Eleições

Luiz Carlos Azedo: A “fulanização” sem projeto

Bolsonaro (PSL), à direita, e Haddad (PT), à esquerda, que lideram a disputa pela Presidência, representam opiniões radicais formadas a partir das redes sociais

Ao contrário do que muitos imaginam, a criação do sistema de representação proporcional uninominal vigente no Brasil, uma jabuticaba de autoria do gaúcho Assis Brasil, teve como objetivo fortalecer os partidos e não os enfraquecer, como afirmam muitos dos seus críticos. Foi a saída encontrada para mitigar uma característica da política brasileira desde a criação da primeira Câmara Municipal, em São Vicente, já em 1532, no início do período colonial: o fato de que os eleitores votam nas pessoas e não nos partidos, seja nos legislativos seja nos executivos. Não é à toa que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso insiste na tese de que um conjunto de ideias, mesmo majoritárias na sociedade, para conseguir se tornar um projeto político viável, precisa encontrar alguém capaz de “fulanizá-las”.

Foi o que aconteceu com a sua eleição para a Presidência em 1994, no embalo do Plano Real, com um programa cujo eixo era a estabilidade econômica, a reforma administrativa do Estado e as privatizações de empresas estatais nos setores siderúrgico e de telecomunicações, principalmente. Àquela época, o candidato favorito nas pesquisas era o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje está preso em Curitiba, em razão do recebimento de vantagens indevidas no exercício da Presidência (corrupção passiva e lavagem de dinheiro). FHC conseguiu “fulanizar” o Plano Real. Por ironia do destino, mais tarde, em 2010, Lula terminou o governo melhor avaliado do que o tucano e hoje isso faz a diferença na hora de “fulanizar” o seu candidato, Fernando Haddad (PT). O mesmo não ocorre com Geraldo Alckmin (PSDB), apoiado por FHC, que goza de enorme prestígio e frequenta as salas de espera dos aeroportos de cabeça erguida, acompanhado apenas da esposa.

Mas voltemos à fórmula de Assis Brasil. O Brasil elege representantes para a Câmara dos Deputados desde 1824, logo após a Independência. Até 1880, durante o Império, o sistema de votação era feito em dois níveis: os votantes elegiam os eleitores (primeiro nível), que, por sua vez, escolhiam os representantes para a Câmara dos Deputados (segundo nível). Em 1881, as eleições para a Câmara dos Deputados passaram a ser diretas. Na Primeira República (1889-1930), três sistemas eleitorais foram utilizados; todos majoritários. O mais duradouro (1904-1930) dividia os estados em distritos eleitorais de cinco representantes; o eleitor podia votar em até quatro candidatos e ainda podia votar no mesmo candidato mais de uma vez, o que facilitava as fraudes em larga escala.

Em 1932, após a Revolução de 1930, novo código eleitoral modernizou o processo: as mulheres passaram a ter o direito do voto; foi criada a Justiça Eleitoral — que ficou com a responsabilidade de organizar o alistamento, as eleições, a apuração dos votos e a proclamação dos eleitos; foram tomadas medidas para garantir o sigilo do voto. Assis Brasil e João Cabral participaram da redação do Código Eleitoral de 1932 e defenderam a introdução do voto proporcional: para Câmara dos Deputados, um sistema misto (com parte dos representantes eleita pelo sistema proporcional), cuja operação era bastante complexa. Mas veio o “autogolpe” de 1937 e Getúlio Vargas suspendeu as eleições, fechou os partidos e o Congresso.

As eleições voltariam em 1945, com o processo de democratização do país. Somente naquele ano, o sistema proporcional proposto por Assis Brasil foi integralmente adotado nas eleições para Câmara dos Deputados e demais casas legislativas, com exceção do Senado, com objetivo de fortalecer os partidos recém-criados, carreando para eles a tradição do voto “fulanizado”. Nas eleições para prefeito, governador, senador e presidente da República, o voto continuou majoritário. O sistema funcionou razoavelmente antes do golpe militar de 1964, que teve outras causas.

Fragmentação
Depois da Constituinte de 1988, o surgimento do financiamento público partidário sem limitações para a criação de partidos, com base no critério de distribuição dos recursos proporcional à composição da Câmara, criou um desequilíbrio terrível na distribuição desses fundos e facilitou a proliferação de legendas, que hoje são 35 com representação no Congresso, situação agravada pelo uso em escala crescente de “caixa dois” nas eleições passadas, conforme revelado pela operação Lava-Jato.

Nesse cenário, os partidos políticos sofreram um grande desgaste, ainda mais agravado pela crise da democracia representativa na sociedade pós-industrial e pela forte influência das redes sociais na formação da opinião pública, à margem dos meios de comunicação tradicionais e dos próprios partidos. Nas eleições deste ano, o fenômeno da “fulanização” da política, que tem tudo a ver com as características da cultura eleitoral do brasileiro (e da velha herança “sebastianista” do salvador da pátria), ganhou novas características. Na reta final do primeiro turno, embora a maioria dos candidatos seja de velhos conhecidos, em razão das crises econômica, ética e política, a eleição se “fulanizou” a partir de narrativas radicais, que aprofundam a fragmentação das forças políticas mais centristas e democráticas, sem que um só candidato consiga unificá-las eleitoralmente.

Os candidatos Jair Bolsonaro (PSL), à direita, e Fernando Haddad (PT), à esquerda, que lideram a disputa, representam o avanço avassalador de opiniões radicais formadas a partir das redes sociais. Caso não surja um nome alternativo pela via do “voto útil”, como prega o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o eixo da disputa se deslocará do centro para um dos extremos e nova escalada de confrontação ocorrerá no segundo turno, aprofundando a divisão da sociedade em torno de suas lideranças, sem nenhum programa unificador, apenas velhas palavras de ordem. Ou seja, teremos a “fulanização” sem ideias novas e projeto de país.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-fulanizacao-sem-projeto/

 


Eliane Brum: Bolsonaro e a autoverdade

Como a valorização do ato de dizer, mais do que o conteúdo do que se diz, vai impactar a eleição no Brasil

A pós-verdade se tornou nos últimos anos um conceito importante para compreender o mundo atual. Mas talvez seja necessário pensar também no que podemos chamar de “autoverdade”. Algo que pode ser entendido como a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo, uma verdade determinada pelo “dizer tudo” da internet. E que é expressa nas redes sociais pela palavra “lacrou”.

O valor dessa verdade não está na sua ligação com os fatos. Nem seu apagamento está na produção de mentiras ou notícias falsas (“fake news”). Essa é uma relação que já não opera no mundo da autoverdade. O valor da autoverdade está em outro lugar e obedece a uma lógica distinta. O valor não está na verdade em si, como não estaria na mentira em si. Não está no que é dito. Ou está muito menos no que é dito.

Assim, a questão da autoverdade também não está na substituição de verdades ancoradas nos fatos por mentiras produzidas para falsificar a realidade. No fenômeno da pós-verdade, as mentiras que falsificam a realidade passam elas mesmas a produzir realidades, como a eleição de Donald Trump ou a aprovação do Brexit. A autoverdade se articula com esse fenômeno, mas segue uma outra lógica.

O valor da autoverdade está muito menos no que é dito e muito mais no fato de dizer. “Dizer tudo” é o único fato que importa. Ou, pelo menos, é o fato que mais importa. É esse deslocamento de onde está o valor, do conteúdo do que é dito para o ato de dizer, que também pode nos ajudar a compreender a ressonância de personagens como Jair Bolsonaro e, claro, (sempre), Donald Trump. E como não são eles e outros assemelhados o problema, mas sim o fenômeno que vai muito além deles e do qual são apenas os exemplos mais mal acabados.

Uma pesquisa de junho do Datafolha mostrou, mais uma vez, que a maioria das pessoas que declaram voto em Jair Bolsonaro (PSL) são jovens: seu eleitorado se concentra principalmente na faixa dos 16 aos 34 anos. O capitão do exército também lidera as intenções de voto entre os mais ricos e os mais escolarizados do país. O candidato de extrema-direita está em primeiro lugar na disputa presidencial de outubro. Isso num cenário sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com Lula, Bolsonaro cai para o segundo lugar. Mas Lula, como sabemos, está preso e impedido de se manifestar num dos mais controversos episódios da história recente do Brasil, um país hoje assinalado pela politização da justiça.

Em pesquisa recém divulgada, a professora Esther Solano entrevistou pessoas na cidade de São Paulo para compreender o crescimento das novas direitas e especialmente da extrema-direita mais antidemocrática, representada por Jair Bolsonaro. Os selecionados cobrem um amplo espectro de posição econômica, de emprego, de idade e de gênero. Solano é professora da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Mestrado Interuniversitário Internacional de Estudos Contemporâneos de América Latina da Universidad Complutense de Madrid. Ela tem se destacado como uma das principais estudiosas do perfil dos participantes dos protestos no Brasil desde 2013, quando foi uma das poucas a escutar os adeptos da tática black bloc em profundidade.

“Ele (Bolsonaro) é um mito porque fala o que pensa e não está nem aí”, diz estudante de 15 anos

A pesquisa, financiada pela Fundação Friedrich Ebert, é ótima, importante e deve ser lida na íntegra. Aqui, me limito a reproduzir um trecho que ajuda a iluminar a questão que apresento nessa coluna:

“No começo da roda de conversa com os alunos de São Miguel Paulista, assistimos a um vídeo com as frases mais polêmicas de Bolsonaro. No final do vídeo, muitos alunos estavam rindo e aplaudindo. Por quê? Porque ele é legal, porque ele é um mito, porque ele é engraçado, porque ele fala o que pensa e não está nem aí. Com mais de cinco milhões de seguidores no Facebook, o fato é que Bolsonaro representa uma direita que se comunica com os jovens, uma direita que alguns jovens identificam como rebelde, como contraponto ao sistema, como uma proposta diferente e que tem coragem de peitar os caras de Brasília e dizer o que tem de ser dito. Ele é foda.

O uso das redes sociais, a utilização de vídeos curtos e apelativos, o meme como ferramenta de comunicação, a figura heroica e juvenil do ‘mito ’Bolsonaro, falas irreverentes e até ridículas, falas fortes, destrutivas, contra todos, são aspectos que atraem os jovens. Se, nos anos 70, ser rebelde era ser de esquerda, agora, para muitos destes jovens, é votar nesta nova direita que se apresenta de uma forma cool, disfarçando seu discurso de ódio em formas de memes e de vídeos divertidos: O Bolsomito é divertido, o resto dos políticos não”.

Na roda de conversa na escola de São Miguel Paulista, na Zona Leste, a mais precarizada de São Paulo, os alunos negam que Bolsonaro faça a difusão de um discurso de ódio. Mas valorizam a sua coragem de dizer coisas fortes. Um garoto de 16 anos resumiu: “Ele não tem discurso de ódio. Tá só expondo a opinião dele, falando a verdade”.

A opinião de Bolsonaro, ou a “verdade” de Bolsonaro, que circula em vídeos de “lacração” do “Bolsomito”, é chamar uma deputada de “vagabunda” e dizer que não a estupraria porque ela não merece, por considerá-la “muito feia”; a afirmação de que sua filha, caçula de cinco homens, é resultado de uma “fraquejada”; a declaração de que seus filhos não namorariam uma negra ou virariam gays porque foram “muito bem educados”. E, claro, sua performance na votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Ao declarar seu voto pelo afastamento da presidente eleita, Bolsonaro homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O herói de Bolsonaro, hoje estampado em camisetas de seus apoiadores, é um dos mais notórios torturadores e assassinos da ditadura civil-militar, um sádico que chegou a levar crianças pequenas para ver as mães torturadas, cobertas de hematomas, urinadas, vomitadas e nuas, como forma de pressioná-las. Sobram ainda declarações racistas de Bolsonaro contra índios e quilombolas.

“Ele (Bolsonaro) não está nem aí com o politicamente correto, diz o que pensa e ponto, mas não é homofóbico. Ele gosta dos gays. É o jeitão dele”, diz uma mulher

Uma das entrevistadas por Esther Solano assim justifica as falas de seu escolhido: “É que ele tem esse jeito tosco, bruto de falar, militar mesmo. Mas ele não quis dizer essas coisas. Às vezes exagera, não pensa porque vai no impulso, porque é muito honesto, muito sincero e não mede as palavras como outros políticos, sempre pensando no politicamente correto, no que a imprensa vai falar. Ele não está nem aí com o politicamente correto, diz o que pensa e ponto, mas não é homofóbico. Ele gosta dos gays. É o jeitão dele”.

Na minha própria escuta de pessoas nas periferias de São Paulo e na região do Xingu, no Pará, em diferentes classes sociais e faixas etárias, escuto seguidamente uma variação destas frases: “Ele é honesto porque ele diz o que pensa” ou “Ele não tem medo de dizer a verdade”. Quando questiono o conteúdo do que Bolsonaro pensa, a “verdade” de Bolsonaro, em geral aparece um sorriso divertido, meio carinhoso, meio cúmplice: “Ele é meio exagerado, mas porque é um sincerão”.

Assim, Bolsonaro não seria homofóbico ou misógino ou mesmo racista para aqueles que aderem a ele, mas um “homem de bem” exercendo a “liberdade de expressão”. Estes são os adjetivos que aparecem com frequência colados ao candidato de extrema-direita por seus eleitores: “sincero”, “verdadeiro”, “autêntico”, “honesto” e “politicamente incorreto” (este último também como um elogio).

Embora o conteúdo do que Bolsonaro diz obviamente influencia no apoio do seu eleitorado, me parece que ele é mais beneficiado pelo fenômeno que aqui estou chamando de autoverdade. O ato de dizer “tudo” e o como diz o que diz parece ser mais importante do que o conteúdo. A estética é decodificada como ética. Ou colocada no mesmo lugar. E este não é um dado qualquer.

Por isso também é possível se desconectar do conteúdo real de suas falas, como fazem tantos de seus eleitores. E por isso é tão difícil que a sua desconstrução, por meio do conteúdo, tenha efeito sobre os seus eleitores. Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre, que ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco ou nenhum efeito sobre os seus eleitores. Porque o conteúdo pouco importa. As agências de checagem são um bom instrumento para combater as notícias e as declarações falsas de candidatos, mas têm pouca eficácia para combater a autoverdade.

A lógica em que a imprensa opera, que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica diversa

Simples assim. Complexo demais. A lógica em que a imprensa opera, quando faz jornalismo sério, que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica diversa. Esse é um dado bastante trágico, na medida em que os instrumentos disponíveis para expor verdades que mereçam esse nome, para iluminar fatos que de fato existem, passam a girar em falso.

Se Bolsonaro participar dos debates ao vivo durante a campanha eleitoral, para uma parcela significativa do eleitorado brasileiro o que vai prevalecer é a estética marcada pelo “dizer tudo” e dizer tudo lacrando. Também por isso Ciro Gomes (PDT), por sua própria personalidade mais agressiva e sua falta de freio na língua, é visto por uma parcela preocupada com a ascensão de Bolsonaro como o mais capaz de enfrentá-lo.

Se esse quadro permanecer, a disputa entre testosteronas infláveis – e inflamáveis – será mais importante do que o conteúdo na eleição brasileira, porque mesmo quem tem conteúdo terá que deixá-lo em segundo plano para ganhar a disputa da dramaturgia. Mais um degrau escada abaixo na apoteótica descida do país rumo à irrelevância.

Se este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, no Brasil há uma particularidade que parece impactar de forma decisiva a autoverdade. Essa particularidade é o crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas e sua narrativa do mundo a partir de uma leitura propositalmente tosca da Bíblia. A retórica do bem contra o mal atravessa fenômenos como a “bolsonarização do país”.

A autoverdade atravessa o discurso religioso fundamentalista como conceito e como estética

Embora os pastores fundamentalistas exaltem a perseguição do “povo de Deus”, a prática mostra exatamente o contrário, ao perseguirem os LGBTQs, as mulheres e, em alguns casos de racismo, os negros. Mas a prática são os fatos, e os fatos não importam. O que importa é a retórica e a forma. A autoverdade atravessa o discurso fundamentalista como conceito e como estética. O milagre da transmutação aqui é justamente fazer com que a estética seja convertida em ética.

Formados nessa narrativa, uma geração de brasileiros é capaz de ler ou assistir a uma reportagem da imprensa mostrando verdades que Bolsonaro gostaria que não subissem à superfície não pelo seu conteúdo, mas pela ótica da perseguição. O conteúdo não importa quando quem questiona o inquestionável é automaticamente um inimigo, capaz de usar qualquer “mentira” para atacar um “homem de bem”. Afinal, as imagens de malas de dinheiro (de dízimo, no caso) foram inauguradas por alguns pastores neopentecostais, muito antes do que pela investigação da Lava Jato, e mesmo assim suas igrejas não pararam de crescer. Bolsonaro torna-se o “perseguido” na luta do bem contra o mal, o que faz todo o sentido para quem é bombardeado por uma visão maniqueísta do mundo.

Produtos de entretenimento como as novelas e os filmes supostamente bíblicos de uma rede de TV como a Record, por exemplo, colaboram para formatar um determinado olhar sobre a dinâmica da vida. Se alguém só vê o mundo de um mesmo modo, não consegue mais ver de outro. Não há mais interpretação, a decodificação passa a ser por reflexo.

Este é o mecanismo que tem se alastrado no Brasil. E que é imensamente beneficiado pela tragédia educacional brasileira. Não é por acaso que a escola pública, já tão desvalorizada e desprestigiada, esteja sofrendo o brutal ataque representado pelo movimento político e ideológico nomeado como “Escola Sem Partido”. O pensamento múltiplo e o debate das ideias são os principais instrumentos para devolver importância aos fatos e ao conteúdo, assim como recolocar a questão da verdade.

Não é um risco que os protagonistas das novas direitas queiram correr. No jogo das aparências, seu truque é sempre o mesmo: fazer um movimento ideológico afirmando que é para combater a ideologia, agir politicamente mas afirmar-se antipolítico, apoiar partidos de direita dizendo-se apartidários. Esse mascaramento só funciona se aquele a quem a mensagem se destina abdicar do pensamento em favor da fé.

A adesão à política pela fé é a grande sacada dos protagonistas da articulação religiosa-militarista que disputa o Brasil deste momento

A retórica supostamente bíblica está educando aqueles que não estão sendo educados. Como produto de entretenimento, as novelas e filmes se articulam com os programas policialescos sensacionalistas da TV, muitas vezes na mesma rede de TV, e os ampliam. Já existe uma geração formada tanto na desumanização dos mais pobres e dos negros, tratados como coisas que podem levar bala nas imagens desse tipo de programa, quanto na adesão à política pela fé, a grande sacada dos atuais protagonistas da articulação religiosa-militarista que figuras como Bolsonaro representam.

A personificação, a valorização do indivíduo, do “Um” que é só ele, jamais um+um, garante que personagens como Bolsonaro e até mesmo Sergio Moro possam encarnar como “O Um”. “O Um” contra o mal, ungido pelas “pessoas de bem”, dispostas a linchar quem estiver no caminho. Afinal, se a luta é do bem contra o mal, tudo não só é permitido como abençoado.

Não testemunhamos apenas a politização da justiça, mas algo possivelmente ainda mais perigoso: a “religiosização” da política

Não há nada mais perigoso numa eleição do que o eleitor que acredita ser “um instrumento de Deus”, absolvido previamente por todos os seus atos, mesmo que eles sejam sórdidos ou até criminosos. Como a lei que vale não é a terrena, laica, mas ditada diretamente do alto e, com frequência, diretamente ao indivíduo, tudo é permitido quando supostamente “Deus estaria agindo”. Não testemunhamos apenas a politização da justiça, mas algo possivelmente ainda mais destruidor: a “religiosização” da política. E ela tem como primeiro efeito a política da antipolítica.

Figuras como Bolsonaro se beneficiam da crise econômica, do crescimento da violência e da produção de medo, sim. Mas sua força vem de uma população treinada para aderir pela fé ao que não diz respeito à fé. Por isso é possível até mesmo fazer política e se dizer apolítico. Se o imperativo é crer, a adesão já está garantida não importa o conteúdo do discurso, desde que a dramaturgia garanta entretenimento, espetáculo. Embora pareçam desacreditar de quase tudo em suas manifestações na internet, ninguém se iluda. Uma parte significativa do eleitorado brasileiro é formada por crentes. E ser crente hoje no Brasil tem um sentido e um alcance muito mais amplo do que em qualquer momento da história do país.

A autoverdade desloca o poder para a verdade do um, destruindo a essência da política como mediadora do desejo de muitos. Se o valor está no ato de dizer e não no conteúdo do que é dito, não há como perceber que não há nenhuma verdade no que é dito. Bolsonaro não está dizendo a verdade quando estimula o ódio aos gays, mas sendo homofóbico. Não está dizendo a verdade quando agride negros, mas sendo racista. Não está dizendo a verdade quando diz que não vai estuprar uma mulher porque ela é feia, mas incitando a violência contra as mulheres e sendo misógino. Há nome na língua para tudo isso e também artigos no Código Penal.

Os jovens da periferia que aplaudem Bolsonaro precisam perceber que o discurso da meritocracia é a sacanagem que os cimenta no lugar do qual gostariam de sair

Muitos daqueles que o aplaudem, especialmente os jovens nas periferias, não percebem que o discurso da meritocracia proclamado pela extrema-direita que Bolsonaro representa é justamente a sacanagem que os mantêm no lugar cimentado do qual gostariam de sair. Não existe meritocracia, ascensão apenas por méritos próprios, sem partir de bases minimamente igualitárias.

Jair Bolsonaro é a encarnação de um fenômeno muito maior do que ele, do qual ele se aproveita. Tanto quanto Donald Trump, em nível global. A tragédia é que eles possivelmente sejam só os primeiros.

O desafio imposto tanto pela pós-verdade como pela autoverdade é como devolver a verdade à verdade

O desafio imposto tanto pela pós-verdade quanto pela autoverdade é como devolver a verdade à verdade. Não faremos isso sem tomar partido por escola de qualidade para todos, apoiando aqueles que lutam por isso de maneira muito mais contundente do que fazemos hoje, assim como pressionando por políticas públicas e investimento, e questionando fortemente os candidatos para além da retórica fácil. Nem faremos isso sem a recuperação do sentido de comunidade, o que implica a reapropriação do espaço público para a convivência entre os diferentes, assim como a retomada da cidade. Temos que voltar a conviver com o corpo presente, compartilhando os espaços mesmo e – principalmente – quando as opiniões divergem. Temos que resgatar o hábito tão humano de conversar. E conversar em todas as oportunidades possíveis.

E isso não amanhã. Ontem. A verdade do momento é que estamos ferrados. Outra verdade é que, ainda assim, precisamos nos mover. Juntos. Não por esperança, um luxo que já não temos. Mas por imperativo ético.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Demétrio Magnoli: Meu lugar na fila

Proteger interesses gerais paga menos dividendos que promover interesses de grupos

Daqui a três meses, no 13 de dezembro, dia do AI-5, em 1968, e do golpe de Jaruzelski na Polônia, em 1981, completo 60. Dizem, para me animar, que terei descontos em peças e shows, vagas reservadas em estacionamentos e filas prioritárias nos aeroportos, supermercados e bancos.

No caso dos bancos, não vale a pena. As empresas que descobriram uma oportunidade nas bondades distribuídas pelo Estado contratam idosos para realizar operações bancárias, tornando mais demorada a fila preferencial. Quanto ao resto, decidi que passo. As políticas de privilégios envenenam a democracia. Não serei um idoso oficial enquanto conservar capacidades físicas normais.

Com exceção de um, meus amigos idosos converteram-se em idosos oficiais. Uma, que corre maratonas em montanhas, tirou carteira de idosa para estacionar bem pertinho da entrada do shopping. A vantagem pessoal tem imenso poder de sedução, principalmente se parece não causar dano a ninguém. Aparências enganam: a meia-entrada, para ficar num único exemplo, é financiada pela elevação universal dos preços dos ingressos. A sociedade em geral paga o desconto garantido por lei a estudantes e idosos, inclusive os abastados.

Pondé registrou, com razão, que um indivíduo “negro”, presumido descendente de escravos, “assimilará essa consciência histórica da culpa como ganho imediato objetivo: cotas nas universidades ou concursos públicos”. A cota de um implica a negação de vaga a outro, que obteve nota superior e pode até ser mais pobre. Mas não se tem notícia de números significativos de candidatos recusando o direito (ou privilégio?) de inscrição para vagas reservadas a cotistas. A lei vale mais que a ética —se, claro, gera ganhos pessoais palpáveis.

A lei legitima, absolve, aplaca a consciência. Procuradores e juízes, esses anjos vingadores do Brasil que tem raiva, justificam seu auxílio-moradia, uma escandalosa política de transferência regressiva de renda, invocando a legalidade. Luiz Fux sentou-se sobre um processo que questionava o privilégio, agindo como sindicalista. O auxílio-moradia é incomparavelmente pior que a carteira de idoso utilizada por nadadores, surfistas, tenistas, triatletas de 60 anos.

Mas por que se produzem ou se perenizam tantas “leis de meia-entrada”? A resposta encontra-se num calcanhar de Aquiles da democracia representativa: a proteção dos interesses gerais, difusos, paga menos dividendos eleitorais que a promoção de interesses específicos, de grupos.

O nome do jogo é corporativismo. Federações empresariais fazem campanha para candidatos que acenam com tarifas protecionistas ou subsídios do BNDES. Sindicatos de trabalhadores e empresários perfilam ao lado dos políticos que acenam com o retorno da contribuição sindical compulsória. As entidades do funcionalismo público marcham com os oponentes da reforma previdenciária.

As igrejas ajudam a formar as “bancadas de Deus” que asseguram isenções tributárias aos porta-vozes terrenos da palavra divina. As ONGs racialistas evitam lançar a pecha de “racista” sobre os que prometem eternizar as políticas de cotas aprovadas originalmente como medidas temporárias.

O “povo”, no idioma da política corporativa, é uma coleção de grupos de interesse. A nação, deduz-se, é um pacto de armistício entre eles. As versões extremas do corporativismo conduzem a sangrentos conflitos étnicos (Biafra, Ruanda), a ditaduras ordenadoras (Salazar, Vargas) ou, nas democracias, simplesmente ao colapso fiscal (Grécia).

O lulismo radicalizou os traços corporativos da tradição política brasileira. A fragmentação partidária atual é uma moldura perfeita para a manutenção dos privilégios de grupo. No aeroporto, à minha direita, uma dúzia de lépidos idosos oficiais somam-se à fila preferencial. Rumamos a uma tragédia grega, qualquer que seja o eleito?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Marco Aurélio Nogueira: Incompetência geral

No próximo ciclo, seja quem for o eleito, a obra será de reconstrução: do Estado, da economia, da política, do tecido social

O cenário eleitoral continua volátil, mas a reiteração das tendências que projetam um segundo turno entre Bolsonaro e Haddad tem sido suficiente para que se dissemine um clima que cruza entusiasmos salvacionistas com receios democráticos e alguma dose de pânico. A pergunta vem se repetindo: como conseguimos chegar a este ponto, em que uma candidatura pouco qualificada e alinhada com a autocracia regressista ameaça defrontar-se no segundo turno com outra sustentada pela expectativa de retorno a um tempo pretérito mitificado? A euforia de uns se choca com a preocupação de muitos.

O desfecho anunciado deve-se a um conjunto de equívocos.

Erraram os democratas, que não conseguiram compreender a derivação conservadora da sociedade, turbinada pela repulsa ao politicamente correto e pela antipolítica. Trataram isso como uma espécie de doença, de forma simplória, com insultos e estigmas. Deixou-se assim caminho livre para a pregação bolsonarista, que foi capturando apoios, mal-estares e convicções. A direita fundamentalista pôs o corpo inteiro para fora, misturando ódio, medo e ressentimento contra a “esquerda”. Bolsonaro decodificou esses sinais e traduziu-os num bólido antipetista.

Os democratas erraram uma segunda vez quando deram o PT como morto, depois da derrota eleitoral de 2016 e do impeachment. Não reconheceram a força do partido, derivada tanto da alta exposição midiática, da estrutura organizacional e das adesões intelectuais quanto da mitificação popular de Lula. Em vez de pressionarem para que o PT se depurasse e revisse suas opções, passaram a mão na cabeça do partido e quando abriram os olhos o velho PT estava mais vivo que nunca, fabricando ilusões, plantando esperanças e ocupando simbolicamente os espaços do “progressismo”.

Foram incompetentes os liberais. Optaram por medir forças entre eles num quadro de polarização em que só teriam chances se formassem um polo alternativo marcado pela moderação. Batendo uns nos outros, naufragaram de modo patético, sem sequer aproveitarem o ambiente receptivo à pregação liberal em favor da liberdade pessoal, do mercado, do empreendedorismo. Fecharam-se à esquerda democrática e foram afundando agarrados a um doutrinarismo primário.

Foi igualmente incompetente o centro-esquerda. Em vez de impulsionar o imaginário social-democrático, que tanta falta nos faz, seus articuladores derivaram para um apoio ao centro que jamais teve reconhecimento e não soube desvencilhar-se do abraço asfixiante do “Centrão”, cujo fisiologismo recebe repulsa generalizada. Olharam para a direita sem se preocupar com a esquerda. Sua ideia de “polo democrático e reformista” ficou solta no ar, sem contagiar o eleitorado ou sensibilizar o mundo político. O centro-esquerda colou-se assim a um centro fragmentado e autodestrutivo, largando Marina e Ciro à própria sorte e ajudando-os a se encantarem com a possibilidade de atrair as viúvas do lulismo.

E foi incompetente, por fim, o PT. Inebriado pelo desejo de vingança, pela vocação de dono da verdade e pela pretensão de comandar com mão de ferro o campo progressista, o partido submeteu-se ao imperialismo religioso do lulismo. Orientado pelas cartas nada gramscianas de um Lula encarcerado, Haddad trocou a ousadia e o arejamento discursivo pela narrativa tosca do “golpe” e do retorno a um passado em que o povo era feliz. Passou a prometer crescimento, abundância e geração de empregos sem explicar como fará isso sem cortes de gastos, sem reforma da Previdência e sem criticar os esquemas de corrupção associados ao modo lulista de governar. Haddad flutua entre o distanciamento e a submissão a Lula. Num dia afirma que vai soltá-lo, no outro diz não ao indulto. Esconde o retrocesso havido nos anos de Dilma para louvar a bonança do período Lula. Dissimula e falseia a realidade, ludibriando os eleitores. Quer pagar de moderado para atrair os não petistas, mas ao adular Lula gera desconfiança e rejeição.

Haddad e Bolsonaro têm seus problemas e dificuldades. O capitão, hospitalizado, vê sua campanha desorientar-se e perder seu principal ativo. Terá de reorganizá-la rapidamente para não perder o que já acumulou. Se vencer, terá de provar que tem condições de governar. Já Haddad, que ganhou fôlego com a ascensão fulminante, precisará buscar os votos dos indecisos, dos antipetistas, dos que não se identificam com nenhum dos polos. Se vencer, terá de demonstrar, dia a dia, que consegue soltar-se de Lula e conter o apetite do PT.

Bolsonaro e Haddad não são equivalentes. Um é autoritário e outro, não. Mas estão atados por um mesmo tipo de cegueira e fanatismo.

O modo como avançou a disputa não sugere que o próximo ciclo será produtivo. As campanhas deseducam a população. Eleitores petistas estão sendo induzidos a acreditar que do céu cairá uma chuva de fartura e facilidades. Os de Bolsonaro acham que ele acabará com a bandidagem e a corrupção. Uns e outros estão cansados e parecem querer ver o circo pegar fogo.

Normaliza-se o que deveria ser visto como risco. A vitória de Bolsonaro ou de uma nova versão do lulismo deixará o País numa situação ruim. A ponte que liga esses dois cenários chama-se ingovernabilidade, alimentada por uma dinâmica de vetos cruzados permanentes, radicalizações e confusão social.

Cada época tem seus limites. Os nossos, no Brasil de 2018, se resumem a poucas palavras: a sociedade abandonou os políticos à própria sorte e os políticos, sem apoio social e sem partidos dignos do nome, perderam as referências e não sabem mais o que fazer.

Chegamos assim, por vias que não puderam ser controladas, ao esgotamento de uma época democrática. No próximo ciclo, seja quem for o eleito, a obra será de reconstrução: do Estado, da economia, da política, do tecido social. Não será um começar de novo, mas qualquer avanço será sofrido e terá de ser duramente negociado.


El País: Facebook cria 'sala de guerra' para monitorar interferências nas eleições de Brasil e EUA

É o maior esforço estratégico da rede social desde transição do computador para o celular

Por Jordi Pérez Colomé, do El País

O Facebook anunciou que seu esforço para prevenir interferências eleitorais nas próximas eleições do Brasil e dos Estados Unidos é comparável a uma das maiores guinadas estratégicas da empresa: o início da passagem do computador para o celular em 2011. “Será o maior esforço transversal de todos os departamentos que esta empresa já viu desde a passagem do computador para o celular”, anunciou Samidh Chakrabarti, diretor de Eleições e Compromisso Cívico na rede, durante uma teleconferência à qual o EL PAÍS assistiu.

De acordo com um perfil recente da revista New Yorker, o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg expulsava de seu escritório todos os funcionários que ali fossem se suas ideias não levavam em conta a transição do computador para o celular. Das palavras de Chakrabarti é possível inferir que Zuckerberg quer ouvir falar apenas de segurança eleitoral.

A frase de Chakrabarti quer refletir a importância que o Facebook dá às eleições e ao risco à sua imagem. Como as ameaças evoluem e qualquer novo perigo pode surgir, a empresa insiste em repetir a mensagem de que faz todo o possível para continuar sendo uma simples rede social e não um campo de batalha nas guerras de inteligência entre os países.

Chakrabarti também anunciou a criação de uma war room física em Menlo Park, sede da empresa na Califórnia, para “tomar decisões em tempo real” e integrar os membros de todos os departamentos em um mesmo espaço: engenharia, inteligência, dados, políticas públicas, entre outros.

Para entender a magnitude do desafio, Chakrabarti explicou que “foram apagadas ou bloqueadas” 1,3 bilhão de contas falsas no Facebook entre os meses de outubro e março. Esse número representaria mais da metade do total de usuários da rede. “A inteligência artificial nos permite bloquear milhões de contas todos os dias”, acrescentou.

A origem deste esforço estratégico do Facebook começou nas eleições presidenciais dos EUA de 2016, quando Donald Trump foi eleito. A empresa advertiu que as táticas dos “adversários” –em nenhum momento da teleconferência sua origem ou identidade foi apontada– mudam e o esforço é interminável.

A equipe dirigida por Chakrabarti preparou cenários de possíveis ataques para verificar qual é o nível de preparação da empresa. Os dois exemplos de ataques que Chakrabarti deu foram uma campanha para suprimir o voto –mensagens no Facebook que, por exemplo, explicam em que se pode votar por SMS ou que anunciam falsos fechamentos de colégios eleitorais– ou páginas que divulgam material eleitoral desde o exterior.

O Facebook também criou um sistema de segurança duplo para os funcionários de campanhas políticas estaduais e federais que usam a rede, para evitar que suas contas sejam invadidas.


Juan Arias: Enquanto pastores evangélicos apoiam Bolsonaro, cúpula católica lava as mãos

Estaria Jesus, nestas eleições, a favor de um candidato que prega a violência como panaceia para todos os males?

Há momentos na história dos povos, como hoje no Brasil, onde os cristãos não podem ser omitir quando os direitos fundamentais das pessoas, como suas liberdades e defesa dos mais fracos, estão em perigo. No Brasil, 166 milhões de pessoas, cerca de 86% da população, declaram-se cristãs. Nessa parcela, 64,6% são católicas e o restante, evangélicas. Para ambos os grupos, sua constituição religiosa são os textos da Bíblia, do Antigo e do Novo Testamento. Ambas os grupos cristãos têm como lema a paz e a fraternidade, bem como a defesa dos mais humildes e esquecidos pelo poder.

As igrejas evangélicas pregam, como vi escrito até em um caminhão, que "Cristo está voltando". Pergunto-me, no entanto, se os evangélicos e católicos não seriam pegos de surpresa se, de fato, o inocente e pacífico Jesus de Nazaré, crucificado por defender os perseguidos e desprezados pelo poder, aparecesse nos dias de hoje entre eles. Estaria Jesus, nestas eleições, a favor de um candidato que prega a violência como panaceia para todos os males, que zomba das minorias ameaçadas pela intransigência, que ensina crianças a usar as mãos inocentes para imitar um revólver e que, vítima de um ataque injusto, como são todos os atos de violência, continua, de seu leito no hospital, fazendo gestos como se estivesse disparando uma arma?

Se Cristo voltasse, ficaria, certamente, surpreso com a notícia publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, de que a Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil decidiu apoiar a candidatura do capitão reformado Jair Bolsonaro, sob o pretexto de frear uma possível vitória da esquerda. Os evangélicos, como todos os cidadãos, têm o direito de preferir um candidato de esquerda ou de direita. Eles são, no entanto, seguidores do profeta que morreu por defender todas as minorias perseguidas em seu tempo e que se recusou a ser defendido por seus discípulos com a espada. Não poderia, por isso, abençoar aqueles que não só pregam a violência e até mesmo o extermínio dos inimigos, mas também fazem alarde sobre isso.

E, se pode nos surpreender o fato de que as igrejas evangélicas declarem, por meio de seus pastores, seu apoio ao candidato que fez das armas seu estandarte sagrado, também surpreende que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lave as mãos e não tenha a coragem de assumir uma posição clara sob a desculpa de que a Igreja "não se pronuncia sobre candidatos". O cardeal Sérgio da Rocha, que agora preside a CNBB, em uma cerimônia em Brasília no último dia 14, havia defendido que os católicos não devem apoiar candidatos "que promovam a violência", referindo-se a Bolsonaro. Em seguida, os bispos divulgaram um comunicado para esclarecer que o cardeal havia dado sua opinião pessoal, e que a CNBB "não se pronuncia sobre candidatos". Os bispos, mais uma vez, lavaram as mãos, um gesto que traz tristes lembranças, quando Pôncio Pilatos, antes de condenar Jesus à morte, também lavou as mãos.

A Igreja Católica, que carrega nas costas dois mil anos de história, já pagou caro no passado por ter feito uso da violência contra os hereges, nas fogueiras da Inquisição e nas guerras religiosas. Ainda surpreende aquele ambíguo lavar de mãos do papa Pio XII diante de Hitler e do Holocausto. E pagou caro por seus pecados de traição à sua doutrina de paz e de defesa das liberdades, assim como seu apoio às piores ditaduras.

Uma coisa é que, como princípio, as igrejas cristãs proclamem sua independência em assuntos transitórios da política, e outra que, quando a política se torna um perigo nacional, se permitam lavar as mãos ou ficar do lado dos opressores dos fracos e daqueles que desejam fazer da violência o centro de gravidade de um país. Para isso, não existe perdão.

No cristianismo, a neutralidade quando a vida e os direitos das pessoas estão em jogo é um pecado. A Bíblia é clara. No livro do Apocalipse (3:15-16), aqueles que preferem covardemente lavar as mãos são repreendidos: "Assim, porque és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”. O Deus cristão exige a coragem de saber se posicionar contra os violentos, no pelotão dos indefesos condenados ao esquecimento e principal alvo da violência.


Luiz Carlos Azedo: Nada mais a perder

“Ninguém leva o eleitor para votar puxando-o pelo nariz. Os que estão radicalizados são contra o PT e contra Bolsonaro; os que temem essa radicalização, tentarão viabilizar um tertius'”

O candidato a presidente da República do PSDB, Geraldo Alckmin, endureceu o discurso contra Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), que lideram as pesquisas de opinião, numa tentativa de evitar a completa desidratação de sua candidatura na reta final da campanha eleitoral. Fez ataques pesados e diretos ontem aos dois adversários nas redes sociais e no horário eleitoral gratuito, com esperança de conter a ascensão de ambos e evitar um desempenho catastrófico para seu partido e os aliados nas urnas. Uma campanha pelo “voto útil” também foi iniciada por dois intelectuais tucanos, a economista Eliana Cardoso e o cientista político Bolívar Lamounier, que lançaram um manifesto em apoio a Alckmin, dirigido aos demais candidatos do chamado “centro democrático”, para que retirem suas candidaturas.

“Apelamos aos candidatos que compõem o centro democrático para que se unam em torno de um nome com potencial de passar ao segundo turno e quebrar a perigosa polarização que está se configurando entre Bolsonaro e o PT. Apelamos a todos vocês — intelectuais, professores, profissionais liberais, cidadãos em geral — para que se unam a esse nosso esforço, endossando-o e ajudando a divulgá-lo”, explica a economista Eliana Cardoso nas redes sociais. O manifesto propõe uma reunião entre os candidatos: “Para que o eleitor não caia nas mãos de políticos extremistas, os candidatos do centro precisam se unir. A tarefa exige que os candidatos do centro, Alckmin, Marina, Álvaro Dias, Amoedo e Meirelles se encontrem e coloquem seus votos a favor do candidato que entre eles tem a maior chance de evitar uma tragédia. No momento, este nome é Alckmin”, afirmam.

Mais cauteloso, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso divulgou uma carta na mesma direção, mas sem citar nomes. Faz uma avaliação catastrófica do cenário político: “Desatinos de política econômica, herdados pelo atual governo, levaram a uma situação na qual há cerca de 13 milhões de desempregados e um deficit público acumulado, sem contar os juros, de quase R$ 400 bilhões só nos últimos quatro anos, aos quais se somarão mais de R$ 100 bilhões em 2018. Essa sequência de deficits primários levou a dívida pública do governo federal a quase R$ 4 trilhões e a dívida pública total a mais de R$ 5 trilhões, cerca de 80% do PIB este ano, a despeito da redução da taxa de juros básica nos últimos dois anos. A situação fiscal da União é precária e a de vários estados, dramática.”

O ex-presidente da República critica promessas de soluções fáceis para os problemas do país: “Diante de tão dramática situação, os candidatos à Presidência deveriam se recordar do que prometeu Churchill aos ingleses na guerra: sangue, suor e lágrimas. Poucos têm coragem e condição política para isso. No geral, acenam com promessas que não se realizarão com soluções simplistas, que não resolvem as questões desafiadoras. É necessária uma clara definição de rumo, a começar pelo compromisso com o ajuste inadiável das contas públicas”. E vai na mesma linha de um acordo entre os candidatos já no primeiro turno: “É hora de juntar forças e escolher bem, antes que os acontecimentos nos levem para uma perigosa radicalização. Pensemos no país e não apenas nos partidos, neste ou naquele candidato. Caso contrário, será impossível mudar para melhor a vida do povo”, apela.

Cartada final
Fernando Henrique Cardoso afirma que os eleitores estão polarizados entre dois apelos radicais e parecem decididos a pautar seu voto pelo medo. “A decisão do eleitor se explica. Os empregos faltam. As finanças públicas estão sob pressão e a política, podre. Sete cidades brasileiras estão entre as 20 mais violentas do mundo. Nesse quadro o apelo populista é forte”, critica. Segundo o ex-presidente da República, tanto Jair Bolsonaro como Fernando Haddad “representam uma ameaça para o Brasil e para a América Latina.” Velho desafeto dos tucanos, Ciro ficou de fora do chamado à unidade, mas será o desaguadouro natural do “voto útil” se não houver uma reação de Alckmin nas pesquisas.

Dificilmente haverá um reagrupamento dos chamados candidatos do centro democrático a duas semanas da votação. Interesses partidários, idiossincrasias pessoais e compromissos assumidos dificultam uma articulação tão ampla. Mas o discurso da unidade é uma tática eleitoral que pode ser eficiente para Alckmin, combinada ao endurecimento do discurso contra Bolsonaro e Haddad. Na reta final da eleição, ninguém leva o eleitor para votar puxando-o pelo nariz. Os que estão radicalizados são contra o PT e contra Bolsonaro; os que temem essa radicalização, tentarão viabilizar um “tertius”. A jogada tucana é para ocupar essa posição, deslocando Ciro Gomes (PDT), o que não é uma tarefa fácil. Estatisticamente, porém, não é impossível.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-nada-mais-perder/


Ribamar Oliveira: Aumento da isenção do IR vai custar bilhões

Não está claro como a medida será compensada

O programa de governo do candidato do PT à Presidência da República, Fernando Haddad, prevê a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos por mês, o que, em 2019, corresponderá a algo em torno de R$ 5 mil. O candidato ainda não apresentou a estimativa para o custo fiscal da medida, mas um estudo feito pela área econômica do governo no ano passado mostrou que apenas dobrar o atual limite de isenção do IR (que é de R$ 1.903,98) levaria a uma perda de arrecadação entre R$ 28 bilhões e R$ 73 bilhões, dependendo das regras a serem adotadas para as diversas faixas do IR e para as deduções.

A razão de tamanha perda de renda é explicada pelo fato de que a taxação do IR é progressiva. O aumento da faixa de isenção irá beneficiar todos os contribuintes, até os mais ricos, pois a primeira alíquota de 7,5% incide sobre a renda que ultrapassa o limite não tributado.

O estudo da área econômica, ao qual o Valor teve acesso, conclui que o benefício dado ao grupo de renda mais baixa seria ilusório, pois ele já não paga ou paga quase nada de IRPF. O ganho maior será capturado pelas famílias que recebem dez salários mínimos ou mais.

Os técnicos da área econômica analisaram uma proposta de passar o limite de isenção de R$ 1.903,98 para R$ 3.807,96 - ou seja, dobrar o valor (cerca de quatro salários mínimos do ano passado). No primeiro cenário, além do aumento da isenção, os técnicos consideraram a duplicação das deduções com dependente, do limite anual da despesa com instrução e do limite anual referente ao desconto simplificado.

Esse cenário é o mais alinhado com as alterações realizadas pela Receita Federal nos últimos anos, no qual se alteraram as faixas e as deduções pelo mesmo percentual. Sob essas hipóteses, a renúncia fiscal atingiria o montante de R$ 73 bilhões por ano. Haveria um salto do número de isentos de 8,8 milhões de contribuintes para 20,4 milhões. As simulações do estudo foram realizadas com base nos dados das declarações do IRPF de 2016, ano base 2015.

No segundo cenário, os técnicos consideraram que as faixas de rendimento atuais acompanhariam a duplicação da faixa de isenção, sendo também duplicadas. Mas, neste caso, os limites das deduções permaneceriam nos níveis atuais. Neste caso, a renúncia cairia para R$ 65 bilhões e o número de contribuintes isentos passaria de 8,8 milhões para 19,9 milhões.

No terceiro e último cenário, os técnicos consideraram que as três primeiras faixas da tabela atual seriam consolidadas e não haveria correção dos limites de deduções. Com isso, rendimentos mensais de até R$ 3.751,05 (que atualmente é o limite de renda para a incidência da alíquota de 15%) teriam alíquota zero. Ou seja, os contribuintes que atualmente estão sujeitos às alíquotas de 7,5% e de 15% passariam à alíquota zero.

A alíquota atual de 22,5% incidiria na faixa de renda de R$ 3.751,06 a R$ 4.664,68, com parcela a deduzir de R$ 843,99; e outra de 27,5%, que incidiria sobre a renda superior a R$ 4.664,68, com parcela a deduzir de R$ 1.077,22. As hipóteses foram consideradas pelos técnicos para reduzir a perda fiscal. Mas este cenário gera uma mudança brusca na aplicação da alíquota do IR. O indivíduo que receba R$ 3.751,05 por mês estaria isento, enquanto outro que receber R$ 4 mil estaria submetido a uma alíquota de 22,5%. Os técnicos dizem que variação brusca de alíquota, de 0% para 22,5%, pode gerar incentivos ruins, principalmente para aqueles que estão acima da faixa de isenção, como evasão fiscal e acordos de trabalho informais.

Em 2015, o Brasil possuía apenas 27,7 milhões de declarantes do IRPF para uma população de aproximadamente 204 milhões de pessoas. Do universo de declarantes, 8,8 milhões eram isentos, ou seja, 32% estavam na faixa da alíquota zero. Assim, somente 18,8 milhões pagavam IRPF, o que corresponde a 20% da população ocupada, de 92 milhões de pessoas.

Os técnicos informaram que 92% de toda a receita do IRPF é paga pelos 10% mais ricos da população. Mais da metade dos declarantes (60%) está nas faixas de renda de até cinco salários mínimos, porém, segundo o estudo, estes representam menos de 2% do total do Imposto de Renda arrecadado.

A conclusão do estudo é que o ganho com o aumento da isenção, dado à população de renda de até quatro salários mínimos, seria ilusório, pois esse grupo ou não paga ou paga muito pouco IRPF. O ganho maior seria capturado pelas famílias que recebem dez salários mínimos ou mais, visto que suas alíquotas efetivas são maiores e crescentes. Os técnicos explicam que o reajuste da tabela com "efeito cascata" e o eventual reajuste dos limites de isenção vão beneficiar justamente as famílias mais ricas.

O custo fiscal da elevação do limite de isenção do IRPF teria que ser compensado para não provocar um desequilíbrio ainda maior nas finanças públicas, que registram déficit primário desde 2014. Ainda não está claro na proposta do candidato do PT como a perda de receita será compensada. Mas, é óbvio, que alguém vai pagar a conta. Provavelmente, as alíquotas do IR para as rendas acima do limite de isenção serão elevadas.

Reforma tributária
Dez entre dez candidatos à Presidência da Republica garantem que farão uma reforma do sistema tributário brasileiro. Eles precisam ficar atentos, no entanto, ao alerta feito pelo economista José Roberto Afonso e pela advogada Lais Khaled Porto, em recente artigo para a revista "Conjuntura Econômica". Eles consideram terrivelmente desafiador redesenhar um sistema frente a mudanças estruturais na economia que ainda estão em curso, de forma rápida e drástica, e muitas ainda nem começaram.

"Ninguém tem a menor certeza hoje de quais serão os impostos mais apropriados para se exigir no futuro, porém, crescem os indícios de que muitos dos atuais tributos se tornarão obsoletos ou impensáveis", advertem.

Afonso e Lais Porto afirmam que se deve buscar a tributação das novas transações, notadamente daquilo que tem crescente valor econômico atualmente, embora de difícil mensuração: o capital intelectual ou intangível - dos frutos do conhecimento aplicado (como a propriedade intelectual) aos softwares e bens virtuais. "E não se vislumbram maneiras eficientes de se fazer isso dentro do atual sistema", afirmam.


El País: “Haddad está no segundo turno, Bolsonaro ainda não”, diz estatístico de campanhas

Paulo Guimarães, que atua em 13 Estados nesta eleição, ainda enxerga Alckmin ou Ciro contra o PT: "O voto branco e nulo diminuiu e foi maciçamente para Bolsonaro. Historicamente esse voto não é dele"

O deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) não para de subir nas pesquisas de intenção de voto desde que foi vítima de um atentado no início de setembro, mas seu lugar no segundo turno ainda não está garantido, diz o estatístico Paulo Guimarães. Conhecido como "guru" de campanhas por ajudar a eleger, entre outros casos considerados impossíveis, o hoje candidato ao Senado César Maia (DEM) à prefeitura do Rio de Janeiro em 1992, Guimarães acompanha a eleição por meio de grupos controle de eleitores, atuando em 13 Estados nesta eleição. Presta consultoria, entre outras, à campanha de Geraldo Alckmin (PSDB), que ele põe ao lado de Ciro Gomes (PDT) no páreo pela vaga que muitos já dão como garantida para Bolsonaro no segundo turno.

O desafio de adversários mais ao centro, segundo ele, é se provar melhores adversários contra o PT de Fernando Haddad e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "O voto que veio [para Bolsonaro] após a facada é de um contingente puto contra o sistema. O voto branco e nulo diminuiu drasticamente e foi exclusiva e maciçamente para o Bolsonaro. Historicamente esse voto não é dele", diz o estatístico na entrevista que segue abaixo.

Pergunta. O que é possível dizer neste momento sobre o desfecho do primeiro turno?
Resposta. O Haddad vai para o segundo turno. Era muito difícil o candidato do Lula não estar no segundo turno, e isso tem se confirmado pelas tendências. O Lula é um apoiador muito forte. Muita gente confundiu o apoio dele ao Haddad presidente com o apoio ao Haddad prefeito de São Paulo. Quem sabe do buraco da minha rua é o prefeito, o ex-prefeito, o candidato a prefeito. O presidente fica longe, distante. O governador está um pouco mais próximo, mas quem está muito próximo é um ex-prefeito, um prefeito atual.

P. Bolsonaro lidera as pesquisas desde o início da campanha e não para de crescer. Por que não está garantido?
R. O voto dele não é de competência, é de protesto, de ódio ao outro lado. A maior fidelização entre os candidatos é a do Bolsonaro, mas tem uma parte muito flutuante ali ainda, que está lá pelo ódio. Se o eleitor perceber que pode ganhar do PT sem o ódio, ele pode mudar. Mas, para isso, tem de aparecer um desses outros candidatos de centro com uma votação que dê esperança ao eleitor. E isso vai ser decidido nos últimos três dias. Se um desses de centro chegar [ao final da corrida eleitoral] com 15% e o Bolsonaro com 25%, é possível.

P. É possível prever um cenário assim mesmo diante do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas?
R. As chances deles aumentam com o crescimento nas pesquisas, mas pode mudar muita coisa se o Bolsonaro não se mostrar competitivo contra o PT no segundo turno. Eu já vi [Celso] Russomanno a três dias da eleição com 11 pontos na frente de [José] Serra e Haddad [na eleição pela Prefeitura de São Paulo em 2012], e os dois passaram à frente. Se ninguém aglutinar, os votos vão para o Bolsonaro por conta do ódio ao PT. Se alguém do centro aparecer bem posicionado, vai atrair os votos úteis. Ainda é um pouco cedo para se pensar num quadro definitivo. Mas eu apostaria que o Haddad está no segundo turno, e a outra vaga tem de ser disputada por Ciro, Geraldo e Bolsonaro.

P. Alckmin consegue tirar voto de Bolsonaro?
R. Qualquer um consegue. Dezesseis por cento dos votos do Bolsonaro são do PT. Haddad vai tirar votos de Bolsonaro, do eleitor pobre do Nordeste. Da mesma maneira que, se Bolsonaro se consolidar como a única força contra o PT, ele vai tirar votos de Geraldo, do centro. Se o Geraldo se mantém solto [do grupo de candidatos empatados nas pesquisas], é uma briga entre eles dois para ver quem vai enfrentar o PT no segundo turno. A simulação de segundo turno com Haddad crescendo... Tem uma linha toda de centro que pode explorar isso, mas as campanhas de uma maneira geral foram muito ruins. Com exceção à do [Henrique] Meirelles.

P. Por que a campanha do Meirelles (MDB) não emplaca?
R. Por causa do [presidente Michel] Temer. As pesquisas mostram que, se Meirelles não estivesse com Temer, teria mais votos. Falei isso desde o princípio. O Alckmin atingiu seu auge de 10% quando bateu no Temer e o Temer retrucou. O campo vencedor da eleição é o de oposição ao Temer. E ninguém explorou isso, só a Marina [Silva, Rede] no lançamento da candidatura dela. Por isso ela saiu à frente daquele bloco. Agora é um campo político: PT e anti-PT.

P. O argumento dos tucanos pelo voto útil tem poder de atrair eleitores?
R. O voto útil tem uma hora certa de acontecer, para quem quer que seja. Um candidato não precisa passar o outro para ter voto útil, mas apenas mostrar uma recuperação. Pelo tempo de tevê e por aglutinar uma parte do centro, que é maior do que o ódio da direita e o ódio da esquerda, Alckmin teria mais chance de voto útil no final —votos inicialmente do [João] Amoêdo, do Meirelles. Isso é histórico. Na eleição que o Geraldo perdeu [para Lula, em 2006], ele teve nove ou dez pontos a mais do que as últimas pesquisas indicavam. Foi uma surpresa muito grande ele passar da casa dos 40%. Nas últimas pesquisas oficiais, o Aécio [Neves, em 2014] cresceu muito nos últimos dois dias, contra a Marina. Esse voto conservador sempre esteve do lado não do PSDB, mas desse centro de conciliação.

P. O atentado contra Bolsonaro forçou a campanha de Alckmin a interromper as críticas que fazia para desconstruir o adversário. Já dá para dizer que foi um evento crucial na corrida presidencial?
R. É preciso aguardar o fim da eleição para dizer isso. Nós fazemos um trabalho de grupo controle. No dia da facada, o único que perdia votos era o Bolsonaro. Aí veio a facada, nós paramos o campo, e ele foi para 22% [no Ibope]. Ele não recebeu esses votos do eleitor do Alckmin ou da Marina, foi basicamente dos brancos e nulos e dos indecisos, pela comoção, como a Marina teve aquela enxurrada de votos [em 2014], que também não eram dela, porque o avião [que levava o então cabeça de chapa do PSB, Eduardo Campos] caiu. O povo do Brasil é assim, é coração. “Se deram uma facada nele, ele deve ser bom”. Nas pesquisas oficiais, ele cresceu 2%. Mas se o Alvaro Dias (Podemos), que tem menor rejeição, tivesse levado uma facada, ele teria crescido muito mais.

P. Você diz que esses votos não são de Bolsonaro. São de quem?
R. O voto que veio após a facada é de um contingente puto contra o sistema. O voto branco e nulo diminuiu drasticamente e foi exclusiva e maciçamente para o Bolsonaro. Historicamente esse voto não é dele, e tenderia a voltar para o estágio inicial conforme o efeito fosse diminuindo, mas ele ainda está no hospital. A facada não deu a esse candidato nenhum atributo de voto, mas a comoção pode ir até o fim da eleição ou não. A Marina desmorona toda eleição porque ela não tem atributos de voto: firmeza, experiência, competência, autoridade, coragem. São 36 atributos de votos que compõem um candidato a presidente da República. Não sou eu que estou julgando a Marina, é isso que o eleitor fala. Ela tem imagem de guerreira, uma mulher de origem muito pobre, batalhadora, mas isso não é atributo de voto. Ela também ficou marcada por ficar quatro anos sem marcar um atributo.

P. É de se esperar, então, que Bolsonaro perca algum do espaço ganhado nos últimos dias?
R. A Marina teve muito mais [intenção de voto] do que ele tem hoje, subiu 31 pontos e chegou a 37% [em 2014]. A esse ponto, o Aécio não estava sequer no debate. A comoção se dissipou e ela ficou com 21%, ele [o senador tucano] foi para o segundo turno. Ainda é cedo. Hoje se aposta muito mais no Bolsonaro porque ele está à frente. Mas nas últimas eleições das capitais, apenas três candidatos que saíram na frente ganharam, entre eles o ACM Neto (DEM) e o Marcelo Crivella (PRB). Todos os outros saíram muito de trás. O [prefeito de Porto Alegre, Nelson] Marquezan (PSDB) largou com 3,6%. Quem sai à frente tem o ônus de ser a maior mira de todo mundo, e também carrega os votos do eleitor desatento, que indica o voto nele porque é o candidato mais comentado. Quando ele começa a prestar atenção, percebe que não é isso que ele queria.

P. E Bolsonaro, não tem mais para onde crescer?
R. Tem, mas em função do ódio, não dele. A rejeição dele é muito alta há algum tempo. À medida que o Lula fica mais odiado, que outros candidatos dizem que vão dar indulto para ele, o eleitor decide votar no Bolsonaro. O jogo hoje é muito mais político do que temático —de melhorar saúde, educação, segurança. As mulheres não votam no Bolsonaro, mas as mulheres pobres tendem a decidir o voto mais tarde. O país é absurdamente machista. O marido vai dizer em quem elas devem votar, principalmente nas classes mais baixas, das mulheres mais agredidas. O voto da mulher tem convergido para o voto do homem historicamente.


Bruno Boghossian: Haddad antecipa caça aos fantasmas do PT para segurar rejeição

Foram necessárias sete perguntas em quatro minutos até que Fernando Haddad desse sua declaração mais enfática até agora sobre a possibilidade de um indulto que poderia tirar Lula da prisão. “Não. A resposta é não”, afirmou.

Uma semana após assumir a candidatura do PT, Haddad tenta afastar um dos principais fantasmas que pairam sobre sua campanha. Em entrevista à CBN, disse que Lula não quer ser solto por medida excepcional, desautorizou petistas que defendem esse perdão ao ex-presidente, reclamou do debate sobre o assunto e sentenciou: “Não ao indulto”.

Haddad caminhava sobre uma corda bamba. Lula assombra parte dos eleitores, mas é tratado como espírito divino por outros. Ao refutar uma manobra aberta para libertar o padrinho, o candidato indica que a preocupação com o crescimento do antipetismo começa a falar mais alto.

O crescimento de Jair Bolsonaro e a tentativa do candidato do PSL de turbinar o sentimento de medo da volta do PT obrigaram Haddad a emitir sinais antecipados de moderação. Além da declaração contra o indulto, o petista ensaia correções na cartilha econômica defendida pelo partido nos últimos meses.

Há dois dias, o candidato rebateu opiniões do economista Marcio Pochmann, do PT, que contestava a urgência de uma reforma no sistema de aposentadorias. Haddad reconheceu a gravidade do buraco das contas públicas e admitiu discutir mudanças na Previdência.

Em ambos os casos, o petista faz acenos contidos. Declara que não vai tirar Lula da cadeia, mas diz que o ex-presidente será inocentado e solto. Na economia, tenta amenizar os receios do mercado financeiro com o PT, embora tenha evitado encontros públicos com grandes investidores.

Movimentos calculados em direção ao centro do espectro político são comuns, principalmente no segundo turno. O acirramento da disputa precipitou os passos de Haddad. Bolsonaro ainda guarda esta carta na manga, embora não se saiba se ele pretende utilizá-la.


Bernardo Mello Franco: A eleição que virou um duelo

Há uma semana, cinco candidatos ainda pareciam ter chance de vitória. Agora a disputa se afunila para um plebiscito entre o bolsonarismo e o lulismo

Anova pesquisa do Ibope mostra que a corrida presidencial mudou de cara. Há uma semana, cinco candidatos ainda pareciam ter chance de vitória. Agora a disputa se afunila para um plebiscito entre o bolsonarismo e o lulismo.

Jair Bolsonaro se consolidou na liderança. Ele oscilou positivamente e chegou a 28% das intenções de voto. Fernando Haddad deu um salto expressivo e aparece com 19%. O petista abriu oito pontos de vantagem para Ciro Gomes, que estacionou em 11%.

Os números apontam para um duelo final entre Bolsonaro e Haddad. No entanto, as campanhas passaram a trabalhar com outra hipótese. Com a polarização, o eleitor pode antecipar a decisão para o primeiro turno.

“Acho dificílimo, improvável, mas não impossível”, diz o presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro. “Vai depender do voto útil. Do jeito que a população está chateada, pode haver um movimento para decidir logo”.

Considerando apenas os votos válidos, Bolsonaro tem 36% e Haddad tem 24%. Os dois estão em alta e tendem a crescer mais na reta final. Se ficar claro que um deles será presidente, eleitores de outros candidatos devem engordá-los com o voto útil. A taxa de abstenção e a soma de brancos e nulos terão peso decisivo.

Bolsonaro fará o possível para atrair quem topa tudo para evitar a volta do PT. O capitão tentará recrutar eleitores de Geraldo Alckmin e dos nanicos Alvaro Dias, Henrique Meirelles e João Amoêdo. O desafio de Haddad é buscar quem se desiludiu com o PT, mas não deseja entregar o país a um militar que já pregou o fechamento do Congresso e o fuzilamento de adversários. Ele já começou a ensaiar uma guinada ao centro. Agora deve se apresentar como a única “opção contra a barbárie”.

Ciro ficou espremido em sua tentativa de terceira via. Agora precisa rezar por um tropeço dos líderes. Salvo uma reviravolta, Alckmin e Marina Silva parecem fora do jogo. A campanha do tucano tende a se transformar numa crônica de traições, com o centrão se dividindo entre Bolsonaro e Haddad. A da ex-senadora caminha para um fim melancólico. Em 14 dias, ela perdeu metade dos votos. Quase todos para o escolhido de Lula.


Hamilton Garcia: Os candidatos e suas estratégias para a superação da crise política

A quinze dias do primeiro turno, faço uma pequena pausa nas reflexões acerca dos desvãos da esquerda ("A que herança renunciamos" e "A evolução da esquerda"), para discutir os projetos que se descortinam nas eleições presidenciais-congressuais que se aproximam visando superar o impasse aberto por um Congresso Nacional dominado por interesses corporativos que ameaçam a própria governabilidade do país.

A crise política que estamos vivenciando tem múltiplos aspectos e determinantes, mas nenhum deles associado ao protagonismo da extrema-direita ou dos militares – pelo menos até aqui. Na verdade, o fenômeno político do bolsonarismo-olavismo e a reemergência do militarismo, fazem parte dos corolários da crise, embora prometam, a partir de agora, ter um papel ativo no jogo armado pelo eleitor em 2019.

Tampouco a crise por vir deriva exclusivamente das características do presidenciável a ser ungido pelas urnas, como alguns analistas insistem em afirmar – geralmente por falta de empatia com algum candidato. Ela afetará a todos – não obstante assuma diferentes contornos e desdobramentos à depender do eleito – e isto por um motivo conhecido. O parlamento a ser eleito, de acordo com as normas conhecidas, num cenário político anômico (gestado nos 13 anos de desmandos do lulopetismo no poder), em presença de uma cultura política não reformada – pautada no favor –, tende a produzir o mesmo efeito político observado desde 2003: uma crescente autonomização do parlamento com base no protagonismo dos “trezentos picaretas”, no qual Lula se apoiou para surfar a onda chinesa das commodities e ressuscitar o mito do “pai dos pobres” – que o PT tanto penou, nos anos 1980-90, para sepultar.

A crise, da qual falo, não tem nada a ver com a refração natural de uma assembleia democrático-pluralista tendente a moderar as exacerbações plebiscitárias da eleição presidencial – como a literatura internacional prescreve nas democracias-liberais avançadas –, mas com um corpo de representantes desnaturados, baseados em partidos majoritariamente esvaziados de significado próprio, que substituem os laços orgânicos com a sociedade por laços mecânicos, por meio da corrupção ativa/passiva e do aparelhamento (debilitante) da máquina pública, tornando-se, assim, incapazes de representar e processar adequadamente as demandas eleitorais.

É sob tal superestrutura que a super-coligação de Alckimin não serve como antídoto para a crise de governança que vivemos, que tende a se desdobrar em ingovernabilidade em face do esgotamento do modelo parasitário (neopatrimonial) de governo. Ao contrário, a solução tucana – na difícil hipótese de chegar ao segundo turno – pode ser vista como mais propensa a agravar a crise dada, justamente, as características de sua coalizão eleitoral, cujos partidos, em sua grande maioria, se nutrem da manipulação irracional do gasto público.

Seu antípoda natural, Haddad – este com chances de chegar à próxima etapa –, atado à “Ideia”, se eleito, será prisioneiro dela sem a margem (desperdiçada) por Dilma, o que tende a colocá-lo no mesmo pântano de Alckimin, embora em termos bem menos orgânicos, dado que seu partido (PT) é de inserção ainda mais recente no sistema neopatrimonial de poder que o PSDB – o que eleva seu pedágio de aceitação, como se viu no Mensalão-Petrolão. Claro, ele poderá enfrentar o "golpismo" da sua "base aliada” com os poderes hipnóticos do Osho (1) petista, no ministério e na mobilização popular, mas, para tal, precisará da ajuda do STJ e do STF – o que pode não ser suficiente para evitar uma crise ainda mais grave.

A novidade em termos do enfrentamento do impasse anunciado está, na verdade, nos outros três candidatos competitivos, Bolsonaro, Ciro e Marina, que apresentam alternativas ainda não testadas para superar o escolho parlamentar do neopatrimonialismo.

Marina, em trajetória cadente mais uma vez, postula a construção de uma frente ampla de forças republicanas vocacionada para enfraquecer o poder do centrão, diminuindo os custos do governo e abrindo brechas para a autorreforma do Estado. Mas, seu ponto fraco foi a falta de protagonismo pré-eleitoral, desperdiçando as oportunidades abertas pelo cismo popular de 2013 para fincar os fundamentos de seu projeto frentista, deixando-se consumir na tarefa endógena de construção da REDE – aparentemente entendida por seu grupo como uma operação não-integrada à luta política geral.

Já Ciro, cerceado pelo mito que ajudou a cultivar, flerta com a ideia do novo bloco histórico dispondo-se a formar coalizões de classe (de caráter desenvolvimentista) articuladas a projetos políticos nacionais, mas, assim como Marina, não soube traduzir este propósito em ação efetiva pré-eleitoral no contexto acima apontado – o que também pode lhe custar caro na disputa pelo segundo turno.

Por fim, Bolsonaro, consolidado em primeiro lugar, exatamente por ter feito seu dever de casa pré-eleitoral, denunciando, desde 2003, a esquerda golpista (bolivariana), os devaneios identitários e a cumplicidade tucana, pretende enfrentar o centrão empunhando a espada de Dâmocles do intervencionismo militar. Ocorre, porém, que esta espada, pode ter dois gumes, como nos mostram os desencontros observados na própria campanha do Capitão depois do atentado por ele sofrido: pode tanto servir para domesticar a bancada fisiológica do congresso, como para podar seu próprio poder em proveito dos generais do Alto Comando Militar. Das candidaturas competitivas, é a dele que apresenta o maior grau de imprevisibilidade – vide o efeito ilusivo de Paulo Guedes sobre o “mercado" –, não obstante ser também aquela que melhor proveito pode tirar do poder dissuasório dos militares, se conseguir apaziguar sua própria retaguarda.

Até que ponto e em qual momento a ingovernabilidade sistêmica, contratada pela ausência de reforma político-eleitoral, vai se apresentar ao candidato vitorioso, não é possível determinar, mas é certo que o fará em algum momento – Ciro fala numa janela de seis meses de sincronismo parlamentar com o Presidente eleito –; naturalmente, a depender do grau de resistência que seu programa encontre na sociedade e no Estado.

O fato, contudo, é que o tempo político foi encurtado pela crise econômica e não há pela frente nada que se assemelhe à bolha econômica providencial do período Lula (2003-2008), muito pelo contrário, como nos mostra a disputa comercial entre EUA e China. Isto faz com que o próximo presidente tenha que jogar suas fichas no curto-prazo, como Ciro tem defendido, torcendo para que elas sejam capazes de neutralizar o poder de veto do parlamento para uma virada em direção a um novo patamar de desenvolvimento que sustente os gastos públicos racionais e os anseios de prosperidade da maioria da população pelo trabalho.

Notas
1 Mestre indiano que, nos anos 1960, desenvolveu, nos EUA, uma técnica de relacionamento com a espiritualidade sem que fosse necessário negar os hábitos e vícios do mundo material, como o sexo livre e o dinheiro; vide <www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/30/Quem-foi-Osho.-E-por-que-est%C3%A3o-fazendo-uma-s%C3%A9rie-sobre-sua-vida> em16/09/18.

2 Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).