Eleições

Luiz Carlos Azedo: Por que somos assim?

Nada indica que a renovação dos nossos costumes políticos ocorrerá com a implosão dos atuais partidos ou seu colapso nas eleições, por causa das eleições proporcionais e regionais

Ao contrário do que aparenta a política brasileira, na qual a “transa” substituiu os projetos, o Brasil é fruto das ideias. Elas antecederam o Estado e a nação, antes mesmo do descobrimento. E não há nenhum momento relevante da nossa história que não tenha resultado de um projeto ambicioso ou mesmo de um devaneio. Brasília, por exemplo. A crise que estamos vivendo na política brasileira é resultado da falta de ideias? Ou será fruto de um ajuste de contas entre uma espécie de novo “americanismo”, emergente no Judiciário, e o velho “iberismo” predominante no Executivo e no Legislativo?

Pode ser que sim. Mas a crise, indiscutivelmente, é coadjuvada por fenômenos que modificaram a face do Brasil e sua relação com o mundo. A urbanização acelerada e a globalização, respectivamente, ocorreram sem que o país estivesse preparado política e culturalmente para isso. Ao mesmo tempo em que transitaram da taipa para a alvenaria, as favelas e periferias são sendo plugadas pela revolução tecnológica em curso, na qual a velocidade da comunicação e das inovações entre em choque com velhas estruturas e instituições.

O livro Brasil, brasileiros. Por que somos assim? (Editora Verbena/Fundação Astrojildo Pereira), uma coletânea de artigos e ensaios organizada por Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro, lança luzes sobre o momento que vivemos. Reúne textos de Alberto Aggio, Augusto de Franco, Bolívar Lamounier, Cristovam Buarque, Flávio R. Kothe, John W Garrison II, José de Souza Martins, Loreley Garcia, Lourdes Sola, Luís Mir, Marco Aurélio Nogueira, Marcus André Mello, Mécio Pereira Gomes, Paulo Cesar Nascimento, Socorro Ferraz e próprio Zander Navarro.

Esse grupo de historiadores, cientistas políticos e antropólogos realiza um esforço de interpretação da crise atual, na qual se registra um “deficit brutal de consenso e inteligência crítica”, nas palavras de Nogueira. Será que o brasileiro “perdeu a guerra para si mesmo”, como afirma Flávio Kothe, ao ressaltar que fomos incapazes de pôr para funcionar o nosso aparelho de estado e a economia? Talvez uma das chaves para compreensão de tudo isso esteja na evolução do nosso pensamento político.

O professor Francisco Weffort, em seu livro Formação do pensamento político brasileiro, destaca: primeiro, nos primórdios da colonização a meados do Império, nossos intelectuais e as elites não reconheciam a existência do povo como um ator do processo; segundo, a emergência tardia do Estado, que somente ocorre a partir da chegada de dom João VI e da Independência; terceiro, uma forte herança medieval, que mistura os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da nossa realidade. Não é à toa que as marcas registradas do nosso “iberismo” são o patrimonialismo e o “sebastianismo”.

Longas transições
Foi apenas na Segunda República, a partir dos anos 1920 e 1930, que resolvemos as velhas dúvidas sobre a existência do povo e da sociedade. Três séculos de colônia, um século de Império e meio século de república agrária antecederam 50 anos de modernização, industrialização, urbanização, expansão da educação e criação das universidades aceleradas. Para isso, foram decisivas ideias de homens como Antônio Vieira, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Hélio Jaguaribe e Roberto Campos. Sem eles, não teríamos as instituições políticas que deram sustentação a tudo isso, com todas as suas vicissitudes, nem políticos que ainda hoje influenciam o comportamento da nossa elite política, como Marques de Paraná, Rio Branco, Rui Barbosa, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves.

É preciso lançar um olhar para a história para compreender as mudanças no Brasil. A abolição da escravatura foi um ciclo longo, da proibição do tráfico (1850) à Lei Áurea (1888). Se desconsiderarmos a abertura de Ernesto Geisel, em 1974, a recente transição à democracia começou com a anistia, em 1979, e somente se completou com a eleição de Collor de Mello (1989). Todas as rupturas modernizantes no Brasil, porém, se deram de forma golpista e autoritária (1989, 1930, 1964).

Por causa das regras das eleições proporcionais, nada indica que a renovação dos nossos costumes políticos ocorrerá com a implosão dos atuais partidos ou seu colapso nas eleições; se houver um estouro de boiada, será em eleições majoritárias, seja para presidente da República, ou seja em alguns estados. A presença das redes sociais é um terreno em que predominam pensamentos radicais e as fake news, como nos revela a excelente série de reportagens de Leonardo Cavalcanti, editor de Política do Correio.

Esses e outros temas serão objeto de um debate imperdível entre o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), ex-governador de Brasília, um dos autores citados, e o professor de História Contemporânea Francisco José Barbosa, da Universidade de Brasília, na próxima terça-feira, a partir das 18h30, com mediação do jornalista Francisco Almeida. Local: auditório da Biblioteca Salomão Malina, no Conic (em frente à Praça Vermelha), no Setor de Diversões Norte, em Brasília. Haverá sessão de autógrafos.

 

 


Luiz Carlos Azedo: Tempos da política

Lula, Alckmin, Huck, qual o tempo de cada um? Ele corre diferente na política. Há o tempo da paixão e o da razão, o das redes sociais e o do calendário eleitoral

Sonhos de Einstein, do físico Alan Ligthman, é uma coletânea de 30 contos ambientados entre a primavera e o verão de 1905, em Berna, cidade suíça à sombra dos Alpes. Nessa época, o genial físico judeu alemão Albert Einstein tinha 26 anos e trabalhava no Escritório Suíço de Patentes. Mas a vida de burocrata era abalada por sonhos perturbadores, nos quais o tempo poderia transcorrer num só dia ou simplesmente não existir futuro. Sua obsessão era compreender as relações cósmicas que nem a física de Newton nem a religião explicavam, principalmente a relação entre a luz do Sol e o tempo. Isso o levou a várias descobertas científicas, entre as quais a famosa Teoria da Relatividade.

Cada conto de Ligthman apresenta o tempo de uma maneira diferente. Somos todos prisioneiros do tempo do relógio, mas há momentos em que as horas passam mais rápido, assim como há instantes que duram uma eternidade. Se existe o tempo mecânico, há o “do coração” e o da política, que costumam ser diferentes para cada um. É mais ou menos o que está acontecendo com os principais personagens da disputa presidencial de 2018.

Por exemplo, o tempo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi congelado até a próxima quarta-feira, dia do seu julgamento em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Até lá, não sabe em que condições ou mesmo se será candidato em 2018. Sua estratégia é passar por vítima de uma injustiça, confrontar e desmoralizar os magistrados, e recorrer da sentença em todas as instâncias, para que possa escapar da Lei da Ficha Limpa no Tribunal Superior Eleitoral a tempo de disputar o pleito. O que houve até agora é apenas um aperitivo da radicalização política. O petista vive o tempo da paixão. Caso seja condenado, a candidatura de Lula só estará consolidada em 15 de agosto.

Outro personagem importante é o tucano Geraldo Alckmin (PSDB), cuja candidatura somente estará confirmada quando se esgotar o prazo de desincompatibilização do mandato de governador paulista. Seu tempo é o da razão. O político paulista costuma atribuir ao destino sua própria trajetória política e é muito frio nas suas decisões. Os aliados se queixam disso; os adversários, aproveitam o estilo “picolé de chuchu”. Alckmin assumiu a presidência do PSDB, mas não controla plenamente a legenda. O ninho tucano parece invadido por cobras.

Arthur Virgílio Neto, prefeito de Manaus, resolveu disputar a vaga de candidato tucano. Para concorrer às eleições, Alckmin terá que entregar o governo a Márcio França, o vice do PSB, que já avisou aos aliados que será candidato à reeleição e espera contar com o apoio do PSDB. Acontece que os tucanos paulistas pretendem lançar seu próprio candidato e não querem entregar o governo para o PSB e seus aliados. É um racha anunciado, que pode levar o governador paulista a permanecer no Palácio dos Bandeirantes se mantiver o atual isolamento até 7 de abril. Será muita loucura para o PSDB manter uma candidatura sem chances de vitória e ainda perder o governo paulista, o cenário predominante se houver o racha anunciado por França.

Leito natural

Qual será o tempo de Luciano Huck, o apresentador de televisão que virou star também nas pesquisas eleitorais? Por mais que negue ser candidato, por uma série de razões, entre as quais a competitividade de seu nome e o espaço vazio a ser ocupado nas eleições, a candidatura já existe no tempo e no espaço virtual das redes sociais. O apresentador, porém, tem um encontro marcado com o tempo institucional da política: o prazo de filiação para disputar as eleições é 7 de abril. Até lá, haverá quem esteja sonhando com Huck.

Depois de esgotados os prazos citados, a fragmentação política fluirá para o leito institucional das eleições. Primeiro, os candidatos arregimentarão forças, farão alianças e definirão suas plataformas; depois, quando a campanha começar no rádio e na tevê, haverá uma alteração significativa no processo: os eleitores começarão a tomar conhecimento dos candidatos e suas propostas, até a decisão no dia das eleições.

Nesse processo, o mais importante a registrar é a solidez da democracia brasileira. O calendário eleitoral foi mantido, as instituições estão funcionando, as liberdades foram garantidas, as regras do jogo estão estabelecidas e a narrativa do golpe perde sentido. O julgamento do ex-presidente Lula é parte desse processo. Qualquer que seja o resultado, será um exemplo de que as instituições estão acima dos indivíduos.

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Míriam Leitão: Tempo de atenção

O presidente do TRF-4, Carlos Thompson Flores, não demonstrou ansiedade na conversa de terça-feira com a ministra Cármen Lúcia. Apenas relatou que o tribunal tem tido todo o apoio das forças de segurança do Estado e avisou que comunicaria se houvesse qualquer anormalidade. Nos meios jurídicos, o que se diz é que a Justiça está em estado de atenção, mas não de tensão.

Thompson Flores não pediu reforços de segurança, apenas relatou todos os fatos da perspectiva do Tribunal. Explicou o trabalho da segurança do próprio Tribunal, e das forças do Estado. Disse que não seria conveniente que o TRF-4 sofresse qualquer tipo de ameaça indevida. A Constituição prevê a liberdade de manifestação, mas ela precisa ser comunicada pelos organizadores. Ele ficou de avisar ao Conselho Nacional de Justiça sobre qualquer anormalidade.

De qualquer maneira, o país vive entre esses dois estados, atenção e tensão, nestes dias prévios do julgamento do ex-presidente Lula. O que o país está vendo é a proximidade de um acontecimento inédito: o julgamento em segunda instância de um ex-presidente da República condenado por corrupção. O PT recorre à militância e à retórica porque isso é parte do jogo político, mas na Justiça o que se diz é que o Judiciário não é um poder político, portanto essa estratégia não funciona para o fim desejado pelo partido.

A afirmação feita ontem pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ao site Poder 360, de que para prender Lula terá que “matar gente” está sendo relativizada e não vista como ameaça concreta. Ela própria refez um pouco o que havia dito, mas fica claro que a intenção é a politização extrema como estratégia de defesa, o que juridicamente não tem valor. Não é a capacidade de mobilização do PT que está em julgamento, mas os autos do processo nos quais Lula foi condenado em Curitiba e que foram para a revisão da segunda instância.

Há muitas incógnitas, como em qualquer julgamento. Pode até, apesar de pouco provável, que alguém peça vistas do processo. Mas o que fontes do Judiciário explicam é que o mais provável é que haja uma decisão. Se ele for condenado, seja por unanimidade, seja por dois votos a um, recursos só serão aceitos se couberem. O direito a recorrer não é automático, é preciso verificar se existe a possibilidade do embargo.

Se os embargos forem declaratórios, no caso de uma decisão unânime, não haverá mudança de resultado, apenas o pedido de esclarecimento de algo eventualmente confuso no acórdão. Se forem embargos infringentes, no caso uma divergência entre os juízes sobre condenar ou não, pode-se pedir até um novo julgamento. Mas será preciso a defesa encontrar os caminhos jurídicos cabíveis. É preciso cumprir as exigências processuais. Não adianta nada a agitação da militância.

O discurso de que Lula está sendo perseguido juridicamente perde muito a força na hipótese de ele ser condenado em segunda instância. Até agora, os advogados sustentaram que ele era um perseguido de Sérgio Moro. Se o TRF-4 confirmar a sentença, ficará mais difícil sustentar a mesma tese.

Se Lula for condenado, não vai ser preso imediatamente porque será preciso publicar o acórdão. E aí serão feitos os recursos ao próprio tribunal, através dos embargos, se forem encontrados os elementos para isso. Se, esgotados os recursos, permanecer a condenação em segunda instância, o ex-presidente poderá recorrer ao STJ, mas já sem qualquer efeito suspensivo da pena. Ou seja, o tribunal pode decretar a prisão do ex-presidente.

A visão na Justiça é que seria um erro deixar-se contaminar pela retórica política. Ela tem que ficar num pêndulo: não acender alertas desnecessários, mas não desconhecer os riscos que forem reais. Não agir de forma açodada, mas prevenir-se para o risco de os manifestantes saírem da retórica para a ação física contra o Tribunal.

Serão dias de tensão na política e no Brasil neste fim de janeiro, mas no mundo jurídico a palavra que preferem usar é “atenção”. Julgar é parte inerente ao trabalho e é isso que está sendo feito. Nada termina no dia 24, mas muito se define a partir da decisão do tribunal.

 

 


Merval Pereira: Sem fato novo

Às vésperas do julgamento do recurso do ex-presidente Lula contra sua condenação pelo juiz Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá, os aliados do ex-presidente pretendem que seja um fato novo a decisão de uma juíza em Brasília de penhorar o imóvel em um processo contra a OAS, o que seria a prova incontestável de que ele pertence à construtora, e não a Lula.

Entretanto, como se sabe, a acusação contra o ex-presidente não é de que a propriedade formal seja dele. Ao contrário, ele seria o proprietário de fato, e essa situação é encoberta através de artifícios justamente para esconder o produto de um crime. Por isso está sendo condenado também por lavagem de dinheiro.
Na verdade, o imóvel não é nem mais da OAS, pois foi confiscado na sentença de condenação do ex-presidente, está sequestrado criminalmente, sequer poderia ter sido penhorado. Os advogados do Lula diziam também que, ao afirmar que o tríplex não está diretamente ligado à corrupção na Petrobras, Moro desfigurou a denúncia do Ministério Público.
Mas ao mesmo tempo, o juiz determinou que os R$ 16 milhões da multa do tríplex fossem para a Petrobras, o que seria incoerente. A explicação que rebate esses argumentos é que foi reconhecido na sentença que houve acerto de corrupção em contratos da Petrobras, e que parte do dinheiro da propina combinada foi utilizada em benefício do ex-presidente.
Para a acusação, não tem nenhuma relevância para caracterização da corrupção ou lavagem de onde a OAS tirou o dinheiro para o imóvel e reformas.
Dinheiro é fungível. Moro explicou em uma das respostas à defesa que “Este juízo jamais afirmou , na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos da Petrobras foram usados para pagamento indevido para o ex-presidente”, justamente porque não importa de onde a OAS tirou o dinheiro, mas somente que a causa do pagamento tenha sido um contrato da Petrobras.
No caso da Odebrecht, por exemplo, o dinheiro usado para pagar os diretores da Petrobras vinha de contratos no exterior sem relação com a estatal.
Toda a movimentação de petistas, quase sempre agressiva, em torno do julgamento do recurso do expresidente Lula contra a condenação no caso do tríplex do Guarujá, pelo Tribunal Regional Federal em Porto Alegre (TRF-4), revela que eles compreendem bem a situação de limite em que se meteram.
No dia 24 começa uma corrida de obstáculos na tentativa do partido de limpar seu nome e o de seus líderes numa eleição presidencial que, esperam, levará à consagração de Lula e a uma virtual absolvição do partido. Lula precisa do PT como nunca, e o PT, como sempre, precisa de Lula.
Uma eventual absolvição de Lula o colocaria praticamente no Palácio do Planalto, pois teria condições de resgatar um eleitorado que já foi seu e que hoje o repudia e ao PT. Uma condenação reafirmará sua culpa já definida na primeira instância do Juiz Moro, e o colocará à beira da prisão, consequência natural da condenação em segunda instância.
É evidente que, embora não seja o julgamento definitivo, pois ainda existe uma infinidade de recursos até a decisão final, se confirmada a condenação, este será o começo da derrocada daquele que ainda é um político popular e busca nas urnas escapar das acusações que lhe são feitas em diversas instâncias judiciais.
Não é de espantar que o site do PT tenha partido para uma acusação pessoal aos desembargadores que julgarão Lula no dia 24: João Pedro Gebran Neto estaria impedido de julgar por ter se declarado, em um livro, amigo de Moro; Leandro Paulsen é acusado de ter sido muito rápido como relator e Victor Laus, de receber um salário acima do teto.
O PT diz, oficialmente, que os três são piores do que aquele que vão julgar, numa clara tentativa de intimidação. Roberto Veloso, presidente da Associação de Juízes Federais, ontem fez também visita à presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, assim como o presidente do TRF-4, ministro Thompson Flores. Todos em busca de garantias à ordem pública e tranquilidade para a realização do julgamento.
Para ele, “os juízes decidem de acordo com a prova dos autos, não movidos por coações, intimidações ou ameaças. Em uma democracia, as decisões judiciais são respeitadas.” Para acalmar os petistas, lembrou que no Brasil “o sistema recursal é muito amplo”, e que se a segunda instância confirmar a condenação aplicada por Sergio Moro, Lula poderá recorrer.
“As ameaças estão sendo públicas, não estão sendo veladas. Temos assistido a vídeos com ameaças públicas de que serão depredados prédios públicos, que irão tomar de assalto as dependências do tribunal, que irão fazer e acontecer, até de atear fogo nós ouvimos.” Ele pediu “calma, tranquilidade e paz”.

Luiz Carlos Azedo: O par dialético

A economia voltou a crescer, mas a crise de financiamento do Estado impõe um “voo de galinha”. Com a mudança de cenário na economia mundial, o nosso velho desenvolvimentismo não tem vez

A esquerda brasileira tem uma forte tradição nacionalista, resultado da convergência de velhas concepções nacional-libertadoras e do populismo. Até o golpe de 1964, a luta contra o imperialismo era considerada mais importante do que a defesa da democracia. No governo João Goulart, por exemplo, a aliança entre comunistas, petebistas e pessedistas que levou Juscelino Kubitschek à Presidência foi rompida. A esquerda considerava um retrocesso político sua volta ao poder nas eleições marcadas para 1965, devido à sua “conciliação” com os Estados Unidos. Enquanto o líder petebista Leonel Brizola se lançava candidato a presidente (“cunhado não é parente”), o líder comunista Luís Carlos Prestes articulava a reeleição de João Goulart. A divisão do campo democrático por causa das ideias nacionalistas jogou os liberais nos braços dos setores conservadores liderados por Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, que articulavam o golpe de Estado. Entre eles estavam, por exemplo, o próprio Juscelino e aquele que viria a liderar a campanha das Diretas Já, Ulysses Guimarães.

Com a deposição de Goulart, o então presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzilli assumiu interinamente a Presidência da República, mas a junta militar (general Artur da Costa e Silva, brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e o almirante Augusto Rademaker), autodenominada “Comando Supremo da Revolução”, exigiu plenos poderes do Congresso para fazer cassações de mandatos e demitir servidores públicos. O historiador Hélio Silva conta que, em 8 de abril de 1964, um grupo de parlamentares, do qual fazia parte Ulysses, redigiu o ato constitucional a ser votado pelo Congresso para delegar esses poderes. No dia 9, porém, os militares editaram o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que conferia poderes extraordinários ao Executivo e estipulava a eleição de um novo presidente e de um vice-presidente no prazo de dois dias. Em 11 de abril, foram eleitos indiretamente para a Presidência da República o general Humberto de Alencar Castelo Branco e, para a vice-presidência, José Maria Alkmin, indicado pela maioria do Congresso. Quatro dias depois, tomaram posse. Ulysses e outros pessedistas que apoiaram o golpe de 1964 logo romperam com os militares, sendo seguidos por políticos da antiga UDN. Juscelino e Lacerda foram cassados.

Uma parte da esquerda aprendeu a lição do golpe e passou a defender a democracia, mas outra optou pela luta armada, numa perspectiva de que a tomada de poder coincidiria com uma revolução, nos moldes da cubana. Tendo a guerra fria como pano de fundo, demorou para que os setores moderados da esquerda, como os antigos PCB, PTB e PSB, na ilegalidade, conseguissem convencer os demais de que o caminho da luta pela redemocratização do país passava pela disputa eleitoral e pelo apoio ao partido de oposição criado pelo próprio regime, o MDB, já então liderado pelo deputado Ulysses Guimarães e outros caciques pessedistas, como Amaral Peixoto e Tancredo Neves. Essa experiência de luta contra o regime militar levou a esquerda, na redemocratização, a inverter o chamado “par dialético”: a luta passou a ser democrática e nacional. Trocando em miúdos, subordinou-se o nacionalismo à defesa da democracia.

Desenvolvimentismo
Quando a esquerda chegou ao poder no Brasil, o mundo já não era o mesmo da guerra fria. O velho colonialismo havia acabado, logo se viu o Muro de Berlim ser derrubado e a antiga União Soviética se desintegrar, enquanto a China fazia as pazes com o capitalismo. Entretanto, o nacional desenvolvimentismo continuou sendo o eixo de sua doutrina econômica, principalmente porque a nossa industrialização fora protagonizada pala presença do Estado na atividade produtiva, num acelerado processo de substituição de importações. Era uma economia autárquica, que entrou em colapso após a crise do petróleo dos anos 1970. O Estado perdeu a capacidade de financiamento e o país passou por um longo ciclo de crises e baixo crescimento, com hiperinflação no governo Sarney e recessão no governo Dilma. Somente agora a economia voltou a crescer, mas a crise de financiamento do Estado continua impondo um “voo de galinha”. Por trás da crise, há uma mudança de cenário na economia mundial, na qual o velho desenvolvimentismo não tem vez.

No governo de Fernando Henrique Cardoso, o permanente choque entre desenvolvimentistas e social-liberais na equipe econômica já havia mostrado a resiliência das ideias nacionalistas; mas foi nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff que elas dominaram a cena e demonstraram seu anacronismo em relação à globalização e às mudança tecnológicas que ocorrem no mundo. Quem acredita que o impeachment de Dilma Rousseff sepultou essas ideias está muito enganado. A recente entrevista do professor Luiz Gonzaga Beluzzo sobre a conjuntura política e econômica do país mostra bem isso. Entretanto, na Europa e nos Estados Unidos, o nacionalismo é a bandeira das forças mais conservadoras e retrógradas da Europa e dos Estados Unidos. Aqui não é muito diferente: a aposta na democracia e na integração do Brasil à economia mundial corre perigo nas eleições de 2018.

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Luiz Carlos Azedo: Mesmo em cana?

O PT quer caracterizar o julgamento de Lula como uma farsa, sem sustentação legal, cujo objetivo seria promover uma grande fraude eleitoral

A primeira grande interrogação das eleições de 2018 tem data de validade: 24 de janeiro. Pela Lei da Ficha Limpa, caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Siva seja condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, por unanimidade, estará automaticamente fora da eleição. É a regra do jogo. A rigor, pela jurisprudência, poderá também entrar em cana, até que o caso seja resolvido em última instância, ou seja, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, na prática, não é assim que as coisas funcionam: a inelegibilidade de Lula precisa ser oficializada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que trabalha em outro diapasão e é capaz de absolver por “abundância de provas”, como aconteceu com a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, para não desestabilizar politicamente o país.

Nos bastidores do Judiciário, há uma grande expectativa de mudança de entendimento do Supremo quanto à prisão por condenação em segunda instância, ou seja, poucos acreditam que Lula vá para a prisão caso seja condenado pelo TRF-4. De certa forma, isso já está meio “precificado”, como gostam de dizer os analistas de mercado. A razão é simples: o ministro Gilmar Mendes lidera uma nova maioria no STF a favor da revisão dessa jurisprudência. A novidade mesmo seria outra: a possibilidade de o líder petista, mesmo condenado, concorrer às eleições, graças a chicanas jurídicas e ao corpo mole do TSE, que julgaria o caso só após as eleições, como é comum acontecer com prefeitos e até governadores.

Até agora, por causa da Ficha Limpa, o cenário eleitoral de 2018 com Lula candidato estava exclusivamente relacionado à absolvição por falta de provas, que era o discurso adotado pelo petista e seus correligionários, numa linha de defesa cujo eixo era jurídico. Condenado a nove anos pelo juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal, diante da frequência com que os desembargadores federais do Sul confirmam as sentenças de Curitiba, Lula subiu o tom contra a Lava-Jato. Em sintonia com outros políticos enrolados na Justiça, intensificou a pré-campanha eleitoral, além de organizar um movimento de solidariedade nas redes sociais que mobiliza artistas, intelectuais, juristas e políticos de várias nacionalidades ligados ao PT e partidos aliados no exterior.

O eixo da campanha é caracterizar o julgamento de Lula como uma farsa, sem sustentação legal, cujo objetivo seria promover uma grande fraude eleitoral, o “golpe dentro do golpe”, no jargão da narrativa petista. Paralelamente, pressionar o STF para apartar a condenação criminal de Lula da questão eleitoral, flexibilizando a Lei da Ficha Limpa. Caberia ao eleitor absolver Lula nas urnas; sua vontade soberana estaria acima da lei e dos tribunais. O êxito da campanha petista dependerá, porém, do entendimento do TSE.

Rotatividade

Em dezembro passado, o ministro Luiz Fux foi eleito presidente, tendo a ministra Rosa Weber como vice. Em entrevista a jornalistas após sua eleição, Fux expôs sua posição de princípio: “A aplicação da Ficha Limpa é uma lei de iniciativa popular. Então, significa dizer que aí há a necessidade do prestígio da soberania do povo em razão dos cargos que serão disputados. Eu sempre prestigio a Lei da Ficha Limpa”. Também foi enfático quanto à necessidade de decidir o assunto em tempo hábil: “Então, é no momento do registro da candidatura que se olha para trás para verificar se aquele candidato atende aos requisitos de ética e moralidade que a sociedade deseja e exige de seus representantes políticos”, destacou. Mas a Corte terá três presidentes em 2018, ou seja, uma inédita rotatividade de comando.

O TSE é formado por sete ministros. Três são do STF, dois do Superior Tribunal de Justiça (STJ), um dos quais será o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, e dois juristas advogados, nomeados pelo presidente da República. Gilmar Mendes passará o comando da Corte depois de 14 de fevereiro, mas Fux exercerá o cargo somente até 15 de agosto, ou seja, será substituído em plena campanha eleitoral; antes disso, Rosa Weber terá deixado o tribunal, pois seu mandato acaba em 24 de maio. Na linha de sucessão estão os suplentes Luís Roberto Barroso, cujo segundo mandato termina em 3 de setembro; Luiz Edson Fachin, cujo mandato acaba em 7 de junho, mas ainda pode ser reeleito; e Alexandre de Moraes, com mandato até 25 de abril de 2019.

Entre os demais integrantes da Corte, o atual corregedor, Napoleão Nunes Maia Filho, do STJ, deixará o cargo em 30 de agosto. Seu substituto natural é o ministro Jorge Mussi, com mandato até 24 de outubro. A vaga aberta entre os titulares indicados pelo STJ seria do ministro Luiz Felipe Salomão. Os ministros Admar Gonzaga Neto e Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, representantes dos advogados, estão rindo à toa: os mandatos terminarão somente em abril e maio do próximo ano, respectivamente. Ambos votaram pela absolvição da chapa Dilma-Temer, como os ministros Gilmar Mendes e Napoleão Maia.

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Monica de Bolle: A solidão da América Latina

No Brasil, prevalece o embate Lula-Bolsonaro, com um centro pulverizado

Fim de ano é sempre época de escrever colunas e artigos sobre o que esperar para o próximo na política, na economia. É sempre tempo de dar algumas pinceladas nos desafios, aflições, dilemas e agruras. O ano de 2018 será marcado por algo quase sem precedentes na América Latina: cerca de 420 milhões de pessoas serão chamadas às urnas para escolher quem determinará o destino de seus países, dentre os quais estarão três das maiores economias da região – Brasil, México e Colômbia. Ao contemplar o destino incerto e nebuloso desses três países, é impossível escapar da sensação de que 2018 será o ano da política nos tempos da cólera nessa região que, apesar de avanços, solitária permanece. “Pátria imensa de homens alucinados”, assim definiu Gabriel García Márquez a América Latina em seu discurso, cujo título encabeça esse artigo, na entrega do Nobel de Literatura em 1982.

A violência física e econômica da desigualdade, a brutalidade da corrupção, temas de 1982 para García Márquez, temas de 2018 para os eleitores latino-americanos. Os eleitores latino-americanos, habitantes de região tão frequentemente esquecida, carente da atenção mundial, da consideração dos EUA, já que no centro das grandes batalhas geopolíticas não está, por maior que seja, hoje, a presença da China.

Solitários, desiludidos com seus governantes, enraivecidos uns com outros ante a polarização crescente que caracteriza tudo e todos, eleitores que representam quase 80% do PIB da região escolherão os próximos homens e mulheres que hão de compor seus governos no ano que vem. Tais decisões não estarão circunscritas às fronteiras de cada nação. Os novos governos e suas diretrizes econômicas fadados estão a influenciar o restante da América Latina e seus eternos conflitos.

Quais são esses conflitos? O controle da economia pelo mercado versus o controle da economia pelo governo; a eficiência versus a justiça social; a tomada centralizada de decisões versus a transparência democrática. Esses conflitos, hoje, estão exacerbados na região pelos escândalos sucessivos de corrupção, e pela capacidade desses escândalos de atravessar fronteiras.

Há alegações de envolvimento ilícito de construtoras brasileiras na alçada da Operação Lava Jato em diversos países latino-americanos, incluindo México e Colômbia, além de Peru, Equador, Argentina, Chile, Uruguai, República Dominicana, Costa Rica, Guatemala, Panamá e Honduras. Como revela ampla literatura sobre os efeitos da corrupção, ela geralmente vem acompanhada de maior desigualdade, prejudica a capacidade do Estado de prover bens e serviços à população, distorce incentivos na alocação de talentos e recursos, e reduz a legitimidade do governo. Isso dificulta o complexo debate sobre o equilíbrio entre o papel do governo e o papel do mercado na economia, levando a reflexões simplórias do tipo “melhor privatizar tudo para eliminar a roubalheira”.

Privatizações podem aumentar a eficiência e reduzir a corrupção, mas podem também aumentar o poder econômico de alguns em detrimento de outros. Como sempre, as melhores soluções e recomendações de política econômica estão no meio, no centro.

Mas, como encontrar o centro, hoje tão solitário em meio à polarização? É essa a pergunta que as eleições latino-americanas de 2018 terão de responder. Na Colômbia, onde se dará o primeiro dos pleitos presidenciais em maio, há a Coalizão Colombiana, cujo objetivo é beneficiar-se da rejeição aos partidos e políticos tradicionais. Há os partidos tradicionais que apoiam o atual presidente Juan Manuel Santos, e há o partido do ex-presidente Álvaro Uribe, o Centro Democrático, cujo viés populista de direita “dura” é claro. Uribe se opôs ferrenhamente ao acordo de paz do governo Santos com as Farc, e o candidato endossado por sua coalizão provavelmente será o principal opositor de Germán Vargas Lleras, candidato respaldado por Santos.

No México, destaca-se a candidatura de Andrés Manuel Lopez Obrador por seu próprio partido, o Morena, de viés populista de esquerda – candidatos mais ao centro, por ora, não aparecem bem nas pesquisas para as eleições de julho. No Brasil, prevalece o embate Lula-Bolsonaro – ao menos até que o destino do ex-presidente seja definido – com um centro pulverizado e repleto de políticos que pouca inspiração trazem ao eleitorado.

Três eleições, várias possibilidades de que delas saia um líder mais extremado, inclinado a desfazer parte das reformas implantadas pelos governos anteriores ou, ainda, sem definição clara do que faria na economia. Colômbia e México têm algum estofo para enfrentar essas incertezas: são países que mantiveram taxas de crescimento razoáveis frente aos desafios internos e externos recentes, que têm economias bem administradas, que não passaram por convulsões institucionais severas.

Já o Brasil não tem a mesma sorte. O País tenta a duras penas engatar uma recuperação cíclica após dois anos de fortíssima recessão em meio a um ruidoso quadro político e convulsões institucionais diversas. A economia ainda necessita de profundo ajuste fiscal ante os déficits projetados para os próximos anos, o governo incapaz será de adotar reformas que sustentem o teto dos gastos públicos erguido há um ano – alguém acredita que a diluída reforma da Previdência será mesmo aprovada em 2018? E a campanha política promete ser das mais sangrentas e insubstanciais que já tivemos.

Tudo isso com o invólucro de uma administração instável nos EUA, de problemas geopolíticos em profusão mundo afora, da sanha populista que se alastra pelo Leste Europeu, pela Turquia de Erdogan, pelas Filipinas de Duterte, e que ameaça, ainda, a estabilidade da Europa.

Disse García Márquez em seu discurso de 1982 que a América Latina “não quer nem tem por que ser um bispo de xadrez sem arbítrio”. Referia-se à falta de vontade própria, à facilidade de ser a região manipulada pelas “potências”. Trazendo seu discurso para a atualidade, a América Latina não tem por que ser manipulada por seus piores instintos, refletidos na pobreza do debate político e suas perversas consequências para a economia. Saberemos em 2018 o destino dos homens alucinados distribuídos nessa imensa pátria.

* Monica de Bolle é pesquisadora do Peterson Institute for International Economics

 


José Arlindo Soares: Alternância sem Ruptura no Chile

 

O Chile acaba de fazer mais uma alternância no comando político do país, ao eleger Presidente da República, em segundo turno, o candidato de Direita Sebastián Piñera, como sucessor da socialista Michelle Bachelet. É a segunda vez que isso acontece na sucessão presidencial após o fim da ditadura militar. O mesmo Piñera já havia sucedido à atual presidente, e fez um governo com um programa liberal, mas sem abalar os fundamentos do sistema democrático chileno.

Com a redemocratização, o Chile retomou a sua tradição partidária e foi possível estabelecer uma solida aliança, a “Concertación”, reunindo os democratas cristãos, o partido socialista e outros grupos da esquerda. O primeiro presidente eleito nessa bem-sucedida coalisão foi o democrata cristão Patrício Aylwin (1990), que teve de governar ainda com a constrangedora presença do General Pinochet como Ministro da Guerra. Na sucessão de Aylwin, a frente democrática (Concertación) voltou a eleger o democrata cristão Eduardo Frei, que avançou bastante na consolidação da democracia no país. Somente na terceira quadra eleitoral, a esquerda socialista conseguiu o rodízio, com a hegemonia da chapa e a vitória da Ricardo Lagos. Em seguida foi eleita Michelle Bachelet, também socialista, mas de uma ala mais à esquerda.

Uma curiosidade é que, como agora, o sucessor foi Sebastián Piñera, representante de uma aliança de direita. O grande desafio dos governos da transição política foi superar os enclaves autoritários, como destaca o pesquisador da Flasco Manuel Garretón. Segundo Garretón, esses enclaves eram de naturezas diversas, como a Constituição elaborada pelo regime anterior, atores renitentes como as Forças Armadas, com poder de veto, a força da Direita não democrática, valores socioculturais autoritários ou éticos, relacionados com os problemas dos direitos humanos. Todas essas questões se submeteram a um processo de pressão /negociação que permitiu ir vencendo ou superando os elementos continuístas do regime militar.

Considerando o atual ciclo democrático, a recente eleição de Piñera é a sétima disputa presidencial, com cinco vitórias da aliança de centro-esquerda e duas da direita. Nessa última eleição, a Frente de Centro Esquerda não conseguiu marchar unida e se dividiu em três candidaturas. O Governo, o partido socialista e o partido comunista (Nueva Mayoria) apresentaram como opção o Senador independente Alejandro Guillier. O Centro, representado pela Democracia Cristã, concorreu com candidatura própria e teve um desempenho inexpressivo. A esquerda mais radical criou um novo movimento (Frente Ampla) e foi a grande surpresa do primeiro turno, chegando bem perto de desbancar o candidato do governo. No segundo turno, o candidato oficial dos socialistas não conseguiu atrair os eleitores da Frente Ampla e teve um desempenho aquém do esperado. Na verdade, não houve esforço por parte de Frente Ampla para somar votos para A. Guillier. Na campanha do segundo turno, a Jornalista Sanchez, candidata da esquerda radical, com mais de 20% dos votos, declarou que pessoalmente votaria em Guillier, mas logo acrescentou “Nós, da Frente Ampla, nos apresentamos como projeto de país, vamos fazer oposição a qualquer um dos candidatos. Não vamos participar do governo, não vamos participar do governo”( El Pais- 18- nov) Trata-se do antivoto, ou seja, do estimulo ao voto nulo.

Nesse clima, Piñera cresceu, aumentou sua vantagem, e prevendo a governabilidade passou a acenar para os eleitores e deputados moderados da Centro Esquerda, isso porque o novo presidente não tem maioria no parlamento. Já na campanha do segundo turno, abriu a perspectiva de discutir a polêmica gratuidade do ensino universitário promovida por Bachelet (El Pais- 19- nov). Os analistas chilenos e internacionais não acreditam em uma virada radical nas leis sociais e nos direitos civis.

A especialidade do novo presidente é a economia, cujos fundamentos ainda não foram mudados, substancialmente, em relação aos deixados por Pinochet. A expectativa é que haja uma redução de impostos para cumprir seu programa de modernização das empresas. O Chile tem uma situação fiscal favorável em relação ao seu entorno na América Latina, embora hoje esteja um pouco alterada, considerando o seu próprio padrão. O importante mesmo é que quase todas as análises apontam para mudanças com base no receituário liberal, com negociação no Parlamento, porém, longe de rupturas radicais.

* José Arlindo Soares é sociólogo e pesquisador do Centro Josué de Castro


El País: Independentistas da Catalunha derrotam Governo espanhol em eleição com participação recorde

Bloco de partidos que querem a separação da Espanha consegue a maioria das cadeiras e poderá eleger novo presidente catalão

Em uma eleição parlamentar apertada nesta quinta-feira, que retratou uma população dividida, os independentistas da Catalunha saíram como os grandes vitoriosos da batalha com o Governo espanhol que se arrasta há meses. Apesar de um partido anti-separatista (Ciudadanos) ter conseguido obter a maior quantidade de cadeiras de deputados, o bloco formado pelos três partidos que defendem o descolamento da Espanha conseguiu a maioria das vagas e terá a quantidade de votos necessária para indicar o próximo presidente catalão. Impuseram, assim, uma derrota ao Governo do primeiro-ministro Mariano Rajoy, que no final de outubro dissolveu toda a cúpula de poder da Catalunha e convocou novas eleições como resposta à realização de um referendo separatista ilegal. A expectativa governista de que a crise poderia ser amenizada após o pleito se esvai e uma nova etapa de incertezas se abre em um país já fraturado.

A eleição desta quinta teve dados de participação históricos: com 90% das urnas apuradas, já se apontada que mais de 80% dos 5,5 milhões de catalães aptos a votar compareceram às urnas, comprovando a importância que este pleito adquiriu na Catalunha. A decisão era maior do que uma simples eleição de deputados. Ela apontaria se o processo separatista ganharia um novo ímpeto ou se seria rechaçado. Durante o dia, os candidatos e líderes dos movimentos convocaram a população para a votação e filas de até 40 minutos foram registradas em alguns colégios eleitorais. Tudo transcorreu sem incidentes, ao contrário do que foi registrado na votação do referendo independentista de 1º de outubro, marcado por forte repressão policial por parte do Governo de Rajoy e o confisco de urnas. Na ocasião, 90% dos votantes disseram sim à independência em uma votação de pouca segurança eleitoral, mas apenas 42% dos aptos a votar participaram —muitos deixaram de ir às urnas porque não queriam legitimar o processo considerado ilegal.

No bloco independentista, o partido que logrou a maior quantidade de cadeiras foi o Junts per Catalunya, cuja lista de deputados é encabeçada justamente por Carles Puigdemont, o ex-presidente destituído por Rajoy após o referendo e que fugiu para Bruxelas para evitar a prisão. Foi seguido pela ERC (Esquerda Republicana da Catalunha), cuja cabeça da lista é ocupada por Oriol Junqueras, o ex-vice-presidente da comunidade autônoma, que se encontra preso preventivamente em Madri. A CUP (Candidatura de Unidade Popular), terceiro partido do bloco independentista, assegurou as vagas restantes para que o bloco obtivesse ao menos 68 das 135 cadeiras do parlamento.

"As forças independentistas voltaram a ganhar as eleições na Catalunha apesar da ofensiva policial e da ofensiva midiática do Governo espanhol", comemorou Marta Rovira, a número dois da ERC. "O resumo desta noite é muito simples: o independentismo voltou a ganhar as eleições e Mariano Rajoy perdeu", destacou. Puigdemont também se pronunciou, de Bruxelas: "Os catalães temos que decidir a solução e nosso futuro, e nenhuma receita que queira prescindir das maiorias parlamentares na Catalunha funcionará."

Os três partidos, que na última eleição, em 2015, lançaram uma candidatura única (a coligação Junts per Sí ou Juntos pelo Sim) não conseguiram chegar, desta vez, a um acordo para formar uma lista de deputados única, mas garantem que se unem em determinados pontos, como a "recuperação das instituições após a aplicação do artigo 155 da Constituição", que permitiu que o Governo central espanhol destituísse o Governo catalão. Uma das discordâncias, especialmente entre o Junts per Catalunya e a ERC era, justamente, sobre o nome que o bloco apontaria para a presidência da comunidade autônoma, caso obtivesse a maioria das cadeiras. Junts per Catalunya é a favor de devolver o Governo a Puigdemont. Enquanto a ERC prefere indicar Junqueras. A incógnita agora é saber a qual nome comum eles devem chegar e se qualquer um dos dois, ausentes fisicamente do Parlamento, poderá assumir a tarefa.

Os partidos anti-independentistas, que formam o bloco denominado constitucionalista (pois apoiam a aplicação do artigo 155 da Constituição e a decisão do Tribunal Constitucional de que o referendo separatista é inconstitucional), também chegaram à eleição divididos em três partidos: Ciudadanos, Partit dels Socialistes e o PP de Rajoy, que tem pouca força na Catalunha. Apesar de suas diferenças políticas, eles prometeram se unir em um Governo de coalizão caso somassem a quantidade de cadeiras suficientes para formar a maioria e eleger um presidente e, com isso, colocar um ponto final no processo independentista. Ciudadanos foi o partido com o melhor desempenho e conseguiu assegurar a maioria das vagas do Parlamento, mas o desempenho dos demais partidos do bloco fez com que eles não alcançassem a maioria.

Após os resultados, o líder do PP na Catalunha, Xavier García Albiol, reconheceu que os constitucionalistas "não foram capazes de gerar uma alternativa diferente ao separatismo no Parlamento". " "Vemos com muita preocupação um futuro social e econômico para a Catalunha com uma possível maioria independentista", ressaltou.

 


Luiz Carlos Azedo: Lula na ofensiva

Agora, quem está na berlinda por causa da Operação Lava-Jato são o núcleo palaciano do PMDB e a cúpula do PSDB

Seriamente ameaçado de uma condenação em segunda instância por causa do caso do triplex de Guarujá, que será julgado no dia 24 de janeiro pelo Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu um grupo de jornalistas ontem em São Paulo para uma entrevista na qual partiu pra cima de seus acusadores e desafiou a Justiça a condená-lo. “Minha condenação será a negação da Justiça. A Justiça vai ter que fazer esforço monumental para transformar mentira em verdade e para julgar pessoa que não cometeu crime. A sentença do juiz Moro, aos olhos de centenas de juristas, é quase uma piada. Tenho tranquilidade de ser absolvido. Eu peço uma única prova. Estamos vivendo anomalia jurídica e política”, disse.

A conversa de Lula com os jornalistas foi uma tentativa meio desesperada de politizar o julgamento e evitar a condenação em segunda instância, que poderia levá-lo à prisão e afastá-lo do pleito do próximo ano com base na Lei da Ficha Limpa. Mesmo que seja condenado, Lula pode ainda evitar a prisão com um recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF), cuja jurisprudência sobre o assunto está sendo revista pela maioria dos ministros, sob a liderança de Gilmar Mendes. Quanto à inelegibilidade, tudo será mais difícil, pois a Lei da Ficha Limpa não dá margem para uma jurisprudência que o beneficie. Lula optou por pressionar os desembargadores federais que vão julgar o seu caso, o que pode não ter sido uma boa ideia.

A entrevista corrobora a estratégia de confrontação com o Judiciário aprovada pelo Diretório Nacional do PT, que caracteriza a eleição sem o petista como uma fraude: “O ataque a Lula configura um ataque à democracia brasileira, especialmente, ao direito inviolável de escolha da cidadã e do cidadão”. Segundo a resolução, “Lula é inocente de todas as acusações urdidas pela mídia e manipuladas por setores do sistema judicial, que afrontam o Estado de direito numa campanha de perseguição política e pessoal jamais vista na história do Brasil. As armações processuais, a parcialidade do juízo, o desrespeito ao direito de defesa, as falsas delações negociadas nas celas de Curitiba; nada disso tem valor jurídico para condenar, sem provas, um homem que sempre agiu dentro da lei”, afirmam.

Tanto na entrevista, como na resolução política, o tom é de confrontação com o Judiciário. O PT se beneficia de um ambiente político que hoje é mais desfavorável aos seus adversários. Agora, quem está na berlinda por causa da Operação Lava-Jato são o núcleo palaciano do PMDB e a cúpula do PSDB, que também se articulam nos bastidores do Congresso e do Judiciário para enfraquecer as investigações. De certa forma, as últimas pesquisas fortalecem essa estratégia, porque Lula continua sendo o candidato favorito às eleições de 2018. Ficou mais fácil para o PT construir a narrativa de que o processo de Lula é uma farsa montada para impedir que seja candidato a presidente da República.

Pesquisas
Os adversários de Lula estão patinando. O Ibope divulgado ontem mostra que os êxitos do governo Temer na economia ainda não foram capazes de produzir uma melhora significativa na sua popularidade, que subiu apenas de 3% para 6%. Para 19% da população, o governo é regular e 74% o consideram ruim ou péssimo. Com esse resultado, nas enquetes eleitorais, Lula cresce em direção ao centro, enquanto Bolsonaro polariza o eleitorado antipetista.

A situação do PSDB também não é nada fácil. Embora a imagem do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, não tenha sido atingida por nenhuma acusação frontal, o mais novo escândalo derivado na Lava-Jato ronda o Palácio dos Bandeirantes, em razão do acordo de leniência da Camargo Correia, que denunciou a existência de um cartel de empresas que atuava na construção de sistemas de metrô em vários estados, entre os quais São Paulo.

Ontem, durante visita a Sorocaba (SP), Alckmin reagiu à situação anunciando que seu governo acionará a Justiça para que os cofres públicos sejam ressarcidos. “O estado é, sim, vítima. E todas as empresas vão ressarcir ao Estado. Nós já determinamos à Procuradoria-Geral do Estado e à Corregedoria e Controladoria-Geral que todas as empresas sejam acionadas, e o estado vai ser ressarcido”, disse Alckmin. Para reforçar a importância dessa decisão, citou a vitória da sua administração na Justiça no caso Alston: “o governo recebeu uma indenização de R$ 60 milhões de uma empresa só.”


El País: Maduro dá primeiros passos para a proibição dos partidos políticos

A Assembleia Constituinte cumpre as ordens de Maduro e dá o primeiro passo para inibir a a participação da oposição

Por Alonso Moleiro, do El País

Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que controla o Partido Socialista Unido da Venezuela, aprovou o Decreto para Validação dos Partidos Políticos. A resolução estabelece que os partidos que decidirem não participar, reduzir sua participação ou boicotar os pleitos eleitorais organizados pelo chavismo deverão se reinscrever no Conselho Nacional Eleitoral, e depositar todas as suas arrecadações para serem admitidos na próxima eleição.

A resolução tem um destinatário especial: as organizações Primero Justicia, Acción Democrática e Voluntad Popular, maioritárias na Mesa de la Unidad Democrática (MUD), que dominam seu voluntariado e órgãos dirigentes. Voluntad Popular é o partido fundado por Leopoldo López há seis anos. Primero Justicia, o partido ao qual pertence o ex-candidato presidencial da MUD, Henrique Capriles Radonski, e o atual presidente da Assembleia Nacional, Julio Borges. Acción Democrática é a histórica organização do período democrático venezuelano compreendido entre 1958 e 1998. López e Capriles Radonski - o primeiro, em prisão domiciliar; o segundo, impedido de participar por uma medida da Controladoria Geral da República - continuam à frente da simpatia popular nas pesquisas de opinião.

Os três partidos tinham decidido não participar das eleições para prefeito realizadas em 10 de dezembro, em protesto contra o que consideraram um inaceitável cúmulo de violações à lei e procedimentos fraudulentos que o Poder Eleitoral vinha defendendo e promovendo durante a campanha para governador organizada em 15 de outubro anterior.

Delcy Rodríguez, presidenta da ANC, justificou a resolução argumentando que foi tomada a fim de “fortalecer o sistema de partidos políticos que dá vida à democracia venezuelana”. “Que não se permita o boicote à participação do povo da Venezuela mediante o exercício do direito ao voto e que, ao contrário, se premie e fomente a participação política.”

O processo de reinscrição junto ao poder eleitoral não deveria estabelecer qualquer exigência especialmente severa para a estrutura política dos partidos, mas as implicações das resoluções da Constituinte chavista não são em vão. Vieram precedidas de um contexto político muito concreto. Há apenas algumas semanas, o presidente Nicolás Maduro, assim como o vice-presidente do PSUV, Diosdado Cabello, tinham dito que os partidos que se colocaram à margem da eleição “se tornariam ilegais”. Este foi o teor do discurso de outros dirigentes chavistas, incluindo uma das dirigentes do Conselho Nacional Eleitoral, Socorro Hernández, que advertiu que a decisão de abster-se nas eleições para prefeitos “terá suas consequências”.

Primero Justicia, Acción Democrática e Voluntad Popular, os três partidos da MUD que decidiram não participar da eleição para prefeito, mas que pareciam dispostos a lutar por melhores condições eleitorais para poder participar das presidenciais, teriam então que ir ao Conselho Nacional Eleitoral em janeiro, depois do recesso de Natal, para dar entrada em um processo administrativo que, muito provavelmente, será cuidadosamente burocratizado.

Nos círculos políticos de Caracas se especula que o Governo pode ter interesse em adiantar o quanto possível a eleição presidencial de 2018 para pegar a oposição desmobilizada. As próximas eleições presidenciais poderiam prender esses partidos à teia de aranha regulatória do CNE, e com isso deixá-los formalmente impedidos de participar. Em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional Eleitoral tinha obrigado todos os partidos de oposição, incluindo os três sancionados, e alguns grupos menores aliados à Revolução Bolivariana, como o Partido Comunista da Venezuela, PCV, a apresentar suas arrecadações e atualizar seu status junto ao Poder Eleitoral, um processo que durou vários meses e que foi encarado com sucesso por quase todos.

A Lei de Processos Eleitorais da Venezuela prevê sanções e exigências de reinscrição apenas no caso de algum partido decidir não participar de dois processos eleitores contínuos para o mesmo cargo. A essas dificuldades teria de ser incluída outra: a Mesa da Unidade Democrática, coalizão dos partidos de oposição, também tem um veto oficial, depois que o dirigente chavista Jorge Rodríguez os acusou de forjar as arrecadações para solicitar o Referendo Revogatório de 2016, figura constitucional que o Conselho Nacional Eleitoral acabou vetando no ano passado.

Com as atitudes do Governo de Maduro nestas semanas, ganha corpo a hipótese de que o chavismo move suas tenazes institucionais para escolher um rival à altura para as próximas eleições presidenciais de 2018. Os três partidos candidatos à sanção fazem parte do denominado G-4, instância dirigente da MUD formada por seus partidos maiores. Deles, só os socialdemocratas de Un Nuevo Tiempo, de postura moderada, que participaram das eleições municipais, ficariam isentos do trâmite.


Luiz Carlos Azedo: A luta certa

Processado pela Operação Lava-Jato, Lula lança o país num novo ciclo de radicalização política, no qual liberais e social-democratas ainda não sabem bem o que fazer

Há cinquenta anos, mais precisamente no dia 13 de dezembro, realizava-se às margens da Represa Billings, em São Paulo, uma reunião política que selou o destino da oposição ao regime militar. Entre os participantes, ex-militares que haviam participado da Coluna Prestes, da Aliança Nacional Libertadora e da Intentona Comunista de 1935, se bateram contra o Estado Novo na clandestinidade, lutaram na Guerra Civil Espanhola e nos campos da Itália como voluntários da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Mesmo derrotados em 1964, disseram não à luta armada. Ao lado de sindicalistas, intelectuais, estudantes e ex-parlamentares, apostaram na organização e autonomia da sociedade civil e na articulação de uma ampla frente política com os liberais para restabelecer a democracia no Brasil.

O 6º Congresso do PCB se realizou em condições dramáticas. O serviço de inteligência da Marinha, o Cenimar, sabia da realização do congresso, porque havia infiltrado um agente entre os delegados de Pernambuco, que fora identificado e isolado ao chegar no Rio de Janeiro. Sua realização, porém, foi noticiada pelo Jornal do Brasil. Poucas pessoas conheciam o local do congresso, um acampamento no meio da mata, camuflado, para que não ser identificado por observação aérea. O ex-cabo Giocondo Dias, secretário de organização, e o ex-tenente-aviador Dinarco Reis, que havia lutado na Espanha e na Resistência Francesa, organizaram o congresso, cujo objetivo era rechaçar a aventura militarista defendida pelo líder comunista Carlos Marighela, que havia rompido com o PCB e comandava a guerrilha urbana no Brasil.

Um episódio dramático quase pôs tudo a perder. Salomão Malina, herói de Montese, na Itália, condecorado com a Cruz de Combate de 1a. Classe, que mais tarde seria secretário-geral do PCB, sofreu um grave acidente ao testar uma granada fabricada para a autodefesa do congresso, que lhe arrancou os dedos da mão direita e perfurou seu pulmão. Foi levado em coma para um hospital, clandestinamente, e operado na emergência; depois, removido entre a vida e a morte para não ser preso.

Mesmo assim, o congresso foi realizado. A existência do “aparelho” era desconhecida da vizinhança. Um rio represado abastecia os banheiros e, na cozinha, um forno foi construído para fazer o pão e evitar compras suspeitas nas cidades próximas. Para a eventualidade de “cair” o congresso, alguns dirigentes ficaram de fora, entre os quais Severino Teodoro Melo, outro veterano de 1935, que mais tarde viria a colaborar com os serviços de inteligência do Exército, supostamente após ser preso na década de 1970. O veterano secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, um mito da esquerda brasileira, porém, participou da reunião.

Voluntarismo

O PCB fez autocrítica do seu próprio golpismo e do voluntarismo com que atuou ao combater a “política de conciliação” do governo João Goulart, do qual fez parte. Também fez autocrítica do cupulismo nos sindicatos. Estabeleceu como objetivo a redemocratização do país e não a tomada do poder; a tática adotada foi unir as forças democráticas, em aliança com os liberais, em defesa da anistia e da convocação de uma Constituinte. Foi um caminho bem-sucedido, ao contrário da luta armada, mas gradativo, de acumulação de forças, que resultou nas vitórias eleitorais do MDB, partido de oposição, em 1974, 1978 e 1982, desaguando na campanha das Diretas Já e na eleição de Tancredo Neves, em 1985.

Nesse processo, houve grandes revezes, como a repressão que se abateu sobre o PCB em 1975, numa operação de “cerco e aniquilamento”, com a prisão de milhares de pessoas e o sequestro e o assassinato dos 12 dirigentes do Comitê Central, entre outros militantes assassinados, como Vladimir Herzog. Mesmo depois da anistia de 1979, a perseguição prosseguiu. Em dezembro de 1982, quando tentava realizar o 7º Congresso, no Centro de São Paulo, toda a cúpula do PCB chegou a ser detida. Mas a democratização e a legalidade do PCB já eram uma questão de tempo.

A política de frente democrática derrotou o regime, mas não foi o PCB que chegou ao poder com a democracia. O velho partido fundado em 1922 por Astrojildo Pereira e seus oito companheiros não sobreviveu ao fim da União Soviética, mudou de nome para PPS e abdicou do velho símbolo da foice e do martelo como gesto de ruptura com o passado e adesão incondicional à democracia. Foram os remanescentes da luta armada, como o ex-ministro José Dirceu e a ex-presidente Dilma Rousseff, que ajudaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a organizar o PT e a vencer as eleições de 2002 e 2006. O mesmo voluntarismo que dera errado na luta contra o regime militar fracassou novamente no governo de Dilma Rousseff, eleita em 2010. Reeleita em 2014, jogou o país na maior recessão da sua história com seu experimentalismo econômico e sua inaptidão para o diálogo político. Acabou afastada do cargo pelo Congresso, que aprovou seu impeachment.

Entretanto, esse voluntarismo não morreu. Processado pela Operação Lava-Jato, Lula lançou o país num novo ciclo de radicalização política, no qual liberais e social-democratas ainda não sabem bem o que fazer. Do outro lado, um saudosista do regime militar e dos tempos do “prendo e arrebento”, o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, cresce como alternativa ao suposto “comunismo” petista. Parece até um filme de época, em plena guerra fria. Entretanto, um pouco de História nos ajuda a compreender que existe outro caminho possível.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-luta-certa/