Eleições
Cristovam Buarque: O pior déficit
O Congresso Nacional se prepara para saltar da responsável aprovação do teto nos gastos públicos para a irresponsável aprovação do desvio de R$ 3,6 bilhões, com o objetivo de financiar as campanhas eleitorais no próximo ano. Um dia, preocupado, o povo assiste ao presidente da República dizer que o Brasil sofre a falência dos serviços públicos por falta de dinheiro; no outro, perplexo, assiste que haverá dinheiro para financiar campanha milionária: R$ 2 milhões por eleito — deputados federais e estaduais, governadores, presidente; R$ 30 pagos por eleitor. Ao assistir a estes dois fatos — falta de dinheiro para os serviços e dinheiro sobrando para as eleições —, o povo desacredita ainda mais de seus governantes, sobretudo depois do reconhecimento de um déficit de R$ 159 bilhões em 2017.
A oposição também fica desacreditada ao tratar o povo como se ele não soubesse que este déficit foi provocado sobretudo pela irresponsabilidade de seu período no governo. Chega a ser cínica a afirmação de que este custo das eleições é pequeno, quando sabemos que seria suficiente para enfrentar as dificuldades da nossa ciência e tecnologia, por exemplo. Também é cinismo dizer que a democracia exige estes gastos, sem levar em conta que nossas eleições estão entre as mais caras do mundo; ou ainda ao dizerem que o recurso sairá das emendas de parlamentares, quando este dinheiro é pago pelo contribuinte, e as emendas dirigidas para atender necessidades da população.
Graças ao teto dos gastos, o povo sabe que o dinheiro é curto e será tomado dele para financiar as campanhas, caracterizando uma corrupção nas prioridades. É uma vergonha dizer que este gasto é necessário para fortalecer a democracia: não há democracia sem políticos com credibilidade e não há credibilidade em um Parlamento cujos membros um dia aprovam um necessário teto de gastos, e no outro continuam fazendo uma das mais caras eleições do mundo, sem dar exemplos próprios de austeridade. O Congresso devia determinar medidas que reduzam o custo das campanhas e que elas sejam financiadas pelos filiados e simpatizantes dos partidos e dos candidatos.
Além dos elevados gastos de campanha, o governo precisa dar exemplos: acabando com remunerações acima do já elevado teto salarial que equivale a 35 vezes o salário mínimo do trabalhador; precisa determinar que nenhum de seus dirigentes acumule salários, como aposentadorias; acabar com mordomias e subsídios pessoais. São gestos que têm pouco impacto fiscal, mas um imenso impacto moral. O Brasil não supera sua crise se seus dirigentes não derem o exemplo. E os políticos estão na contramão ao apresentar uma proposta de reforma política que, além de piorar o maldito sistema atual, desvia recursos públicos para campanha eleitoral. Pior que o déficit fiscal é o déficit moral. E esta reforma eleitoral está ampliando essa escassez e comprometendo nossa democracia, no lugar de fortalecê-la. (O Globo – 19/08/2017)
Luiz Carlos Azedo: Descida da ladeira
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado, a sucessão de 2018 vai para a rua.
É bom o Palácio do Planalto verificar os freios, porque começou a descida de uma sinuosa ladeira, que pode ser suave se o trem não descarrilar numa das curvas que nos levam às eleições de 2018. Ontem, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que o governo não tem os votos mínimos para aprovar a reforma da Previdência no plenário. Defende a reforma, mas a prioridade dos integrantes da base do governo, depois de salvarem o presidente Michel Temer do afastamento, é cuidar da própria eleição. “Hoje, nós não temos voto para aprová-la, e eu estou deixando bem claro isso entre os líderes”, disse.
A reforma precisa de 308 votos dos 513 deputados para ser aprovada no plenário da Câmara. O relatório do deputado Arthur Maia (PPS-BA), apesar de amplamente negociado e com consistência técnica, nunca teve apoio suficiente para ser aprovado. Estava chegando perto disso quando foi anunciada a delação premiada do empresário Joesley Batista, que gravou Temer numa conversa no Palácio do Jaburu e descarrilou, para usar a linguagem ferroviária. A prioridade do governo mudou, passou a ser salvar o presidente da República à custa da negociação de cargos no governo e distribuição de verbas para a banda mais fisiológica do Congresso.
Passado o sufoco, o Palácio do Planalto deparou-se com uma nova realidade. A eleição de 2018 está logo ali para os deputados. Eles voltaram do recesso assustados com o desgaste político causado pela votação que rejeitou a denúncia do Ministério Público contra Michel Temer e mudaram de prioridade: em vez de reformas necessárias, que consideram impopulares, mudanças nas regras do jogo das eleições para garantir seus mandatos. Como? Com o “distritão”, que dispensa o voto de legenda e maiores composições partidárias, e o “fundão” de R$ 3,6 bilhões, com o qual poderão formar seus exércitos eleitorais, já que os partidos estão cada vez mais desgastados e com lideranças queimadas. Não é à toa que muitos senadores acompanham com lupa a reforma, pois concorrerão à Câmara e não ao Senado, por falta de apoio para disputar eleições majoritárias.
Maia registrou a insatisfação da base do governo após uma reunião com os ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo Oliveira, além de deputados líderes de bancada na Câmara. A pauta foi o desajuste fiscal do governo, que havia hasteado a bandeira da austeridade e aprovado a Lei de Teto de Gastos, sobre a qual ainda repousa a credibilidade da equipe econômica. Politicamente correto, o presidente da Câmara destacou a importância da reforma: “A mais estruturante, a mais definitiva, aliás, a única definitiva”.
Não será fácil garantir os votos porque a maioria dos deputados está de olho mesmo na reforma política, com seu “fundão” de R$ 3,6 bilhões para gastar nas eleições. A comissão especial da Câmara que analisou a reforma política concluiu ontem a votação do relatório, que agora seguirá para análise do plenário. Emenda à Constituição, a proposta também deve passar por dois turnos e obter em cada um o apoio mínimo de 308 dos 513 deputados. Se for aprovada, seguirá para o Senado. Essa é a prioridade, que promete ainda algum barulho, porque a repulsa da sociedade aos políticos só aumentou. É que as mudanças para valerem nas eleições de 2018 precisam ser aprovadas na Câmara e no Senado até 7 de outubro. E esse trem tem preferência de tráfego.
Sucessão
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado (Meirelles anunciou ontem a necessidade de o Congresso aumentar a meta de deficit para R$ 159 bilhões neste ano e no próximo), a sucessão de 2018 vai para a rua. Tucanos se bicam no ninho com dois candidatos paulistas, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito João Doria. Ambos estão em campanha aberta para atrair o PMDB e o DEM como aliados. As chances de alguém voar do ninho para outra legenda não é pequena.
Lula já pôs a caravana na rua faz tempo, mas sua campanha é híbrida: trata-se de uma blindagem contra a Operação Lava-Jato e, ao mesmo tempo, uma alternativa de poder. À sombra de Lula, o ex-prefeito Fernando Haddad se movimenta para ser o “regra três” ou virar vice de Ciro Gomes (PDT), o que parece ser o plano B do ex-presidente da República se for impedido de disputar as eleições pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. Hoje, quem polariza com Lula é Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que ocupa o espaço do chamado “partido da ordem” com um discurso de extrema-direita. À esquerda, Marina Silva tenta domar a Rede e recuperar o espaço que ocupava há duas eleições. Álvaro Dias, do Podemos, já está em campanha, e outra estrela do Senado, o senador Cristovam Buarque (DF), colocou o seu nome à disposição do PPS para disputar a Presidência.
Luiz Carlos Azedo: A revoada dos perus
O “distritão” seria um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”
A aprovação do chamado “distritão” (depois explico) e do fundo de financiamento eleitoral de R$ 3,6 bilhões pela comissão especial que discute a reforma política na Câmara pode despertar forças que estavam adormecidas desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a começar pelo movimento Vem Pra Rua, que convocou manifestação de protesto para 27 de agosto intitulada “Marcha Contra a Impunidade”, em todo o país. A reação às duas propostas é tão forte que alguns políticos já estão se descolando da reforma, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que criticou os dois projetos.
Na Câmara, a reação de grande número de deputados parece uma revoada de perus às vésperas da ceia de Natal, para voltar à analogia avícola. Todos os deputados que se sentiram ameaçados pelo “distritão” (sistema no qual são eleitos os deputados mais votados, independentemente da votação de sua legenda) estão contra a mudança. São em número suficiente para barrar a emenda constitucional que viabilizaria a medida. O “distritão” é um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”, digamos assim.
O novo sistema está sendo criado para viabilizar a reeleição dos atuais deputados e blindar os políticos enrolados na Operação Lava-Jato. Não é o caso aqui, mas seria um bom exercício checar a lista de votação das eleições passadas e verificar quem hoje manteria o mandato e quem o perderia. No caso de São Paulo, por exemplo, seriam beneficiados os 70 mais votados; de Minas, os primeiros 53; do Distrito Federal, oito. Os votos nos demais candidatos da legenda seriam desprezados, o que mudaria completamente as características da Câmara, que bem ou mal representa hoje 100% do nosso eleitorado.
Deve-se ao diplomata e jurista Assis Brasil a criação do atual sistema proporcional, idealizado em 1932, mas somente sacramentado na Constituinte de 1945. Fundador do Partido Libertador, com Raul Pilla, só apoiou a Revolução de 1930 porque Getúlio Vargas havia se comprometido a aceitar o voto secreto. “Menino, todo homem tem seu preço. O venal se deixa comprar por dinheiro. O meu preço é o Código Eleitoral. E como vale mais a pena ladrar dentro de casa do que fora dela, aceito o ministério”, disse, ao justificar sua breve passagem pelo Ministério da Agricultura no Governo Provisório, ao qual renunciou em protesto pelo empastelamento do Diário Carioca.
Na sua obra Democracia representativa: do voto e do modo de votar, Assis Brasil antevia uma “máquina de votar”, o que seria hoje a nossa urna eletrônica. No sistema proporcional, cada estado (ou distrito eleitoral) elege um determinado número de representantes de acordo com sua população. O objetivo do sistema proporcional é garantir um grau de correspondência entre votos e cadeiras recebidas pelos partidos em uma eleição. Por exemplo, um partido que tenha recebido 15% dos votos teria direito a cerca de 15% das cadeiras. Nesse sistema, o partido apresenta uma lista de candidatos para as eleições; a distribuição das cadeiras é feita de acordo com os votos dados em cada lista.
Mas há outros métodos, como o voto distrital clássico, no qual o estado seria dividido em vários distritos, e cada distrito elegeria um deputado por maioria simples, isto é, 50% dos votos mais um. Assim, o candidato mais votado é eleito. E o distrital misto, uma combinação do voto proporcional e do voto majoritário. Neste caso, os eleitores têm dois votos: um para candidatos no distrito e outro para as legendas (partidos). Os votos em legenda (sistema proporcional) são computados em todo estado ou município, conforme o quociente eleitoral (total de cadeiras divididas pelo total de votos válidos). Já os votos majoritários são destinados a candidatos do distrito, escolhidos pelos partidos políticos, vencendo o mais votado.
“Fulanização”
O sistema proporcional teve como objetivo viabilizar a existência dos partidos, num país que emergia do Estado Novo e cuja tradição de “fulanizar” a política é tão velha como o costume de comer castanhas e perus na ceia de Natal. Essa cultura vem das primeiras câmaras municipais, que surgiram a partir de 1532. Eram compostas por 3 ou 4 vereadores, denominados “homens-bons”, geralmente grandes proprietários de terras. Escravos, judeus, estrangeiros, mulheres e degredados não podiam se tornar vereadores.
Essa “fulanização” era mais do que presente na época da Constituinte de 1945, na qual um mito político deixava o poder, Vargas, e outro era libertado da prisão, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, de mãos dadas pelo “queremismo” (Constituinte com Getúlio), que fracassou. No século passado, ambos foram “reencarnações” do nosso velho sebastianismo, movimento místico secular que surgiu após a morte do rei português D. Sebastião, durante a batalha de Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Como não possuía herdeiros, o trono de Portugal ficou sob o controle do rei Filipe II, da Espanha.
Como o corpo de D. Sebastião nunca foi encontrado, o sebastianismo se traduziu na esperança da vinda de um salvador, em meio à inconformidade e ao sentimento de insatisfação com a situação política da época, mesmo que para isso acontecer fosse necessário um verdadeiro milagre, como a ressurreição do rei morto. No Brasil, o sebastianismo influenciou movimentos populares desde o Rio Grande do Sul até o Norte do país, sendo representado como alegoria nas folias de reis, principalmente no Nordeste. Não é exagero dizer que o “distritão” leva água para esse moinho.
Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos
Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira
A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.
Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.
No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.
De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.
A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.
Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.
Depois do golpe
Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.
Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.
O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.
Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.
Fernando Henrique Cardoso: Convicção e esperança
É hora de sonhar com 2018, deixar de lado o desânimo e preparar o futuro
Escrevo antes de saber o resultado da votação pela Câmara da autorização para o STF poder julgar a denúncia oferecida pelo procurador-geral contra o presidente da República. É pouco provável que a autorização seja concedida. Houve precipitação da Procuradoria, que fez a denúncia sem apurações mais consistentes. Entretanto, para o que desejo dizer, pouco importa a votação: a denúncia em si mesma e a fragmentação dos partidos no encaminhamento da matéria já indicam um clima de quase anomia, no qual algumas instituições do Estado e os partidos políticos se perderam.
Esta não é uma crise só brasileira. Em outros países onde prevalecem sistemas democrático-representativos também se observa a descrença nas instituições, por seu comportamento errático, sobretudo no caso dos partidos. Mesmo nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França – países centrais na elaboração de ideologias democráticas e na formação das instituições políticas correspondentes – se nota certa falta de prestígio de ambas. Não falta quem contraste as deficiências dos regimes democráticos com as supostas vantagens dos regimes autoritários e mesmo ditatoriais.
O contraste é falacioso, sobram exemplos de ineficiência nos regimes autoritários, sem falar na perda da liberdade, individual e pública, cujo valor não pode ser medido em termos de eficiência dos governos. Nem faltam casos para mostrar o quanto podem levar ao desastre os regimes que de autoritários passam a ditatoriais, como na Turquia atual ou, mais impressionantemente ainda, na Venezuela, onde acontece um verdadeiro horror perante os céus. Nela, a inexistência das garantias democráticas se soma ao descalabro econômico-financeiro.
Não é, contudo, o caso do Brasil. Houve, é certo, a perda de controle das finanças públicas pelo governo anterior. Mas nunca se chegou a ameaçar diretamente a democracia. Aqui o que houve foi a generalização e a sacralização da corrupção, com as ineficiências decorrentes, aprofundando a perda de confiança popular no governo e na vida política. Nesse sentido, estamos imersos num mar de pequenos e grandes problemas e tão atarantados com eles que somos incapazes de vislumbrar horizonte melhor. É isso o que mais me preocupa, a despeito da gravidade tanto dos casos de corrupção quanto dos desmandos que vêm ocorrendo.
Falta alguém dizer como De Gaulle disse quando viu o desastre da Quarta República francesa e a derrocada das guerras coloniais: que era preciso manter uma “certa ideia da França” e mudar o rumo das coisas. Aqui e agora, guardadas as proporções, é preciso que alguém – ou algum movimento – encarne uma certa ideia de Brasil e mude o rumo das coisas. Precisamos sentir dentro de cada um de nós a responsabilidade pelo destino nacional. Somos 210 milhões de pessoas, já fizemos muito como país, temos recursos, há que voltar a acreditar no nosso futuro.
Diante do desmazelo dos partidos, da descrença e dos fatos negativos (não só a corrupção, mas o desemprego, as desigualdades e a falta de crença no rumo) é preciso responder com convicções, direção segura e reconstrução dos caminhos para o futuro. Isso não significa desconhecer que existam conflitos, incluídos os de classe, nem propor que política se faça só com “os bons”. Significa que chegou a hora de buscar os mínimos denominadores comuns que nos permitam ultrapassar o impasse de mal-estar e pessimismo.
Infelizmente, os partidos, sozinhos, não darão respostas a essa busca. O quadro desastroso – quase 30 partidos atuando no Congresso, separados não por crenças, mas por interesses grupais que se chocam na divisão do bolo orçamentário e no butim do Estado – isola as pessoas e os líderes, enclausurando-os em partidos que se opõem uns aos outros sem que se veja com clareza o porquê.
Penso que o polo progressista, radicalmente democrático, popular e íntegro precisa se “fulanizar” numa candidatura que em 2018 encarne a esperança. As dicotomias em curso já não preenchem as aspirações das pessoas: elas não querem o autoritarismo estatista nem o fundamentalismo de mercado. Desejam um governo que faça a máquina burocrática funcionar, com políticas públicas que atendam às demandas das pessoas. Um governo que seja inclusivo, quer dizer, que mantenha e expanda as políticas redutoras da pobreza e da desigualdade (educação pública de maior qualidade, impostos menos regressivos, etc.); que seja fiscalmente responsável, atento às finanças públicas, e ao mesmo tempo entenda que precisamos de maior produtividade e mais investimento público e privado, pois sem crescimento da economia não haverá recuperação das finanças públicas e do bem-estar do povo.
Um governo que, sobretudo, diga em alto e bom som que decência não significa elitismo, mas condição para a aceitação dos líderes pelos que hão de sustentá-los. Brizola, referindo-se a Lula, disse que ele era a “UDN de macacão”, lembrando a pregação ética dos fundadores do PT. Infelizmente, Lula despiu o macacão e se deixou engolfar pelo que havia de mais tradicional em nossa política: o clientelismo e o corporativismo, tendo a corrupção como cimento. Não é desse tipo de liderança que precisamos para construir um grande País.
Ainda que venham a ocorrer novos episódios que ponham em causa o atual governo, e melhor seria que não houvesse, de pouco adianta substituir quem manda hoje por alguém eleito indiretamente: ao líder faltaria o sopro de legitimidade dado pelo voto popular, necessário para enfrentar os desafios contemporâneos. É tarde para chorar por impeachments perdidos ou por substituições que nada mudam. É hora de sonhar com 2018 e deixar de lado o desânimo. Preparemos o futuro juntando pessoas, lideranças e movimentos políticos num congraçamento cívico que balance a modorra dos partidos e devolva convicção e esperança à política.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi Presidente da República.
Alon Feuerwerker: Três anos depois, a elite política blinda-se sob a indiferença geral
O termo “histórico” anda banalizado, mas a vitória de Michel Temer na Câmara dos Deputados na quarta-feira foi histórica, sem aspas. Após três anos de Lava-Jato, o mundo da política conseguiu quebrar a lógica do último quarto de século, lógica que prevalecia desde o impeachment do presidente Fernando Collor.
Até 2 de agosto de 2017 a coisa funcionava assim: 1) dificuldades econômicas enfraqueciam um governo sem ampla base parlamentar, 2) apareciam acusações de corrupção, 3) a imprensa entrava em modo de militância, 4) a classe média ia para a rua, 4) produzia-se unanimidade de opinião pública, 5) o Congresso acompanhava e 6) o governo caía.
Por que não funcionou agora? 1) A Lava-Jato quer dizimar todas as facções, 2) isso induz solidariedade do universo político ao governo, 3) este encampa uma agenda popular para a elite, apesar de impopular nas massas, agenda que enfrentaria resistência numa eleição, 4) questões concorrenciais impedem a unanimidade na imprensa, 5) a inflação mergulhou.
Quem elege governos é o assim chamado povo, mas quem derruba governos são aparelhos estruturados, em geral controlados pela elite. O governante que impede o alinhamento desses aparelhos dificilmente cai, ainda mais quando consegue, pelo menos, a indiferença popular. E, no Brasil, se um governo controla a inflação tem meio caminho andado no último quesito.
As pesquisas mostram ampla rejeição ao presidente da República, mas uma coisa é achar que ele deve sair e outra coisa é decidir engajar-se num movimento pela sua deposição. “Movimento espontâneo” é história da carochinha. Para haver mobilização de massa é preciso ter quem a mobilize e ela estar propensa a mobilizar-se. Sem isso, nada feito.
Mas, e agora? Está tudo resolvido? Não. A guerra não acabou. O desfecho dela está dado, mas ela não acabou. Isso significa que haverá mais vítimas no universo político. E, principalmente, no empresarial. Se é verdade que o alto mundo da política está razoavelmente blindado, é fato também que a Lava-Jato mantém momentum e muita liberdade de ação.
A Lava-Jato reuniu um conjunto de informações que lhe dá combustível para voar por muito tempo. Então, a guerra entrará numa nova etapa, algo parecida com a crise de 2005/06: os fatos continuarão em fluxo contínuo, mas o efeito político imediato será relativo. Políticos morrerão? Sim. Mas a cadeia de comando do exército da política estará preservada.
A correlação de forças inocula estabilidade no poder. Quem pode derrubar o governo? A Lava-Jato. Que setor ponderável da política ou do empresariado está disposto a fortalecer a Lava-Jato ao ponto de ela reunir musculatura para derrubar o governo? Hoje, nenhum. De novo, só o imponderável pode mudar isso. Mas ele já andou aparecendo e não resolveu.
E as reformas?
A política pagará a dívida de sangue com a elite econômica e aprovará alguma reforma da previdência social, como der. Se não por emenda à Constituição, por outro meio. O governo tem hoje uma base firme em torno de 260 deputados e 50 senadores. Tentará ampliar isso, e colocará para votar o que for possível, de acordo com a força medida.
E a economia?
Tudo indica que a economia chegará a 2018 em situação medíocre. A submissão do Executivo ao Parlamento impedirá uma linha real de austeridade e a recessão de facto levará a sucessivas frustrações de receita. As providências ficarão em boa parte para o próximo governo, o que fará das medidas econômicas o eixo da campanha presidencial.
E a eleição?
Na esquerda, o nome será Lula ou um candidato de Lula, o que no final tende a convergir. Na direita, a vantagem hoje parece estar num eventual nome apoiado por Temer e pela ala temerista do PSDB, com a adesão do Democratas. No final, a disputa será esquerda x direita. A primeira sofrerá com o isolamento. A segunda, com o ônus da mediocridade econômica.
Temer passa à ofensiva
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para mobilizar o apoio dos agentes econômicos, anunciou que o governo pretende aprovar a reforma da Previdência até outubro
Livre da denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, até o fim de seu mandato, o presidente Michel Temer pretende passar à ofensiva no Congresso, com objetivo de aprovar uma extensa pauta legislativa, cujo nó górdio é a reforma da Previdência. O Palácio do Planalto conseguiu mobilizar o apoio de 263 deputados para congelar a investigação, mas precisará de pelo menos 308 votos para aprovar essa reforma, considerada crucial para restabelecer o equilíbrio das contas públicas. Para isso, acena para os dissidentes da base do governo com a promessa de perdão por terem votado a favor de seu afastamento.
Ontem, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para mobilizar o apoio dos agentes econômicos, anunciou que o governo pretende aprovar a reforma da Previdência até outubro. Meirelles minimizou a diferença de votos a ser alcançada. “São decisões diferentes. Acreditamos sim na viabilidade de aprovação”, disse. Na prática, são 45 deputados que precisam ser conquistados se não houver nenhuma defecção na base hoje existente. Mas anunciou também que o governo pretende aprovar a reforma tributária ainda este ano, o que não é fácil.
O maior aliado de Temer para aprovação das reformas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não compartilha o mesmo otimismo, embora esteja engajado plenamente nessa agenda. Maia comemorou a rejeição da denúncia, mas disse que o resultado não era bom para as reformas pelo fato de que a manifestação a favor de Temer não alcançou o quórum equivalente ao de aprovação de emendas constitucionais. De certa forma, revelou certa surpresa com o número de votos contra Temer.
O PSDB rachou na votação da denúncia contra o presidente Michel Temer: dos 47 deputados da bancada, 22 votaram a favor do presidente e 21, contrários. Quatro estavam ausentes. Esse resultado fragilizou a posição do PSDB na Esplanada, sendo que a pasta das Cidades, ocupada pelo deputado Bruno Araújo (PE), é o objeto de desejo do chamado Centrão (PP, PR, PSD e PTB), que reúne 142 deputados. Mas o grupo também não votou monoliticamente: houve 32 deputados dissidentes, sendo 14 do PSD, cuja bancada tem 38 deputados. No PMDB, somente sete dos 63 deputados votaram contra Temer, mesmo com o partido fechando questão. Temendo punição, já procuram outras legendas.
No caso dos tucanos, a tensão na legenda é grande. O presidente interino, Tasso Jereissati (CE), ontem, disse que a permanência dos ministros tucanos no governo é um problema do presidente da República e não da legenda, que não precisa de cargos para aprovar as reformas. O senador Aécio Neves (MG), licenciado da presidência da legenda por causa da Lava-Jato, foi um dos artífices da vitória de Temer. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, passou a defender publicamente o desembarque do governo. Segundo ele, a permanência do PSDB na administração federal perderá o sentido depois da reforma da Previdência.
Reforma política
Uma extensa agenda legislativa já está definida para o Congresso, mas a intenção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-EJ), é pôr em votação na próxima semana a reforma política. As principais propostas em discussão são a instituição do financiamento público de campanhas; o sistema de listas partidárias preordenadas para as eleições proporcionais; o fim das coligações; a perda de mandatos majoritários por infidelidade partidária; e cláusula de barreira. A proposta mais polêmica em discussão, porém, é a criação do chamado “distritão”, uma jabuticaba plantada pelo presidente Michel Temer quando ainda era vice da presidente Dilma Rousseff.
O “distritão” acaba com a eleição proporcional, em vigor desde as eleições de 1945, e absolutiza o voto uninominal. Serão eleitos os deputados mais votados em cada estado, independentemente da votação de seus respectivos partidos. Não é fácil a aprovação dessa proposta no plenário da Câmara, porém, porque a mudança altera profundamente as condições para a reeleição dos atuais parlamentares, acostumados com as regras atuais. Outra discussão aberta com a reforma política é a adoção do parlamentarismo. O impeachment de Dilma Rousseff e as agruras de Michel Temer, que assumiu seu lugar, para muitos parlamentares, são a demonstração de que o chamado presidencialismo de coalizão é um sistema falido, que joga o país em longas crises quando o governo perde sua base parlamentar.
O eleitor espreita
A mais de um ano das eleições, os políticos não querem ficar no sereno. Precisam da máquina estatal para fazer política nos seus estados e municípios
Uma das características da política brasileira é o fato de que somos uma democracia de massas, do ponto de vista da escala de eleitores e do voto direto, secreto e universal; ao mesmo tempo, temos um sistema eleitoral e partidário que bloqueia o seu desenvolvimento no sentido da renovação de costumes políticos, o que nos faz presas fáceis do patrimonialismo e do clientelismo. Esse tipo de contradição já nos levou a algumas rupturas institucionais e, neste momento, submete a duro teste de resistência o regime constitucional vigente desde 1988, pois as vísceras da nossa política estão expostas pela Operação Lava-Jato.
Na verdade, é um velho dilema nacional: de um lado, a política controlada pelas elites; de outro, a sociedade civil, na qual os cidadãos têm um caminhão de direitos, mas permanecem na arquibancada. É aí que surge um fenômeno que marca o nosso desenvolvimento: a busca de espaços na estrutura do Estado para influir nos destinos do país, uma vez que os partidos políticos mantêm a sociedade à margem da política.
A crise na base do governo Temer reflete isso. Em circunstâncias normais, um governo com 5% de aprovação popular não teria a menor chance de sobreviver, mas não é o que acontece. A mais de um ano das eleições, os políticos não querem ficar no sereno. Precisam da máquina estatal para fazer política nos seus estados e municípios.
Muito provavelmente, o Palácio do Planalto conseguirá barrar a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente da República, cuja admissibilidade está na pauta do Congresso para ser votada, quiçá amanhã mesmo. Se houver quórum para votação, bastará Temer ter um de 342 votos para os governistas rejeitarem a proposta. Por essa razão, setores da oposição não pretendem dar quórum para votação enquanto não estiverem em número superior a isso, o que é improvável. Previsões conservadoras do Palácio do Planalto garantem que há pelo menos 250 deputados federais fiéis a Temer.
O imponderável
Historicamente, no Brasil, o liberalismo tem duas vertentes: uma conservadora, que evoluiu do escravagismo para o neoliberalismo; e outra radical-democrática, que evoluiu do abolicionismo republicano para o nacional-desenvolvimentismo. Mas é o positivismo castilhista que acabou levando a melhor na configuração do Estado brasileiro, graças à Revolução de 1930 e ao golpe de 1964. Por causa disso, a forte presença na máquina pública, desde a República Velha, é o principal instrumento de participação política para as camadas “mais esclarecidas” da população.
Positivistas reconhecem os direitos civis e sociais da grande massa trabalhadora, mas não valorizam e prestigiam a democracia representativa. Preferem atuar como poderosas corporações na máquina administrativa ou como “tecnocratas sem partido”. Apostam no paternalismo e na intervenção do Estado para resolver os problemas da sociedade. Há que se considerar também o fato de que o positivismo no Brasil desaguou no nacional-populismo. Sua recidiva mais recente ocorreu nos governos Lula e Dilma, nos quais o jacobinismo foi abduzido pelo “transformismo” petista.
A redemocratização do país, com a Constituição “Cidadã” de 1988, ampliou tremendamente os direitos sociais — desenhou um Estado de bem-estar social que só existe no papel —, mas não resolveu o problema do exercício democrático da cidadania. E ainda “estatizou” os partidos políticos, seja pela via dos meios de funcionamento regulados pela Justiça Eleitoral, seja pela forte presença de seus militantes e quadros na máquina do Estado, que é partidarizada.
Resultado: é muito fácil cooptar os partidos e seus quadros para o governo, mesmo impopular; e muito difícil fazer política e conseguir uma vaga no parlamento estando fora da máquina pública, seja federal, estadual ou municipal. Mesmo partidos robustos, com uma proposta política moderna, têm dificuldade para fazer política fora da estrutura do Estado.
Em contrapartida, devido ao nosso sistema eleitoral e partidário, que privilegia os grandes partidos e o controle dos seus caciques sobre as legendas, cada vez mais o chamado voto de opinião tem dificuldade para se fazer representar no Congresso. Mas isso é agora uma contradição tremenda, haja vista o peso e a influência crescente das redes sociais.
Dois momentos são significativos quanto a isso: as manifestações espontâneas de 2013 e a campanha do impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Nas eleições municipais passadas, o imponderável rondou o status quo e um tsunami varreu da cena política prefeitos candidatos à reeleição e seus candidatos; o imponderável de 2018 é um fenômeno parecido. Na verdade, o eleitor “astucia coisas” e espreita a política.
A queda de braços
O atabalhoado lançamento do Plano de Demissões Voluntárias (PDV) para servidores públicos federais atropelou a equipe econômica e gerou tensão entre a Fazenda e o Planalto
Os números divulgados ontem pelo Banco Central e pela Secretaria do Tesouro representam, respectivamente, um passo à frente, dois atrás. Explico: o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidiu, por unanimidade, baixar os juros básicos da economia brasileira de 10,25% para 9,25% ao ano. Foi o sétimo corte seguido na taxa Selic, o que já era esperado pelo mercado. Um passo à frente para a economia. No mesmo dia, as contas do governo registraram um deficit primário de R$ 56,09 bilhões no primeiro semestre deste ano, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional. Foi o pior resultado para o período desde o início da série histórica, em 1997, ou seja, em 21 anos, o que não se esperava. Vale dois passos atrás.
A política monetária mira a meta de inflação, que despencou por causa da recessão; já a política fiscal visa controlar o deficit público, que não para de subir. Até então, o maior rombo para esse período havia sido registrado em 2016, chegou a R$ 36,47 bilhões no primeiro semestre. É o terceiro ano seguido em que as contas ficam no vermelho. O resultado primário considera apenas as receitas e despesas, não leva em conta os gastos do governo federal com o pagamento dos juros da dívida pública. Ou seja, o governo está gastando mais do que deveria, onde não deveria; e deixando de fazê-lo em áreas vitais.
Essa situação reflete uma queda de braços entre a equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e o do Planejamento, Dyogo Oliveira, que atua em sintonia política com o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), ex-titular da pasta, e o núcleo político do Palácio do Planalto. O atabalhoado lançamento do Plano de Demissões Voluntárias (PDV) para servidores públicos federais, por exemplo, atropelou a equipe econômica e gerou muita tensão entre Meirelles e Dyogo, que ontem ganhou a queda de braços, ao emplacar no plano a isenção de Imposto de Renda e de pagamento de INSS para quem aderir, o que pode ser inconstitucional (mais um privilégio para servidores em relação aos demais assalariados).
A decisão sinalizou para os agentes econômicos que a política econômica está com a blindagem fragilizada no Palácio do Planalto. O ministro do Planejamento, desde o desbloqueio das contas inativas do FGTS, tem levado a melhor, graças ao apoio do núcleo político do governo, principalmente Jucá, que conhece o Orçamento melhor do que ninguém no Congresso. Os números, porém, são muito teimosos. De acordo com a Secretaria do Tesouro Nacional, as receitas totais recuaram 1,2% em termos reais (após o abatimento da inflação) de janeiro a junho deste ano, na comparação com igual período de 2016, para R$ 664,8 bilhões. As despesas totais, ao contrário, avançaram 0,5% em termos reais, na comparação com os seis primeiros meses do ano passado, para R$ 604,27 bilhões.
Previdência
Na verdade, a Fazenda opera numa faixa muito estreita de manobra, por causa das despesas obrigatórias. Além disso, o rombo da Previdência Social avançou de R$ 60,44 bilhões, nos seis primeiros meses de 2016, para R$ 82,86 bilhões no mesmo período deste ano, um aumento de 37,1%. Para 2017, a expectativa é um resultado negativo de R$ 185,7 bilhões.
Enquanto os economistas do governo fazem projeções considerando a frieza dos números, o Palácio do Planalto analisa os riscos. No momento, o pior dos mundos para o governo é a admissibilidade da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Temer, não o problema fiscal. Passada essa ameaça, teoricamente, a questão da Previdência passa a ser uma prioridade capaz de reagrupar a base governista. O governo acredita que terá condições de aprovar a reforma no Congresso e, assim, sair da armadilha fiscal. É uma aposta no ponto futuro.
O problema é que os humores do Congresso no segundo semestre já não serão iguais aos do primeiro, porque as eleições de 2018 estão logo ali e o governo amarga grande impopularidade. Dependendo da forma como a denúncia da PGR for rejeitada pelo Congresso, como é mais provável, o governo pode não ter força para aprovar uma reforma da Previdência que enfrente o deficit no curto prazo. Mitigada em razão das alianças para rejeitar a denúncia contra o presidente da República, a reforma da Previdência pode ser mais uma fuga pra frente e ter caráter meramente simbólico, ou seja, mostrar que Temer mantém a narrativa das reformas.
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Caetano Araújo: Razões da crise
A crise ocupa há tempo o centro do debate no país. Em poucos anos rachaduras na fachada ética da política e alertas na economia transformaram-se numa situação de extrema instabilidade, que ameaça tragar boa parte do sistema partidário. Discute-se hoje, principalmente, os lances mais recentes do processo, seus impactos já verificados e, principalmente, num quadro de grande incerteza, diferentes prognósticos alternativos sobre o futuro imediato, geralmente na perspectiva de suas consequências políticas e eleitorais.
Menos atenção tem recebido, no entanto, a questão, crucial, da gênese da crise. Em outras palavras, como chegamos ao ponto em que estamos hoje? Procuro desenvolver aqui uma resposta tentativa, o embrião de uma hipótese a ser trabalhada. No meu argumento, a origem da crise deve ser buscada em duas dimensões diferentes: o sistema de regras que regula as eleições e as decisões estratégicas dos principais atores políticos do país nos últimos anos. Falo, nesse caso, dos maiores partidos brasileiros, com o evidente protagonismo do Partido dos Trabalhadores, vencedor das últimas quatro eleições para Presidente da República.
Vamos à regra. Praticamos no Brasil nas eleições para deputados (federais, estaduais e distritais) e vereadores o sistema de voto proporcional com listas abertas. Nele os eleitores podem votar em legendas ou em candidatos das listas apresentadas pelos partidos políticos. As listas não são pré-ordenadas, de modo que o total de votos de cada partido (soma dos votos da legenda e de todos os nomes) determina o número de cadeiras que cada um obteve, enquanto a entrada dos candidatos é definida pela ordem decrescente dos votos obtidos.
Importa lembrar que esse sistema é uma invenção genuinamente nacional. Foi formulado por Assis Brasil, na década de 1930, com o objetivo de conciliar o voto em partidos, característico para ele de democracias modernas, com o voto em pessoas, que vigorou durante o Império e a República Velha. É usado entre nós desde 1945, de modo que muito provavelmente não há eleitores brasileiros vivos que tenham conhecido outro sistema.
Alternativas
Na comparação internacional, o sistema não teve tanto sucesso. Apenas a Polônia e a Finlândia nos acompanham hoje. A grande maioria dos países democráticos escolheu entre três outras alternativas: votar em pessoas, adotando o voto distrital; votar em partidos, com o voto proporcional em listas fechadas ou flexíveis; ou votar em pessoas para uma parte das cadeiras e em partidos para a outra parte, nos sistemas chamados mistos.
São conhecidas as críticas ao nosso sistema: personalização das campanhas, com as contrapartidas inevitáveis de sua despartidarização e despolitização; campanhas caras; influência do poder econômico; déficit de legitimidade junto aos eleitores.
Como sabemos, tudo isso é verdade. Aqui candidatos arrecadam e gastam recursos de forma autônoma e concorrem todos contra todos, principalmente contra seus companheiros de legenda. O foco de suas campanhas não é apresentar uma plataforma partidária comum, mas os pontos de singularidade política que os diferenciam dos demais candidatos de seus partidos.
Os poucos dados disponíveis mostram que as campanhas eleitorais no Brasil são as mais caras do mundo e seu custo foi crescente, pelo menos até a recente exclusão das empresas do universo de doadores de recursos. Não são de surpreender, portanto, as evidências do uso crescente de recursos não declarados, portanto ilegais.
Os legislativos que saem dessa peneira são dispersos, fato que acumula dificuldades para presidentes, governadores e prefeitos construírem suas bases de apoio. Não por acaso, todos os presidentes eleitos depois de 1988 foram favoráveis à reforma política.
Para os eleitores, o resultado da dispersão significa perda em termos de fiscalização e controle sobre os parlamentares. No sistema de voto distrital essa fiscalização é exercida diretamente porque os eleitores sabem exatamente quem é o deputado que os representa. No sistema de voto proporcional com listas fechadas ou flexíveis a fiscalização é feita por intermédio dos partidos, que são eleitos a partir de uma plataforma e zelam pelo cumprimento do pacto eleitoral por parte dos deputados.
Voto
No nosso sistema de voto proporcional com listas abertas, a fiscalização direta dos eleitores é difícil, porque o eleitor não pode determinar quem é o seu representante e a fiscalização partidária impossível, por não haver os partidos fortes de que necessitaria. Em compensação, a fiscalização por parte dos financiadores das campanhas é permanente, uma vez que as duas partes se conhecem, sabem quanto foi aportado e a sua importância para trazer o deputado à cadeira que ocupa. Portanto, tampouco é por acaso que legislativos, parlamentares e partidos são campeões na desconfiança dos eleitores, segundo as pesquisas disponíveis.
Esses problemas foram camuflados no passado, em situações em que o número de eleitores era menor, como no período 1945/1964, e as restrições à liberdade de imprensa maiores, como na ditadura militar posterior a 1964. A Constituição de 1988, contudo, consagrou uma série de avanços democráticos que se revelaram incompatíveis com a continuidade da nossa regra eleitoral: sufrágio universal, liberdade de imprensa e autonomia do Ministério Público.
A contradição entre a regra eleitoral e os avanços da Constituição é demonstrada pela sequência de escândalos ligados ao financiamento da política no país a partir da década de 1990. Para ficar só nos principais, tivemos sucessivamente o impedimento de Collor, os anões do orçamento, as operações Satiagraha e Castelo de Areia, o mensalão e, agora, a lava jato, ainda em curso.
Em síntese, nossa regra eleitoral gera um ambiente de competição na qual partidos e candidatos que recusam qualquer recurso de campanha de origem não legal têm dificuldade crescente de concorrer com aqueles que se integram a esses canais de financiamento. Quando isso ocorre a corrupção política deixa de ser residual, ou seja, algo que pode ou não ocorrer em determinado pleito, e passa a ser estrutural.
Resta indagar as razões da persistência dessa regra por quase três décadas. Penso que a resposta deve ser procurada nas estratégias de alianças desenvolvidas pelos maiores partidos brasileiros, em especial o PT.
Tendência
Hoje a situação parece improvável, mas no período entre a posse e a queda de Collor ganhou corpo uma tendência à aliança entre PT e PSDB para as eleições presidenciais seguintes. Essa tendência começou a perder força com a opção do PT de não participar do governo Itamar e, principalmente, com o lançamento do Plano Real, duramente criticado pelo partido. Nos dois mandatos de Fernando Henrique o PT fez oposição sistemática a toda a agenda modernizante do governo e a possibilidade de aliança ficou mais distante.
No início do governo Lula a situação havia mudado. Depois de uma pauta de campanha que aceitou o processo de estabilização da economia, com todas as suas implicações; de uma transição de governo bem-sucedida; da defesa, ainda que tímida, de uma agenda reformista que contou com o apoio do PSDB, na oposição, e do PPS, então no governo, uma janela de oportunidade para uma nova política de alianças do PT parecia aberta. Contra essa nova política, pesavam dois fatores importantes: a forte resistência das bases do PT, educadas num discurso político salvacionista, e a oferta permanente de apoio, mais fácil e imediato, de uma grande massa de deputados situados politicamente entre o fisiologismo e o conservadorismo.
O momento decisivo para a definição ocorreu no início de 2003, quando a proposta de reforma política apoiada por PT, PSDB, PFL, PDT, PSB e PPS, de listas fechadas com financiamento público de campanha, estava a ponto de ser votada em plenário. Por pressão dos demais partidos, o PT retirou seu apoio ao projeto, enterrou a reforma política e demarcou seu campo de alianças, tendo como principal referência aliada a centro-direita conservadora.
Vale lembrar que esse movimento do PT não apenas assegurou mais 15 anos de vigência à regra eleitoral, mas, como a aliança replicou-se nos estados, deu sustentação política a velhas elites regionais e, consequentemente, a suas bancadas parlamentares, concentradas nos partidos contrários à reforma.
O PT teve uma segunda oportunidade de redirecionar sua política de alianças. Em 2013, na onda das manifestações populares, que tinham na mudança da política um dos pontos centrais de reivindicação, a presidente Dilma poderia ter encabeçado uma ampla concertação parlamentar pela reforma política. Ao invés de fazê-lo, optou por insuflar propostas diversionistas que em nada resultaram, como plebiscito ou constituinte exclusiva.
Parece evidente hoje que essa política redundou num fracasso completo. Poderia ser avaliada como um sucesso parcial se os objetivos do governo fossem manter inalterado o status quo econômico, social e político do país. No entanto, à luz dos objetivos declarados nas campanhas do PT, ou seja fazer avançar a democracia e recuar a pobreza e a desigualdade, essa política de alianças deve ser reprovada em toda linha.
Além disso, nas duas variantes que se sucederam, a aliança com o chamado “centrão” aumentou a vulnerabilidade do partido. A tentativa, no primeiro governo Lula, de governar com o seu apoio do PMDB, mas sem a sua participação proporcional, resultou no mensalão. A incorporação do PMDB no governo, por sua vez, alimentou a lava jato.
Erro
Se essa política deve ser vista com as informações de que dispomos hoje, como um erro colossal, como compreender sua adoção e manutenção por anos a fio? É claro que alguns sucessos do governo Fernando Henrique e do primeiro período de Lula alimentaram a visão da política brasileira como o palco no qual dois partidos programáticos gerenciavam o apoio do fisiologismo. Essa imagem de Werneck Vianna, muito citada por Fernando Henrique, descrevia bem a situação do momento. Nada dizia, contudo, sobre a sustentabilidade desse arranjo no médio prazo.
Podemos especular sobre as motivações pragmáticas do PT para se diferenciar do seu concorrente direto nas disputas presidenciais. Podemos ainda discutir uma tendência possível de interpretar o conjunto da política nacional através do prisma da conjuntura paulista. Penso ser mais produtivo analisar as premissas que podem ser usadas para justificar essa opção. Na minha opinião são três essas premissas, todas devidamente desmentidas pelos fatos.
Em primeiro lugar, a preponderância do estado sobre a sociedade, tributária da ideia antiga que faz depender todo movimento de mudança à condução esclarecida de uma vanguarda, capaz de recolher as demandas populares e processá-las na forma de decisões políticas racionais. Nesse aspecto, as jornadas de 2013 mostraram que alguma coisa não funcionava como previsto.
Em segundo lugar, a preponderância do Executivo sobre o Legislativo. Outra ideia antiga que afirma a capacidade de o Executivo impor sua vontade aos legisladores como uma constante da política. O processo de impeachment desmentiu essa premissa, ao menos na sua versão absoluta.
Em terceiro lugar, a neutralidade política do fisiologismo, do atraso, do centrão, qualquer que seja o nome dado ao grupo de parlamentares que se posiciona na política mais do lado da oferta, menos no da demanda, de apoio parlamentar. Menos expostos às cobranças partidárias, esses deputados tendem a ser, no entanto, mais sensíveis às demandas dos grupos empresariais que financiam suas campanhas, como ficou demonstrado em diversas votações em que os interesses do governo foram contrariados nos últimos anos.
Luiz Carlos Azedo: O busílis é a política
As forças que hoje dão sustentação ao governo Temer não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral
Deve-se ao marqueteiro de Bill Clinton, James Carville, a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!”. Em 1991, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, havia vencido a Guerra do Golfo e resgatado a autoestima dos americanos após a dolorosa derrota no Vietnã. Assim, era o favorito absoluto nas eleições de 1992 ao enfrentar o então desconhecido governador de Arkansas. Clinton apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e a frase de Carville virou a cabeça do eleitor.
Desde então, virou uma espécie de varinha de condão para governantes e candidatos em apuros, que apostam tudo na economia para enfrentar seus desafios eleitorais. Foi assim nas últimas eleições, quando a oposição achava que ganharia a eleição por causa da máxima de Carville. Logo no começo do segundo turno, Aécio Neves (PSDB) estava à frente de Dilma e os dados da economia eram muito negativos. As projeções do PIB em 2014 não passavam de 0,3%, mesmo com as pedaladas. A inflação chegava a 6,75% nos últimos 12 meses, com a taxa de juros (Selic) na casa dos 11% e do congelamento dos preços administrados, principalmente o preço da gasolina. Dos 48.747 empreendimentos da segunda versão do Programa de Aceleração do Crescimento, apenas 15,8% estavam concluídos.
Mas a oposição perdeu. Não apenas porque houve abuso de poder econômico (eis uma discussão vencida, que ironia, porque o TSE, em julgamento inédito, absolveu a chapa dessa acusação), mas porque Dilma, Lula e o PT politizaram a eleição na base do “nós contra eles”. Acusaram a oposição de querer acabar com os programas sociais petistas para favorecer os interesses dos mais ricos. Era música para 14 milhões de beneficiários do Bolsa Família, ou seja, 56 milhões de pessoas. Além disso, havia 1,5 milhão de beneficiados no Minha Casa, Minha Vida e um exército de 97 mil ocupantes de cargos comissionados defendendo o governo com unhas e dentes, temerosos de perderem o que tinham. O tempo da política não é o da economia, a recessão só veio depois, para embalar a campanha do impeachment.
O economicismo é uma praga na análise política, cuja origem é atribuída ao determinismo econômico marxista. É uma injustiça com Marx, embora essa responsabilidade seja dos teóricos social-democratas do começo do século, principalmente do teórico alemão Eduard Bernstein, para quem o desenvolvimento das forças produtivas pelo capitalismo levaria ao socialismo. Outros teóricos marxistas criticaram essas interpretações. O economicismo sobrevaloriza os fatores considerados econômicos na evolução dos processos sociais e políticos, porém, a política é a economia concentrada.
Quem tiver oportunidade de ler o 18 Brumário, de Luís Bonaparte, que trata da restauração da monarquia na França após a revolução burguesa — na verdade, uma grande reportagem sobre os acontecimentos da época — , verá ali a centralidade da política na visão do autor d’O Capital. Na década de 1930, por exemplo, a ascensão do fascismo na Itália foi vista como uma via de industrialização de um país economicamente atrasado. Pois bem, não era um fenômeno determinado pela economia, mas pela política. Tanto que assombrou o mundo quando a Alemanha, um dos países mais desenvolvidos da Europa, sucumbiu à loucura nazista. No pós-guerra, o economicismo tornou-se uma presa fácil do nacionalismo e do populismo, que nos rondam novamente, inclusive na Europa.
Qual é a agenda?
Temos um governo que assumiu o poder e herdou o desgaste de Dilma Rousseff — até porque Michel Temer era o vice-presidente da República e o PMDB, o aliado principal do PT —, com o país em recessão e o desemprego em massa, além de ser assediado por denúncias de corrupção contra o próprio presidente da República. O governo adotou uma política de ajuste fiscal de longo prazo — a meta fiscal é um deficit de 139 bilhões — e promoveu reformas de cima para baixo, necessárias para enfrentar a crise e reorganizar a economia, mas sem apoio popular. Além disso, não cortou na própria carne como deveria: a relação dívida/PIB se aproximará de 80% no final do próximo ano.
As forças do impeachment de Dilma, que hoje dão sustentação ao governo Temer, não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral. As reformas não garantirão um crescimento espetacular, capaz de resgatar os empregos perdidos na escala necessária. Não haverá sequer um voo de galinha da economia, embora possa haver um ganho real com a redução da inflação. Além disso, espinafrar a Operação Lava-Jato não resolve o problema da crise ética, pode até agravá-la. No máximo, nivela na lama a disputa entre governo e oposição. O país precisa de um novo projeto político, que reinvente o Estado e a economia, a partir dos interesses da sociedade, e combata a corrupção, a violência e os privilégios. Esse é o desafio principal para tirar o país do atraso e garantir o futuro das novas gerações.
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Denis Lerrer Rosenfield: Parlamentarismo e importação de ideias
A aprovação de reformas, passa por negociações que nada têm de republicanas, embora sejam de interesse nacional
Volta e meia, imerso em crises, o país vê-se confrontado com propostas de reforma política, voltadas para a implementação do parlamentarismo no país. É como se, em um passe de mágica, todos os problemas fossem suscetíveis de um equacionamento simples, baseado em uma mera troca de sistema de governo. O problema, porém, reside em que as instituições parlamentaristas muito bem funcionam no nível dos princípios ou em seus países de origem. Nada disto, porém, corresponde ao seu funcionamento quando transplantadas a outros países de tradições e histórias distintas.
A questão, muito bem analisada na obra de Oliveira Vianna, consiste na refração das ideias e no deslocamento das instituições. Teria sentido simplesmente importar um sistema de governo? Seria ele “importável”? As ideias ganham, neste processo, outro significado a despeito de guardarem a aparência de sua significação anterior. Os “importadores” podem ter, inclusive, a melhor intenção, mas seus efeitos podem também não corresponder ao que foi projetado.
Operando em outro contexto institucional, conforme outra história, produzem consequências que não ocorreriam em seus países de origem. A depender do modo de utilização das ideias, elas podem vir a produzir grandes deslocamentos políticos. Como pode uma ideia constitucional vingar em países de tradição totalmente diferente? De que valem comparações, se essas não levarem em conta o contexto histórico de implementação destas ideias?
Há uma certa tendência na política brasileira de opção por grandes transformações, em vez de mudanças graduais que observariam os vários contextos particulares de sua concretização. O parlamentarismo pressupõe partidos políticos organizados, com doutrinas próprias, que disputem a opinião pública segundo as suas concepções. Procuram conhecê-la e persuadi-la do bem fundado de seus projetos.
Não são meros agregados de pessoas e interesses, mas deveriam possuir um propósito válido para toda a coletividade. Ora, observamos na cena política brasileira um forte componente fisiológico e, mesmo, de corrupção que faz com que a representação política seja falseada, ou seja, submetida a trocas dos mais diferentes tipos para que propostas coletivas sejam aprovadas.
A aprovação de reformas, por exemplo, passa por negociações que nada têm de republicanas, embora sejam de interesse nacional. Imagine-se, em um sistema parlamentarista, o não atendimento deste tipo de demanda. Ele não repercutiria somente na não aprovação de um projeto, mas produziria um voto de desconfiança, podendo levar à queda do Gabinete. Dado o caráter inorgânico dos partidos políticos brasileiros, poderíamos ter vários primeiros-ministros no transcurso do ano.
De nada adiantam grandes ideias, se elas não vierem acompanhadas de medidas básicas, que seriam de muito valia para um melhor regime republicano. Pense-se que um novo governante deveria, por sua vez, substituir os milhares de cargos comissionados, criando uma total balbúrdia na administração pública. Necessita o país de tal número de cargos?
É evidente que a inexistência de cláusula de barreira para a criação de partidos políticos é um poderoso estimulo à fragmentação partidária, tornando difícil qualquer organização. A observação histórica mostra que, em sistemas de governo presidencialistas ou parlamentaristas, poucos partidos fortes são de natureza a produzir a estabilidade governamental.
Tampouco são favorecidas as instituições se esta pletora de partidos for organizada sob a forma de eleições proporcionais se, dependendo da aliança, o voto em um partido redundar na escolha de outro. A proibição de coligações partidárias seria um poderoso instrumento de depuração do sistema político, produzindo um mínimo de organicidade. Haveria uma coincidência entre a representação política e a partidária.
Agora, na contramão de qualquer depuração, estamos vendo nascer propostas de financiamento público de eleições estimadas em mais de R$ 5 bilhões. Em um país em séria crise econômica, não deixa de ser um escárnio. Tome-se o caso da França. As perdas dos socialistas e republicanos, por suas derrotas legislativas, são estimadas em torno de poucas dezenas de milhões de reais, já feita a conversão. O partido de Macron ganhou em torno de 80 milhões. Os patamares são, comparativamente, para nós, muito baixos. No Brasil, fala-se de bilhões de reais como se fosse apenas o necessário, da mesma forma que a nossa corrupção é de país rico, sempre calculada em bilhões.
Partidos deveriam ser financiados, enquanto entidades privadas, por seus membros e simpatizantes. Deveriam fazer um esforço de coleta, o que é, para pessoas físicas, permitido pela nova legislação. Considerando que não há nenhuma organicidade partidária, parte-se agora, vista a proibição da contribuição empresarial, para o financiamento público, que, de público, só possui o nome, pois é originário de impostos de contribuições. Tirar-se-ia do orçamento da Saúde, da Educação ou da Habitação, por exemplo, para o financiamento dos partidos.
Hoje, sabe-se, graças à Lava-Jato, que os recursos de empresas eram só aparentemente privados, sendo resultado da corrupção e do desvio de recursos públicos. Graças a este esquema político perverso, os espetáculos políticos midiáticos puderem acontecer. A opinião pública, despreparada, comprou a mensagem que lhe foi oferecida. A política tornou-se assunto de marqueteiros, mercadores de imagens, pagos a preço de ouro.
Oliveira Vianna, em seu célebre livro, “O ocaso do Império”, assinalava que, no Segundo Reinado, os partidos tinham se tornado “simples agregados de clãs organizados para a exploração em comum das vantagens do ´poder”. Ou ainda, “os programas que ostentavam eram, na verdade, simples rótulos, sem outra significação que a de rótulos”. Parece que está falando dos dias de hoje. Como pode vingar um sistema representativo sem partidos dignos deste nome?
* Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul