo dos espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias. É por essa razão que me refiro à “perversão” no título deste artigo. Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia.
Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta. Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros, no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez? Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.
Mas essa é apenas parte da operação. Para ela, Bolsonaro teve como mentor seu ídolo Donald Trump. O bolsonarismo, porém, vai muito mais longe. Ele simula também a oposição. Assim, a sociedade compra a falsa premissa de que há uma disputa. A disputa, porém, não é real. Toda a disputa está sendo neutralizada. Quando chamo Bolsonaro de “antipresidente”, não estou fazendo uma graça. Ser antipresidente é conceito.
O bolsonarismo simula a sua própria oposição, neutralizando a oposição real e silenciando o debate
Quem é o principal opositor da reforma da Previdência do ultraliberal Paulo Guedes, ministro da Economia? Não é o PT ou o PSOL ou a CUT ou associações de aposentados. O principal crítico da reforma do “superministro” é aquele que nomeou o superministro exatamente para fazer a reforma da Previdência. O principal crítico é Bolsonaro, o antipresidente.
Como quando diz que, “no fundo, eu não gostaria de fazer a reforma da Previdência”. Ou quando diz que a proposta de capitalização da Previdência “não é essencial” nesse momento. Ou quando afirmou que poderia diminuir a idade mínima para mulheres se aposentarem. É Bolsonaro o maior boicotador da reforma do seu próprio Governo.
Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não há oposição de fato. Quem ouve falar da oposição? Alguém conhece as ideias da oposição, caso elas existam? Quais são os debates do país que não sejam os colocados pelo próprio Bolsonaro e sua corte em doses diárias calculadas?
É pelo mesmo mecanismo que o bolsonarismo controla as oposições internas do Governo. Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditadura militar. Bolsonaro mandou seu porta-voz, justamente um general, dizer que ele havia ordenado que o golpe de 1964, que completou 55 anos em 31 de março, recebesse as “comemorações devidas” pelas Forças Armadas. Era ordem de Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um general da ativa, o que potencializa a imagem que interessa a Bolsonaro infiltrar na cabeça dos brasileiros.
Ao mandar comemorar o golpe de 1964, Bolsonaro deu um golpe na ala militar do seu próprio governo
Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história, apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém, Bolsonaro deu também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é notório e escrevi aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e se esforçando para assumir – a posição de adultos da sala ou controladores do caos criado por Bolsonaro e sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de equilíbrio num Governo de desequilibrados.
Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice general Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O que pode então ser mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da esquerda têm se deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão, lembrar ao país que a ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou civis?
Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenas assassinados, assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para manter os generais no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião pública fingindo que os defendia.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até hoje impediu os agentes do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, vão adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando cusparadas na porta do Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus colegas de farda”.
A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.
A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como balão de ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer. Mais uma vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são fracas. E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário, tremendamente covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a humanidade, nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse o sequestro, a tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.
Bolsonaro finge que não nomeou o ministro que demitiu
Outro exemplo é a demissão do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez para colocar em seu lugar outro que pode ser ainda pior. Bolsonaro fritou o ministro que ele mesmo nomeou e o demitiu pelo Twitter. Ao fazê-lo, agiu como se outra pessoa o tivesse nomeado – e não ele mesmo. Chamou-o de “pessoa simpática, amável e competente”, mas sem capacidade de “gestão” e sem “expertise”. Mas quem foi o gestor que nomeou alguém sem capacidade de gestão e expertise para um ministério estratégico para o país? E como classificar um gestor que faz isso? Mais uma vez, Bolsonaro age como se estivesse fora e dentro ao mesmo tempo, fosse governo e opositor do governo simultaneamente.
Mesmo as minorias que promoveram alguns dos melhores exemplos de ativismo dos últimos anos passaram a assistir à disputa do Governo contra o Governo como espectadores passivos. Quem lutou pela ampliação dos instrumentos da democracia parece estar se iludindo que berrar nas redes sociais, também dominadas pelo bolsonarismo, é algum tipo de ação. A participação democrática nunca esteve tão nula.
A estratégia bem sucedida, neste caso, é a falsa disputa da “nova política” contra a “velha política”. O bate-boca entre Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), é só rebaixamento da política, de qualquer política. Se a oposição ao Governo é Maia, parlamentar de um partido fisiológico de direita, qual é a oposição? Bolsonaro e Maia estão no mesmo campo ideológico. Não há nenhuma disputa de fundo estrutural entre os dois, seja sobre a Previdência ou sobre qualquer outro assunto de interesse do país.
O mecanismo se reproduz também na imprensa. Aparentemente, parte da mídia é crítica ao Governo Bolsonaro. E, sob certo aspecto, é comprovadamente crítica. Mas a qual Governo Bolsonaro? Se Bolsonaro é mostrado como o irresponsável que é, o contraponto de responsabilidade, especialmente na economia, seriam outros núcleos de seu próprio Governo, conforme apresentado por parte da imprensa. Quando o insensato Bolsonaro atrapalha Guedes, o projeto neoliberal ganha um verniz de sensatez que jamais teria de outro modo.
Diante do populismo de extrema direita de Bolsonaro e seus companheiros de outros países, o neoliberalismo é apresentado como a melhor saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro e seus semelhantes são os produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo fora dele. Onde então está o contraditório de fato? Qual é o espaço para um outro projeto de Brasil? Cadê as alternativas reais? Quais são as ideias? Onde elas estão sendo discutidas com ressonância, já que sem ressonância não adianta?
Bolsonaro governa contra o governo para manter a popularidade entre suas milícias
A imprensa ao mesmo tempo reflete e alimenta a paralisia da sociedade. Os cem dias mostraram que o Governo Bolsonaro é ainda pior do que o fenômeno Bolsonaro. Bolsonaro não se tornará presidente, “não vestirá a liturgia do cargo”, como esperam alguns. Não porque é incapaz, mas porque não quer. Bolsonaro sabe que só se mantém no poder como antipresidente, como enfatizei em artigo anterior. Bolsonaro só pode manter o poder mantendo a guerra ativa.
Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o presidente pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do país. Mas Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas milícias e age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora, governando com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a única estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.
A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.
2) A Barbárie
Mesmo a parcela mais organizada das minorias que tanto Bolsonaro atacou na eleição parece estar em transe, sem saber como agir diante dessa operação perversa do poder. Ao reagir, tem adotado o mesmo discurso daqueles que as oprimem, o que amplia a vitória do bolsonarismo.
Um exemplo. O vídeo divulgado por Bolsonaro no Carnaval, mostrando uma cena de “golden shower”, foi definido como “pornográfico” por muitos dos que se opõem a Bolsonaro. Mas este é o conceito de pornografia da turma do antipresidente. Adotá-lo é comungar de uma visão preconceituosa e moralista da sexualidade. É questionável que dois homens façam sexo no espaço público e este é um ponto importante. Não deveriam e não poderiam. Mas não é questionável o ato de duas pessoas adultas fazerem sexo consentido da forma que bem entenderem, inclusive um urinando no outro. O ato pornográfico é o de Bolsonaro, oficialmente presidente da República, divulgar o vídeo nas redes sociais. É dele a obscenidade. A pornografia não está na cena, mas no ato de divulgar a cena pelas redes sociais. Diferenciar uma coisa da outra é fundamental.
O discurso de ódio e de repressão à sexualidade está se infiltrando no país e sendo reproduzido mesmo pela esquerda
Outro exemplo. Quando a oposição tenta desqualificar o deputado federal Alexandre Frota (PSL) porque ele é ator pornô está apenas se igualando ao adversário. Qual é o problema de ser ator pornô? Só os moralistas do pseudoevangelismo desqualificam pessoas por terem trabalhos ligados ao sexo. Alexandre Frota deve ser criticado pelas suas péssimas ideias e projetos para o país, não porque fazia sexo em filmes para ganhar a vida. Criticá-lo por isso é jogar no campo do bolsonarismo e é também ser intelectualmente desonesto. Cada vez mais parte da esquerda tem se deixado contaminar, como se fosse possível deslegitimar o adversário usando o mesmo discurso de ódio.
Na mesma linha, o problema do ministro da Justiça, Sergio Moro, não é o fato de ele falar “conge” em vez de “cônjuge”, como fez por duas vezes durante audiência pública no Senado. Ridicularizar os erros das pessoas na forma de falar é prática das piores elites, aquelas que se mantêm como elite também porque detêm o monopólio da linguagem. Poderia se esperar que Moro falasse a chamada “norma culta da língua portuguesa” de forma correta, já que teve educação formal tradicional. Mas a disputa política deve se dar no campo das ideias e projetos.
O problema de Moro é ter, como juiz, interferido no resultado da eleição. E, em seguida, ser ministro daquele que suas ações como funcionário público ajudaram a eleger. O problema de Moro é criar um pacote anticrime que, na prática, pode autorizar os policiais a cometerem crimes. Pela proposta do ministro da Justiça, os policiais podem invocar “legítima defesa” ao matar um suspeito, alegando “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Neste caso, a pena pode ser reduzida pela metade ou mesmo anulada. O problema de Moro que interessa ao país não é, definitivamente, usar “conge” em vez de “cônjuge”.
Moradores de rua estão sendo incendiados vivos no Brasil: entre janeiro e o início de abril já foram pelo menos oito
Compreender como o discurso de ódiovai se imiscuindo na mente de quem acredita estar se contrapondo ao ódio é eticamente obrigatório. Se o governo de Bolsonaro é também oposição e crítica ao próprio Governo, isso não significa que ele não tenha um projeto e que este projeto não esteja se impondo rapidamente ao país. Tem e está. Somos hoje um país muito pior do que fomos. E somos hoje um povo muito pior do que fomos. Parte do objetivo dos violentos e dos odiadores é normalizar a violência e o ódio pela repetição. O bolsonarismo tem conseguido realizar esse projeto com uma velocidade espantosa.
Apenas em 2019 ( e escrevo na primeira quinzena de abril), pelo menos oito – OITO – moradores de rua foram queimados vivos no Brasil. Este é apenas um levantamento feito com base no noticiário, pode ser mais. Em 1 de janeiro, um morador de rua de 27 anos foi incendiado quando dormia em Ponta Grossa, no Paraná. Alguém passou, jogou álcool e colocou fogo no seu corpo. Teve mais de 40% do corpo queimado. Em 21 de janeiro, um morador de rua foi encontrado incendiado e morto numa praça de Curitiba, capital paranaense. Quatro dias depois, em 25 de janeiro, José Alves de Mello, 56 anos, também morador de rua, foi agredido e queimado num imóvel abandonado da Grande Curitiba. Em 27 de fevereiro, uma moradora de rua foi queimada quando dormia embaixo de um viaduto, no Recife, capital do estado de Pernambuco. Ela sobreviveu. Em 17 de março, José Augusto Cordeiro da Silva, 27 anos, acordou já em chamas embaixo de uma marquise na cidade de Arapiraca, no estado de Alagoas. Morreu no hospital. Em 1 de abril, um homem aparentando 30 e poucos anos morreu carbonizado próximo à escada rolante de uma estação de trem em Santo André, no ABC Paulista. O caso foi registrado como “morte suspeita”. Em 3 de abril, Roberto Pedro da Silva, 46 anos, foi incendiado quando dormia numa obra abandonada em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul. Um homem teria jogado combustível e ateado fogo em seu corpo. Em 7 de abril, um morador de rua aparentando 30 anos foi agredido a pedradas e incendiado no interior de um ginásio de esportes em Águas Lindas de Goiás, no entorno do Distrito Federal.
Se fôssemos gente decente de um país decente, pararíamos exigindo o fim da barbárie.
Em 4 de abril, policiais militares mataram 11 dos 25 suspeitos de assaltar bancos no município de Guararema, na Grande São Paulo. O governador do estado, João Doria (PSDB), afirmou que vai condecorá-los. Até bem pouco tempo atrás, um governador não ousaria dar medalhas a policiais que assassinaram suspeitos. Em nenhum país democrático do mundo matar suspeitos é considerado um bom desempenho policial. Pelo contrário.
Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos diante da barbárie representada pelo massacre dos mais frágeis
No Brasil, que oficialmente não tem pena de morte, o governador do maior estado do país elogia e premia a execução de suspeitos por agentes da lei. Em março, a polícia paulista matou 64 pessoas. Bem mais do que em 2018, no mesmo mês, quando houve 43 homicídios por parte de policiais, o que já era uma enormidade. Autorizada pelas autoridades, a polícia brasileira, conhecida por ser uma das que mais mata no mundo, mostra que neste ano já começou a matar mais.
Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos diante da barbárie cometida por agentes da lei com autorização e estímulo de autoridades que não foram eleitas para promover a quebra do Estado de Direito.
No último domingo, 7 de abril, militares dispararam 80 tiros – OITENTA – contra o carro de Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, um músico negro que levava a sua família a um chá de bebê em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro. Ele morreu fuzilado. Seu filho de 7 anos viu o pai sangrar e soldados do Exército de seu país rirem do desespero da mãe. Graças a uma lei sancionada por Michel Temer, em 2017, os militares que atacaram uma família civil serão julgados não pela justiça comum, mas pela militar, que comprovadamente é corporativa e conivente com os crimes.
Se fôssemos um país decente de gente decente pararíamos diante da barbárie e exigiríamos justiça.
3) A Resistência
O Brasil se espanta muito menos do que há bem pouco tempo atrás com o cotidiano de exceção. É justamente assim que o totalitarismo se instala. Pelas frestas do que se chama normalidade. Pelas mentes no senso comum e nas horas do dia. Depois, é só oficializar. O Brasil já vive sob o horror da exceção. A falsificação da realidade, a corrupção das palavras e a perversão dos conceitos são parte da violência que se instalou no Brasil. São parte do método. Essa violência subjetiva tem resultados bem objetivos – e multiplica, como os números já começam a apontar, a violência contra os corpos. Não quaisquer corpos, mas os corpos dos mais frágeis.
É urgente se unir para resgatar o que resta de democracia no Brasil antes que o autoritarismo se instale por completo
O desafio – urgente, porque já não há mais tempo – é resgatar o que resta de democracia no Brasil. É pela pressão popular que as instituições podem se fortalecer ao serem lembradas que não servem aos donos do poder nem aos interesses de seus membros, mas à sociedade e à Constituição. É pela pressão por outros diálogos e outras ideias e outras realidades que ainda respiram no país que a imprensa pode abrir espaço para o pluralismo real. É pela pressão por justiça e pelo levante contra a barbárie que podemos salvar nossa própria alma adoecida pelos dias.
O resgate da democracia pelo que ainda resta dela, aqui e ali, não será tarefa de outros. Como já escrevi antes, só há nós mesmos. Nós, os que resistimos a entregar o Brasil para os perversos que hoje o governam – e o governam também pelo controle dos espasmos diários que impõem aos brasileiros.
Eu gostaria de dizer: “Acordem!”. Mas não é que os brasileiros estejam dormindo. Parece mais uma paralisia, a paralisia do refém, daquele que vive o horror de estar entregue ao controle do perverso. Não é mais desespero, é pavor. Precisamos encontrar caminhos para romper o controle, sair do jugo dos perversos, tirar a pauta dos dias de suas mãos.
Como?
Essa resposta ninguém vai construir sozinho. A minha é que precisamos criar o “comum”. O que aqui chamo de comum é o que nos mantêm amalgamados, o que permite que, ao conversarmos, partimos do consenso de que a cadeira é cadeira e a laranja é laranja e que nenhum de nós dois sente na laranja e coma a cadeira (leia aqui). Os perversos corromperam a palavra – e têm repetido que a cadeira é laranja. Só por isso podem dizer que o Brasil está ameaçado pelo “comunismo” ou que o nazismo é de “esquerda” ou que o aquecimento global é um “complô marxista”. Essas três afirmações, apenas como exemplo, não têm lastro na realidade. É o mesmo que dizer que laranja é cadeira. Apenas que menos gente tem clareza do que foi o nazismo e do que é o comunismo e do que é o aquecimento global, tornando mais fácil embrulhar as coisas.
Precisamos voltar a encarnar as palavras ou enlouqueceremos todos
Eles repetem e repetem, assim como tantas outras corrupções da realidade, porque corromperam o voto que receberam ao usar a estrutura do Estado para produzir mentiras. É assim que os perversos enlouquecem uma população inteira – e a submetem: dizendo que laranja é cadeira dia após dia. As palavras deixam de significar, a linguagem é rompida e corrompida e a conversa se torna impossível. Como você vai falar com alguém sobre laranjas se o outro acha que laranja é cadeira? É isso que hoje acontece no Brasil, e este ataque é desferido diariamente pelas redes sociais dominadas pelo bolsonarismo.
Precisamos voltar a encarnar as palavras. Ou enlouqueceremos todos. A criação do comum começa pela linguagem (Escrevi sobre isso aqui e aqui). Precisamos também criar comunidade. Não comunidade de internautas que ficam gritando cada um atrás da sua tela. Mas comunidade real, que exige presença, exige corpo, exige debate, exige negociação, exige compartilhamento real. Não há nada que os regimes de exceção temam mais do que pessoas que se juntam para fazer coisas juntas. É por isso que Bolsonaro tanto critica o ativismo e os ativistas – e já deu vários passos na direção da criminalização do ativismo e dos ativistas.
O ativista é aquele que deixa o conforto do seu umbigo e do seu entorno protegido para exercer a solidariedade. Governos como o de Bolsonaro agem para que cada um veja o outro como inimigo, e por isso temem o ativismo. Os bolsonaristas se alimentam da guerra porque a guerra separa as pessoas e faz com que elas não tenham tempo para criar futuro. A solidariedade é um gesto temido pelos autoritários. Por que você não está em casa lustrando o seu umbigo, é o que gostariam de perguntar? Ao corromper as palavras, é também esse o objetivo. Condenar cada um à prisão do seu silêncio (ou do seu eco), incapaz de alcançar o outro pela falta de uma linguagem comum.
O governo quer que você fique em casa lustrando o seu umbigo. Levante-se!
Assim, tentam eliminar a solidariedade à bala. Ou exilá-la. Mandá-la para fora do país que privatizaram para si. Bolsonaro disse isso com todas as letras. É o que tem feito com os movimentos sociais e suas lideranças. É também por isso que é necessário uma polícia com autorização para matar, como quer Bolsonaro, e como obedece Sergio Moro.
A polícia, cada vez mais, se torna também ela uma milícia privada dos donos do poder. Deixa de exercer seu dever constitucional de proteger a população para exercer a guerra contra a população. Durante a intervenção federal no Rio, policiais civis e militares mataram 1.543 pessoas. Em 2018, um em cada quatro homicídios no Rio de Janeiro foi cometido por um policial – e isso segundo os registros das próprias polícias. Ninguém tem qualquer dúvida que a maioria dos mortos é negra – e é pobre.
Quando vai para as ruas nos protestos, o que a polícia reprime não é o que chama de “baderneiros” ou “vândalos”, mas a solidariedade. Ao bater nos corpos, sufocá-los com bombas de gás lacrimogêneo, o que querem é controlar os corpos, castigá-los porque em vez de ficarem trancados em casa coçando a barriga foram às ruas lutar pelo coletivo. Como assim você luta pelo outro e não apenas por si mesmo? Como você ousa ser solidário se a regra do neoliberalismo é cuidar apenas de si e dos seus?
Resistir ao medo e se juntar para criar futuro é o ato primeiro de resistência. Se nos encarcerarmos em casa, como o governo quer, armados também, como o governo quer, atirando uns nos outros, como o governo quer, a guerra continuará sendo ampliada, porque só assim os perversos nos mantêm sob controle e se mantêm no poder. Se contarmos apenas como um não podemos nada. Temos que ser um+ um+ um. E então poderemos muito.
A arte é também um instrumento poderoso. Não foi por outro motivo que ela foi tachada de “pornográfica” e “pedófila” pelas milícias da internet nos últimos anos. Não é por outro motivo que o bolsonarismo investe contra a lei Rouanet e desmonta os mecanismos culturais. A arte não é firula. Ela tira as pessoas do lugar. Ela faz pensar. Ela questiona o poder. E ela junta os diferentes.
Precisamos fazer arte. Mais uma vez, vou indicar aqui o livro da Pussy Riot Nadya Tolokonikova (Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, Ubu Editora, 2019). A arte é um ato ao alcance de todos nós. O maior golpe contra o Governo do déspota Vladimir Putin veio de um bando de garotas que não sabe nem cantar nem tocar direito, mas fazem arte tocando e cantando o ridículo dos perversos.
Rir. Precisamos rir. Rir junto com o outro, não rir do desespero do outro. É o perverso que gosta de rir sozinho, é o perverso que goza da dor do outro, como faz Bolsonaro, como riram os soldados que deram 80 tiros no carro da família que ia para um chá de bebê. O deles não é riso, é esgar. Já o riso junto com o outro tem uma enorme potência.
Vamos rir juntos dos perversos que nos governam e começar a imaginar um futuro onde queremos viver
Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por desaforo. E amar livremente.
Rir despudoradamente diante de suas metralhadoras de perdigotos. O ódio não é para nós, o ódio é para os fracos. Vamos afrontá-los denunciando o ridículo do que são. Vamos praticar a desobediência às regras que não criamos. Temos que desobedecer a esse desgoverno. É assim que se quebra o jugo dos perversos. Levando-os suficientemente a sério para não levá-los a sério.
E temos que começar a imaginar o futuro. É assim que o futuro começa, sendo imaginado. Ninguém consegue viver num presente sem futuro. Mas é impossível controlar quem é capaz de imaginar depois que já começou a imaginar. A imaginação é a melhor companheira do riso.
Sim, ninguém solta a mão de ninguém. Mas não vamos ficar segurando as mãos uns dos outros paralisados e em pânico. Vamos rir e criar futuro. Juntos. Lembrem-se que “a alegria é a prova dos nove”. Nos cem dias que já dura o domínio oficial dos perversos, foi o Carnaval quem mais desafiou o exercício autoritário do poder. Pela alegria, pela sátira, pelo riso, pelos corpos nas ruas.
Não há lei que nos obrigue a obedecer a um Governo de perversos. Desobedeçam aos senhores do ódio. Os próximos cem dias – e todos os outros que virão – precisam voltar a nos pertencer.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Bolsonaro manda festejar o crime
Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964. Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história, apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir, mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis. No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas por 21 anos, de 1964 a 1985; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura; obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio; prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças, e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro, é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados. Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma “faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz que fará com os opositores.
O que as instituições vão fazer diante do anúncio de Bolsonaro? Apequenar-se, como de hábito?
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200 pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente, siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem neste 31 de Março.
Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o terror, parte delas somente por diversão.
Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil. O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo, como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna. Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada. Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000 civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números. Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi – e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais, mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz apologia ao crime nem incitação à violência.
Não se trata de esquerda ou de direita, mas de apologia ao crime e incitação à violência
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil, infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo" e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo. É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter certeza que vai sair dela vivo.
À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões. Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil, porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a vida, precisam mostrar qual é a diferença.
A oposição está dominada pelo jogo de guerra do bolsonarismo: só sabe reagir
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal, é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita do bolsonarismo faz com que a necessidade de aumentar a violência “contra todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a sensação de guerra interna, também aumenta. Sem projeto consistente, o governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça que Bolsonaro não quer.
O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação, mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público. Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de solidariedade global.
“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em 22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão, ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o assassinato de Marielle Franco e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja: Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo”.
Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir: a apatia e a indiferença triunfam
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot, está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima, inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou 1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de 2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Quem mandou matar Marielle? E por quê?
Bolsonaro, que governa o Brasil pela administração do ódio, deveria ser o maior interessado em desvendar o crime
Quando soube que Marielle Franco havia sido assassinada, eu tinha acabado de chegar de Anapu, a cidade que recebeu o sangue de Dorothy Stang. Quatro tiros tinham arrebentado a cabeça bonita de Marielle e também aquele sorriso que fazia com que mesmo eu, que nunca a conheci, tivesse vontade de rir com ela. Ainda hoje tenho quando vejo a sua fotografia. E rio com Marielle. E então lembro o horror da destruição literal do seu sorriso. E então eu não choro. Eu escrevo.
Quando a notícia chegou eu ainda estava na Amazônia, mas me preparava para pegar um avião para São Paulo. Eu carregava no meu corpo o horror de ter constatado que a violência contra os pequenos agricultores no Pará era, naquele momento, pior do que em 2005, ano do assassinato de Dorothy. Havia então, em Anapu, uma trilha vermelho-sangue de 16 execuções de trabalhadores rurais ocorridos desde 2015, pessoas que não tinham cidadania americana para chamar a atenção da imprensa.
Dois dias antes, na estrada de Anapu, eu havia sido alcançada pela notícia do assassinato de Paulo Sérgio Almeida Nascimento, diretor da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama). Paulo recebia ameaças por sua atuação e fez repetidos pedidos de proteção policial. Ele cobrava providências dos governos federal e do Pará, além da prefeitura de Barcarena, sobre a atuação da mineradora norueguesa Hydro Alunorte, que comprovadamente contaminou a água dos rios da região, ameaçando a vida da população e o meio ambiente. Paulo foi assassinado dois dias antes de Marielle.
Em Anapu, eu tinha escutado padre Amaro Lopes afirmar que sabia que estavam armando para ele, que inventariam algo para interromper sua luta. Ele era considerado o sucessor de Dorothy Stang na proteção dos direitos dos trabalhadores rurais e da floresta amazônica na região. Para mim era claro que as reais sucessoras de Dorothy eram as freiras que dividiam a casa com ela e que seguiam seu trabalho sem escorregar em vaidades pessoais. O trabalho de Amaro Lopes, porém, era importante o suficiente para ser interrompido pela violência. Duas semanas mais tarde, como o padre havia previsto, ele foi preso numa operação cinematográfica pela polícia do Pará, e acusado de quase tudo. O objetivo era assassinar a sua reputação e neutralizá-lo. Foi alcançado.
Quando soube da morte de Marielle, era este o mapa de mortes ao redor de mim, apenas no pequeno círculo que era eu. Essas mortes, ainda que não diretamente, estavam conectadas. Elas expressavam um novo momento do país, um em que a vida valia ainda menos, e a justiça era ainda mais ausente, quando não conivente.
Desde 2015, a tensão no campo e nas periferias urbanas crescia no Brasil. Era o resultado direto da fragilização da democracia pelo processo de impeachment, que sempre se faz sentir primeiro nos espaços mais distantes dos centros de poder. Mesmo antes de ser afastada, Dilma Rousseff (PT) já estava concedendo o que não se pode conceder, no desespero de barrar o processo que a arrancaria do cargo para o qual fora eleita. Na Amazônia, esses recados são interpretados como literalidade. E autorização.
Os assassinatos mostraram como o Brasil arcaico tentava esmagar o Brasil insurgente que tinha avançado nos últimos anos
Essas mortes expressavam também como o Brasil arcaico, aquele que ganhou uma imagem eloquente no retrato oficial do primeiro ministério de Michel Temer (PMDB) – branco, masculino e reprodutor das oligarquias políticas – esmagava o Brasil insurgente que tinha avançado nos últimos anos, aquele que deslocava os lugares dos centros e das periferias, confrontava o apartheid racial não oficial, rompia com os binarismos de gênero, enfrentava o patriarcado com cartazes e peitos nus.
Eu descia a escada da casa que alugava. Ao chegar ao último degrau, tive a sensação de que o Brasil tinha sido rasgado. Comecei a descer a escada em um país, e terminei em outro. No meio, a notícia do assassinato de Marielle Franco. O corpo flagelado de Marielle era o rasgo.
Quando viajava para São Paulo, num percurso longo de três voos, em que podia checar as informações apenas nas escalas, percebi que esse sentimento não era só meu. Uma parte do Brasil se levantava, ocupava as ruas, se retorcia e gritava.
Matar uma vereadora eleita a tiros era um passo além na violência extrema de um país que convive com o genocídio dos jovens negros, que convive com o genocídio dos indígenas, como se fosse possível conviver com genocídios sem corromper além do possível o que chamamos de alma. O assassinato de Marielle era um passo além, um passo já sobre o vão do abismo, até mesmo para o Brasil.
Desde 2014 eu comecei a escrever uma palavra em vários dos meus textos. Esgarçado, esgarçamento... Demorei a reconhecer o padrão. Às vezes uma palavra se impõe pelos caminhos do inconsciente que percebe o mundo a partir de outros percursos. Esgarçada, a carne do país agora se rasgava, como se os corpos furados à bala, os corpos negros, os corpos indígenas, ao se tornarem numerosos demais, tivessem tornado impossível sustentar qualquer remendo. Mesmo uma costureira amadora sabe que não é possível cerzir um pano rasgado demais, onde a pele juntada com agulha e linha de imediato se abre. Já não havia integridade possível no tecido social do Brasil porque se matou demais. Marielle Franco era o além do demais.
Em 14 de março de 2018, o Brasil entrou numa nova fase de suas ruínas continentais
Entendi então que também era um Brasil que morria com Marielle. E que daquele dia em diante entraríamos numa outra fase de nossas ruínas continentais. Acredito que estava certa. Mas acredito também que estava errada. Estava certa porque Marielle Franco acolhia em seu corpo todas as minorias esmagadas durante 500 anos de Brasil. Seu corpo era um mostruário, uma instalação viva, da emergência dos Brasis historicamente silenciados.
Marielle carregava múltiplas identidades: negra, como é a maioria dos que morre; da favela (da Maré), de onde vêm os que têm menos tudo; mulher preta, a porção mais frágil e sujeita à violência da população brasileira; lésbica, o que a lança em outro grupo flagelado pela homofobia. Carregando tudo o que era – e será sempre –, Marielle elegeu-se vereadora do Rio pelo PSOL. E fez de suas identidades criminalizadas uma explosão de potência. Ela era a encarnação de um movimento que vinha tanto dos interiores quanto dos estertores do Brasil. Marielle encarnava um levante que não morreu com ela, mas que vem sendo massacrado nos últimos anos. Um levante criador e criativo que sonhava com outro Brasil, que almejava atravessar as oligarquias alegremente com seus pés descalços como o fez neste Carnaval – rumo a um outro jeito de ser Brasis, no plural.
Marielle tinha todo esse desaforo no seu corpo e ainda ousava rir, e ria muito, como fazem as mulheres que sabem que rir é um ato de transgressão, já que chorar é o que se espera de nós.
O Brasil que existiu de 1985 a 2016 morreu com o voto criminoso de Bolsonaro em favor do impeachment da primeira mulher presidente
Ao mesmo tempo, eu estava errada. O Brasil pós-redemocratização, o país onde eu tinha vivido a minha vida adulta, não tinha morrido em 14 de março de 2018. Mas sim quase dois anos antes, em 17 de abril de 2016.
Uma parte dos brasileiros soube que algo terrivelmente definitivo tinha acontecido naquele domingo em que os deputados votaram pela abertura do impeachment de Dilma Rousseff. Mesmo os que eram favoráveis ao impeachment chocaram-se com as tripas à mostra dos parlamentares, a votar em nome de Deus e da família contra uma presidenta que não havia cometido crime de responsabilidade. A vergonha atingiu quase todos nós. Ou pelo menos muitos. Muitos pela ética, a maioria talvez apenas pela estética.
O Brasil que existira durante 31 anos, do fim da ditadura militar à votação do impeachment de Dilma Rousseff, de 1985 a 2016, morreu com o voto de Jair Bolsonaro. Nestas mais de três décadas o Brasil avançou e retrocedeu, convulsionou-se, desvelou-se, povoou-se de esperanças, conviveu com o impossível de seus genocídios e protegeu agentes de Estado que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime de exceção.
É da gestação dessa democracia deformada que nasce o Brasil que vivemos hoje, como já escrevi neste espaço, mais de uma vez. Mas até 2016 tivemos um país em ebulição, onde o presente era ferozmente disputado por diferentes grupos. Naquele país, o levante do qual Marielle Franco é um dos símbolos avançava pelas brechas, e avançava rápido, porque tinha séculos de atraso às suas costas.
Não é coincidência que Jean Wyllys, o deputado que cuspiu em Bolsonaro, é também o primeiro exilado de seu governo
O voto de Jair Bolsonaro interrompeu esse processo – e encerrou uma das fases mais ricas de possibilidades do Brasil. Não apenas o impeachment, que parte da esquerda chama de “golpe”, mas a perversão do impeachment tornada explícita pelo voto de Bolsonaro. Se o voto do ex-capitão era uma expressão da anatomia do impeachment, e era, o voto era isso e também algo além disso. Um além que talvez só Jean Wyllys (PSOL), no seu ato de cuspir, tenha percebido. Não é apenas coincidência que seja ele o primeiro político exilado do Brasil do bolsonarismo.
Naquele momento, Bolsonaro cometeu o crime de apologia à tortura e ao torturador. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim". O então deputado federal violou o artigo 287 do Código Penal: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Pena: detenção de três a seis meses, ou multa”.
Ustra foi o único torturador reconhecido como torturador pela justiça brasileira. Sob o comando de Ustra, pelo menos 50 pessoas foram assassinadas e outras centenas torturadas. Havia ainda o sadismo explícito do aposto colocado por Bolsonaro: “pelo pavor de Dilma Rousseff”. A presidente foi torturada por agentes do Estado na ditadura.
Bolsonaro consumava ali a ligação entre os dois momentos do país, saltando sobre o período democrático. Ao invocar o torturador e apontar o pavor da torturada, Bolsonaro tornou o impeachment sem base legal um novo ato de tortura contra Dilma Rousseff.
Aquele, na minha opinião, foi o momento mais grave do país desde a redemocratização. O dia seguinte decidiria o futuro do Brasil. Se a lei fosse cumprida e Bolsonaro denunciado, julgado e preso, as instituições teriam mostrado que eram capazes não só de fazer a lei valer, mas também capazes de proteger a democracia e os princípios democráticos.
A serviço de forças muito além de sua família, Bolsonaro era aquele soldado raso despachado para a frente de batalha para descobrir se explode ou se a tropa mais gabaritada pode avançar em relativa segurança. Como ele ameaçou uma presidente e homenageou um torturador e continuou tocando a vida porque a lei era palavra morta, o Brasil afundou ali. Menos de um mês depois, em 12 de maio de 2016, dia do afastamento de Dilma Rousseff da presidência do país, Bolsonaro mergulhou nas águas do Rio Jordão, em Israel, para ser batizado pelo Pastor Everaldo, líder do PSC.
Foi também naquele voto que Bolsonaro virou presidente da República, ou alguém com muitas chances de se tornar presidente da República. De personagem bufão do baixo clero do Congresso, ele foi promovido a representante das forças mais arcaicas: tanto as que queriam garantir a ampliação do seu poder no Planalto, como os ruralistas, quanto as que queriam alcançar o poder central, caso dos evangélicos.
Os generais hoje no poder deveriam ter escutado o ditador Ernesto Geisel, que chamava Bolsonaro de “mau militar”
Naquele momento, também os setores das Forças Armadas incomodados com a Comissão da Verdade e a pressão pela revisão da Lei de Anistia viram uma oportunidade. Arriscada, mas ainda assim uma oportunidade. O ex-capitão, que era conhecido como oportunista e insubordinado, poderia ser útil para barrar a produção de memória sobre o regime de exceção e reescrever a história. Poderia ser útil também para garantir a volta dos generais ao Planalto sem o trauma de um golpe clássico, como ocorreu em 1964.
Acreditaram poder controlá-lo. Deveriam ter ouvido um general mais experiente antes de se meter na perigosa aventura bolsonarista. Em 1993, em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D´Araújo e Celso Castro, o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, afirmou: “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”.
Marielle Franco foi morta neste novo Brasil, por este novo Brasil escancarado pelo crime de Bolsonaro ao votar pelo impeachment. Este novo Brasil é velho, mas também é novo. Porque o novo não é sinônimo de bom. E o velho não é sinônimo de ruim. A serviço do que há de mais arcaico e viciado na história do Brasil, Bolsonaro é novo. A serviço do que há de mais cínico na história do Brasil, o fundoportunismo evangélico das lideranças neopentecostais é novo.
Já o novo que vem das raízes, representado por Marielle, o que vem da insurreição dos negros aquilombados, da resistência quase transcendental dos povos indígenas, das mulheres que amam suas bucetas, daqueles que não se encaixam na normatização dos corpos, é este que está sendo esmagado. Precisamos saber: Quem mandou matar Marielle? E por quê?
Marielle foi morta também por carregar no corpo o levante dos Brasis periféricos que reivindicam o lugar de centro
Seja qual for a resposta objetiva, concreta, que já tarda um ano, Marielle também foi morta por carregar no seu corpo o levante dos Brasis periféricos que nos últimos anos vêm reivindicando o lugar de centro. Ela era a expressão cheia de curvas de tudo aquilo que aqueles que só conseguem conviver com ângulos retos sentem compulsão por exterminar. Não apenas porque são incapazes de lidar com outras formas geométricas, mas porque quando os excluídos do Brasil ocupam as tribunas pelo voto, aqueles que acham que o poder é parte do seu destino hereditário temem por seus privilégios.
Desde que a primeira mulher presidenta foi arrancada do Planalto por um impeachment descabeçado, a violência nas periferias da floresta, do campo e das cidades recrudesceu. A percepção era de que algo represado, contido com muito esforço, se liberava. E de fato se liberava. Todo o desejo de destruição recalcado pelo que chamam de “politicamente correto”, mas que é outra coisa, emergiu. E da forma violenta como irrompe o que é controlado com esforço, o que é empurrado para o fundo, sem trabalho de elaboração tanto na esfera pública quanto na privada. Ainda assim, as Marielles seguiram.
Há no Brasil atual um desejo de destruição dos corpos que se recusam a ser normatizados, como os das mulheres e dos LGBTI
É de desejo de destruição que falamos. E minha interpretação é que majoritariamente é um desejo de destruição dos corpos das mulheres e dos LGBTI, dos corpos que se recusam a ser normatizados, como Jair Bolsonaro e seus seguidores deixaram claro na campanha de 2018. Acrescentaria ainda nesta lista os corpos dos que praticam as religiões de origem africana, barreira ao crescimento das evangélicas neopentecostais, que por isso precisam ser demonizadas.
Quando Bolsonaro invoca a tortura do corpo da presidenta ao votar pelo impeachment, é a vontade de destruição do corpo de Dilma que reafirma. Como antes já havia feito a apologia do estupro ao agredir a deputada federal Maria do Rosário (PT).
É importante lembrar de Luana Barbosa dos Reis Santos, negra, periférica e lésbica, que foi assassinada por policiais em 2017. Assim como lembrar que foi uma mulher, Amélia Teles, torturada por Ustra, aquela que foi agredida mais uma vez pelas redes sociais ao ser ameaçada de morte por apoiadores de Bolsonaro durante a campanha. Também Amelinha foi torturada duas vezes, a segunda por ousar contar a violência que sofreu pelas mãos e ordens do herói de Bolsonaro. Como vale a pena lembrar ainda, os agentes do Estado, além de usarem os equipamentos clássicos de tortura, como os choques elétricos, costumavam também torturar as mulheres introduzindo ratos e baratas em suas vaginas, ampliando o componente misógino do sadismo.
Os atuais donos do poder deflagraram uma guerra pelo controle dos corpos, aquilo que Jair Bolsonaro pregou como o fim das minorias, que devem “se curvar diante da maioria”. O “menino veste azul, menina veste rosa”, da ministra da Mulher, Damares Alves, não é uma distração ou um factoide – e sim a mais exata tradução de uma disputa de poder muito profunda.
O Carnaval de 2019 perturbou tanto Bolsonaro porque mostrou que o levante continua vivo
É necessário prestar atenção em quem foi obrigado – até agora – a deixar o país para salvar a sua vida: publicamente, um gay assumido e duas feministas conhecidas. Mas há mais gente. A violência não é sobre quaisquer corpos, mas sobre corpos específicos. O que se disputa, vale repetir, é o controle sobre os corpos que se insurgiram – o das mulheres, dos negros, dos indígenas e dos LGBTQI. Também não foi qualquer imagem que Bolsonaro escolheu para tentar desqualificar o Carnaval de 2019, mas uma relação sexual entre dois homens. Bolsonaro se descontrolou um pouco mais porque o Carnaval mostrou, apesar de toda a violência pregada pelo presidente, que o levante continua vivo. E muito vivo.
É urgente parar de fingir. Não vivemos numa democracia. Desde que assumiu, Bolsonaro passou a usar seu poder de presidente a serviço de sua máquina de produzir linchamentos e desqualificar opositores, que trata como inimigos. A estratégia de sua ação na redes sociais, assessorado pelo filho zero dois, é a de manter a população em suspenso. Bolsonaro e zero dois vão controlando os dias e os espasmos, disseminando mentiras e direcionando ataques.
Sejamos claros: Bolsonaro está controlando o cotidiano do país. Não pela administração pública, mas pela administração do ódio. O que vai acontecer neste país com um presidente que usa o poder e a máquina do Estado para destruir uma parcela cada vez maior da população?
Bolsonaro e sua administração do ódio podem provocar uma tragédia a qualquer momento
Parar de fingir que existe uma normalidade democrática é uma medida urgente para manter a sanidade mental da população. O Brasil pode explodir em ódios a qualquer momento. São grandes as chances de Bolsonaro provocar uma tragédia. Ele está fora de controle, se é que algum dia teve algum controle. E as instituições não se movem para proteger a população e a Constituição.
Vivemos no Brasil um cotidiano de exceção. Desde o voto de Bolsonaro. E rumamos para um Estado de Exceção, desde o voto em Bolsonaro.
A destruição do corpo de Marielle Franco, o corpo político que se recusava a ser subjugado, é até hoje o mais violento ataque. É por dignidade que se grita “Marielle Presente”. É por responsabilidade coletiva. Mas também é pela convicção de que manter viva a memória de Marielle e tornar cara a sua morte é o que possivelmente já tenha nos salvado de outros corpos arrebentados à bala pelas ruas do Brasil. Esse grito persistente é o que talvez tenha nos tenha salvado do descontrole total.
Este Brasil que matou Marielle já era o Brasil de Bolsonaro mesmo antes de ele ser eleito. Era o Brasil em que os filhos de Bolsonaro vestiam uma camiseta com a inscrição “Ustra Vive” para disputar votos. Em que o atual governador do Rio aparece junto com dois brucutus, que depois se tornariam deputados eleitos pelo PSL. Na imagem, eles se orgulham de arrebentar a placa de rua com o nome de Marielle Franco. E atravessam seu nome com os próprios corpos, como numa espécie de estupro simbólico.
A apuração do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes está em curso. O fato de um ano após sua morte o Brasil ainda não saber quem ordenou o crime e por que razões ordenou o crime é uma vergonha para os responsáveis, em todas as instâncias – e uma vergonha para o Brasil. Mas não só uma vergonha. O que a demora em solucionar o crime expõe é a convulsão do país em que uma polícia precisa investigar por que razões a outra polícia não investiga. Um país em que os suspeitos que acabaram de ser presos eram policiais militares.
Bolsonaro deveria ser o brasileiro que mais deseja esclarecer a morte de Marielle e, assim, provar que coincidências são apenas coincidências
O presidente do Brasil e sua família deveriam ser os primeiros a querer que o assassinato de Marielle Franco fosse esclarecido. E imediatamente. Deveriam ser os mais interessados em provar que as coincidências e os vários cruzamentos da família com suspeitos de terem executado o crime são apenas isso: coincidências. Não é possível governar um país sem que essas coincidências sejam esclarecidas. A cada nova coincidência, cresce na população o sentimento de descontrole.
Só a dois dias de completar um ano das mortes é que finalmente a Polícia Civil do Rio e o Ministério Público do Rio prenderam os ex-PMs Ronie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz. Lessa foi preso na casa de 280 metros quadrados onde vivia com a família, na mesma rua e no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro. Da varanda da casa de Lessa é possível ver o quarto da filha de Bolsonaro. Segundo o delegado Ginilton Lages, a filha de Lessa namorou um dos filhos de Bolsonaro. Na casa de um amigo de Lessa, a Polícia Civil encontrou 117 fuzis incompletos, do tipo M-16: é a maior apreensão de fuzis da história do Rio de Janeiro.
Ninguém é responsável pelos atos de seus vizinhos nem pelos atos dos sogros dos filhos. Mas, enquanto os mandantes do crime não forem descobertos e as motivações esclarecidas, também não há como provar que coincidências são apenas coincidências. E isso é ruim para o Brasil. É por isso que o clã Bolsonaro deveria ser o maior interessado em desvendar o assassinato de Marielle. Para o bem do Brasil.
Porque há outras coincidências. O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), escreveu numa rede social que um dos cinco presos na operação “Os Intocáveis”, de janeiro deste ano, uma ação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público, era suspeito de envolvimento nas mortes de Marielle e de Anderson. O ex-capitão da PM Adriano Magalhães Nóbrega, hoje foragido, foi apontado pela operação como um dos líderes da milícia de Rio das Pedras, que opera um esquema de grilagem de terras, entre outros crimes e contravenções. Nóbrega também seria chefe do grupo de extermínio Escritório do Crime, suspeito de estar associado à execução de Marielle e de Anderson. Este mesmo Nóbrega foi celebrado pelo hoje senador Flávio Bolsonaro, o zero um, com moção de louvor por seu “brilhantismo e galhardia”, em 2003, e com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2005.
As coincidências não param aí. Até novembro de 2018, a mãe e a mulher de Nóbrega trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro. O zero um atribuiu as contratações a seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, amigo de longa data do presidente da República. Queiroz, que foi policial militar, é suspeito de comandar rachadinhas no gabinete de zero um. O esquema retém parte dos salários de funcionários nomeados de um gabinete. Queiroz também é o autor do depósito de um cheque de 24 mil reais na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
No final de 2018, a Polícia Federal entrou no caso Marielle para descobrir o que estava barrando a investigação do caso Marielle. “Uma investigação sobre a investigação”, como definiu o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Quando a Polícia Federal precisa ser acionada não para desvendar um caso, mas para descobrir por que o caso não é desvendado, é compreensível e mesmo esperado que a população comece a entrar em pânico.
Jungmann disse mais: o processo de apuração do crime é “uma aliança satânica entre a corrupção e o crime organizado”. O então ministro já havia descrito o caso Marielle com as seguintes palavras: “Fica claro que existiria uma grande articulação envolvendo agentes públicos, milicianos, políticos, num esquema muito poderoso, que não teria interesse na elucidação do caso Marielle, até porque estariam envolvidos nesse processo, se não tanto na qualidade daqueles que executaram, na qualidade de mandantes”. Ele era o ministro da Segurança e tudo o que afirmava era sua impotência para elucidar o crime.
Para manter a popularidade em alta, Bolsonaro está gestando uma guerra civil não declarada no Brasil
Bolsonaro entra no terceiro mês de governo. Já mostrou que governa pela administração do ódio. E que essa administração é estratégica e calculada para cumprir pelo menos dois objetivos: desviar o foco das atenções sobre as suspeitas envolvendo o filho zero um, que podem atingir mais membros da família, inclusive o próprio presidente, assim como manter o país em guerra civil não declarada nas redes sociais, de forma que Bolsonaro possa escolher o inimigo a ser linchado antes que o ódio se volte contra ele.
O presidente dedica grande parte do seu tempo a manter suas milícias digitais ocupadas, destruindo as reputações de seus críticos, e sem tempo para prestar atenção em como são tratados os assuntos urgentes do Brasil. Como já se viu, a produção de linchamentos seguidamente tem como alvos jornalistas que investigam tanto as milícias do Rio quanto o caso Queiroz.
Jair Bolsonaro transformou o Brasil em um laboratório de administração do ódio e de seus efeitos sobre a população. É um “case”. E é muito perigoso. Quem percebe já começou a adoecer. Outros deixaram o país para não virarem mártires. O pior que podemos fazer neste momento é fingir que isso é normalidade. Ou que há normalidade possível com um presidente que controla os dias do Brasil pela administração do ódio nas redes sociais. A pressão está crescendo. As coincidências precisam ser esclarecidas o mais rapidamente possível. As instituições devem acordar.
Quando finalmente for descoberto quem mandou matar Marielle Franco – e por quê –, não será apenas um crime que vai ser elucidado. É a anatomia do Brasil atual que poderá ser desvelada em todo o seu espantoso horror. Mas os mandantes – e os motivos – só serão revelados se continuarmos a perguntar: “Quem mandou matar Marielle? E por quê?”
Marielle Presente!
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Bolsonaro (des)governa o Brasil pelo Twitter
Ao tomar decisões pelo volume dos gritos nas redes sociais, o presidente corrompe a democracia
Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além. Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para todos, mas apenas para a sua turma.
A bolsomonarquia com frequência é mais real – e efetiva – que o governo oficial
Os três filhos, também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.
O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.
Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao jornal O Globo afirmando que não havia “crise nenhuma” no Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.
O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta” do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas, desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a administração pública.
Moro descobriu-se menos super: não tem minipoder nem para nomear uma suplente
O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato, Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.
A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”. Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.
É a estética da bolsomonarquia – e não a ética – que começa a horrorizar os apoiadores e parte do ministério
Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências. É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.
Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”. O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de O Globo.
Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso da transferência da capital de Israel para Jerusalém, que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os negócios.
Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão. Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo —o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.
As escolhas desta época são determinadas pela fé, não pela razão: mesmo ateus se comportam como crentes
Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber, porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir que o aquecimento global é um complô de esquerda.
As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.
É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01 com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.
Quando a verdade se torna uma escolha pessoal, como fazer a democracia valer?
Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?
Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses, a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de Sergio Moro.
Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar, sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí". É desconcertante quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a possibilidade de “autogolpe”.
Ao atacar o Carnaval, Bolsonaro tentou deletar do país partido o que ainda resta de uma identidade comum
Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o suficiente para abrir fogo no Twitter contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio às ruínas de um país.
O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual, Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.
Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é. Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.
O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para encobrir a sua.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: As crianças tomam conta do mundo
Num planeta governado por adultos infantilizados como Trump e Bolsonaro, meninas de diferentes países lideram uma rebelião pelo clima e marcam uma greve global de estudantes para 15 de março
A luta contra o aquecimento global é hoje liderada por garotas de vários países do mundo. Estudantes secundaristas, a maioria. Mulheres muito jovens, carregando um novo espírito do tempo no mundo sem tempo, em que só há 12 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius e o futuro logo ali seja uma vida muito ruim para todos, impossível para os mais pobres e os mais frágeis. Jovens mulheres com muito pânico porque os pais e avós ferraram o planeta em que vão viver e se comportam como gente mimada e egoísta que faz apenas o que quer sem se preocupar com as consequências nem mesmo para seus próprios filhos e netos. Uma parcela da espécie humana chegou a um nível de individualismo que nem mesmo protege a prole naquilo que é fundamental – e o presente se torna absoluto. De repente os mais jovens perceberam que a sobrevivência está comprovadamente ameaçada e os governantes estão brincando no Twitter.
Esse movimento de crianças e adolescentes é movido pela compreensão dos muito jovens de que os adultos não são adultos. É o que eles têm dito. “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg em dezembro, durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia.
Ela tinha apenas 15 anos, em agosto de 2018, quando decidiu fazer um boicote às aulas todas as sextas-feiras e se postar diante do parlamento, em Estocolmo, para dar o seguinte recado: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. Desde então, Greta, uma menina de rosto redondo em que as tranças escoltam as bochechas, tornou-se uma referência internacional na luta contra o aquecimento global e tem inspirado movimentos de estudantes em vários países. Em 15 de março, planejam realizar uma greve global pelo clima.
A novíssima geração de humanos teve a extrema má sorte de nascer num momento histórico em que os pais não conseguem lidar com a questão do tempo. Os adultos atuais cresceram bombardeados pelo imperativo do consumo que prometia prazer imediato, reiniciado a cada ato de compra, num looping infinito. O tempo passou a ser um presente estendido. Tudo o que existe é o agora do qual é preciso arrancar o máximo. É este o mundo em que cidadãos foram convertidos em consumidores. É este o funcionamento dos adultos atuais num momento histórico em que o aquecimento global, comprovadamente causado por ação humana, se não for barrado, mudará a face do planeta.
Os adultos se revelam incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo
Quando os mais respeitados cientistas do clima alertam que há pouco mais de uma década para evitar que a Terra se torne um planeta hostil para a nossa espécie, que é preciso mudar os padrões de consumo já e, principalmente, pressionar os líderes para tomar as medidas mais do que urgentes, a reação parece ser a de seguir mantendo o presente ativo, incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo no pacto capitalista do presente contínuo.
Os muito jovens perceberam que a época em que as crianças fazem só o que querem por conta de pais com problemas para educar e dar limites começa a dar lugar a época em que as crianças percebem que os pais fazem só o que eles querem porque são incapazes de aceitar que seja necessário ter limites. Mesmo limites bem pequenos, como, por exemplo, reduzir o consumo de carne a apenas uma vez por semana, já que a pecuária é uma das principais causas do aquecimento global. Ou deixar o carro em casa e usar transporte público ou bicicletas. Ou reciclar as roupas. Há quem tenha preguiça até mesmo de se responsabilizar pelo lixo que produz.
“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, diz Greta Thunberg
“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, escreveu Greta Thunberg em um de seus artigos. Hoje com 16 anos, ela demonstra a lucidez que falta na maior parte dos líderes mundiais. Este é um ponto importante do movimento dos estudantes pelo clima. Apesar de apontar a dificuldade dos adultos para mudar a vida cotidiana, assim como suas escolhas e a relação fundamental com o tempo, as crianças e adolescentes sabem que esta transformação não pode ser reduzida apenas a decisão de cada indivíduo. Os estudantes têm concentrado sua pressão sobre as autoridades públicas de cada país. São essas as lideranças que têm poder para barrar as grandes corporações, taxar os poluidores, determinar políticas capazes de interromper a escalada de destruição.
Não faltam estudos mostrando o que é preciso ser feito para evitar que o aquecimento global ultrapasse o 1,5 graus Celsius, condenando centenas de milhões de pessoas à fome e à miséria e varrendo do planeta maravilhas vivas como os corais. O que falta é fazer o que precisa ser feito, assim como cumprir os acordos já existentes. Se os avanços em escala global já eram difíceis antes, a recente ascensão de líderes de extrema direita em países estratégicos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, tornaram a situação desesperadora.
Esta também é uma característica da novíssima geração que está indo às ruas pelo clima. São crianças e adolescentes – e não são ingênuos. Em janeiro, no Fórum de Davos, na Suíça, Greta também não mediu palavras ao falar à plateia composta pela elite econômica global: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.
O que as crianças e adolescentes deste movimento crescente dizem é que, se quiserem ter onde viver, vão precisam tomar conta do mundo. Para contar. Já que os adultos que destroem o planeta não as contam.
Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Para além dos efeitos concretos sobre o futuro da humanidade, serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso antes ter amanhã.
Nunca houve nada parecido na história: os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem
O Brasil é o país mais biodiverso do planeta. Tem no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Deveria estar na vanguarda do combate ao aquecimento global e à perda avassaladora de biodiversidade. Deveria ocupar seu lugar estratégico e se colocar na vanguarda de todos os movimentos pelo clima. Deveria. Mas não está.
E não está porque, depois de governos inconsequentes e estúpidos diante da crise climática, à esquerda e a à direita, o país tem hoje um governo de extrema-direita que, além de ser inconsequente e estúpido, também contém uma parcela de alucinados. O governo militarizado de Jair Bolsonaro pode conduzir o Brasil para o abismo. E, dada a importância da floresta amazônica, arrastar o planeta com ele.
É preciso ser muito claro neste momento e afirmar com todas as vogais e consoantes disponíveis que uma parcela do governo Bolsonaro é composta por gente que usa o poder de forma perigosa. Gente que brinca de guerra. Gente que brinca de arma. Gente com delírios de grandeza e desejo de destruição. Gente que tem tanto medo dos próprios demônios que enxerga o diabo em toda parte, de preferência no outro. Gente que enaltece torturadores, chama ditadores de estadistas e dá medalhas a milicianos.
Essa realidade fez com que o governo cada vez mais militarizado de Bolsonaro – já são oito os militares no primeiro escalão, sem contar o vice e o porta-voz, e dezenas contando os demais escalões, e crescendo... – criasse uma nova anomalia no Brasil. Depois de passar por uma ditadura de 21 anos, em que os generais permitiram e/ou ordenaram a tortura, o sequestro e o assassinato de civis, muitos ainda hoje desaparecidos, a cada vez que é anunciado um novo general no governo, mais gente sente alívio. A situação no Brasil chegou a um ponto – e com apenas dois meses de governo Bolsonaro – que qualquer pessoa com aparência de adulto e aura de autoridade gera alívio mesmo que apenas alguns meses atrás gerasse pânico naqueles que sempre defenderam a democracia.
Dias atrás uma amiga de esquerda, com histórico familiar de repressão na ditadura, me contava, assustada consigo mesma, que se acalmava a cada vez que o general Hamilton Mourão abria a boca. Não é a tal Síndrome de Estocolmo, mas o fato de que a certeza de estar na mão de perversos, de adultos infantilizados, de um pai que deixa os filhos brincarem de governarem o país porque também brinca de governar o país tornou a realidade muito apavorante. Como os generais em geral falam frases com sentido, além de sujeito, verbo e predicado, e mesmo que seja um sentido do qual se discorde, até pessoas críticas têm se agarrado a esses fiapos de sanidade para conseguirem dormir à noite.
É tarde demais para dissociar a imagem das Forças Armadas da aventura arriscadíssima que é um Governo Bolsonaro
Não se pode esquecer, porém, uma possibilidade e um fato. É possível que os generais também não estejam dormindo à noite, pensando em como manter a imagem das Forças Armadas a salvo num governo em que Bolsonaro parece ser menos controlável do que acreditavam, e agora que já se tornou tarde demais para dissociar a imagem das Forças Armadas da aventura arriscadíssima que é um governo Bolsonaro.
E é um fato que a política desastrosa para a Amazônia ganhou um corpo e um rosto justamente no projeto e na propaganda da ditadura militar, nos anos 70, quando a floresta teve grandes porções destruídas e povos indígenas dizimados para abrir estradas, construir hidrelétricas e implantar grandes plantas de mineração. Esse mesmo imaginário do “deserto verde” ou “da terra sem homens para homens sem terra”, dois dos slogans da ditadura que permanecem até hoje, nos quais os povos da floresta são considerados não humanos, é ainda o que norteia os discursos do governo Bolsonaro, intimamente conectado com o agronegócio predatório que pretende avançar ainda mais sobre a Amazônia.
O modo de operação pouco familiarizado com a democracia dos militares se revelou, mais uma vez, na preocupação com o encontro que o Papa Francisco vai realizar no Vaticano, em outubro, para debater a Amazônia com 250 bispos. Como revelou a jornalista Tânia Monteiro, no jornal O Estado de S. Paulo, os militares do governo militarizado de Bolsonaro temem que o “clero progressista” da Igreja Católica possa se tornar uma referência de oposição, ocupando o vácuo deixado pela incapacidade de articulação da esquerda pós-PT.
Os militares decidiram agir para impedir que críticas ao governo Bolsonaro ganhem fórum internacional no sínodo que vai debater durante 23 dias a crise climática causada por desmatamento e as ameaças aos povos da floresta. Uma das ações será tentar convencer o governo italiano a interceder junto à Santa Sé para evitar ataques diretos à política ambiental e social do governo brasileiro durante o Sínodo sobre Amazônia.
Entre os temas do encontro global, um assunto causa particular preocupação num governo que pretende tornar comercializáveis as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas: “ O grito dos índios é semelhante ao grito do povo de Deus no Egito”. Segundo o Estadão, o general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional e supostamente o adulto com mais influência sobre o garoto Bolsonaro, saiu-se com essa: “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”. E ainda essa: “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”.
Como é fácil perceber, ainda que os generais no governo militarizado de Bolsonaro demonstrem capacidade cognitiva, o que é um alívio no quadro de indigência intelectual do ministério, claramente estão desconectados dos desafios da crise climática. Também eles demonstram acreditar viver num mundo que já não existe. Parecem tão preocupados em apagar sua intervenção criminosa no passado recente que se tornaram incapazes de enxergar o futuro logo adiante.
A Amazônia é assunto do planeta porque, sempre que o Brasil destrói a floresta, reduz as possibilidade de controlar o aquecimento global. Tanto é assunto do mundo que o Brasil recebe bilhões de reais da Noruega e da Alemanha para manter a floresta em pé. Não fosse esse dinheiro, nem mesmo atividades básicas de fiscalização do Ibama teriam sido executadas no ano passado.
Em nota, o Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo general Augusto Heleno, fez uma afirmação digna do famoso slogan da ditadura para a Amazônia – “Integrar para não Entregar”: “Parte dos temas do referido evento (Sínodo da Amazônia) tratam de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional. Por isso, reiteramos o entendimento do GSI de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia Brasileira”. O planeta realmente espera que o Brasil cuide da Amazônia, e espera há bastante tempo. Os povos da floresta, que são quem melhor a cuidam, em geral contra os interesses dos diferentes governos no poder e apesar dos sucessivos massacres, também esperam que o Brasil decida cuidar da Amazônia.
Se o Governo Bolsonaro quiser acionar a manipuladora ideia da “ameaça à soberania nacional”, pode começar suspendendo os grandes projetos de mineradoras estrangeiras na Amazônia
Se o governo militarizado de Bolsonaro quiser acionar a manipuladora “ameaça à soberania nacional”, os tais “gringos que estão invadindo a Amazônia”, que peçam antes ao presidente para suspender a presença das corporações transnacionais na Amazônia, assim como os projetos destruidores. Pode começar com a gigantesca exploração de ouro da mineradora canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu, uma catástrofe anunciada que teve como consultor o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, hoje mais uma vez à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai), num evidente conflito de interesses que, como de hábito, foi ignorado. Os povos da floresta agradecerão. Os brasileiros urbanos conscientes também.
Enquanto no Brasil é preciso debater os destinos da Amazônia neste nível primário, como se ainda vivêssemos no século 20, os estudantes se organizam para lutar pelo planeta, dando lições de cidadania a governantes muito mais velhos. Em novembro, 15 mil estudantes australianos boicotaram as aulas para dizer às autoridades públicas que era obrigatório combater o aquecimento global. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, reagiu mal: “O que queremos nas escolas é mais aprendizagem e menos ativismo”. Algo que podemos imaginar Bolsonaro dizendo com ainda piores palavras, talvez ameaçando mandar os estudantes para a “ponta da praia”, como ele costuma mencionar, referindo-se ao lugar clandestino onde eram torturados e assassinados os opositores mortos pelo regime de exceção que ele tanto exalta.
“Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”
Os jovens australianos responderam ao seu ministro com um cartaz nas ruas: “Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”. As manifestações de estudantes exigindo ações dos adultos diante da crise climática multiplicaram-se, especialmente na Europa, chegando a ter dezenas de milhares de manifestantes em países como Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça e França.
No centro dos numerosos protestos da Bélgica está uma adolescente de 17 anos chamada Anuna De Wever. Inspirada num vídeo gravado por Greta, no qual a sueca estimulava os estudantes a fazer uma greve climática diante da inércia dos adultos, ela e sua melhor amiga gravaram seu próprio vídeo. Como contou ao BuzzFedd News, esperavam apenas 20 pessoas num protesto marcado para o início de janeiro. Apareceram 3.000. E os protestos cresceram até dezenas de milhares semana após semana.
A ministra do meio ambiente da Bélgica mentiu aos estudantes e ao país, afirmando que os serviços de inteligência haviam informado que os protestos eram um complô para derrubá-la. Foi obrigada a reconhecer a mentira e a renunciar. Às autoridades desconcertadas, que tentaram justificar sua incompetência diante do maior desafio global cobrando dos manifestantes estudo e disciplina, os estudantes responderam com um cartaz bem objetivo: “Eu farei a minha lição de casa quando você fizer a sua”.
“Nossas crianças podem lidar com a verdade. Você pode?”
Quando se afirma que o governo Bolsonaro é uma vanguarda do atraso, é importante ter a dimensão de que a qualidade das lutas também determinam – e muito – a qualidade do país. Há vários anos o debate tem sido não só interditado como desqualificado no Brasil, o que é outra forma de interdição. Na semana passada, alunos e professores de escolas de vários países fizeram um protesto pela falta de conteúdos ligados à crise climática, o tema que deveria atravessar todos os outros também na sala de aula. “Ensine a verdade”, diziam os cartazes. Ou: “Nossas crianças podem lidar com a verdade. Você pode?”. Um professor comentou, durante a manifestação em Londres: “Às vezes me pergunto: qual é o sentido de ensinar quando ninguém está ensinando a verdade sobre o futuro?”.
No Brasil, os estudantes das escolas públicas precisam se rebelar para ter ensino com qualidade mínima e respeito aos seus direitos mais básicos, como aconteceu em 2015 e 2016. Os alunos brasileiros têm um dos piores desempenhos do mundo em disciplinas como português e matemática. E a maioria dos professores não ganha o suficiente sequer para viver com dignidade, quanto mais para se atualizar e estudar.
Nos dias atuais, porém, nem mesmo essa luta básica, óbvia, é possível travar, porque há que se preocupar com os falsos problemas. Um grupo de delirantes e/ou oportunistas decidiu inventar que os problemas das escolas são ideologia de gênero e outras bobagens criadas por ideólogos de extrema direita. Criaram, entre outras aberrações, o Escola Sem Partido, um projeto autoritário que toma o partido do que há de pior num momento em que todos deveriam estar concentrados nos problemas reais que arrancam as possibilidades de milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Para conseguir o que querem, eles mentem, criam notícias falsas, como as mamadeiras com bico em formato de pênis e os professores ensinando crianças a fazer surubas. A falta de caráter dessas pessoas não encontra limites. E o governo não é o limite, porque hoje eles são governo.
Assim, em vez de lutar pela educação para enfrentar a crise climática, como estão fazendo os estudantes de países de outras partes do mundo, exigindo ciência e pensamento de qualidade nas escolas, no Brasil é preciso lutar para que a teoria científica da evolução de Charles Darwin, base para a compreensão das espécies e de muito do que foi possível compreender sobre a vida desde então, continue a ser ensinada como aquilo que é, uma teoria científica – e não uma teoria alternativa ao mito religioso do criacionismo. Os cada vez mais numerosos fundamentalistas evangélicos deveriam abrir mão dos medicamentos que salvam suas vidas e dos celulares onde espalham seu ódio antes de equiparar a ciência à religião, desrespeitando a ambas.
Em vez de concentrar todos os esforços do país em melhorar a qualidade da educação, Bolsonaro está preocupado em censurar as questões do ENEM. O ministro da Educação manda um email para as escolas dizendo que os alunos precisam cantar o hino nacional no início do ano letivo, os professores devem ler uma carta que termina com o slogan da campanha de Bolsonaro e a direção deve gravar o momento despachando um trecho do vídeo para Brasília. A ministra da Mulher diz que meninas vestem rosa, meninos azul. O ministro das Relações Exteriores afirma que o aquecimento global é um complô da esquerda. O ministro do Meio Ambiente diz que a discussão sobre “se há ou não aquecimento global é secundária”. O “secundária” já seria terrível, mas ele ainda coloca dúvida sobre aquilo que é um consenso científico mundial e que cada um já consegue perceber no seu cotidiano.
No Brasil nem pelo básico se consegue lutar, mas sim para impedir que a burrice vire um tipo de verdade
Os debates importantes, os que realmente podem representar avanço para o país, têm sido adiados porque é preciso se defender dessa gente que lança frases sem lastro na realidade, mas que hoje têm poder para afirmar mentiras como verdades. As melhores mentes do país são obrigadas a concentrar esforços em descobrir uma maneira de impedir que delírios virem lei. E enquanto isso o Brasil perde e perde e perde. Já não é mais nem pelo básico que se luta, mas para impedir que a realidade seja convertida num delírio. Luta-se também para que as palavras recuperem seu significado.
Os estudantes brasileiros, pela importância do Brasil na redução das emissões de gases que provocam o aquecimento global, deveriam ter protagonismo na greve climática marcada para 15 de março. Mas até este momento não têm. Porque vivem num país em que os adultos no poder são tão precários, mas tão precários, que é preciso explicar para o ministro do Meio Ambiente que não há nada mais importante neste momento histórico do que saber quem é Chico Mendes. É preciso ficar repetindo e repetindo o óbvio para que a estupidez não vire inteligência.
Os estudantes suíços, por exemplo, estão exigindo que nenhuma escola use aviões em suas excursões de estudos, já que voar tem grande impacto sobre o meio ambiente. A própria Greta, que parou há anos de comer carne e de comprar qualquer coisa que não seja absolutamente essencial, deixou de voar em 2015. Desde que a filha começou a se preocupar com a crise climática, sua mãe, uma famosa cantora de ópera, desistiu da carreira internacional por conta da pegada de carbono da aviação. A pergunta é óbvia: como debater questões como estas, num país como o Brasil, em que estudantes têm dificuldade para chegar à escola por falta de transporte?
Talvez começando por entender que é obrigatório debater. Acreditar que a crise climática é um tema para estudantes ricos de países ricos é um erro. E um erro perigoso. Enfrentar a crise climática não é luxo, é necessidade urgente de todos. Nada aumentará mais a desigualdade e atingirá os mais pobres do que a crise climática. O aquecimento global atravessa todos os temas e todas as áreas, inclusive a racial e a de gênero. No Brasil, possivelmente as mais afetadas serão as mulheres negras, o contingente mais frágil e oprimido da população. É isso que as crianças e adolescentes estão dizendo. Mas, também por deficiência de educação, e não só nas escolas públicas, a maioria dos estudantes brasileiros tem dificuldade para fazer as conexões e compreender que, ao lutar pela floresta amazônica, estará lutando pela redução da desigualdade e por mais acesso aos recursos e às políticas públicas.
As mulheres, e principalmente as negras, serão as mais afetadas pela crise climática
Nos Estados Unidos, a greve pelo clima de 15 de março está sendo organizada em sua maioria por meninas, muitas delas negras. A Organização Mundial da Saúde já mostrou que as mulheres serão as mais atingidas pelos desastres naturais causados pelo aquecimento global e também serão as mais atingidas porque em muitas sociedades ainda cabe a elas a responsabilidade de conseguir água, energia e alimento. São também as mulheres as primeiras a perderem oportunidades quando os recursos naturais se tornam escassos. “Se você é vítima de um sistema de opressão, você é mais afetado pela crise climática. E isso vale para as mulheres", disse Jamie Margolin, uma ativista climática americana de 17 anos, ao BuzzFeed News. “Temos que nos levantar e levantar nossas vozes.”
Há uma particularidade que torna o enfrentamento da crise climática ainda mais difícil no Brasil. O crescimento acelerado dos evangélicos neopentecostais nas últimas décadas fortaleceu a crença no apocalipse bíblico. Para uma parcela deles, que apoiou massivamente a eleição de Bolsonaro, as catástrofes provocadas pelo aquecimento global não foram causadas por ação humana, mas sim estão previstas na Bíblia como os acontecimentos que prenunciam o Armagedom. Ou, mesmo que tenham sido causadas por ação humana, já estava escrito. É bastante possível que seus líderes não acreditem nisso, apenas usem uma interpretação literal da Bíblia para melhor controlar os corpos e barganhar poder. Mas há uma massa de fiéis que acredita. E que cresce.
Uma linha dos evangélicos acredita que as catástrofes provocadas pelo aquecimento global são profecias bíblicas que prenunciam o apocalipse
Tudo o que pode ser visto como catástrofe climática causada pelo uso de combustíveis fósseis, para essa linha do evangelismo é apenas cumprimento da profecia bíblica. São eles que pressionam para mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, porque esta cidade seria o palco do Armagedom. Mais uma vez é preciso sublinhar que os articuladores desta ideia têm interesses bem mais imediatos e mundanos, que revestem com uma retórica bíblica para santificar o que é totalmente terreno.
Não é permitido esquecer que Bolsonaro foi batizado no Rio Jordão, em Israel, em 2016, e que pastores como Silas Malafaia promovem excursões para Israel. Para esta camada de evangélicos que só cresce no Brasil, a catástrofe é bem vinda, já que eles têm certeza que serão salvos porque são os únicos puros. Salvar-se, portanto, seria apenas uma questão de ter a fé certa. A deles, claro. Como então demandar razão neste país? Talvez seja preciso avisá-los que o rio Jordão está se tornando mais e mais estreito devido à seca causada pela crise climática. Se o processo continuar, logo será preciso encontrar outro rio para batismos espetaculares.
Se as novas gerações (e também as velhas) dos povos da floresta fossem escutadas, elas poderiam dar aula para os estudantes que se rebelam pelo clima na Europa. Também na Amazônia o protagonismo das mulheres nas lutas de indígenas, quilombolas e beiradeiros é cada vez maior – e as lideranças são cada vez mais jovens. O profundo conhecimento dos povos da floresta, imprescindível para enfrentar a crise climática, e a rebelião que sua luta representa, porém, têm sido sistematicamente caladas. O projeto de Bolsonaro, como ele afirmou várias vezes, é que indígenas e quilombolas se tornem “ser humano como nós”. Se o “nós” é ele, pode se imaginar o ganho de conhecimento que as gerações da floresta terão.
Sem a maior floresta tropical do mundo, a vida humana no planeta não tem nenhuma chance. No Brasil, como nos outros países amazônicos da América Latina, os povos da floresta estão lutando quase sozinhos para mantê-la em pé. E morrendo. Os filhos destes lutadores têm precisado assumir a luta dos pais assassinados. As jovens garotas que lideram a rebelião dos estudantes pelo clima na Europa têm o desafio de fazer a ponte com as jovens garotas da floresta amazônica, o centro geográfico onde o futuro próximo está sendo disputado. E vice-versa.
Jovens lideranças femininas da greve climática global levam para a luta a potência política de suas diferenças
Greta Thunberg e Anuna De Weve, duas das principais lideranças estudantis na Europa, trazem muitas novidades ao ativismo climático. Greta, a garota que inspirou dezenas de milhares de estudantes a se unir pelo clima, tem diagnóstico de transtorno do espectro do autismo. Embora não tenha sido esse o objetivo, seu ativismo pelo clima mostra a potência política de uma diferença. Em entrevista à revista NewYorker, ela disse: "Eu vejo o mundo um pouco diferente, a partir de outra perspectiva. Tenho um interesse especial. É muito comum que as pessoas, no espectro do autismo, tenham um interesse especial. Posso fazer a mesma coisa por horas”. Ou por anos, como já ficou provado.
Anuna é menina na certidão de nascimento, tornou-se menino durante a escola fundamental e hoje se define como “gênero fluido” e prefere os pronomes femininos. Ela relaciona a luta pelo clima diretamente com a identidade de gênero. Aquilo que para muitos é imutável, para ela é possível mudar, percepção que parte da sua própria experiência de ser. "Ter gênero fluido sendo jovem faz com que eu veja o mundo um pouco diferente", disse. "Eu não olho para o mainstream e o que eles pensam. Começo a ter meus próprios valores, princípios próprios, e penso no que não está dando certo neste mundo e o que posso fazer e melhorar em vez de apenas fechar os olhos.”
Velhos ativistas do clima estão perplexos – e animados. “O movimento que Greta lançou é uma das coisas mais esperançosas em meus 30 anos de trabalho na questão climática. Ela lança o desafio geracional do aquecimento global e desafia adultos a provar que são, na verdade, adultos”, disse Bill McKibben, fundador da 350.org, ao The Guardian.
As crianças reivindicam aos adultos que se “adultizem”
Num mundo em que as decisões ainda são majoritariamente tomadas por homens, as garotas levantaram a voz. Os milhares de meninos de sua geração que vão para a rua com elas não parecem ter problemas com o protagonismo feminino dos protestos. Meninas como Greta, Anuna e outras tantas, porque elas são muitas, não querem ocupar o lugar dos adultos. Não é disso que se trata. O que elas querem talvez seja ainda mais difícil. Ao denunciar a infantilização dos governantes, ela reivindicam que os adultos se “adultizem”.
O afiado cronista brasileiro Nelson Rodrigues, que era também um exímio frasista, ao ser perguntado que conselho daria aos jovens, disse: “Envelheçam!”. As crianças que estão sendo obrigadas a tomar conta do mundo dizem hoje aos adultos: “Cresçam!”.
Chegamos a este ponto: as crianças precisam pedir aos adultos que sejam adultos. Que tenham limites e se responsabilizem. Ou, em suas palavras: “Parem de cagar no planeta em que vamos viver”.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum