Eleições

Miriam Leitão: Contradições e perigos

O juiz Sérgio Moro deu ao Roda Viva o dado definitivo sobre a importância de se manter o cumprimento da pena após a condenação em segunda instância. Desde 2016, só na 13ª Vara Federal em Curitiba, houve 114 execuções de pena por esse motivo. Desses, 12 são da Lava-Jato. Os outros 102 foram de “peculatos milionários” e também “traficantes, pedófilos, doleiros”. Será que o STF quer soltar todos eles? Quando, depois da Semana Santa, os ministros do STF se reunirem para decidir sobre o habeas corpus para o ex-presidente Lula, precisam ter em mente o que farão com todos os inúmeros condenados que, pelos crimes mais diversos, estão cumprindo pena no país. Porque o impressionante número de 114, em menos de dois anos, se refere apenas à 13ª Vara Federal.

Quantos são os condenados na mesma situação no resto do país? O habeas corpus para Lula pode ter fundamento e, se for o caso, que eles o expliquem. Mas se suspenderem o cumprimento da pena após o julgamento colegiado do mérito terão aberto o caminho da impunidade. De todo o tipo de criminoso. Do político corrupto, do funcionário público que desviou dinheiro público, do traficante, do doleiro, do pedófilo e do assassino.

O país voltará da Páscoa para a semana em que o STF ficará de frente com as suas contradições, de ter dado um salvo-conduto ao ex-presidente contra suas próprias súmulas e entendimentos. Há situações difíceis de explicar, como a decisão de ontem na 2ª Turma que favoreceu o senador Romero Jucá. Os ministros disseram que a denúncia de que houve doação ilegal do grupo Gerdau a Jucá é fraca e, claro, diante disso a decisão certa foi a que tomaram. Mas sobre o senador pairam tantas dúvidas que seu sonho, como ele bem a expressou, é de parar a Lava-Jato.

Depois da Páscoa haverá também a troca de ministérios. É preciso, em ano eleitoral, blindar o Ministério da Fazenda contra a pressão de políticos. Por isso, neste momento, a maior virtude de um possível ocupante do posto é ser criticado pelos políticos. É o que acontece com o secretário executivo Eduardo Guardia e o secretário de Acompanhamento Econômico, Mansueto de Almeida. No BNDES, também haverá novo presidente.

A Fazenda tem a chave do cofre de um país que está em crônica crise fiscal. No BNDES estão os empréstimos subsidiados. Os dois terão seus atuais ocupantes saindo para possíveis candidaturas presidenciais. A escolha terá que ser a mais técnica possível, e de pessoa que não se submeta a acertos políticos nas decisões do Ministério. Do contrário, a pouca melhora na economia pode retroceder.

Pessoas que ocupam esses cargos deveriam seguir, por bom senso, outra regra de desincompatibilização, mesmo que não escrita. Não é compatível estar nesses postos-chave e negociar uma candidatura. Um trabalho contamina o outro. Quem tem pretensão político-eleitoral simplesmente não pode continuar sendo ministro da Fazenda ou presidente do BNDES. Rabello de Castro anunciou que fará hoje em coletiva o anúncio da sua saída: está usando a estrutura do banco como palanque até na saída. Meirelles ainda continuará no cargo até a semana que vem.

A economia chega ao início do tempo de maior tensão político-eleitoral com vários ganhos, e um deles foi explicado ontem na Ata do Copom. Como a inflação está abaixo do previsto, foi de 0,96% no primeiro trimestre, os juros que caíram para 6,5% devem cair mais na próxima reunião. Além disso, a recuperação econômica está muito devagar, o pouco aumento do emprego ocorre no postos do mercado informal. Diante disso, a Selic será cortada pelo menos mais uma vez.

Mas há um imenso rombo fiscal ainda não coberto. Uma das previsões do ano era a privatização da Eletrobras. Ontem a estatal divulgou mais um resultado negativo. Desde a desastrosa MP 579, de 2012, já são R$ 29 bilhões de prejuízo. Se ela não for privatizada, precisará de aporte do governo.

Numa situação fiscal tão frágil, se um candidato com ideias populistas avançar nas intenções de voto, ou se a área econômica passar a tomar decisões de ampliação de gastos para alavancar a candidatura oficial — seja Meirelles, seja o presidente Temer — o quadro econômico pode piorar fortemente. O país está assim, nesse fio da navalha, em todos os lados.


Luiz Carlos Azedo: O regresso

O ministro Dias Toffoli liberou para julgamento a ação que discute restrição ao foro privilegiado no STF, o que pode jogar para a primeira instância os políticos envolvidos na Lava-jato

Uma das características negativas do processo eleitoral em curso — sim, porque as pré-campanhas já começaram — é o caráter regressivo da polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ), cujos discursos parecem sair das páginas dos jornais dos anos 1960. Se fosse apenas nostalgia, como alguns imaginam, não haveria nenhum risco para a sociedade. Mas acontece que são projetos de poder que se contrapõem radicalmente, ambos de vieses nacionalista e populista, um à direita e outro à esquerda. Ambos anacrônicos em relação às necessidades de integração do Brasil ao mundo globalizado, cosmopolita e democrático, principalmente à revolução digital em curso, mas perfeitamente factíveis se olharmos para o que está acontecendo na política mundial.

Numa cena típica dos anos de Guerra Fria, um ex-espião da antiga KGB (que pode ter sido agente duplo do MI6, o serviço secreto britânico) e sua filha sofreram um atentado com o gás nervoso novichok na cidade de Salisbury, na Inglaterra, o que provocou a mais séria crise diplomática entre Rússia e Ocidente desde a anexação da Crimeia, em 2014. Em solidariedade ao governo britânico, que expulsou 22 diplomatas russos, EUA, Canadá, Austrália, 23 países europeus e a Otan (aliança militar ocidental) também determinaram a saída de diplomatas russos de suas dependências.

A reação do governo britânico levou a que esses países expulsassem mais de 140 diplomatas russos em 48 horas. Às vésperas da Copa do Mundo, a Rússia corre o risco de reviver a crise das Olimpíadas de Moscou, que foram boicotadas pelos Estados Unidos e mais 59 países aliados, por causa da invasão do Afeganistão pela antiga União Soviética (hoje, são os americanos e seus aliados que andam por lá). Ainda bem que o histriônico presidente norte-americano Donald Trump e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-Un resolveram conversar. E o recém-eleito Vladimir Putin, o novo czar russo, resolveu tirar por menos a crise diplomática. Recentemente, arreganhou os dentes ao anunciar novos misseis balísticos intercontinentais inteligentes, capazes de despistar as defesas da Otan. É o preço a pagar.

O cenário reflete uma disputa pelo controle do comércio mundial, cujo eixo deslocou-se do Atlântico para o Pacífico. No esforço de reformas que possibilitem a modernização da economia, os regimes autoritários da Ásia, liderados pela China e Cingapura, levam enorme vantagem em relação às potências tradicionais do Ocidente, onde a democracia representativa está em crise. A Rússia segue a mesma receita, enquanto França, Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha sofrem as consequências políticas do agravamento das desigualdades pela globalização. Em todos esse países, uma reação xenófoba alimenta a reação conservadora ao desemprego estrutural e à chegada de imigrantes do Norte da África e do Oriente Médio. O regresso não é um fenômeno isolado. Sua maior conquista foi a eleição de Trump. No Brasil, as eleições parecem não estar nem aí para esses problemas, como se nada tivessem a ver com o nosso futuro. Mas têm.

Judicialização

A judicialização da política também impressiona. Vejam as notícias de ontem: a família do relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, está ameaçada; a Segunda Turma do STF autorizou a prisão domiciliar do ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Jorge Picciani; o ministro Dias Toffoli autorizou o ex-senador Demóstenes Torres a disputar as eleições para o Senado, suspendendo sua inelegibilidade; e. também liberou para julgamento a ação que discute restrição ao foro privilegiado na Corte, o que pode jogar para a primeira instância os políticos envolvidos na Lava-jato. O foro por prerrogativa de função garante presidente, ministros, senadores e deputados federais serem julgados somente pelo Supremo. O julgamento depende de a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, pôr a ação na pauta da plenária. Essas decisões são música aos ouvidos dos políticos enrolados na Operação Lava-Jato.

Esse fenômeno da judicialização da política não é uma jabuticaba. Existe em razão da construção do Estado de bem-estar social após a II Guerra Mundial, que consagrou os direitos sociais com uma centralidade que rivaliza com os chamados direitos civis e a democracia representativa. As soluções políticas, no âmbito do Executivo ou do Legislativo, por essa razão, acabam gerando demandas na Justiça. No Brasil, os partidos de oposição são contumazes nesse tipo de recurso, dando ainda mais protagonismo ao Ministério Público e ao Judiciário. Agora, porém, a agenda é a crise ética, por causa da corrupção na política. Mudou-se a natureza da judicialização, que passou a ser um vetor decisivo nas eleições deste ano.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-regresso/


Eliane Cantanhêde: Corretivo no elemento?

Eleição ou guerra? Socos em repórteres, ovos e pedras, a ameaça de cadáveres...

O ex-presidente Lula saiu da sua zona de conforto e foi se meter na Região Sul, onde a recepção à sua caravana tem sido bastante diferente da que encontrou no Nordeste. Pedras, ovos, gritos e estradas bloqueadas estão mostrando não só a irritação contra Lula e o PT, mas também o grau de radicalização da campanha, que tende a piorar.
Soou estranho, até uma provocação, Lula sair em caravana no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina justamente quando o TRF-4, de Porto Alegre, estaria confirmando a sua condenação a 12 anos e 1 mês. Primeiro, porque ele se pôs perigosamente próximo ao palco da decisão. Segundo, porque o Sul é refratário a Lula – e não é de hoje. Terceiro, porque a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que está na primeira fila das ações no STF, é do Paraná.
Rejeite-se qualquer tipo de violência e agressividade contra candidatos, que pode ir num crescendo e acabar virando uma nova modalidade de guerra de torcidas que, nos estádios, já coleciona feridos e mortos. Se Lula sobe no palanque antes da hora (e a Justiça Eleitoral não vê nada de mais), deixa o homem falar. Ouve quem quer.
Feita a ressalva, preocupa também a reação de Lula, que não poupa ameaças de revide e, em São Miguel do Oeste (SC), recorreu a uma expressão nada democrática ao atiçar a polícia para entrar na casa de um manifestante e “dar um corretivo” nele. Como assim? Invadir a casa do cidadão? Dar um corretivo? Lula quer que a PM encha o “elemento” de pancada?
Pela força, simbologia e significado, vale a pena transcrever a fala do ex-presidente, que, um dia, décadas atrás, já foi alvo da polícia por defender a democracia e os direitos dos trabalhadores: “Tem um canalha esperando que a gente vá lá e dê uma surra nele. A gente não vai fazer isso. Eu espero que a PM tenha a responsabilidade de entrar naquela casa, pegar esse canalha e dar um corretivo nele”.
Os petistas e seus satélites nunca jogaram ovo em ninguém? Nunca atiraram pedra em protestos contra adversários? E Lula nunca ameaçou convocar o “exército do Stédile”, referindo-se a João Pedro Stédile, do MST? Então, é aquela velha história: pimenta nos olhos dos outros...
Se a campanha oficial nem começou e já chegamos à fase de ovadas e pedradas, o risco é a eleição sair do controle, estimulada pelo excesso de candidatos versus a falta de ideias e programas, pelos processos, condenações e salvos-condutos envolvendo um ex-presidente que é o líder das pesquisas.
Uma coisa não está clara, mesmo quando se lê o noticiário: quem são os que protestam contra Lula na Região Sul? Eles são vinculados a algum setor, igreja, movimento? E estavam ou não a serviço de uma outra candidatura e partido? Espontaneamente ou a soldo? Na versão de petistas, eles são da “extrema direita”. Apoiadores de Jair Bolsonaro, por exemplo?
Uma coisa é protesto contra mensalão, petrolão, triplex, sítio... Outra é o surgimento de milícias movidas a ideologia que querem confronto e pavor. Ainda mais depois de Gleisi dizer que, “para prender o Lula, vai ter que matar gente”.
Ela falou isso quando a condenação de Lula já conduzia à conclusão lógica – e jurídica – de que ele acabaria sendo efetivamente preso. Só não foi, frise-se, por um salvo-conduto do STF que contraria o próprio entendimento do STF autorizando a prisão após segunda instância.
Se um lado ameaça com cadáveres e esmurra repórteres, enquanto outro reage com ovos e pedras, será eleição ou guerra campal?
(In)coerência. Os indignados com O Mecanismo, de José Padilha, são os mesmos que aplaudiram a cadeira “O Golpe de 2016”, na UnB, uma universidade pública. É a história da pimenta, de novo...

Folha de S. Paulo: Meirelles decide renunciar à Fazenda para trabalhar candidatura ao Planalto

Ministro vai se filiar ao MDB e cogita ser vice de Temer caso não decole até junho

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, decidiu deixar o cargo no início de abril, filiar-se ao MDB e tentar viabilizar sua candidatura ao Palácio do Planalto.

Segundo a Folha apurou, o ministro bateu o martelo na sexta-feira (23), em conversa com o presidente Michel Temer, e indicou os nomes dos secretários da pasta Mansueto Almeida (Acompanhamento Fiscal) e Eduardo Guardia (Secretaria-Executiva) para sucedê-lo.

 

Meirelles vai migrar para o partido de Temer mesmo sem a garantia de que será o nome da sigla ao Planalto.

Na conversa com o presidente, de acordo com aliados, o ministro disse saber que não tem a preferência dentro do MDB para a candidatura, mas que quer tentar se viabilizar até a decisão final do inquilino do Palácio do Jaburu, em junho.

Caso não decole, Meirelles cogita aceitar ser vice na chapa de Temer. Na semana passada, quando rumores sobre essa possibilidade começaram a crescer no Planalto, o ministro não rechaçou, de início, a ideia. “Não fui convidado [para ser vice]. Trabalharei com fatos. Vamos ver”, disse à Folha na quarta (21).
Quem ecoa a tese de uma chapa puro sangue no MDB admite que hoje não há outro nome que queira compor com Temer e sua baixíssima popularidade —6%.

Em entrevista à revista “IstoÉ”, neste fim de semana, o presidente reforçou sua disposição de concorrer em outubro para, segundo ele, defender o legado de seu governo. Afirmou que seria “uma covardia” não disputar à reeleição, já que precisa mostrar “o que tem sido feito”.

MISSÃO CUMPRIDA
Em conversas recentes com auxiliares, Meirelles disse que “cumpriu uma etapa” ao assumir a Fazenda durante a recessão de 2016 e que, mesmo reconhecendo que suas chances de ser eleito são pequenas —ele tem apenas 2% nas pesquisas—, acredita que deve assumir o risco.

Aos 72 anos, o ministro considera que pode ser sua última oportunidade de disputar uma eleição presidencial.

O anúncio oficial de sua renúncia deve ser feito no dia 2 de abril, antes de Meirelles viajar para dois eventos no exterior —em Portugal e nos EUA— na próxima semana.

Ele deve ficar no cargo até 6 de abril, sexta-feira. No sábado (7), termina o prazo para que candidatos deixem seus postos no governo.

Nas últimas semanas, Meirelles se reuniu com Temer diversas vezes para conversar sobre o cenário eleitoral. Deixou claro que queria ser o candidato do MDB à Presidência, mas ouviu que não era possível garantir que ele ganharia o aval da sigla.

Ao contrário de Meirelles, que precisava deixar o cargo até 7 de abril se quisesse concorrer às eleições, o presidente tem tempo e aposta no aumento de sua popularidade até meados de junho para definir se vai entrar ou não na disputa.

Hoje, Temer tem 1% das intenções de voto, segundo o Datafolha.

Um dos principais auxiliares do presidente, o ministro Moreira Franco (Secretaria-Geral) é o grande entusiasta de sua candidatura à reeleição e, em uma das conversas com Meirelles, disse que o MDB era “complexo”, que ele era “bem-vindo” na sigla, mas que não seria possível prometer nada sobre a vaga de candidato agora.

 


PD #49 - Priscila Cruz e Rafael Parente: Quem sabe faz a hora

É crescente o sentimento de estarmos caminhando para um esvaziamento político, de rareamento de candidatos viáveis para 2018 e fragilidade da governabilidade. Novos nomes não garantem a tão necessária nova política, ou a reconstrução  do país. Mas não sairemos do lugar se continuarmos fazendo as mesmas coisas com as mesmas pessoas.

É difícil imaginar que as lideranças políticas que estão no comando há décadas sejam capazes de agir de modo diferente, de promover políticas públicas para a instituição de uma democracia participativa, um Estado empreendedor ou um governo digital. Na contramão de mais abertura e transparência, há a tentativa de construir muros na reforma política discutida recentemente no Congresso Nacional que impeçam a participação da nova geração, com a defesa de cláusulas de barreira que privilegiam os grupos atuais e o voto em lista fechada.

Como em outras áreas, a inovação começa na periferia do sistema, cresce e amadurece em direção ao centro. No caso, ao centro do poder. Já é possível ver movimentações crescentes da juventude brasileira que quer pensar o país e participar da política. São estudantes do ensino médio, ativistas, empreendedores sociais, lideranças em áreas como segurança pública, meio ambiente, educação, de 20, 30, 40 anos.

A maioria está do lado de fora dos partidos políticos e tem dificuldade para se inserir na lógica partidária atual, uma vez que a governança é mal implementada (por isso, movimentos a  favor das prévias, como o Quero Prévias) e há pouco diálogo interno para a construção de princípios, diretrizes e projetos (por isso, movimentos que buscam ampliar o diálogo e rejeitam as polarizações paralisantes, como o #VemPraRoda).

Alguns nomes da renovação querem entrar na política nacional, mas como candidatos independentes (como os da Bancada Ativista), porque não se sentem representados pelos partidos, e outros estão se articulando para estabelecer novas estratégias de entrada coletiva na política, partidária ou não, como o Agora! e o Acredito.

Diferentemente dos movimentos juvenis dos anos 1960 e  1970, que tinham outros desafios e uma agenda muito mais focalizada notadamente na luta contra a ditadura –, os de hoje têm agendas mais difusas, o que pode significar maior relevância ou risco de irrelevância. Pretendem refundar a política nacional sobre uma nova base ética, para a construção de um país com menos desigualdade social e econômica, ambientalmente mais sustentável, com menos violência e mais tolerância.

Um Brasil que defina seu projeto de desenvolvimento sabendo valorizar a diversidade, a alegria, as manifestações de fé, os biomas e a cultura de sua gente. Um país que invista em seu povo e esteja aberto à maior participação de todos.

Ainda não há como saber para onde vão esses movimentos. Podemos supor que alguns vão crescer e outros se fundir, desaparecer, ressurgir em outros tempos e espaços. Mas é possível afirmar que muitas pessoas envolvidas na agenda inicial deles, em breve, estarão ocupando as mais altas posições de decisão do nosso país.

É possível também arriscarmos dizer que teremos um pouco mais de renovação nas eleições de 2018 e muito mais nas de 2022. Não podemos entrar na terceira década do século 21 com as mesmas lideranças da metade do século passado. A renovação é imperativa e o revigoramento das instituições democráticas, uma necessidade.

O pior que pode nos acontecer é não aproveitarmos  este  momento de crises múltiplas – ética, econômica, política –  para  criar novo projeto de nação, com  renovadas  e  fortalecidas  formas de atuação, tanto governamentais quanto da sociedade civil. Um projeto de nação que corrija o maior erro do nosso passado – o descaso com a base de um país que pretende ter desenvolvimento econômico e social sustentável: o  compromisso  com  educação básica pública de qualidade para todos.

Além de abertura para que a geração mais jovem ocupe espaços no Executivo e no Legislativo e construa um novo Brasil, é igualmente importante termos uma sociedade civil fortalecida, que saiba debater entre si, formular posições que vão além dos consensos rasos e tenha agendas de incidência com os governos. Ainda há poucos grupos organizados assim.

São movimentos políticos – pois, ainda que não partidários, participam ativamente nas decisões de políticas públicas – como Nova  Democracia,  Todos  Pela  Educação  (TPE),  Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Ceipe, Rede Nacional da Primeira Infância, Igarapé, Sou da Paz, Nossa São Paulo e Meu Rio.

Além deles, também são fundamentais as organizações sociais que estão surgindo com modelos inovadores e comandadas por jovens lideranças, que visam a apoiar a melhora da gestão pública e preparar agentes públicos,  como  Vetor,  Ensina, MGov,  Tellus  e Datapedia.

Assim começamos a construir outra relação entre a sociedade  e os governos, muito mais conectada, participativa, transparente  e aberta. São grupos que podem fazer o que fazem porque gerações anteriores lutaram contra a ditadura e pela democracia, iniciaram um terceiro setor mais profissionalizado no Brasil e deram espaço para a juventude atuar.

O mesmo precisa ser feito na esfera governamental. Ainda somos poucos. As condições para a participação efetiva de todos são desiguais, pari passu com as desigualdades sociais, econômicas e educacionais que, na maioria das vezes, se sobrepõem.

A construção de um espaço democrático qualificado na sociedade civil – uma democracia real e amadurecida –, que supere as polarizações superficiais, é condição  essencial  para  a  renovação das práticas e lideranças públicas, para alcançarmos  novo  pata-  mar de desenvolvimento, para termos um país que reflita as aspirações de sua população, não projetos de poder  personalistas, que têm como fim o poder em si mesmo.

 


Luiz Carlos Azedo: O “imprendível” Lula

O Supremo, mesmo aos trancos e barrancos, perante a sociedade, vinha exercendo um papel moderador na crise ética. Entretanto, o julgamento de Lula pode subverter tudo isso

O julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal (STF) é uma síntese das incertezas que o Brasil vive às vésperas das eleições deste ano, marcadas para outubro. Condenado, em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), Lula é inelegível em razão da Lei da Ficha Limpa (que somente pode ser alterada por emenda constitucional), mas trava uma batalha política para se livrar da execução imediata da pena no Supremo, que suspendeu o julgamento e lhe concedeu salvo-conduto que impede a prisão.

Para usar um neologismo inspirado na frase famosa do também sindicalista Antônio Rogério Magri, que foi ministro do Trabalho no governo Collor de Mello (“o salário do trabalhador é imexível”), o líder petista é o primeiro político condenado pela Operação Lava-Jato “imprendível” até que todo o processo transite em julgado nas quatro instâncias do Judiciário, revogando, na prática, a jurisprudência do próprio Supremo. A consequência imediata é que o ex-ministro da Fazenda de seu governo Antônio Palocci, que está preso, já entrou com pedido de habeas corpus com o mesmo teor no Supremo. Deverão seguir o mesmo caminho os ex-deputados André Vargas (PT-PR) e Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e provavelmente o ex-governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), entre outros condenados da Lava-Jato.

Na quinta-feira passada, Lula obteve uma inequívoca vitória no Supremo ao conseguir, por 7 a 4, que os ministros levassem a julgamento, contra o voto do relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, o pedido de habeas corpus preventivo para Lula, atropelando decisão anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como já havia transcorrido mais de quatro horas de sessão e alguns ministros estavam com viagem marcada, o julgamento foi suspenso, como se interrompê-lo fosse a coisa mais trivial. A seguir, por 6 a 5, de afogadilho, os ministros decidiram conceder salvo-conduto para Lula não ser preso enquanto o julgamento não acaba. Agora, basta um ministro pedir vista para o julgamento permanecer inconcluso por longo período e Lula se safar da prisão, jogando por terra toda a jurisprudência da própria Corte.

Decisão do Supremo não se discute, cumpre-se. Essa é a regra de ouro da democracia, sem a qual vai embora seu principal pilar de sustentação, o poder moderador do Supremo. Entretanto, são favas contadas a rejeição do embargo de declaração dos advogados de Lula contra sua condenação pelos desembargadores federais de Porto Alegre; o ato contínuo seria o juiz federal Sérgio Moro determinar a execução imediata da pena. Já que o habeas corpus não foi ainda julgado, o mais sensato será Moro aguardar a decisão do Supremo. Mas vamos supor que não faça isso, que decida pela execução imediata da pena, como manda o rito da jurisprudência vigente, já que salvo-conduto não é habeas corpus? Estará criado um fato político com alto poder de corrosão da imagem do Supremo.

Incertezas

Há muito que a política deixou de ser o monopólio dos políticos, magistrados, diplomatas e militares. Também existe a política dos cidadãos, potencializada pelas redes sociais, um grande teatro virtual, muito mais agitado, movimentado e enganador do que o teatro da política tradicional, cujo palco principal é o Congresso, fórum principal da democracia representativa. A crise ética que o país enfrenta aprofundou o fosso entre a sociedade, que se articula pelas redes, e os partidos políticos, que operam no âmbito do Congresso. Pode ser que isso seja irreversível e, no futuro próximo, se consolide uma natural divisão de trabalho entre a formação da opinião pública, no âmbito das mídias e das redes sociais, e a sua tradução política e institucional pelos partidos no Congresso. Mas é um futuro ideal para a democracia representativa, não é o que acontece.

O divórcio entre a sociedade e o Congresso, por causa das redes sociais, pode se radicalizar ainda mais e se tornar uma ameaça à democracia, como estamos observando no mundo inteiro. Em princípio, não é ainda o nosso caso, já que nossos cidadãos e os partidos têm um encontro marcado nas próximas eleições. E porque o Supremo, mesmo aos trancos e barrancos perante a sociedade, vinha exercendo um papel moderador na crise ética. Entretanto, o julgamento de Lula pode subverter tudo isso, não por causa do habeas corpus, mas por causa de sua desafiadora candidatura a presidente da República, que sustenta nas ruas, como demonstrou com seu périplo pelo Rio Grande do Sul, iniciado no dia de seu julgamento. Lula não se coloca acima da lei, se coloca acima das instituições. Quem mais ganha com isso, porém, é Jair Bolsonaro (PSC-RJ).

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Em discurso emocionado, Freire diz que 19º Congresso Nacional do PPS tem grande “dimensão histórica”

Presidente do PPS afirmou que o centro dos debates deve ser “a nova formação política”

O 19º Congresso Nacional do PPS, aberto na noite desta sexta-feira (23) em São Paulo, tem dimensão histórica e representa uma grande oportunidade para o início da construção de uma nova formação política. A avaliação é do deputado federal Roberto Freire (SP), presidente nacional do partido, que se emocionou em seu discurso inaugural e foi aplaudido de pé pelo público.

Durante o pronunciamento, o parlamentar recordou de outros momentos marcantes da história do PCB/PPS e citou um congresso emblemático realizado no Rio de Janeiro.

“Eu estava me lembrando de um outro congresso que foi tremendamente atritado porque estávamos ali discutindo toda uma vida. Esse congresso foi no Rio de Janeiro. Há vários episódios, é algo marcante”, relembrou. “Ali já começava a ficar caracterizada a derrota do que imaginávamos ser um mundo novo. O fim da experiência do chamado socialismo real. E começamos a preparar a mudança, que foi das mais difíceis.”

Ao traçar um paralelo com o momento atual, o presidente do PPS destacou a proximidade entre o partido e os movimentos cívicos que vêm se integrando à legenda como um fator que pode significar a concretização de uma transformação efetiva.

“Estamos vivendo um momento em que o PPS quer entender como ter futuro. Tal como lá atrás imaginávamos com a mudança dolorida ter futuro, a oportunidade que se oferece agora é que esse futuro pode ser mais radioso”, projetou Freire.

“A representação da cidadania já não se continha dentro dos partidos tradicionais. Começava a surgir a necessidade de uma outra representação para a sociedade”, prosseguiu o deputado. “Dizíamos isso muito antes do tempo. Muitos ainda não perceberam, mas o PPS, hoje, percebeu que esse tempo chegou.”

No momento mais emocionante da abertura do Congresso Nacional do PPS, Freire afirmou que o centro dos debates deve ser “a nova formação política”. “Estamos dando o primeiro passo. Por isso, esse congresso tem essa dimensão. Ele será histórico por isso”, projetou.

“Quero dizer que isso me dá uma alegria muito grande. Não estou emocionado com nada dolorido, ao contrário. Esse congresso representa muito. Podemos estar construindo algo e nós podemos ser protagonistas. O Brasil está precisando de protagonistas para ver se teremos um futuro melhor.”

“Aggiornamento”

Roberto Freire também falou sobre o processo de “aggiornamento” enfrentado pelo PCB/PPS no passado, que qualificou como “dolorido, mas necessário”. “No documento que foi orientador daquele congresso, se dizia que estávamos vivendo outro momento histórico. Discutíamos isso, apontando naquele momento algumas questões que não estavam muito claras. Falávamos que era necessário pensar uma nova formação política”, relembrou.

“Nós podemos estar fazendo um congresso que pode significar um novo futuro. Não tem a dramaticidade daquele, mas tem também uma carga de mudança e busca de futuro tanto quanto aquela. Aquela em cima de uma derrota, com depressão, dolorida. Essa aqui, com esperança. Estamos vivendo um dos melhores momentos que o PCB/PPS já experimentou em toda a sua história”, prosseguiu Freire.

Para o parlamentar, o Brasil passa por um momento “de profunda crise de todas as instituições”. “Agora nós estamos antenados com esse processo de profunda mudança na realidade mundial. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, como dizia [Karl] Marx quando analisava o processo da Revolução Industrial. É um processo que atinge os partidos políticos e todas as nossas instituições, corroídas também pela corrupção.”

Movimentos cívicos e centro democrático

Em sua fala, o deputado Roberto Freire reiterou a importância da integração dos movimentos da cidadania – como Agora!, Acredito, Livres, Renova Brasil, entre outros – ao partido. “O PPS foi escolhido por alguns desses movimentos. Essa nova formação política vai substituir os partidos, que são datados da Revolução Industrial”, analisa. “O PPS quer, junto com esses movimentos, ajudar e participar da mudança. Nós queremos construir essa nova formação política. Não sabemos como vai ser. Evidente que não será o que somos hoje.”

Na parte final do discurso, Roberto Freire reconheceu que ainda há muita indefinição em relação ao cenário eleitoral. “O Brasil precisa de alguém que tenha a coragem de dizer o que temos de fazer. É fundamental que todos nós busquemos a unidade do centro democrático. E algo que é importante ter presente: estamos enfrentando uma crise política que não tem nada de previsível. Não sabemos o cenário daqui a uma semana”, admitiu.

“No dia 7 de outubro [data do 1º turno das eleições], a sociedade brasileira vai dizer que caminhos vamos tomar. Vai se ter a chancela fundamental da soberania popular”, finalizou o deputado.


Fernando Gabeira: A jabuticaba mecânica

A decisão que o STF vai tomar pode manter de pé um edifício moralmente arruinado, mas difícil de ser batido

Semana de trabalho no Rio: chuva, bloqueios de algumas vias. Comecei na GloboNews com uma reportagem sobre o desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha. Trabalho agora fazendo perguntas sobre um crime mais complexo e de repercussão internacional: Marielle Franco. Ele deve envolver, pelo menos é o prometido, o que há de melhor na investigação nacional.

Porém, é um momento também de avaliar como esse desafio está sendo vencido. Em outras palavras, avaliar as nossas chances.

Mas os ventos de Brasília bateram pesado esta semana. Tudo indica que não só Lula não cumprirá a sentença do TRF de Porto Alegre como a tendência mais forte no STF é de acabar com a prisão em segunda instância.

O sistema de corrupção no Brasil tem sido apresentado como um mecanismo: envolve políticos que fraudam licitações, empresas que superfaturam, e devolve uma parte aos partidos políticos.

A decisão que o Supremo vai tomar pode agregar um novo elemento ao mecanismo. É possível desviar dinheiro público, por exemplo, e seguir em liberdade com a esperança mais do que justificada da prescrição da pena. Isso mantém de pé um edifício moralmente arruinado, mas difícil de ser batido.

Uma outra engrenagem do mecanismo foi acionada com a reforma política, em que os partidos garantem sua continuidade, através de farto dinheiro público. É um muro contra as mudanças.

Li que a impossibilidade de prender após segunda instância existe apenas no Brasil. É uma jabuticaba, revestida de um discurso de proteção da liberdade do indivíduo.

O mecanismo, cujas rodas deslizam sobre a imensa jabuticaba, tornou-se um aparato de poder singular que sobrevive apesar das evidências de que a sociedade o rejeita.

Com o muro construído em torno de mudanças é impossível que saia alguma coisa do Congresso, pois grande parte dele depende de longos recursos judiciais para seguir em liberdade.

Aparentemente, a roda rodou. Mas ainda há algumas instituições funcionando, e o poder que a sociedade pode exercer por meio da transparência.

Do ponto de vista de um mecanismo que se desloca solidariamente, o sistema segue o mesmo. No entanto, a sociedade não é a mesma depois da Lava-Jato: cresceu a consciência de que a lei deve valer para todos.

Ainda preciso de um pouco de tempo para refletir sobre as consequências do que me parece um novo momento. Uma delas é uma possível radicalização, com frutos para os extremos.

Isso prenuncia eleições tensas, soluções simples. O Brasil teve 60 mil assassinatos em um ano. É um tema que deveria nos unir ou, pelo menos, nos aproximar. Infelizmente, não temos sabido achar um caminho de acordo sobre como reduzir essas mortes ou mesmo como puni-las adequadamente.

Tudo isso pensado numa semana chuvosa, trabalhando num caso tão triste para um programa seminal, talvez tenha dado a impressão de tristeza. Mas ficar apenas triste é render-se ao imenso mecanismo que, na minha opinião, atrasa o Brasil.

Sobreviver para combater a engrenagem é uma forma de viver, embora não a única. O abismo que separa o sistema da sociedade, e de algumas instituições que a respeitam, será rompido um dia, mesmo que não se saiba precisamente como nem quando vai se romper.

É uma necessidade histórica que acaba abrindo seu caminho. De qualquer forma, os anos difíceis que pareciam longos parecem ganhar agora um novo fôlego.

 


Sérgio Fausto: A velha 'nova esquerda'

Cresce no País apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Esse filme não tem final feliz

Guilherme Boulos teve sua candidatura à Presidência recentemente lançada pelo PSOL. Quem o apoia diz que ele representa a “nova esquerda”. Só se o critério for etário. Boulos de fato ainda não chegou aos 40 anos e tem adeptos na juventude. Mas seu pensamento é velho. Basta dar uma olhada no que diz e escreve. A quem se dispuser recomendo a entrevista publicada no livro A Crise das Esquerdas (Civilização Brasileira, 2017).

Ali ele faz o elogio das experiências bolivarianas Na sua visão, teriam promovido grandes avanços para as massas populares, em contraste com o reformismo aguado dos governos petistas no Brasil. A explicação para a imensa crise que se abate há anos sobre as mesmas massas populares na Venezuela estaria na perda da liderança política de Hugo Chávez e na consequente falta de condição política para o país avançar na trilha das expropriações de propriedades privadas e controle total da economia pelo Estado, aberta sob o comando do falecido líder. Só uma “ruptura revolucionária” permitiria à Venezuela superar a dependência do petróleo e construir o socialismo do século 21.

Nem lhe passa pela cabeça que a tragédia do país vizinho possa ter alguma relação com a destruição produtiva acarretada justamente pelas medidas que ele elogia. Na Venezuela grande parte da população passa fome porque os governos chavistas dizimaram a agricultura do país e mataram a galinha dos ovos de ouro, a PDVSA, estatal do petróleo, que hoje produz bem menos do que ao início do ciclo “revolucionário”. Não há oferta doméstica de alimentos nem dólares para importá-los em quantidade suficiente. Sobre a repressão crescente aos opositores do regime? Nem uma palavra de Boulos. Quanto à Bolívia, nada a declarar sobre a submissão das instituições do Estado à vontade de Evo Morales. A propósito, o presidente boliviano um mês atrás obteve da dócil Suprema Corte o direito que lhe havia sido negado no ano passado por um referendo popular em que a maioria disse não à pretensão de Morales de concorrer a um quarto mandato. Mais um líder bolivariano obcecado por eternizar-se no poder.

Ao analisar a situação do Brasil, Boulos repete surrada ladainha sobre as causas da grave crise fiscal que o País enfrenta. A solução consistiria em aumentar a carga tributária e fazer a auditoria da dívida pública sob a suposição de que parte dela se formou por conluio entre o governo e o mercado financeiro e não deveria, portanto, ser paga. Acertar-se-iam assim (perdão pela mesóclise) dois coelhos com uma só cajadada: o problema do desequilíbrio fiscal e da má distribuição da riqueza no Brasil. É um velho engano, que nenhuma liderança política ou economista de esquerda ou de direita, se minimamente preparado, subscreveria.

A carga tributária total no Brasil já é alta (precisa ser mais bem distribuída, para que os ricos paguem mais tributos, mas aumentá-la teria efeitos negativos sobre o potencial de crescimento do País, que deve ser elevado, e não diminuído). Já a dívida pública, cujo tamanho como proporção do PIB está em níveis perigosamente altos, não tem origem espúria. Ela expressa a acumulação de déficits, exercício fiscal após exercício fiscal. Essa tendência deriva em larga medida do aumento recorrente das despesas públicas, em particular da Previdência Social, nos últimos mais de 20 anos. Sim, os gastos públicos devem ser dirigidos prioritariamente às necessidades básicas da maioria da população, mas é embolorada ilusão desconsiderar os limites ao seu crescimento ou supor que dar o calote na dívida pública resolva o problema fiscal. Serviria apenas para desorganizar a economia e reativar a inflação, em prejuízo dos mais pobres.

Boulos é líder de um movimento social expressivo que luta por uma causa justa: o acesso à moradia digna para todos os brasileiros. Os fins, porém, não legitimam quaisquer meios para alcançá-los. Ele justifica as invasões com base na função social da propriedade, conceito presente na Constituição brasileira. A questão é quem define se esta ou aquela propriedade está a cumprir sua função social ou não.

Apoiado na Constituição, o líder do MTST poderia usar sua capacidade de mobilização para demandar ao Ministério Público, ao Judiciário, a parlamentares e governantes ações e programas de reforma urbana que atacassem os mecanismos de produção e reprodução da desigualdade social nas cidades. Ele, porém, optou por outro caminho, e não é ocasional que o tenha feito. A arregimentação de pessoas pobres em torno do objetivo de invadir para conquistar o direito à moradia é instrumental à sua estratégia de “construção de um poder popular” que, por acumulação de forças com outros movimentos, levará, acredita, à ruptura revolucionária em algum momento futuro. Pela mesma razão, Boulos sustenta a importância de ações de bloqueio de vias públicas. Ao inebriado revolucionário pouco se lhe dá a consequência dessas ações para a vida das pessoas comuns.

Na perspectiva da acumulação de forças rumo à ruptura revolucionária, a violência é uma necessidade histórica que se impõe cedo ou tarde. Essa ideia tem mais de um século e está no cerne do marxismo-leninismo. Na América Latina, ela se expressou ao longo dos últimos anos na formação de milícias bolivarianas armadas pelo governo chavista. Hoje seus grupos mais truculentos, os chamados “coletivos”, se dedicam a intimidar, espancar e, não raro, matar os opositores do regime, em nome da “revolução”.

O Brasil não é e não será a Venezuela. O perigo aqui é outro. Ante o fantasma da desordem social, que grupos de direita sabem explorar, com a ajuda involuntária de discursos irresponsáveis de parte da esquerda, cresce na sociedade o apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Quem já leu ou viveu o suficiente conhece o fim desse filme. E ele não é feliz. Importa evitar que se repita.

* Sérgio Fausto é Superintendente da Fundação FHC

 


Luiz Carlos Azedo: Mudanças de paradigmas

O desprezo da sociedade e o sectarismo ideológico agressivo e virulento nas redes sociais ameaçam as instituições da democracia representativa

Uma das características do mundo em que vivemos é a mudança de paradigmas, ou seja, de modelo ou padrão. Há diferentes tipos de paradigmas — cartesiano, holístico, etc. —, ainda mais quando são abordados temas complexos. Na política, a maior mudança de paradigma em curso é a equiparação do fascismo ao comunismo como paradigmas autoritários e violentos, o que criou condições para a supremacia inequívoca das instituições liberal-democráticas nas sociedades ocidentais.

O problema é que esse tipo de ruptura não se resolve apenas no âmbito das elites pensantes, ou das instituições da democracia, passa também pela consciência dos cidadãos. Até a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, havia uma diferenciação clara entre os regimes fascistas e comunistas, que havia sido sedimentado pelo desfecho da II Guerra Mundial. Agora não há mais, em razão das revelações históricas sobre crimes cometidos por esses regimes e, também, pelo do fato de que os cidadãos do leste europeu fizeram uma opção pela democracia liberal.

É aí que se estabelece um novo paradoxo. Nas democracias do Ocidente, em que pese essa clara hegemonia das ideias liberais, existe um mal-estar generalizado da sociedade em relação às instituições políticas da democracia representativa. E uma espécie de recidiva de ideias autoritárias, não apenas na periferia, mas também em nações que foram protagonistas do status político alcançado após a II Guerra Mundial, entre as quais Alemanha, França e Estados Unidos. Esse fenômeno também ocorre nos países periféricos, com o agravante de que esses sofrem ainda mais as consequências do aumento das desigualdades com a globalização.

Entretanto, é erro imaginar que a universalização da democracia está dada. Na verdade, ao contrário, vem sendo ameaçada, seja pelo desprezo de parcela considerável da sociedade às instituições da democracia representativa, seja pelo sectarismo ideológico agressivo e virulento nas redes sociais. Sem falar no terrorismo fundamentalista de inspiração religiosa, que não deve nunca ser subestimado.

Habeas corpus

É nesse contexto que o Brasil enfrenta as próprias contradições e mudanças de paradigmas. No momento, o palco dessa mudança no plano político é o Supremo Tribunal Federal (STF), cujo protagonismo em relação aos demais poderes em razão da Constituição de 1988 tornou-se inequívoco após a Operação Lava-Jato. Esse protagonismo, entretanto, parece que bateu no teto. Profundas divergências se instalaram na Corte, agravadas por um comportamento errático se considerarmos a sequência de suas decisões.

Uma dessas mudanças de paradigma na política brasileira é a questão da execução das penas para condenados em segunda instância, jurisprudência do Supremo que adotou um procedimento comum na maioria das democracias ocidentais, mas que contraria o princípio jurídica brasileiro de garantir o “transitado em julgado”, ou seja, a conclusão do julgamento em quatro instâncias, principalmente para crimes de colarinho branco. Num país de fortes tradições patrimonialistas de suas elites política e empresarial, essa jurisprudência é uma mudança de paradigma em relação ao histórico de impunidade dos poderosos.

Ontem, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram adiar para 4 de abril a conclusão do julgamento do habeas corpus preventivo de Luiz Inácio Lula da Silva, impetrado pela defesa com o objetivo de evitar a prisão do ex-presidente. Os ministros decidiram uma “questão preliminar” sobre a pertinência do julgamento. Por 7 votos a 4, admitiram julgar o habeas corpus. Mas, quando essa decisão foi tomada, havia transcorrido mais de quatro horas de sessão e o julgamento foi suspenso. Por isso, por 6 a 5, os ministros decidiram conceder salvo-conduto para Lula não ser preso enquanto não se conclui o julgamento no Supremo, mesmo que o embargo de declaração impetrado pela defesa do ex-presidente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região seja negado na próxima segunda-feira. Lula está condenado a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, com execução imediata da pena.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mudancas-de-paradigmas/


William Waack: A clara encruzilhada

O que torna as eleições particularmente perigosas é o fato de estarem imprevisíveis
Parece bem distante de nós o Brasil do comecinho de 1975, quando escrevi pela primeira vez para o Estadão. Mas é fácil voltar no tempo graças às excelentes ferramentas do Acervo do jornal. E duas manchetes de março daquele ano – quando comecei como freelancer do jornal na então Alemanha Ocidental – chamaram minha atenção: “Geisel diz que o Brasil introduziu o planejamento estatal”. E a outra: “Sarney pede estabilidade institucional”.
Quarenta e três anos depois, diante de decisivas eleições em outubro de 2018, este é o País que ainda convive com clãs políticos como o do Sarney, e carrega também a figura quase mítica da intervenção estatal na economia, simbolizada pelo general Geisel?
Experimentamos nestas mais de quatro décadas a tentativa, levada adiante por mais de uma geração, de democratizar o Brasil, torná-lo menos desigual e construir nele um Estado de bem-estar social – que quebrou. E, lá fora, no mundo que continua tão distante para nós, passamos pelo fim da ideia (o fim do fim da História) de que prevaleceria no planeta a ordem democrática liberal – que está sendo quebrada.
Fui correspondente internacional em várias fases por 21 anos na Europa e Estados Unidos e me acostumei a ter de explicar nosso país para públicos estrangeiros. Acabei sendo surpreendido, semana passada, pela pergunta aparentemente simples feita por um alto executivo de uma multinacional alemã, que veio pela primeira vez a São Paulo com a missão, atribuída pela diretoria da empresa dele, de escrever um relatório sobre megatendências nos países emergentes. “Onde o senhor acha que o Brasil estará daqui a 20 anos?”, foi a pergunta.

A ouvi-la quase engasguei com a carne da excelente churrascaria (afinal, somos uma extraordinária potência agrícola, que a gente adora demonstrar para estrangeiros). Olhando para os últimos 40 anos, também para os últimos 20, e tentando enxergar adiante, minha tentação inicial era dizer pro alemão, que acabara de chegar a São Paulo vindo de Xangai: “Seremos mais do mesmo”. Um país aquém do que poderia ser, mas com bolsões de excelência. Grande e rico em recursos, mas pequeno no cenário internacional. Democrático e seguindo mais ou menos as regras de um estado de direito, mas com instituições sempre sob ameaça. Cheio de vigor e criatividade, mas sufocado por regulação, burocracia e corrupção. Já não tão jovem.
“Depende”, acabei dizendo, “daquilo que os brasileiros decidirem no final do ano”. A encruzilhada é clara: vamos seguir a trilha rumo a um país mais aberto, mais justo, que facilita e dá mais oportunidades a qualquer um de empreender, crescer, prosperar? Ou deixaremos que o corporativismo (não só estatal), o populismo fiscal irresponsável (não importa a coloração política) continuem mandando como fizeram particularmente nos últimos anos? O eleitorado entendeu a gravidade das escolhas – e o apego a ideias erradas – que nos levaram ao desastre?
Boa parte do debate no momento está dominada pela selvageria e boçalidade que fizeram de redes sociais sobretudo o lugar da gritaria organizada. E capenga por conta da percepção de que faltam lideranças capazes de criar narrativas políticas mais abrangentes do que o debate circular dentro de tribos de já convertidos. O que torna as próximas eleições particularmente perigosas é o fato de estarem abertas e imprevisíveis.
Há, sim, transformações profundas de cultura política e mentalidades acontecendo no País, mas não há garantia de que elas progridam simplesmente pelo fato de cofres públicos vazios imporem claros limites a qualquer projeto populista. Indignação frente à corrupção também não é suficiente. Não existe inevitável em História, aprendi como repórter. Mas escolhas trazem consequências.

José Antonio Segatto: Desequilíbrio federativo

Representação política desigual viola princípio basilar da cidadania: o de ‘cada cidadão, um voto’

A reforma política, assunto por demais recorrente nas últimas décadas, continua sendo posta como condição necessária para o aperfeiçoamento democrático do País – em alguns momentos é mesmo veiculada como antídoto ou panaceia para todos os males do sistema político. Sinônimo de redefinição das normas político-eleitorais, seus propugnadores e partidários supõem, de fato, promover mudanças substanciais no sistema eleitoral praticado a partir de 1945: substituição do voto proporcional pelo majoritário(distrital), o voto obrigatório pelo facultativo, o presidencialismo pelo parlamentarismo, etc.

Contrastando com essas proposições, vale lembrar que desde os anos 1990 as regras político-eleitorais vêm sendo, gradativa e topicamente, modificadas e, embora nem sempre consensuais, têm corrigido muitas distorções e anomalias da representação política. Pode-se mencionar a redução do mandato presidencial de cinco para quatro anos (1994), a lei dos partidos (1995), a adoção da urna eletrônica (1996), o estabelecimento da reeleição para os cargos executivos (1997), a exclusão dos votos em branco do quadro eleitoral (1997), o impedimento de parlamentares trocarem de legenda (2007), a Lei da Ficha Limpa (2010), a proibição de doação de empresas para campanhas eleitorais (2015), o fim das coligações nas eleições proporcionais a partir de 2020 (2017), a cláusula de barreira de 1,5% (progressiva até 3%) para partidos políticos terem direito ao funcionamento legislativo, acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito (2017), etc.

Além dessas mudanças no sistema eleitoral e de outras pretendidas por determinadas vertentes políticas, há uma questão irresolvida sobre a qual paira um silêncio constrangedor e toda vez que é suscitada forças poderosas (em especial no Congresso Nacional) procuram ofuscá-la por meio de artifícios variados. O problema em pauta é o da desigualdade na representação política dos entes (Estados) subnacionais da Federação. Tal assimetria viola um dos princípios basilares da cidadania: o preceito segundo o qual “cada cidadão, um voto”.

Construção histórico-política, essa desproporção na representação é secular. No fim do Império as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Bahia eram demasiadamente sub-representadas: menos 37%, 30% e 21% respectivamente em relação às demais. A Constituição de 1891 estabeleceu uma cadeira para cada 70 mil habitantes e um mínimo de quatro deputados para cada Estado – favorecendo, de um lado, Estados como Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso e, de outro, preservando a sub-representação de Minas Gerais e, com o aumento populacional, São Paulo. Dando curso a essa tendência, as Constituições de 1934 e de 1946 não só mantiveram, mas acentuaram o desequilíbrio representativo entre os entes federativos – essa segunda estabeleceu em sete o número mínimo de deputados federais de cada Estado, afetando uma vez mais São Paulo, Minas Gerais e Bahia e beneficiando unidades com menor população.

No decurso da ditadura (1964-85), seus mandatários fixaram diversas regras eleitorais, movidos, no mais das vezes, por conveniências de preservação do domínio político arbitrário. Em 1977, por exemplo, foi determinado o mínimo de seis e o máximo de 60 deputados para cada circunscrição, além de se criarem novos Estados (Mato Grosso do Sul e Rondônia). Essas medidas implicavam o aumento da discrepância da representação. Mesmo a Constituição “cidadã” de 1988, ao estabelecer o piso de oito e o teto de 70, facilitar a criação de novos Estados (Tocantins, Roraima e Amapá) e de estatuir o direito à representação para o Distrito Federal, acentuou a sobrerrepresentação de algumas unidades da Federação (DF, MS, TO, RO, AP, AC, SE, RR, etc.) e a sub-representação de outras, como São Paulo, que deveria ter cerca de 110 deputados, e não somente 70.

Essa desproporção é ainda mais evidente na representação dos entes subnacionais no Senado. Nele foi estabelecida, desde a fundação do Estado nacional, a premissa de que todas as unidades têm igualmente três representantes, como forma de assegurar o equilíbrio federativo, não importando sua magnitude eleitoral. Se na representação no Senado não é exequível o princípio da equivalência – “cada cidadão, um voto” –, a paridade estrita, por sua vez, só promove a desarmonia e é, sim, fator de desequilíbrio da representação política. Uma amostra de quão pouco equânime é esse preceito pode ser verificado comparando o valor do voto entre os diversos Estados: o voto de um cidadão em São Paulo vale muitas dezenas de vezes menos que o de um de Rondônia ou Roraima. A representação no Senado foi tornada ainda mais díspar com a sucessiva criação injustificada de novas circunscrições subnacionais, tanto pelo desmembramento de Estados, quanto pela elevação de territórios à categoria de unidades estaduais.

Ao se estabelecer que o voto em alguns distritos vale mais do que em outros está-se, em realidade, subtraindo direitos políticos de grande parte dos cidadãos eleitores do País. Isso, obviamente, tem implicações políticas determinantes na composição dos Poderes e nas formas de mando. Tal falta de equivalência é conveniente à reprodução de oligarquias regionais, sobretudo por ser elemento potencializador de práticas e cultura política clientelistas, fisiológicas e patrimonialistas, tanto no âmbito local quanto na esfera do poder central.

Por conseguinte, a não equalização na distribuição de cadeiras na Câmara e no Senado da República compromete seriamente a democracia. Daí ser a questão central de qualquer reforma política a redefinição das regras no sentido de torná-las estritamente proporcionais (ao eleitorado). Sem uma composição da representação política equitativa e em conformidade com a amplitude do eleitorado, o País estará fadado a continuar a ter um federalismo constringido e desequilibrado.

* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp